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umário 4. Introdução Marcius Fre.ire J4. Venceu a conta de ar: a distopia ecológica no cinema brasileiro de ficção científica, AJhdo Suppia 40. Um cinema sem lei: os filmes de bordas de Seu Manoelzinho, Bernadette Lyra 60. 0 jogo de encaixe entre Rambú e Rambo, Gelson Saniana 76. Necrofilia cinematográfica no Rio Grande do Sul, Laura Cánepa 700. Eles comem sua carne: o filme escatológico-canibal de Petter Baiestorf, iúci.o f.jedade J20. 0 su/.c/`d/.o, o melodrama do melodrama ou Mefistófeles em Maceió, iüi.z vadi.co J44. Se não mata, engorda: os spaghett/'5 de Afonso Brazza, Mar;a lgnês Carlos Magno 160. Minha esposa é um zumbi e a m.istura de gêneros no Cinema de joel Caetano, fl\ogérí.o ferraraz J80. Na periferia das bordas: ação e romance nos filmes de Simião Martiniano, flíosdna soares 208. 0 caso das criaturas que assombram o Paraná: investigações sobre formas e práticas cinematográficas do interior do país, Zuleika Bueno 236. Referências bibliográficas 248. Filmes de bordas citados 260. Sobre os autores Entrodução Nas cercanias da arte CinematográficaT Marcius Freire ' André Breton chamava a arte no/J, as artes populares e a arte bruta de "l'environ de l,art„. CINEMA DE Quando os autores me convidaram para fazer a intro- dução deste segundo volume de ``Cinema de Bordas", cer- tas perguntas a respeito dos filmes aqui tratados agitaram o meu espírito. Antes de tudo porque tenho acompanhado com grande interesse o trabalho do grupo, assistindo aos filmes estudados, lendo os artigos escritos sobre eles e fre- qüentando os seminários, palestras e mesas redondas em que o tema está em pauta. No entanto, o convite e a tarefa que a sua aceitação me impôs, deixaram-me com um misto de regozijo e apreensão. Regozijo por ter a oportunidade de alinhar-me a pesquisadores a quem respeito na busca por uma melhor compreensão dessas obras mestiças, fruto do cruzamento de tantos gêneros (voltaremos depois so- bre isso), tantas motivações e tantas técnicas; e apreensão porque o caráter lábil dessas produções, sua ancoragem hesitante e movediça no interior da arte cinematográfíca, desconcertam métodos, confundem teorias e embaraçam aqueles(as) que destes se servem para tentar explicá-los. Seja como for, passei a buscar respostas para algumas das perguntas acima referidas. 0 que segue é uma apresen- tação desse questionamento e um ensaio de explicações que partilho com o leitor antes que este penetre no labi- rinto em que estão presentes Seu Manoelzinho, Affonso Brazza, Simião Martiniano, Rambú da Amazônia, e outros nomes pouco conhecidos dos estudiosos de cinema e au- diovisual. Que os filmes aqui analisados se inserem à perfeição iiessa categoria de que os autores presentes neste volume vêm se tornando referência no Brasil, não há rastro de dú- vida. Aliás, eu ousaria mesmo dizer que, talvez, nenhuma outra variável do cinema não-dominante se identifica tão l)em com a idéia de um cinema situado nos limites da arte cinematográfica. No entanto, se o cinema de bordas, como BO¢o > •, N € Lu Z u OE B0RDAS 2 definido no primeiro volume, encontra abrigo e se desdo- bra no interior daquilo que os autores chamam de "regime trivial do lazer'', em contraponto ao que seria um "regime sério do lazer", nossos filmes reclamam um pouco mais de atenção às suas idiossincrasias antes de serem assimilados a essa categoria. Não que exista qualquer dúvida quanto a essa assimilação, mas, justamente, para que, dentro da perspectiva que é aqui a nossa - e como tentaremos de- monstrar -eles se apresentem como o mais legítimo repre- sentante deste vasto e diversificado domínio do cinema de bordas. De imediato é necessário observar que uma das parti- cularidades dessas realizações é o fato de as mesmas se- rem gestadas por amadores, por não profissionais. Logo, fazem parte de um universo que, desde os primórdios do cinematógrafo, convive com o cinema industrial e já foi ob- jeto de inúmeros estudos2. Esse é um primeiro elemento que caracteriza o conjunto de obras tratadas e lhes dá uma identidade própria no espaço das ``bordas'', uma vez que o primeiro volume de "Cinema de Bordas" nos mostra que este conceito também acolhe produções perfeitamente in- seridas no contexto do cinema industrial. Mas o cinema de amador, o cinema realizado por ``amantes" das imagens em movimento, inclui outras sub- categorias que nada têm a ver com os filmes trabalhados neste volume. Bons exemplos disso são os filmes de familia, ou home mov/.es, no vocabulário anglófono,. bem como os filmes de turismo, aqueles que têm como objeto de registro os seres e as coisas para os quais os viajantes modernos apontam suas objetivas ao longo de seus périplos descom- 2Ver notaclamerite, Zjimrnerrr`anm, Pa`r(cjia. Reel Family. A Socicil History of Amateur F/./m, Bloomington and lndianapolis: lndiana University Press,1995. ciNEMADE8°4o promissados3. Ou, ainda, aquelas produções oriundas de comunidades instaladas na periferia das nossas grandes cidades a que muitos estão chamando de filmes de peri- feria4. 0 que então caracterizaria esses filmes? Em que eles se demarcam dos tantos outros que compõem o vasto do- mínio do filme não industrial e porque possuem uma per- sonalidade à parte no interior dos filmes de bordas? Tentar responder a essas questões implica fazer uma incursão no âmbito do filme amador para buscar aqueles que seriam os traços distintivos das obras aqui tratadas. Um cinema Naj7? A primeira constatação que se depreende dessa breve incursão é aquela a que rapidamente já me referi acima: a maior parte desses filmes é obra de não-profíssíonais, de aficionados que se dedicam à realização cinematográfica por hobby, passatempo ou, ainda, puro diletarntismo - e aqui eles se distinguem de outros filmes de bordas. Seus re- alizadores não visam auferir lucros com o investimento fei- to. Eles desempenham atividades as mais diversas, que vão de camelô a pedreiro, de arquiteto a bombeiro, e retiram dessa atMdade primeira as condições financeiras que vão permitir a construção de seus artefatos audiovisuais. É ver- dade que alguns trabalham no setor e garantem o sustento exercendo alguma função em sua cadeia produtiva; outros possuem sua própria produtora para a concretização de 3 É sabido que, muitas vezes, essas duas modalidades se confiindem, sendo o filme de turismo resultado de viagens familiares. 4 Boa parte dos assim chamados f`lmes de periferia têm a vida quotidiana dos subúrbios como tema. Muitos são produzidos justamente para denunciar esse quotidiano. Paralelamente ao Último festival ''É tudo verdade" foi organizado por realizadores da zona norte de São Paulo o evento "É tudo mentira'', cujo obietTvo era, justamente, chamar atenção para essas produções algo esquecidas no Festival. seus projetos, mas nenhum exerce a realização cinemato- gráfica como ocupação principal. Por se situarem à margem do sistema produtivo, de modo geral, não fazem apelo às leis de incentivo à pro- dução cinematográfica existentes no país e permanecem confortavelmente instalados na categoria de ``produtores independentes''. Consequentemente, no mais das vezes, realizam trabalhos pouco custosos cujos ingredientes, de atores a cenários são amealhados no ambiente familiar e/ ou no círculo de amigos. A grande maioria é autodidata e tem na espontaneidadecom que tratam os seus temas a chave mestra de sua criação. Dão as costas à crítica especializada, não se identificam com escolas ou movimentos e não estão preocupados em agradar o grande público. Tampouco estão de olho em grandes bilhete rias, até mesmo porque seu sistema de exibição passa ao largo das salas tradicionais e dos circuitos comerciais estabelecidos. Seus espectadores são, primeiramente, seus familiares, vizinhos e amigos que assistem a seus filmes em sessões privadas e em espaços alternativos, como praças públicas, centro culturais etc. É verdade que, já há alguns anos esse público se expandiu com a comercialização artesanal de fitas VHS e, em tempos mais recentes, de DVDs vendidos em camelôs ou diretamente das mãos do diretor ou dos membros de sua equipe. Deve ser ob- servado, também, que, nos últimos anos, esses filmes têm sido acolhidos em mostras e festivais, como o ``Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre", a ``Mostra Urbana, em Goiás'', ou, ainda, eventos mais especfficos, mais afeitos ao seu perfil, como o ``Festival de anema Superi} de Campinas", e a ``Mostra Lor+ drina de Cinema Superi}''. Ao se alojarem fora dos sistemas oficiais de distribuição e exibição, seja em salas, seja em suportes como o DVD ou CINEMA DE o VHS, esses filmes não são assimiláveis a bens culturais e produções artísticas destinadas ao lazer do grande público - e aqui eles se distinguem dos filmes de bordas tratados no primeiro volume. Eles não se destinam à fruição, séria ou banal, dos espectadores que têm nas salas de cinema e em seus home-theaters um espaço de diversão. Talvez pu- déssemos avançar, provisoriamente que, assim como nos filmes de famflia, o primeiro público a que esses filmes se destinam, os primeiros espectadores dispostos a preencher algum de seu tempo disponível distraindo-se com o seu vi- sionamento, são os familiares e o círculo de amigos próxi- mos do diretor e de sua equipe. lndependentes na sua estrutura de produção, distribuição e exibição, independentes nas suas estéticas e construções discursivas. Em que pese o fato de, em quase sua totalidade, esses filmes pedirem emprestado ao produto industrial seu modelo narrativo - raras são as propostas que enveredam pelas trilhas da vanguarda, do experimental ou, mesmo, do documental -, tal modelo é corrompido,em suas normas fun- damentais e é essa corrupção estilística que vai moldar a sua personalidade. Cada realização é única em suas rupturas com as regras estabelecidas, na originalídade de suas escolhas estéticas, na paródia que algumas fazem do cinema industrial nar- rativo. Aliás, a paródia de gêneros consagrados é uma das marcas registradas dessas produções. 0 horror, a ficção cienti'fica, o erótico, o filme de ação, a comédia, ou -o que é mais freqüente -a mistura de todos esses gêneros parece ser a matriz a que todos os realizadores fazem apelo na confecção de suas fitas. Muitos desses filmes, no entanto, não fazem uma paró- dia intencional dos gêneros estabelecidos. Para construir sua trama, seus diretores lançam mão de uma plataforma, de BO¢o >0 ~ €roE LL' Z u B0RDAS 2 uma base que é constitui'da pelos principais códigos de um determinado gênero. Não obstante, esses códigos são distor- cidos e a forma como são usados provoca uma reviravolta semântica na estrutura narrativa que vai interferir de maneira determinante na sua recepção pelo espectador. Este último, conhecedor das convenções do gênero, se imbui de uma espera, de uma expectativa em relação a elas. Mas, quando seus sentidos se deparam com um arremedo d ções ou com a sua deformação explícita, sua fr da obra não passa mais pelo prazer estético decorrente do simples reconhecimento dessas convenções, como quer Buscombe5, mas por um deslizamento involuntário das emoções que sus- citariam os códigos do gênero originalmente mimetizado em direção a um outro gênero: a comédia. É assim que um dra- ma ou um melodrama sem as emoções típicas do gênero, pois que as situações que levariam a tais emoções não foram conformadas de acordo com aquilo que Noel Burch chamou de ``modo institucional de representação'', provocam o riso ao invés da tristeza, da piedade. Desprovido de suas emo- ções características, o melodrama pode então induzir ao riso, pois, como dizia Bergson, "o maior inimigo do riso é a emoção"6. Conscientemente transgressores, ou involuntariamen- te paródicos, esses filmes se reinventam constantemente. 0 mesmo realizador pode incursionar por vários gêneros, mimando-os todos e pondo à prova o seu estilo. E, assim como se diz que Picasso pintava cada um de seus quadros como se procurasse descobrir, de novo, a arte de pintar, mu{a[/.s mutand/.s, poderi`amos extrapolar tal bou[ade trazen- 5 Buscombe, Edward, "A ídéía de gênero no cínema americano", in: Ramos, Fernão Pessoa (Ore.|, lleoria contemporânea do cinema. Vcil.ll , Documentório e narratwidade ficc/.ona/, São Paulo: Editora Senac, 2005, p. 304-318. 6 Bersson, Henr.i, Le rire. Essai sur la significat.on du comique, Par.is .. Quadr.iBe|PIJF, 2004. CINEMA DE do-a para o campo do cinema e sugerir que, cada uma das obras aqui analisadas parece querer reinventar a arte de fazer filmes. Mas - é lícito o leitor perguntar -, a que se deve essa analogia enti.e o processo criativo de Picasso e aquele dos nossos cineastas de bordas? 0 que têm em comum cria- dores de formações tão diferentes e com posturas tão an- tagônicas vis-à-vis o granc/ monde da arte? A resposta está na eventual demonstração da hipótese que intitulou, em forma de questão, a segunda parte desta introdução: os filmes de que aqui tratamos poderiam ser chamados de na}.f assim como existe uma arte pictural r]a.i.ve? Em caso afirma- tivo, onde estariam as homologias entre as duas formas de expressão? A história da arte nos conta que a expressão art na}.f teria sido usada pela prímeira vez para definir o trabalho do pintor Henri Rousseau, mais conhecido como Le Doua- nier Rousseau. A principal característica de sua obra estava assentada na recusa em seguir os princi`pios acadêmicos da arte pictórica. Não obstante, esia rejeição não ia ao encontro ou era o resultado de um qualquer alinhamento de Rousseau ao comportamento, também contestatório, de contemporâneos que se tornaram seus amigos e com quem ele expunha no Sa/or} des /ndépenc/ents, como Henri Matisse, Robert Delaunay, Edgar Degas e Pablo Picasso. Estes buscavam romper com os preceitos da arte figurativa - e mesmo com o impressionismo - que até então domi- nava o cenário artístico europeu e participaram das princi- pais vanguardas que iriam revolucionar a arte na virada do século XIX. Cada um à sua maneira, tanto Rousseau quanto seus coetâneos portadores de credenciais mais "oficiais", ques- tionavam o status qL/o artístico e a ele respondiam com Boflo E h) € lLJ Z u OE BORDAS 2 obras. No entanto, se o primeiro e seus êmulos faziam esse questionamento apenas criando e expondo trabalhos que ignoravam os ditames do campo, já que seu engajamento com esse campo era periférico em relação à sua ocupa- ção principal7, os segundos desenvolviam nesse campo sua atividade primeira e procuravam transformá-lo a partir de seu interior. Para alguns destes grandes nomes da arte mo- ::r::::,:ex:,àçeãvoeqmu:,t:e::;tí:Ínat::easenc::f:ã:ann#:Tye:= conhecia isso já por volta de 1912, e André Breton via nas obras do Douari/.er, no distanciamento destas em relação à realidade, importantesfundamentos surrealistas e as assimi- lava a uma espéc.ie de surréalisme avant la lettre. Dos movimentos artísticos que, nas primeiras décadas do século XX buscaram se distanciar daquilo que consideravam como a arte decadente de então, aquele que chegou mais longe foi certamente o surrealismo. No seu afã de romper com os procedimentos normativos, racionais que condicio- navam o processo criativo, seja na pintura, na literatura ou mesmo no cinema, os surrealistas criaram outras prescrições como a idéia de "escrita automática'', método que, inspirado na psicanálise freudiana, consistia, segundo André Breton, seu criador, em abandonar as rédeas da razão deixando-se levar pelo espontaneísmo do inconsciente. 0 ato de escre- ver se tornava então um processo em que as idéias deveriam saltar diretamente deste último para o papel, contornando o consciente censor e sua função repressora. Nas artes plásticas uma tal postura estaria mais identi- ficada com a ``arte bruta'', essa forma de expressão defini- 7A identificação de Rousseau com a sua profissão -inspetor de alfândega (douone em francês), identificação essa qije levou ao cognome com o qual se tornou conhecido, [e oouon/.er-, demonstra bem uma das príncipais características dos pintores ncijJ5: a de exercerem sua arte de forma paralela a uma determinada carreira profissíonal. ciNEMADE8°fo da pelo pintor jean Dubuffet, criador do conceito, como "produções de qualquer espécie -desenhos, pinturas, bor- dados, figuras modeladas ou esculpidas - que apresentam um caráter espontâneo e fortemente inventivo, tão pouco devedoras quanto possível da arte habitual ou dos estere- Ótipos culturais, e tendo por autores pessoas obscuras, es- trangeiras aos meios artísticos profissionais''. Para alguns críticos e historiadores da arte a distinção en- tre '`arte bruta" e ar[ na).Í não procede, sendo ambas perten- centes a um conjunto mais amplo que poderia ser chamado de ``arte popular''. Seja como for, fica claro que tanto os pin- tores r)a).Ís quanto os nossos cineastas de bordas se enqua- dram com justeza na definição de Dubuffet. Como vimos, os primeiros e os segundos são autodidatas; desconhecem mui- tas das técnicas do meio expressivo com o qual lidam e estas são substitui'das pelo é/an intuitivo do artista. É assim que algumas imperícias no trato com as regras básicas de seu meio de expressão são comuns tanto ao pintor quanto ao cineasta r}a).Ís. A falta de conhecimentos mais aprofundados da perspectiva renascentista pode lévar o primeiro a falhar quando da transposição de objetos tridimensionais para a superfi'cie plana da tela; enquanto a inexperiência do segun- do com procedimentos tais como raccorc/ pode prejudicar a continuidade de algumas seqüências de seu filme. Somos, assim, levados a reconhecer que, como que- ríamos demonstrar, há uma evidente coincidência entre aquilo que aqui foi dito sobre os cineastas estudados no presente volume e os pintores na}.f5. Caberá ao leitor aliar o prazer dos textos que irá encontrar nas próximas páginas com uma m/.se á /'éprewe de nossa demonstração. ciNEMADEBo% Wenceuacontadear:adistopia eco`ógicanà:ifT:çmã:t;Ê:it|.,Êii:: Alfredo Suppia ``- Pois para mim parece ficção cienti'fica. São Paulo fechadc), dividido em Distritos, permissões para circular, fichas magnetizadas para água, uma superpolícia como os Civiltares, comidas produzidas em laboratórios, a vida metodizada, racionalizada." lgnácio de Loyola Brandão, Não Verá5 Pa/'s Ner}hurn Poderíamos dividir as manifestações da ficção cienti'fica no cinema brasileiro em basicamente dois grupos: o '`tan- gencial" e o "empenhado" (ou ``sério''). 0 primeiro grupo abrange principalmente uma grande variedade de paródias de filmes de ficção científica estrangeiros, de algumas chan- chadas a filmes d'Os Trapalhões. Nesse grupo numeroso, heterogêneo e bastante irregular em termos de criativida- de, qualidade e propósito, a ficção científica serve como combustível para a comédia, a sátira e muitas vezes a auto- ironia. 0 segundo grupo, dos filmes ``sérios" - ou que se levam a sério - é composto por produções que se pro- põem enquanto ficção cienti`fica integral, levando à tela um tratamento mais empenhado dos temas abordados. Nesse grupo, um dos tópicos mais interessantes e recorrentes é o da distopia e, em especial, a distopia ecológica ou ecoca- tástrofe. 0 objetívo deste breve artigo é apresentar e discutir quatro manifestaççies da distopia ecológica no cinema bra- sileiro -os curtas-metragens em Super-8 7-úne/ 939 (1972), de Claudinê Perina Camargo e SangL/e de tatu (1986), de Marcos Bertoni, e os longas em 35mm Parada 88.. //.m/'[e de a/er[a ( 1978), de José de Anchieta e Abrí.go nuc/ear ( 1981 ), de Roberto Pires -, considerando o contexto histórico de cada um desses filmes, suas particularidades estéticas, eventuais relações com o cinema de ficção cienti`fica in- ternacional, possíveis contribuições para uma consciência ambientalista de esquerda no Brasil e, finalmente, seu teor de crítica ao regime militar. Túnel 939 Campinas-SP é famosa por seu ciclo dos anos 1920, no qual surgiram pérolas do cinema brasileiro como /oão da Mata (1923), escrito e dirigido por Amilar Alves, bem € LL' Z u OE BORDAS 2 como por sua retomada de produção nos anos 50. Mas a cidade paulista também foi - e continua sendo -reduto de apaixonados pelo Super 8. Nos anos 70, Claudinê Perina Camargo diríge uma bela safra de filmes curtos rodados em Super 8, na qual trabalharam ai.tistas como o fotógrafo e cineasta Henrique de Oliveira Jr. e o poeta Hiládio Brito, entre outros. Dessa safra, destacam-se pelo menos dois fil- mes de ficção científica: Túne/ 939 e Ou{ra meía. 7-úne/ 939 foi realizado em 1972 por Perina e colegas da Faculdade de Comunicação Social da PUC de Campi- nas. Os créditos iniciais do curta são estampados sobre um c/ose dé`Wson Mizon, com respiração ofegante. A imagem transmite uma sensação de claustrofobia que re- sume o que está por vir. Logo depois teremos a cena de um homem de costas, caminhando dentro de um túnel, via de acesso a um abrigo subterrâneo. Em vo/.ce over, Reinaldo Ribeiro recita a poesia de Hiládio Brito. 0 filme alterna imagens do futuro apocalíptico, claustrofóbico e subterrâneo, com as ternas lembranças da vida na super- fície e do convívio com a natureza. Diversas imagens de arquivo, nacionais e estrangeiras, retratam o século XX e o avanço da poluição no planeta. Após uma grande catás- trofe ambiental, a atmosfera terrestre tornou-se letal para os seres humanos, que foram obrigados a se refugiar num "abrigo anti-atômico e anti-poluição". Nessa cidadela sub- terrânea, as pessoas ``recuperam" clorofila e ``recobram" oxigênio, no sentido de remediar os malefícios de uma existência privada da atmosfera natural. Cientistas criam novos seres sem o septo nasal, "esse apêndice inútil'', e a humanidade se torna mutante. 0 protagonista, nQ 34590, tem seu prazo de vida expirado. Ele deve deixar o abrigo rumo à superfície onde vai sucumbir à temperatura e at- mosfera venenosa. Parada 88 ciNEMADE8O+o > u, r, Lançado em 1978, Parada 88.. //.m/.te c}e a/erta, dirigido por josé de Anchieta, também é sobre catástrofe ambiental num futuro próximo. A hístória se passa nos últimos dias de 1999, na cidade de '`Parada 88''. 0 lugar se encontra em quarentenahá cinco anos, desde que a válvula de segurança do reator de uma indústria química de cosméticos - a "Vale da Noite" -quebrou-se na noite de 21 de abril de 1994, cau- sando uma explosão que espalhou no ar centenas de quilos de dioxina, formando uma nuvem tóxica de cor avermelha- da, altamente venenosa e corrosiva. Os sobreviventes - me- nos da metade da população da cidade antes do acidente - vivem isolados no perímetro por determinada pelo Depar- tamento de Saúde, pagando pelo ar respirável e trafegando por túneis plásticos que conectam os edifícios. Um grupo do Departamento de Controle de Gases é destacado para localizar um reator que persiste vazando em Parada 88. Enqumto isso, o soldador joaquim Porfírio (joel Barcellos), que vive em dificuldades financeiras com a mulher Maria (Yara Amaral) e a filha cega (Regina Duarte), é sortea- do em programa de auditório e aceita o desafio de deixar a zona de proteção para explorar as ruínas da Vale da Noite, no intuito de trazer notícias sobre o que passa fora da cidade. 0 prêmio são 3 meses de ar pago e uma partida de manti- mentos. joaquim parte em missão, mas sucumbe aos gases venenosos na região da antiga indústria química. A equipe do Departamento de Controle de Gases que estava trabalhan- do por lá o resgata, e ele acaba submetído a uma cirurgia na qual seus pulmões, secos e queimados pelo ar venenoso, são substituídos por órgãos biônicos. Temos aqui um dos raros ciborgues do cinema brasileiro, talvez o único com intenções não claramente jocosas. Enquanto está internado em hospital fora da cidade, a mulher e a filha de joaquim recebem a visita €roE ILJ Z u B0RDAS 2 dos cobradores de ar que ameaçam cortar o suprimento em face do atraso no pagamento da conta. Os cobradores viajam em motocicletas, trajam roupas de couro negro e máscaras anti-gases. Ao estilo dos motoqueiros de Mac/ Max, filme aus- traliano lançado no ano seguinte, os cobradores vandalizam a casa de Joaquim e um deles estupra sua filha. 0 grupo parte, mas promete retornar em breve para cobrar a dívida. Recupe- rado, Joaquim recebe alta no dia 31 de dezembro de 1999 e retorna a Parada 88. Reclama da sua premiação, mas leva-a para casa e lá sua mulher lhe conta sobre o incidente com os cobradores. Joaquim planeja vingança, mata os cobradores quando estes retornam, em seguida deixa a cidade com sua familia. Sob os fogos de artifício do Reve/.//on, os habitantes de Parada 88 rompem um dos túneis plásticos de proteção. 0 filme termina com plano de joaquim e familia viajar no dia 1 Q de janeiro de 2000. Melancólico e taciturno, Parada 88 lembra filmes como Laran/.a mecâni.caJJ 971 ), de Stanley Kubrick, ou A boy anc/ h/.s c/og (1975),' de L.Q. Jones, ao mesmo tempo em que pa- rece prenunciar títulos como Mad Max (1979), de George Miller, ou mesmo B/ade runr}er (1982), de Ridley Scott. 0 filme de José de Anchieta é praticamente todo imerso na escuridão, no hermetismo dos túneis e construções. A gran- de maioria das tomadas é noturna. Profundamente pessi- mista, Parac}a 88 parece antever algo do cyberpur)k - ou, se se preferir, tL/p/.n/.punk7 -que se desenvolveria pouco depois, nos anos 80. A fotografia de ParacJa 88 foi assinada por Chico Bote- lho, professor da ECA-USP, que então começava a se pro- 1Tup/n/.punk é o termo cunhado pelo escritor e pesquisador Roberto de Sousa Causo para designar o cyóerpunk bíasHeíro, manifesto em livros como Scinta C/ciro Poltergeist, cle Fausto Fawcett, Silicone Xxl, de ^liredo Slrkls, ou Piritas siderais, cle Guilherme Kujawski. ciNEMADE8O¢o jetar como profissional de cinema, já apontado por muitos como um dos melhores de São Paulo. Mas infelizmente a carreira de Botelho veio a ser interrompida muito cedo, com o seu falecimento aos 40 anos. Segundo José de An- chieta, ``Com poucos refletores e por ser um orçamento muito baixo, Chico resolveu muito bem a fotografia des- se filme," (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). 0 cineasta comenta que Parac/a 88 foi ro- dado em Paranapiacaba, fincada nos grotões da serra que dá acesso a Santos, e que escolheu a cidadezinha por sua clássica neblina: '`0 fog sempre foi a marca deste lugar, e todas as vezes em que visitei Paranapiacaba durante as preparações da filmagem cheguei a ficar assustado com a densidade da neblina, uma coisa sufocante. Às vezes, não se enxergava um palmo adiante do nariz. Pois bem, durante toda a filmagem não tivemos um dia de neblina sequer. 0 Chico Botelho então preparou fogueiras de estopa, óleo queimado e borra de café pelos cantos da cidade, para criar uma atmosfera parecidà com o fog. Ainda tive que voltar à cidade por alguns dias quando era avisado que ha- via neblina para fazer tomadas gerais." A cenografia de Parac/a 88 foi criada a partir de gran- des tubos plásticos. Segundo José de Anchieta, foram cons- truídos quilômetros de tubos, com uma espécie de eclusa entre eles, para manter o ar no interior. "Uma empresa de circo de um homem chamado Marugan foi a responsável pelo trabalho. Desde os meus primeiros curtas tenho uti- lizado materiais plásticos'', assinala o cineasta (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). Egresso do teatro, José de Anchieta conta que deu es- pecial atenção à cenografia e iluminação de Parada 88, no intuito de reproduzir um clima teatral, e que buscou a lin- guagem do teatro como fio condutor do filme. Ainda de OE B0RDAS 2 €ü Z u acordo com o cineasta, cenografia e iluminação são mu- tuamente dependentes nas mais diversas circunstâncias. Anchieta destaca também o importante trabalho do arqui- teto Alcino lzzo como assistente de cenografia. Dividindo a autoria da cenografia com o diretor, lzzo projetou os complexos túneis de plástico, trazendo para o filme uma contribuição fundamental. A cenografia de Parac/a 88 rece- beu o prêmio da APCA. Sobre a inspiração e o projeto dó filme, josé de Anchieta comenta: ``A questão do ar e seus poluentes sempre foi discutida em meus filmes, porque o meu primeiro filho Daniel, hoje com 36 anos, ao nascer teve os brônquios comprometidos por causa da poluição do ar de São Paulo. Quando o vi pequenino respirando dentro de um balão de oxigênio, decidi que iria abrir uma discussão a respeito. Naquele período (1974/1975) ainda respirávamos os ares da ditadura e, por ser de esquerda, não fui perseguido pelos militares, mas pelos meus próprios pares do partido que aleg_aL±4Lam ser a minha temática muito `escapista', distante da realidade. Para o partido era mais importante uma chaminé funcionando do que destruída, pois onde havia uma chaminé havia trabalho... Um concei- to do século XIX. Enfim, depois que o filme foi realizado, fui muito perseguido por inverter a cartilha socialista. No entanto, os elementos trazidos à tona pela ficção, como a robótica, estão hoje impiedosamente instalados em toda a indústria mundial, inclusive no Brasil. 0 desastre do aqueci- mento global também é uma realidade que já se abordava nos idos de 75. E todas ou praticamente todas as chami- nés foram demolidas" (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). José de Anchieta declara que Parac/a 88 foi feito desde o início com o objetivo de ser um alerta ecológico. Segundo o diretor, o longa é a somatória de trêscurtas-metragens ante- CINEMA DE r.iores.. A Flauta das vértebras, Reticências e Ponto final, os quajis funcionaram como ensaios preparativos. Anchieta conta que participou com Ret/.cênc/.as de um festival de cinema ecoló- gico em Montreal, no Canadá, em 1978, e lá pôde presen- ciar um debate profundo sobre meio ambiente. Ret/.cêr)c/.as ganhou um prêmio especial, "talvez porque o júri estivesse preocupado com a ausência da discussão sobre essas ques- tões ecológicas no Brasil. Havia já naquela época uma grande preocupação com os destinos da Amazônia'', comenta j) di- retor - ``Lembro-me bem de minha volta ao Brasil, eu acalo- radamente discutindo com os meus amigos a questão e eles sem entender - ou sem querer entender o que eu estava di- zendo, pois estavam todos voltados para uma ideologia maior que era a revolução armada. Não havia debate político algum sobre a questão ambiental, isso era coisa de `escapista', de burguesia que não tinha o que fazer ou o que falar. Acredito ser um dos primeiros a levantar a questão, tanto no cinema quanto na televisão. Trabalhei durante algum tempo no Globo Repórter, onde as minhas propostas de fazer filmes sobre a questão ecológica eram geralmente acolhidas. Tive que fazer o filme para que entendessem o meu repto, que tardiamente foi ouvido e discutido. As ideologias faliram, mas a ecologia se mantém em pauta, como pensamento universal para a sal- vação do planeta" (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). Parada 88 foi realizado com recursos da extinta EMBRA- FILME, na época presidida por Roberto Farias, que viu no argumento do filme "uma linguagem nova, diferenciada daquela que era vigente no cinema brasileiro de então, a `estética da fome" (entrevista concedida ao autor, por e- mail, em 30/05/2007). Embora busque o distanciamento da estética cinemanovista, Parada 88 traz alguns aspectos sintomáticos das condições de sua produção, os quais não BO¢o > V) N €roEu Z U B0RDAS 2 deixam de constituir uma certa "estétjca da fome'' em com- paração ao cinema de ficção científica modelar americano. lsso pode ser verificado no cenário e na fotografia, segundo o próprio diretor, foram muito bem solucionados a despei- to das restrições orçamentárias. Como o financiamento da EMBRAFILME não foi suficiente, Egberto Gismonti e Regina Duarte despenderam recursos própríos para que o filme fosse finalizado (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). 0 roteiro de Parada 88 foi escrito pelo próprio José de Anchieta, em colaboração com Roberto Santos, e submetido a exame do escritor e estudioso de ficção cienti`fica André Carneiro. Segundo Carneiro, no entanto, suas sugestões não foram praticadas (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 08/02/2006). A música de Parac/a 88 foi composta por Egberto Gismonti, que criou junto com Geraldo Carneiro a canção-tema Fe//.z ano r)ovo. Foram intérpretes da trilha so- nora Joyce, a Orquest[a-Sinfônica de Campinas e o Coral da Unicamp, com regência de Benito Juarez. 0 filme demonstra que uma trilha bem elaborada pode trazer ganhos importan- tes a uma narrativa de ficção cienti`fica. E quase trinta anos depois do lançamento, Parada 88 tem mantida a atualidade de seu tema, conforme se verifica no recente relatório do lpcc da ONU a respeito do aquecimento global, ou em fil- mes como o documentárlo Uma verdade inconveniente (An /.ncoriven/.ent truth, 2006), de Davis Guggenheim. José de Anchieta afirma ainda que o desafio maior na realização de Parac/a 88 foi de enfrentar a maledicência da crítica na época (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). Abrigo nuclear Lançado em 1981, o libelo anti-atômico de Roberto Pi- res, Abr/.go ni/c/ear, propõe novamente um tratamento mais CINEMA DE sério dos temas da ficção científica. Com roteiro escrito por Pires e Orlando Senna, o filme trata da problemática da ener- gia nuclear e seu impacto ambiental. Segundo Luiz F. A. Mi- randa, Abr/.go foi rodado depois de quatro anos de pesquisa e com uma equipe "topa-tudo", em estúdio construído na orla marítima de Salvador, no local onde antes Pires havia filmado Reder)ção (1959) (Miranda,1990: 261 ). Em Abr/.go nuc/ear, Lat (Roberto Pires) é o encarregado da manutenção de detritos radioativos na superfície. Em sua última inspeção de rotina, constata sérios problemas na esto- cagem do lixo atômico e risco de explosão que poderia com- prometer o abrigo subterrâneo. Mas seu relatório alarmante é considerado insubordinação por Avo (Conceição Senna), comandante do abrigo que mantém a população subterrânea em estrita disciplina e ignorante de que, no passado, a humani- dade já havia habitado a superfície. Então, Lat i.unta esforços a um grupo clandestino, liderado pela geóloga Dra. Lix (Norma Bengell)2, contrário ao "Sistema Cibernético Nuclear" e dedi- cado a um plano secreto, o "Projeto Alfa", que visa desativar os reatores nucleares, reabilitar métodos limpos de geração de energia, reformular o modo de vida da sociedade e recon- quistar a superfície. Pelo enredo e cenário da cidade subterrânea, bem como, a caracterização do personagem Lat, o filme de Pi- res lembra 7HX-7 738 (1971 ), de George Lucas, por sua vez inspirado na trama de indivíduo que se recusa a obedecer as regras de uma sociedade do futuro totalitária, presente em romances de ficção cienti'fica como Ac/m/.ráve/ mundo r)ovo (1932), de Aldous Huxley, Nós 3(1924), de Evgueny 2 Bem antes de Abr/go, a atriz Norma Bengell atuou num fi`lme de ficção cienti'fica estrangeiro, a produção hispano-italiana Terrore ne//o spoz/.o (1965), de Mario Bava, conhecida no Brasil como 0 p/onefo dos vomp/.ros. 3 No Brasil, também conhecido como A muroMo verde. 80% > ur lJ €roE B0RDAS 2 Zamiatin, ou J984 (1948), de George Orwell. As cenas de Lat na superfícje, em trajes especiais, lembram um pouco o personagem Thomas Jerome Newton (David Bowie) em seu planeta de origem no filme 0 homem que ca/.u na terra (1976), de Nicholas Roeg. A cenografia e o figurino são criações do próprio Roberto Pires, e remetem também a filmes americanos dos anos 50, como Guerra entre p/ar)e- tas (Th/.s /.s/anc/ earth, 1955) - o filme de Pires é, dentre os estudados aqui, o que parece mais espelhado no cinema holywoodiano. Com um c/es/.gn de produção empenhado, apesar dos parcos recursos, Abr/.go apresenta alguns ele- mentos que parecem destoar do conjunto do filme, como o hovercraft (aparentemente uma tentativa de igualar o carro voador de Luke Skywalker em Star Wars). Lançado no mesmo ano de publicação da famosa eco- distopia de lgnácio de Loyola Brandão, Não verás pa/'s ne- nhum ( 1981 ), Abr/.go nuc/ear é um dos mais genui'nos filmes brasileiros de ficção científica, somando-se a filmes como Parac/a 88 e Túne/ 939 na antecipação de catástrofes am- bientais de orjgem tóxica ou radioativa, como o acidente da usina nuclear de Chernobyl, em 26 de abril de 1986, na União Soviética. Realizado durante a ditadura militar, o fil- me de Roberto Pires foi contemporâneo da euforja atômica do governo brasileiro, que depositava grandes expectati- vas nas usinas nucleares de Angra dos Reis, a primeira das quais, Angra 1, começou a ser construi'da em 1972, teve a primeira reação em cadeia estabelecida em 1982 e entrou em operação comercial em 1985.4 Vale a pena notar que, ' A Cnen (Comissão Nai:ional de Energia Nui:lear) foi criada em 1956 por JuscelinoKiibitschek. Em 1967, Costa e Silva criou o Programa Nuclear. Em 1971, Médici assinou contrato com a Westinghouse, mas a empresa não transferiu tecnologia ao Bíasil. Ernesto Geisel criou a Nuclebrás em 1974 e, em 27/06/1975, o Brasil assinava acordo com a Alemanha. Angra 2 começou a ser construída pela construtora Norberto Odebrecht em 1976. Em 1978, a Marinha iniciou o Programa Niiclear Autônomo (ou ''paralelo"), desenvolvido no lpen, em São Paulo. Angra 1 começa a fornecer energia ciNEMA DE Sof atualmente, a questão nuclear é tratada de maneira dife- rente do que era nos anos 80, com determinados cientistas e ecologistas defendendo o uso de centrais atômicas para geração de energia em substituição a termoelétricas, no sentido de reduzir drasticamente as emissões de gás car- bônico e, por conseqüência, o aquecimento global. Esses especialistas vêem hoje, na energia nuclear, um mal menor em relação ao uso de combusti'vel fóssil. Antes de Abr/.go r)uc/ear, Roberto Pires havia dirigido, entre outros filmes, A//a beta gama (1980). Depois de Abrí.- go, o cineasta escreveu e dirigiu seu último filme, o docu- drama Césio 137: pesadelo de Goiânia, cle 1990. Rober- to Pires faleceu em 2001, vítima de câncer que pode ter sido causado por sua exposição a lugares contaminados enquanto realizava Cés/.o J37. Sangue de tàtu Outro realizador assi'duo em Super-8, o paulistano Mar- cos Bertoni é responsável por algumas investidas curiosas no campo do cinema de ficção cienti`fica. Arquiteto e escul- em 1982. Em 1987 era anunciado que o Brasíl dominava o processo de enríqueclmento de urânlo por ultracentrífugação. A Constituição de 1988 veta armas nucleares e o Programa Nuclear Autônomo é fundido com o oficial. A Nuclebrás é extinta e a tecnologia de jato centrífugo é abandonada, também em 1988. A part" de 1983, o ritmo da construção de Angra 2 é desacelerado e, em 1991, o governo brasileiro decide retomar o proi.eto da usina. Em 1994 as obras de Angra 2 recebem recursos previstos para Angra 3. A um custo de R$ 12 bilhões, Angra 2 começa a gerar energia em 2000 -a primeíra reação em cadeia de Angra 2 ocorreu em 14 de/ulho de 2000, e a fase de testes da usína foi concluída em 21 de dezembro do mesmo ano. Em 2004 entra em operação a primeira fábrica de enriquecimento de urânio das lndústrias Nucleares do Brasil, em Resende-RJ, com tecnologia nacíonal. A usína Angra 3, contr@tada juntamente com Angra 2, em 1976, ainda nâo foi concluída. Em junho de 2007 o Conselho Nacional de Política Energética aprova a retomada da construção de Angra 3, paralisada desde 1986. (Ínformações obtidas no sítio da Eletronuclear -Eletrobrás Termonuclear S.A.: http:// www.eletronuclear.gov.br , e no iornal Fo/ho de S. Pou/o, 19/07/2007, Brasil, AIO). Cumpre observar que, a despeito de encontros internacionais como a Conferência de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, o desenvoMmento industríal tinha prececlência sobre questões ambientais na agenda do soverno militar brasíleiro (Cf. Ginway, 2005: 108). 0 à N €roE LLJ Z u B0RDAS 2 tor, Bertoni trabalha com modelagem para efeitos especiais para fotografia, cinema e televisão desde 1979. Seu filme mais importante no campo da ficção cienti'fica é Sangue c/e tatu, curta-metragem (23') de 1986 que ganhou o prêmio de Melhor Enredo Ficção Super-8 no XVII Festival de Gra- mado, em 1989. Conclui`do no mesmo ano da catástrofe de Chernobyl, Sangue c/e tatu é sobre funcionário de usina nuclear que após vazamento foge para as montanhas. 5arigue de tatu surge imbuído de um espírito ecológico que ganhou força nos anos 70 e 80, alinhando-se a demais filmes debruçados sobre poluição química ou radioativa. A porção inicjal do filme recorre a diversas cenas documentais, com gente nas ruas dando sua opinião sobre a energia atô- mica (um "engolidor de fogo" é entrevistado, e declara não temer as usinas nucleares), imagens de protestos e passea- tas, inclusive de Fernando Gabeira, que fala contra a usina de Angra. Tomadas à distância da usina se repetirão ao longo de todo o filme. Protagoniza a ficção um jovem funcjonário da usina. Ele vive com sua mulher, que está prestes a ter um filho e gostaria de deixar a cidade. Mas o casal permanece lá em função da carreira dele. Detalhe de notícia autêntica do jornal fo/ha c/e S. Pau/o, sobre vazamento de Angra 1, faz com que à imprensa corra para entrevistar o diretor da usina. "Gringo" que fala português com forte sotaque estran- geiro (alemão?), o diretor nega irritado o perigo de acidente e seu envolvimento na construção de uma bomba atômica brasileira. 0 jovem funcionário está num dia de trabalho nor- mal quando percebe um vazamento radioativo no Setor 1, onde mais dois colegas estão trabalhando em mejo a um calor insuportável - "Parece uma sauna essa usina!'', recla- ma um deles. Detalhes de uma pequena imagem de N. Sra. Aparecida e de um calendário (ao estilo das ``folhinhas de borracharia") dão iim toque pitoresco ao interior da usina. CINEMA DE 1 ogo o sistema informatizado deflagra "Alerta Código 3" nas iiistalações, dando início ao ``procedimento de isolamento do Setor 1 ". 0 vazamento se agrava e, o pior, é justamente no setor onde fica escondida a bomba atômica. Após ter seu pedido de evacuação e alerta da população negado pelo diretor, o funcionário abandona a usina, fugindo num carro da companhia. Ele é perseguido por um segurança enquanto parte em busca da mulher, mas no caminho é impedido pela polícia de chegar a casa. A essa altura, o vazamento continua se espalhando no perímetro, a defesa civil foi acionada e a cidade entra em estado de alerta. 0 diretor da usina dirige-se a um abrigo nuclear, onde estão guardadas uma miniatura da Estátua da Liberdade e esculturas deformadas dos rostos dos generais da ditadura. Essas esculturas, feitas por Berto- ni para uma exposição por ocasião da abertura política, em 1985, são as mesmas de outro curta do cineasta, Recuerc/o5 c/a repúb//.ca (2002), eleito Melhor Filme no sQ Festival de Cinema Super-8 de Campinas, em 2003. 0 funcionário da usina decide rumar para as montanhas. No caminho, é para- do por um policial, mas consegue passar depois de fazer um suborno. Atingindo os limites da cidade, o funcionário deixa o carro (um jipe Gurgel) e segue a pé rumo às montanhas, por onde vai contatando uma natureza exuberante. Ao lon- go de sua jornada, lembranças ternas da mulher grávida vão cedendo lugar a pesadelos ou alucinações, como visões dela deformada pela radiação. 0 funcionário segue atormentado pela culpa. 0 segurança está no encalço do funcionário, mas acaba morto por este, atingido por um golpe na cabeça à beira de um desfiladeiro. 0 funcionário retoma sua jornada, mas no caminho desmaia e é socorrido por um velho serta- BO¢o > uD N nejo. Apenas a força da água supre as necessidades energé- ticas da vida simples desse senhor. Um paralelo com a ener- gia atômica é delineado. 0 funcionário continua subindo a € JJJ Z u OE B0RDAS 2 montanha. Enquanto jsso, o diretor da usina permanece no abrigo, tentando convencer-se de que a situação está sob controle. Mas a usina finalmente explode e o diretor acaba morto, trespassado pela miniatura da Estátua da Liberdade que cai de seu pedestal. Nas montanhas, o funcionário alu- cina, vê a sua mulher dar à luz uma porção de tatuzinhos. 0 filme termina numa chave melancólica, com o funcionário perambulando noalto da montanha, já em meio à atmosfera radioativa. Em seguida, entra em cena o sertanejo dando seu depoimento,dizendoqueeleseriaimuneaqualquerperigo, pois, ao nascer, fora lavado em sangue de tatu. Com uma narrativa fluente e ângulos de câmera inte- ressantes, Sarigue c/e tatu mescla ficção e documentário numa extrapolação sobre os rjscos da energia nuclear. Seu ritmo e enredo lembram muito fjlmes como S/'nc/rome da Ch/.na (The chi.na sync/rome,1979), de James Bridges, thr/.//er em que repórter testemunha acidente numa usina nuclear, trava contato com um funcionário consciente e ambos descobrem uma conspiração que visa esconder da opinião pública a gravidade do fato. Com recortes de câ- mera precisos e uma cenografia criativa e bem cuidada, Sangue de tatu é muito bem sucedido em sua construção de uma '`atmosfera" de ficção cjenti'fica. Concorrem para esse efeito a trilha sonora angustiante (com estílo simjlar a de 0 f/.m, de Elie Politi, outro curta sobre catástrofe radioa- tiva, de 1972), as imagens dos monitores de computador, com suas mensagens de alerta, e até o uso de carros da Gurgel (um jipe pequeno, dirigido pelo funcionário, e ou- tro maior, o X-15, dirigido pelo segurança da usina), com cJesi.gn futurista para a época. 0 balanço apropriado entre documentário e ficção é um ponto alto do filme, conferin- do verossimilhança e coesão à narrativa. Bertoni comenta que foi incomodado por autoridades enquanto filmava em Angra, uma vez que, as tomadas à distância da usi eram autorizadas (entrevista concedida ao autor, gr em vídeo, em 25/05/2007). Em suma, 5angue c/e tatu filme sério, muito diferente dos demais curtas de Bertoni, assumidamente paródicos e debochados. Ar carregado Túnel 93Q, Sangue de tatu, Parada 88 e Abrigo nuclear são representativos da tradição das ecodistopias, subgênero que, dentro de uma iconografia da ficção cientffica proposta por Gary K. Wolfe, opera sob o signo da "terra devastada" ou wa- ste/and (Cf. Wolfe, 1979). Segundo Brian Stableford, as eco- distopias ou ecocatástrofes deram origem a uma nova cons- ciência do meio ambiente e da ecologia na ficção cienti'fica (Ginway, 2005: 125). M. Elizabeth Ginway comenta que, no Brasil, os primeiros movimentos ecológicos começaram por volta de 1971 (Ginway, 2005: 125). Em 1972, a Conferência Mundial das Nações Unidas para o Meio-Ambiente, realizada em Estocolmo, estabelece novas diretrizes em termos de pes- quisa ambiental e prevê novo encontro, com dados mais apro- fundados, vinte anos depois. Convém assinalar que, durante a ditadura militar no Brasil, o desenvolvimento econômico e a modernização precederam as questões ambientais. Ginway comenta que "A despeito das pressões externas sofridas em encontros internacionais como a Conferência de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano em 1972, a li- derança militar do Brasil ignorou cuidadosamente questões de controle ambiental e populacional, porque, segundo o estudo de John Harrington, feito em 1975 sobre a urbanização brasi- leira, os planos dos militares para o desenvolvimento industrial tinham precedência sobre quaisquer outras preocupações com respeito ao meio-ambiente e ao crescimento populacio- nal" (Ginway, 2005: 108). €roE LU Z u B0RDAS 2 Com a redemocratização brasileira, na Rio-92 ou ECO-92 (continuação da Conferência Mundial das Na- ções Unidas para o Meio-Ambiente), realizada no Rio de Janeiro em 1992, ganha vulto em meio à opinião públi- ca a noção de que os países altamente industrializados (EUA, Europa, Japão) são os majores responsáveis pelas emissões de poluentes na atmosfera e demais danos ao meio-ambiente. A partir da ECO-92 surgem documentos e medidas como a Agenda 21 e o Protocolo de Kyoto. Túnel 939, Parada 88 e Abrigo nuclear re{letem os pr.ime.i- ros sinais de uma nova sensibilidade em relação ao meio- ambiente no Brasil, na tradição de textos literários como Umbra (1977), de PIínio Cabral, ``0 homem que espa- lhou o deserto" (1979) e Não verás pa/'s nenhum (1981 ), de lgnácio de Loyola Brandão. Sobre a literatura brasilei- ra, M. Elizabeth Ginway afirma que "No caso do Brasil, não surpreende que as conotações muito negativas da tecnologia e da modernização, Iargamente associadas com o regime militar, com mais freqüência levem ao sur- gimento da ecocatástrofe do que à ecotopia" (Ginway, 2005:125). No caso do cinema brasileiro esse diagnóstj- co parece fazer sentido. Filmes como 7-Úne/ 939, Parac/a 88 e Abr/.go nuc/ea/ encampam em certa medida um dis- curso antj-moderno ou anti-tecnológico. Em Parac/a 88, por exemplo, o protagonista e sua familia abandonam a cidade. Da mesma forma, em Abr/.go nuc/ear, o prota- gonista troca a cidade subterrânea por uma vida idilica à beira da praia, desprovida de toda a tecnologia que ele antes desfrutava. Sarigue c/e ta{u também tem uma aspiração anti-moderna marcante na figura do caboclo que socorre o funcionário, personagem repositório de uma suposta sabedoria popular, em oposjção à ganância e truculência de cientistas e militares. ciNEMADESO¢o Mas além de filmes-manifesto contra a modernização de- senfreada e despreocupada em relação ao meio-ambiente, os títulos comentados aqui também podem ser lidos como críticas de alcance mais geral em relação à conjuntura eco- nômica, social e política do país no período militar, parábo- las que representam uma sociedade sob pressão, incapaz de respirar ar puro e sujeita a ameaças e poderes invisíveis, burocráticos e totalitários. Nesse sentido, os filmes de C. Pe- rina C., josé de Anchieta e Roberto Pires podem somar-se a outras distopias cinematográficas brasileiras, como Bras/./ ario 2000 (1969), de Walter Lima jr. Vale a pena notar que os anos de lançamento de três dos filmes aqui analisados - 1972, 1978 e 1981 -coincidem com o período da literatu- ra brasileira de ficção cienti'fica que Roberto de Sousa Causo denomina "Crítica ao Regime" ou ``Dispersão'', de 1971 a 1982, e que M. Elizabeth Gnway aponta como período de emergência da ficção distópica brasileira (Cf. Ginway, 2005: 93-140). Segundo Causo, esse período se inaugura com o fim do Magaz/.ne de F/.cção C/.en[/`f/.ca em 1971, tendo como principais autores lgnácio de Loyola Brandão, Gerald lzaguir- re, Herberto Sales (0 Fru[o do vos5o ver}tre, 1976), Chico Bu- arque (Fazenc/a mode/o, 1974) André Carneiro, Ruth Bueno (Asilo nas torres, 1979), Mauro Chaves (Adaptação do funcio- nár/.o Ruam, 1975) e outros. Causo também aponta como modelos ou principais tendências temáticas e formais des- se período a obra dos autores Aldous Huxley, Franz Kafl<a, George Orwell, a distopia, a sátira, a denúncia política ale- gorizada (ditadura militar), superpopulação, fim de mundo, guerra atômica e guerra fria. 0 pesquisador assinala ainda o experimentalismo formal, a metaficção, o cruzamento com o fantástico literário e o realismo mágico na safra literária do peri`odo, que se encerraria com a publicação de Não verás país ner)hum, de lgnácio de Loyola Brandão, de 1982. € LLJ Z 1) OE BORDAS 2 Por outro lado, Causo observa que a literatura brasileira de ficção cienti'fica do período não encarou de frente o '`dra- gão" do regime militar. As críticas à ditadura, em geral sob a forma de alegorias, eram ou muito sutis ou muito elaboradas para que repercutissem significativamente. Sinal djssoseria o fato de que as obras do período pouco sofreram com a cen- sura, ao contrárjo do que aconteceu com filmes de cineastas como José Mojica Marins, por exemplo. Causo sugere que o audiovisual brasileiro sofreu mais com a censura de manei- ra geral, provavelmente devido ao repúdio dos mjlitares a imagens envolvendo sexo ou miséria mas também porque, '`talvez, as artes vjsuais fossem mais acessíveis à inteligência do censor..." (Causo, 1998: 318-319). De toda maneíra, observa-se que a ficção cienti'fica manifesta nas distopias foi de fato instrumental para o dis- curso de crítica social e polítjca nos ``anos de chumbo''. No campo literário, M. Elizabeth Ginway afirma que todas as distopias brasileiras são '`(...) representações alegóricas de um Brasjl sob governo mílitar, com claras alusões ao uso calculado, pelo regime, de censura, controle da mi'dia, tortura, aprisionamentos e desaparecimentos, todas táticas características do `golpe dentro do golpe' de 1968, engen- drado pela linha-dura dos militares. Por essas razões, os en- redos das distopias brasileiras tendem a girar em torno da rebelião coletiva ou individual contra uma tecnocracia per- versa e arbitrária, `brasilianizando', por assim dizer, cená- rios familiares dos primeiros exemplos de ficção distópica. Uma jmportante apresentação das distopias brasileiras é a sua tendência de protestar contra a política governamental de modernização, tanto quanto contra a de repressão. Ao fazê-lo, elas sucumbem ao que Robert Scholes e Eric Ra- bkin chamam de ``um impulso atávico para retornar ao que é percebido como uma época melhor em um sentido co- CINEMA DE letivo de história, ou em um senso individual de infância." Esta saudade explica o impulso por trás da nostalgia pelo passado na ficção distópica brasileira, o uso de mitos da identidade brasileira como símbolos de oposição às políti- cas de modernização da ditadura, como é mais claramente visto nas representações da natureza e do meio ambien- te, e, de modo interessante, no seu retrato das mulheres" (Ginway, 2005: 94-5). Ginway acrescenta, porém, que autores como Flora Süssekind acreditam que muitas das ficções distópicas bra- sileiras, a despeito das boas intenções de seus autores e vigor de suas críticas sociais e políticas, acabariam reforçan- do inconscientemente o projeto da ditadura militar, uma vez que recorreriam a representações alegóricas e portanto limitadas da nação brasileira. A autora americana parece concordar com Süssekind ao apontar as ``(.„) limitações dessas distopias, que, apesar de apresentarem preocupa- Ções genuínas, são frequentemente limitadas em sua men- sagem de liberação e em sua visão do futuro" (Ginway, 2005: 98). 0 que Ginway comenta a respeito da ficção distópica na literatura brasileira pode ser constatado no cinema na- cional, especialmente nos filmes de ficção cienti'fica aqui analisados. Sob esse prisma, a sociedade subterrânea de Abr/.go nuc/ear, um filme que surge como crítica ao entu- siasmo atômico do governo militar, também pode ser lida como alegoria da sociedade brasileira sob a ditaduía. No filme de Pires temos como temas centrais a catástrofe ecológica decorrente da modernização inescrupulosa e a rebelião de um indivi`duo, ou grupo de indivi'duos, frente a um governo autoritário, que mantém a população igno- rante dos fatos e da História. Esse grupo rebelde também encarna uma nostalgia pelo passado, uma vez que sonha 804o > ÚO r, B0RDAS 2 reconquistar a superfície e viver em meio à natureza, como seus antepassados. Sob uma ótica que enfatiza o potencial alegórico do discurso, a radioatividade supostamente letal que dominaria a superfície do planeta em Abr/.go nuc/ear equivaleria a outros inimigos invisíveis, como talvez o pró- prio comunismo. Essa leitura é reforçada pelo fato de que Lat sobreviverá durante bom tempo à beira da praia, con- cretizando os ideais de nostalgia e encontro com a natu- reza, bem como, demonstrando que a ignorância imposta por um regime autoritário pode ser ainda maís danosa que uma atmosfera polui'da. Em Parac/a 88, filme dirigido por um ex-integrante do Partido Comunista, o Estado é um grande ausente, um fan- tasma opressor cujo poder se faz sentir-se por meio de proi- bições, protocolos e cobranças. Conforme se verifica em di- álogo na cena da reunião no Departamento de Controle de Gases, a quarentena tão prolongada da cidade é resultado da burocracia no governo. Acaba sendo até contraditório o fato de um Estado tão pouco preocupado com o bem€star dos sobreviventes de Parada 88 promover o salvamento de Joaquim Porfírío (Joel Barcellos). José de Anchieta justi- fica essa passagem do filme comentando que, embora não tenha ficado claro, Joaquim Porfírio é salvo por interesse político. Para o djretor, Parada 88 é essencialmente uma metáfora sobre a demência do poder (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). Numa leitura superposta ao contexto histórico do filme, a paixão de Ana (Regina Duarte), a filha de Joaquim, por Carade-Anjo (Terence Tullgren), o cobrador que a violenta, pode ser encarada como metáfora de uma população cega e fascinada por seu opressor. Ana deixa a cidade a contra- gosto, revoltada contra o pai por este ter matado Cara-de- Anjo. 0 filme termina com Ana aos gritos de ``eu te odeio" CINEMA DE (`()ntra o pai. Sobre o conteúdo de crítica à burocracia de •.itado e a governos ditatoriais, José de Anchieta comen- i.`: "Fui tomado pelo espírito da época e adotei a metá- Í()ra como linguagem, uma espécie de sabedoria que me i}rotegia dos malefícios da censura. Mas nunca enfrentei problemas com a censura. Enfrentei sim problemas com a impressa marrom e nanica. As polaridades direita e esquer- da existiam de maneira muito forte naquele período. Histo- ricamente, as duas facções nunca se entenderam, e sempre foram sinônimos de massacre. A minha tendência sempre Íoi à esquerda, porque como diz Arnaldo Jabor: `0 homem de direita é aquele que só pensa em si, e o da esquerda é o que pensa nos outros', maneira simplista de colocar a coisa. Mas é por aí que entendo esta questão. A direita via o meu filme como uma ameaça velada às suas chaminés industriais e seus carros poluidores. A esquerda me acusava de querer derrubar chaminés, e com isso gerar um terrí- vel desemprego em massa. Ora bolas, vai se entender? Fui massacrado pela imprensa e não pela censura" (entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 30/05/2007). A nostalgia é outra característica de Parac/a 88. É esse sentimento, aliado à necessidade, que move o personagem |oaquim Porfírio, bem como, boa parte da população isola- da. Nostalgia pelo ar puro, pelo passado sem a mácula da modernidade. Essa mesma nostalgia também é perceptível em Túne/ 939, especialmente por meio das imagens referentes à me- mória do protagonista, comentada pelo poema de Hiládio Brito - ``Houve lsabella, haveria lsabella?" Vê-se, portanto, que a nostalgia pelo passado é um valor de destaque nos três filmes aqui estudados. Na distopia ecológica brasileira, a modernidade, associada ao militarismo e à burocracia, traz consigo o aprisionamento e a privação da natureza, o que se 804o >0 N € LJJ Z u r oE BORDAS 2 traduz num atentado à identidade nacional. Túne/ 9Jg tam- bém não esconde seu alinhamento a um certo djscurso de esquerda ao jlustrar a escaladada degradação do planeta com imagens de desfiles nazistas. 0 filme de C. Perina C. é o únjco em que o protagonjsta realmente sucumbe à at- mosferapolui'da.TantoemAbr/.goquantoemParac/a66,os personagens acabam se expondo à atmosfera sem graves conseqüêncjas imedjatas, contrariando as determinações e alertasdosÉtusquoeabrjndopossibilidadesdemudança. =_m:±.nel,Parad€eAbrigo,omedodapoluiçãoéusadocomo jnstrumento de poder e castração. Vale a pena notar que, nos três filmes, os personagens princjpais são banidos. Eles não participam das eventuais mudanças decorrentes de suas atitudes. No caso de Túne/ 939, o mais pessimis- ta dos três filmes aquj analisados, de fato, nada muda e o protagonista não provoca transformação alguma. Mas em Sang" de " Parada 88 e Abr/.go nuc/ea. os protagonjs- tas abandonam as respectivas cjdades, deixando o sistema paratrásenosseusrastrosapossibilidadedemudança.Na época da ditadura militar brasjleira, era conhecido um djta- dopitorescotravestidodepatriotada:"Braswame-ooudei- xe-o''.Parecequeosprotagonistasdasdistopjasecológicas brasileiras não se furtam a deixar o país em caso de neces- sjdade ou '`força maior'', exprimjndo um certo pessimismo latente nas ficções que envolvam superação de costumes. MesmoemAbr/.go,omaisotjmistadosfilmesaquicjtados, Lat, o personagem principal, logo se torna um outs/c/er e segue para o exiljo. Ele não permanece na sociedade que sofrerá mudanças decorrentes de suas atjtudes. 0 herói da djstopia ecológica brasileíra será, sobretudo, um exjlado. ç~o~m_ b?se em Sangue de tatu, Túnel 939, Parada 88 eAbr/.go nuc/ear podemos concluir que a questão ecológica acabou se tornando uma via de acesso à crítica do regime, ciNEMADE8°¢o uiii`i vez que o governo militar brasileiro optou pelo desen- vt ilvimento pouco preocupado com a manutenção do meio- iinl)iente. Sobre a literatura do período, M. Elizabeth Ginway ilii.iiia que ``Ao rejeitarem o passado, as distopias brasileiras i tiiii freqüência se voltam para mitos da natureza como an- ii(l()to para a modernização, e como metáfora da liberdade i`iti relação à repressão. Assim, elas adotam um discurso `li- lit`racionista', baseado na idéia de Rousseau do ser natural ("i(ura/ se/0, construindo o conflito brasileiro como se ele iiusesse frente a frente uma identidade brasileira verdadeira, .i-histórica ou essencialista, e uma tecnocracia artificial e his- i()ricamente contingente. Ao fazê-lo, elas evitam discutir as (iuestões mais problemáticas da repressão e adaptação do t`u à sociedade moderna (...)" (Ginway: 2005: 97-98). Algo parecido pode ser observado na ecodistopia ci- iiematográfica brasileira, que é contemporânea do que Ginway aponta como período de emergência da ficção distópica brasileira, e que também apresenta indícios de uma visão romântica ou mesmo de um certo ludismo em relação ao desenvoMmento econômico sob regime militar, perceptível através do tratamento nostálgico e da recorrência à natureza - por exemplo, os ``índios" em 13rasil ano 2000, as locações exterr\as em Abrigo nuclear e em Quem é Beta? Da mesma forma, em sua análise das distopias literárias brasileiras do peri'odo militar, Ginway observa que "Está claro que esses textos criticam a mo- dernização tanto quanto, senão mais, criticam o regime militar em si. É principalmente a tecnologia que parece roubar dos brasileiros a sua identidade, especialmente quando colocada nas mãos de um governo autoritário" (Ginway, 2005: 139). F.ilmes como Parada 88, Abrigo nuclear e Sangue de tatu demonstram que tal observação pode ser aplicada às €roE Lu B0RDAS 2 ecodistopiascjnematográficasdosanos70esO.Apesarde algumas passagens um tanto quanto precárias, caracterís- ticas das próprias condições de produção desse curta em Super-8, 5angue c/e tatu atinge uma consjstência não muito freqüente em produções pequenas. 0 filme de Bertoni cri- ticaagudamenteaspectosdasocjedadebrasilejra,comona cena em que o funcionário suborna o poljcial durante sua fuga da cídade. 0 governo mjlitar e a submissão ao capi- tal ou interesses estrangeiros sofrem as críticas mais diretas nessa fita de teor notadamente político. Outroaspectodignodenotaéoespelhamentodepelo menos três dos quatro filmes aqui analisados em obras modelares da ficção djstópjca mundial, como Adm/.ráve/ T,Uo::c°+`n.°:=i.:_eT,uxley.ouig84,deoriNe;i.E='ii;:;U;;,cientistas desenvolvem humanos geneticamente modjfica- d.o,s_i_?,F:o:a_go_n_',s:aé.um?:ít.,mavdoii-s.-iri':.'ii';ã:=:,aé a rebeldja de um funcjonário do sistema que desencadeja os eventos transformadores da sociedade. Er::.O.:=_T_ú_n_:I_939,Sangue.detatu,Parada88eAbrisonu- c/earveiculemdíscursosquehojeparecemdatadosouenve- lhecjdosemdetermjnadosaspectos-acidadedeCubatão, fonte de inspjração para Parac/a 88 que nos anos 70 e 80 apresentava Índices catastróficos de poluição atmosférica, passou por um processo de revitaljzação bem-sucedjdo, a tecnologianuclearevoluiueaquestãoatômicatempassado por uma revisão -, fica claro que a ecodístopia ou distopia deformageralfoiinstrumentalnacríticaaoautorjtarismo,ex- plorando as dicotomias inerentes a um país em desenvolví- mento, rico em recursos naturajs e biodjversjdade, mas que, comooutrasnaçõesdoplaneta,tambémenfrentasériospro- blemas ambjentajs no limiar do século XXI. Fjnalmente,osfilmesaquidiscutidoscomprovamsobre- tudo a ocorrência da ficção científica no cjnema brasileiro. ciNEMADE8°¢o ( 't)nsiderando-se outras produções em longa-metragem, ('()mo Quem é Be{a? (Nelson Pereira dos Santos,1973), ( )c-eano At/ant/.s (Francisco de Paula,1993) ou Acquar/.a (r-lávia Moraes, 2005), pode-se afirmar que a ecodistopia t`. uma das mais consistentes e longevas manifestações da ticção cienti'fica em nosso cinema, oferecendo visões críti- (`as e especulativas no entroncamento das questões social, i)oli`tica e ambiental. Um cinema sem lei: os filmes de bordas de Seu Manoelzinho Bernadette Lyra CINEMA DE De início, quero explicitar a escolha de dois conceitos - obra e bordas - que servirão para conduzir os propósi- i()s deste trabalho, o qual tem como objeto o cinema de Manoel Loreno (Seu Manoelzinho), morador da cidade de Mantenópolis, situada ao noroeste do Espírito Santo. 0 conceito de obra, aqui tratado, estará em acordo com Paul Zumthor que o opõe ao de texto.] Para Zumthor, en- quanto o texto se dá em um espaço mais ou menos definido que equivale ao enunciado, a obra se realiza pela conjuga- Ção de circunstâncias que ampliam o texto. Assim, a obra é a manifestação viva do enunciado, sendo capaz de fazer da mensagem enunciada uma comun/.cação quando traduzida em três elementos: a situação imediata; a região composta de três espaços: geográfico, cultural e social; o contexto, que abarca toda a realidade ambiente (Zumthor,1993: 251 ). ``0 texto é um reservatório de significado que hipoteti- camente deve estar sempre disponível para que uma inter- pretação decodifique seu sentido, uma vez que a intenção do autor seja descoberta. A obra é uma superfície compos- ta pela superposição de formas de apresentação que não são imediatamente accessíveis através da interpretação, uma vez que seu caráter performativo origina uma multi- plicidade de reações, irredutível a uma única intenção e/ou sentido" (Rocha,1998: 13). Esse tipo de reflexão supõe a obra como um lugar de cons- tante mutação interna em sintonia com as circunstâncias exter- nas, abrindo para formas não fossilizadas nemcristalizadas de inteligibilidade. 0 conceito trazido para os estudos de cinema inclui entre outras, noções das materialidades na comunicação ' Nesse sentido, o conceito de obra de Paul Zumthor se opõe ao mesmo conceito tal como o expressa Roland Barthes em seu ensaio "Da obra ao texto", em que o semíoticista francês classifica a obra como algo estanque, fechado e texto como algo dinâmico. BO¢o > u, L, €roEu BORDAS 2 quesedjspõemnocontornodaspráticascinematográficas,tais como os formatos, as configurações históricas, as complexida- des socioculturais e a noção de autoria. Para descrever, por exemplo, os possívejs efeitos de um filme é precjso esquecer as velhas dicotomias entre emissão e recepção, para levar em conta fatores como os mais dj- versificados tipos de espectadores, a evolução hjstórica dos meiosdigitais,entreoutrosqueamplíamaspossjbilidadesde análise, facilitando, jnclusive, o entendimento de fenômenos cinematográficos hibridos, tais como os filmes de aprovej- tamento de animação em conjunto com imagens de ato- res reais, os documentários que se fazem passar por ficção e vice-versa, o experimento e a proliferação de categorias como o home cinema e o microcinema, além da produção de certos grupos independentes. Também não há como negar os efeitos sociaís causados pela rápjda disseminação, democratização e massjficação no uso dos meios digitais. Ao jnvés de excessivas, tais circunstâncias compõem uma outra visão teórica que privilegia os jogos em movjmento constante na obra, e só podem ser recuperadas para além da sjmples compreensão textual de um filme, colocando a análisesoboselodaperiormancecinematográfica. Quanto ao conceito de bordas, este tem passagem livre em todos os campos de conhecimentos e pode ser usado nas múltiplasdjsciplinasdequeseocupamasgeografias,asantropo logias, as sociologias, as artes, as comunicações e outras tantas. Enquantoeondehouveraidéjadecentro,comsuasdelusõesde hegemonia,haverá,também,suacontrafacçãoqueseexpressa pelasvjasdeumdescentramento.Assim,ofascinantenãoéape nas,aplicaroconceitoemcemasáreasdesaberparaevidenciar margjnalizações ou periferismos, é, sobretudo, constatar que as bordas não passam de um "outro'' das instituições detentoras de poder no emaranhado da cultura e, como tal, perfazem seu ciNEMADE8°fo i )róprio território institucional, de modo perverso. Tratase, verda- tleiramente, de um universo paralelo capaz se autoconstituir e se •`utoalimentar, como já de pôde constatar no livro anterior a este (Cf. Lyra & Santana, 2006). Assim, para examinar a obra cinematográfica de Seu Manoelzinho, vou partir do princípio que esta se encaixa iio conceito de cinema de bordas e que, tal qual todo e qualquer cinema desse tipo, apresenta certas característi- cas que a distingue de outras práticas cinematográficas. Em primeiro lugar, no caso dos filmes desse realizador, as condições de produção e circulação envolvem elementos que sempre foram considerados às margens, quer do sistema industrial e mercadológico, quer dos circuitos de consumo. Dessa maneira, tais filmes se fazem sob um contrato perifé- rico, ainda que não constituam um ``cinema de periferia'', no sentido com que o termo vem sendo empregado para de- signar um conjunto de filmes feito por indivíduos ou grupos sociais distintos, à margem dos modos tradicionais de reali- zação e circulação, em bairros, centros comunitários, ONGS e outros. De fato, em outro lugar já chamei atenção para o fator de diferença entre um cinema de bordas periférico e um cinema de periferias, que reside na razão, na voz e na atitude, uma vez que, no primeiro, não tem lugar vozes, razões ou atitudes identificatórias de protesto ou de auto-afirmação de segmentos socialmente exclui'dos ou de comunidades e indivi'- duos submetidos à violência dos grandes e pequenos centros urbanos, sendo a sua única intenção os códigos do entreteni- mento descompromissado.2 Seu Manoelzinho realiza filmes de ficção e puro entre- tenimento em excepcionais condições que juntam um pro- 2 Ver Lyra, Bernadette e Santana, Gelson . "Singularidades dos gêneros em filmes bras.ile.iros"` Em Anais do Xvll Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comun/.coÇÕo/COMPÓS, São Pau lo, 2008. €roEBORDAS2 Lu z cesso de consumo de produtos midiáticos, sobretudo, de U velhos filmes e de modelos veiculados pela televisão, com as histórias populares correntes na comunidade interiorana dacidadeemquehabita,evidencjandoosmodosdetrocas einteraçõesquecoexistementreorealjzadoreseusparcei- ros socjajs que, além do mais, se constituem em seus atores e espectadores. Desse modo, os saberes jndustrializados a que ele e os demais moradores de Mantenópolis passaram a ter acesso com as facilidades de consumo dos produtos audiovisuaisconvivemcomossaberestradicionaisdaquela regíão. Assim, as imagens, os sons e as narrativas que se apresentam nos filmes reproduzem um imaginário construí- do tanto pela apropriação massiva da produção audiovjsu- al quanto pelos elementos da chamada ``cultura popular'' que circulam na cjdade do realizador. Aqui, cabe a aplicação de outro terceiro conceito, o de mediação, que Jesus Martjn-Barbero considera ``(...) proces- so produtor de significações e não de mera circulação de informações,noqual,oreceptor,portanto,nãoéumsimples codificadordaquiloqueoemissordepositounamensagem, mas também um produtor'' (Martin-Barbero, 2006: 287). Segundo Zuleika de Paula Bueno: "o cinema de bordas resulta de um processo de media- ção construi'do a partir da combinação de três principais variáveis:umprocessoespeci'ficodeconsumodeprodutos midiáticos,. uma forma determinada de interação social e o acesso a tecnologias de produção'' (Bueno, 2007). Dentrodessepressupostoteórico,épossívelpensarcer- tos filmes, aí inclusos aqueles de Seu Manoelzinho, como resultado de um processo de artjculações entre os meios de produção e as prátjcas cotidianas de cidades do interior ou de arredores das grandes cidades. CINEMA DE Ainda segundo Bueno, um cinema de bordas resulta da drticulação de algumas variáveis entre as quais a pesquisa- dora cita: um processo específico de consumo de produtos midiáticos; uma forma determinada de interação social e o acesso a tecnologias de produção. De fato, o estágio atual e globalizado do consumo de produtos midiáticos, as trocas sociaís comunitárias e a de- mocratização tecnológica, embora não sejam as únicas variantes capazes de determinar um tipo específico de ci- nema, se constituem em três c/.rcunstâr}c/.as que permitem situar o cinema de bordas no tempo e no espaço. Na primeira, destaca-se a inflação no mercado de pro- dutos audiovisuais que atingem as regiões mais remotas do país, sobretudo, aqueles veiculados pela televisão que, com sua maneira antropofágica, não se cansa de deglutir e regurgitar imagens e sons para os mais diversos tipos de público. Na segunda, verificam-se as interações exigidas por um universo cada vez mais necessitado de rápidas res- pQstas e inclusão dos indivíduos em situação de vida social em comum ao circuito informativo das mídias. Na terceira, considera-se a multiplicação e o rápido barateamento de câmeras e aparelhos de captação de imagens e sons que i)ermitem que qualquer pessoa possa ter acesso ao registro i. divulgação de filmes. É verdade que a abordagem externa das circunstân- cias que determinam a obra em sua totalidade pela sua (lispersão e multiplicidade, oferece incompletudes ao pes- (iuisador. No entanto, como diz Zumthor,
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