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História da Filosofia Medieval Fábio Antonio Gabriel © 2020 por Editora e Distribuidora Educacional S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora e Distribuidora Educacional S.A. Imagens Adaptadas de Shutterstock. Todos os esforços foram empregados para localizar os detentores dos direitos autorais das imagens reproduzidas neste livro; qualquer eventual omissão será corrigida em futuras edições. Conteúdo em websites Os endereços de websites listados neste livro podem ser alterados ou desativados a qualquer momento pelos seus mantenedores. Sendo assim, a Editora não se responsabiliza pelo conteúdo de terceiros. Presidência Rodrigo Galindo Vice-Presidência de Produto, Gestão e Expansão Julia Gonçalves Vice-Presidência Acadêmica Marcos Lemos Diretoria de Produção e Responsabilidade Social Camilla Veiga 2020 Editora e Distribuidora Educacional S.A. Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza CEP: 86041-100 — Londrina — PR e-mail: editora.educacional@kroton.com.br Homepage: http://www.kroton.com.br/ Gerência Editorial Fernanda Migliorança Editoração Gráfica e Eletrônica Renata Galdino Luana Mercurio Supervisão da Disciplina Maria Julia Souza Chinalia Revisão Técnica Luciana Colin Talavera Maria Julia Souza Chinalia Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Gonçalves, Patrícia Graziela G635h História da filosofia medieval / Patrícia Graziela Gonçalves, Fábio Antonio Gabriel. – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2020. 184 p. ISBN 978-65-86461-50-3 1. Filosofia. 2. Cristianismo. 3. Escolástica. I. Gabriel, Fábio Antonio. II. Título. CDD 180 Jorge Eduardo de Almeida CRB-8/8753 Sumário Unidade 1 Filosofia e cristianismo ................................................................................. 7 Seção 1 O que se entende por filosofia medieval .......................................... 8 Seção 2 O cristianismo e a filosofia ..............................................................21 Seção 3 A influência da Bíblia no pensamento ocidental ..........................34 Unidade 2 A Patrística ...................................................................................................51 Seção 1 A Patrística Grega .............................................................................52 Seção 2 A Patrística Latina ............................................................................66 Seção 3 Santo Agostinho e o apogeu da Patrística .....................................80 Unidade 3 A gênese da escolástica ...............................................................................95 Seção 1 O surgimento das universidades ....................................................97 Seção 2 A controvérsia dos universais ......................................................111 Seção 3 A gênese da escolástica: a Escola de Chartres ............................123 Unidade 4 A escolástica nos séculos XIII a XV .......................................................141 Seção 1 As filosofias árabe e hebraica e a penetração de Aristóteles no Ocidente ..........................................................................................143 Seção 2 Tomás de Aquino e a síntese escolástica .....................................156 Seção 3 A crise da Escolástica e os últimos pensadores medievais .......168 Palavras do autor Prezado aluno, bem-vindo:Neste livro, convidamos você a percorrer os caminhos da fasci-nante história da filosofia medieval, a partir de temas que são extre- mamente relevantes para a compreensão da construção do pensamento ocidental. E você pode se perguntar: mas por que estudar a filosofia pelo olhar da história? Pois bem, ótima pergunta! É que a história da filosofia nos impede de qualificar uma filosofia como velha, atrasada, fora de nossos tempos. Isto porque não se ascende à filosofia senão pela história dela, isto é, pela reatualização dos experimentos filosóficos que só a história nos oferece. Trata-se, portanto, de um convite à reflexão crítica. Esperamos que você consiga reconhecer não só os principais momentos da filosofia medieval, mas também compreender os debates acerca das bases do pensamento filosó- fico na Idade Média. Com isso, você será capaz de reconhecer as relações entre filosofia e cristianismo; analisar a filosofia patrística grega e latina, com destaque para o pensamento de Santo Agostinho; compreender a gênese da escolástica e seu posterior desenvolvimento, com ênfase no pensamento de Tomás de Aquino; e problematizar a crise escolástica e os últimos pensadores filosóficos da Idade Média. Nosso percurso tem início com o desvendamento do contexto histórico a partir do qual emergiu a filosofia medieval para, em seguida, caracterizá-la e distingui-la da teologia, mas sem deixar de demonstrar a íntima relação entre elas, principalmente com o estudo da conexão entre filosofia e cristianismo e da importância da Bíblia no pensamento ocidental. Na sequência, adentramos no estudo do movimento filosófico dos primeiros padres da igreja cristã, a Patrística, para compreender as suas peculiaridades tanto na área cultural de língua grega quanto latina. Esse estudo perpassa a ação dos padres apologistas, dos padres mais relevantes, até chegar em Santo Agostinho, talvez o mais expressivo expoente desse movimento. Esse percurso continua com o estudo da gênese da escolástica, para compreender as nuances do contexto histórico a partir do qual esse movimento filosófico surgiu e se desenvolveu. Nesse sentido, nossa atenção centra-se no surgimento das universidades, na controvérsia dos universais e nas escolas de Chartres. Por fim, chegamos na análise da escolástica entre os séculos XIII e XV, no intuito de elucidar o ápice e a crise desse movimento filosófico. Para tanto, estudaremos as filosofias árabe e hebraica e a penetração de Aristóteles no ocidente; Tomás de Aquino e a síntese escolástica; e a crise da escolástica e os últimos pensadores medievais. Aproveite e bons estudos! Unidade 1 Patricia Graziela Gonçalves Filosofia e cristianismo Convite ao estudo Nesta unidade, o tema é filosofia e cristianismo. E, por esse título, você pode se perguntar: a filosofia medieval é uma filosofia cristã? Existiu uma filosofia medieval? Bom, tudo isso você vai descobrir a partir do estudo das seções que compõem esta unidade. O fato é que a filosofia guarda uma relação muito estreita com a teologia na Idade Média e alguns pensadores preferiam a designação de teólogos à de filósofos e afirmavam que “a filosofia é serva da teologia” (DAMIÃO apud GILBERT, 1999, p. 68). Mas você sabia que tanto a filosofia quanto a teologia, enquanto conceitos, têm origem na filosofia grega? É que a cristianização do conceito de teologia levou séculos. E no cristianismo, encontram-se posições em relação à filosofia que vão desde a rejeição total até a apropriação, colocando-a, simplesmente, a serviço da fé cristã. Esse, portanto, é um problema complexo de séculos de história no pensamento filosófico e no pensamento cristão. Na primeira seção desta unidade, analisamos o contexto histórico a partir do qual emergiu a filosofia medieval para, em seguida, caracterizá-la e distingui-la da teologia, mas sem deixar de demonstrar a íntima relação entre elas. Na segunda seção, estudamos mais de perto a conexão entre filosofia e cristianismo no intuito de entender a noção desenvolvida por alguns autores de que a filosofia medieval é uma filosofia cristã, para então problematizá-la. Na terceira seção, o enfoque é a compreensão da importânciada Bíblia no pensamento ocidental com base no estudo da estrutura e do significado da Bíblia, dos problemas emergentes do impacto com a Bíblia e das ideias bíblicas que influenciaram o pensamento ocidental. Bons estudos! 8 Seção 1 O que se entende por filosofia medieval Diálogo aberto Neste momento, discutiremos o que se entende por filosofia medieval. Para tanto, contextualizaremos a Idade Média e a existência de uma filosofia nesse período, suas características e as suas relações com a teologia. Esses assuntos são interessantes e importantes no estudo da história da filosofia medieval e suscitam uma série de questões que podem ser sistematizadas pela situação-problema a seguir: Em uma conversa informal, no intervalo de Ciclo de Palestras sobre a Filosofia Medieval, Charles e outros participantes lembram de um vídeo muito interessante, o famoso jogo de futebol filosófico (The Philosophers’ Football Match) encenado no filme Monty Python ao Vivo no Hollywood Bowl, de 1982. Nesse jogo foram escalados, de um lado, filósofos gregos como Heráclito, Platão, Aristóteles e Plotino e, do outro, alemães como Kant, Hegel, Nietzsche, Beckenbauer. Marx está no banco. O juiz é Confúcio e os bandeirinhas são Santo Agostinho e São Tomás. A filmagem começa com o título “Filosofia internacional” e Palin fornece a narrativa. Os jogadores entram animados no campo, mas quando Confúcio dá o apito inicial, nada acontece. Melhor dizendo, os filósofos de ambos os times meditam de um lado para o outro, alguns coçam a cabeça, outros, o queixo. Pois bem, a problemática acerca do vídeo refere-se ao fato de Santo Agostinho e Santo Tomás serem bandeirinhas. Para além de ser uma boa piada, essa posição assumida por esses pensadores medievais suscita algumas questões interessantes acerca da filosofia na Idade Média. Nesse sentido, Charles comenta com seus colegas que na palestra do dia anterior, o professor de História da Filosofia Medieval de determi- nada universidade afirmou ser a filosofia medieval um objeto de estudo relativamente recente. O desafio para Charles e os demais colegas é entender as razões de tal afirmação do palestrante, somada ao fato de Santo Agostinho e Santo Tomás serem bandeirinhas no famoso jogo de futebol filosófico. Nesse sentido, se perguntam: houve filosofia na Idade Média? Não é ela a época das trevas? Não lhe faltaram as luzes do pensar e a claridade da razão? Como então, falar de filosofia na Idade Média? 9 Não pode faltar A invenção da Idade Média Quem inventou a Idade Média? Sim, ela foi inventada, pelo menos enquanto representação. É isso o que afirma Carlos Arthur do Nascimento (1992), professor de História da Filosofia, ao discorrer sobre os problemas escondidos na expressão “filosofia medieval”. Parece que foi o estudioso clássico alemão Christoph Cellarius (1639-1707) um dos primeiros a conso- lidar o uso da expressão “Idade Média” como designativo de uma das divisões de uma história universal (Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna). O conceito generalizou-se no século XVIII dos iluministas, quase sempre com sentido pejorativo. Desde o século XV, a expressão “Tempo Médio” era empregada para denominar o período intermediário entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento. Essa expressão revelava a repulsa que os humanistas, princi- palmente os italianos, nutriam pelos séculos que os separavam do esplendor da civilização greco-latina, considerados por eles um tempo marcado pelo declínio intelectual, cultural e artístico. Ainda no século XIV, o italiano Francesco Petrarca (1304- 1374) já olhava com aversão o período compreen- dido entre o fim do Império Romano e a sua época, momento de descoberta da Antiguidade, definindo-o como uma era de “trevas”. Essa ideia sombria foi reafirmada na obra Décadas históricas após o declínio do Império Romano, do humanista Flávio Biondo (1388-1463) e vinculada à noção de “Tempos Médios” pelo bispo Giovanni Andrea dei Busi, em 1469 (PEDRERO- SÁNCHEZ, 2000). O preconceito com os tempos medievais foi reforçado pelo Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII. Visando combater os resquícios feudais ainda sobreviventes no século das Luzes, a maioria dos escritores iluministas lançou um olhar hostil para a Idade Média. Voltaire (1694-1778), por exemplo, no Ensaio sobre os costumes (1756), caracterizou a época medieval como séculos de grosseiros e bárbaros. A igreja foi o principal alvo do antimedievalismo do Século das Luzes. Para os iluministas, a influência da igreja católica era o empecilho ao progresso, à ciência e à liberdade, tanto na época em que viviam quanto no medievo. Obscurantismo clerical e Idade Média, para esses homens, eram termos sinônimos (VERDON, 2004). Com a eclosão do romantismo na primeira metade do século XIX (em alguns países nos finais do século XVIII), a imagem do medievo ganhou uma nova leitura. De “Idade das Trevas”, o passado medieval passou a ser valorizado, admirado, exaltado. A Idade Média tornou-se a “Idade de Ouro”, momento do nascimento das nações europeias. Contudo, se houve um 10 resgate positivo do medievo, ele continuava sendo mal compreendido. Os autores românticos nutriram uma visão bastante idealizada da Idade Média. No século XX, os estudos sobre a Idade Média sofreram uma grande revisão, assim como a historiografia em geral. As novas concepções sobre a prática histórica trazidas pela Escola dos Annales contribuíram de maneira significativa para a história medieval. Atualmente, a tendência nos estudos sobre a Idade Média é a de tentar compreendê-la por ela mesma, levando em consideração que as diversas concepções sobre esse período histórico – inclusive a contemporânea – resultam de questões postas pelo momento em que vivemos (AMARAL, 2012, p. 6). Reflita O que vem a sua mente quando você se depara com a expressão “Idade Média”? Provavelmente um passado distante marcado pela presença de admiráveis castelos, donzelas, trovadores, cavaleiros e de inqui- sidores implacáveis. Em alguns momentos, também podemos ver o termo “Idade Média” ou o seu correspondente “medieval” serem empregados de forma bastante negativa. Não raro eles são usados em nosso cotidiano para designar situações de intolerância, atraso, penúria e brutalidade. Como essas imagens que povoam o nosso imaginário são alimentadas ainda hoje? Mas quais são as características principais dessa temporalidade que ficou conhecida como Idade Média? Se pensarmos no ocidente medieval cristão, a primeira coisa que precisa ser dita é que a Idade Média foi o resultado da confluência de três fatores fundamentais: a ruína do mundo clássico antigo, a barbarização do espaço europeu e o advento do cristianismo. Essa conflu- ência se inicia ainda durante o Império Romano e se torna determinante a partir do século V. Portanto, não foi um processo de mudança histórica abrupta. A passagem de uma temporalidade para a outra foi marcada por permanências de valores culturais, principalmente gregos, e rupturas no plano da civilização ou das infraestruturas materiais. Assim, as características fundamentais do ocidente medieval cristão decorrem do processo da sua gênese e compreendem-se a partir dos três fatores que a determinaram. Vamos começar pela medievalização do clássico: o legado clássico greco-romano é submetido ao espírito próprio da tempo- ralidade. O latim é mantido como língua; as escolas agora estão ligadas às dioceses e aos mosteiros, ao clero e aos monges e os seus programas orien- tam-se para o estudo da teologia, da liturgia e da pastoral; as ciências adqui- ridas e o pensamento em geral são igualmente aproveitados em função da 11 compreensão da fé; mantém-se o modelo administrativo imperial-romano é utilizado pela igreja (dioceses, hierarquia governante, títulos). Pela decisiva influência do cristianismo, o homem tende a viver voltado para as coisas do espírito, o que refletiu, em grande medida, na filosofia do período. A forte influência do cristianismodetermina também o sentido teocêntrico da civilização e da cultura medievais: Deus será, aí, o centro de convergência e o supremo referencial da vida. A teologia ocupa o topo do saber, se considera a rainha das ciências, à qual todas as demais estão subor- dinadas e em função da qual existem e funcionam. Além disso, o homem possui uma visão tendencialmente fideísta do mundo e da vida – despre- zando a razão, preconiza a superioridade da fé no conhecimento das verdades inatingíveis. Como consequência, a filosofia tem dificuldade em ser afirmar como saber autônomo em relação à ciência da fé (a teologia). A Idade Média ocidental cristã vive a tensão entre o humano e o divino, entre o pecado e a graça, ou na famosa metáfora agostiniana, entre a cidade terrestre e a cidade celeste. Nesse sentido, vive o extraordinário florescimento dos santos. O reflexo disso na filosofia é o seu pouco apreço como mera curiosidade intelectual e na sua frequente tensão para a mística. Ademais, a cristandade – espécie de grande comunidade político-religiosa, formada pelo conjunto das nações cristãs – tomou o lugar do Império Romano do Ocidente. A profissão de uma mesma fé e a submissão à suprema autoridade de um chefe comum, o papa, podem ser considerados os dois fatores essen- ciais de coesão e unidade da cristandade. Contudo, convém ressaltar que, tal como recorda o historiador da cultura e da educação Henri Iréneé Marrou (1977), existem várias Idades Médias: a ocidental latina, a bizantina, a muçulmana e a judaica. E é no fluxo de três tradições (a grega, a hebraica e a romana) que a história da Idade Média no ocidente é nutrida. Da tradição grega vem o pensamento na forma da filosofia; da hebraica, a fé judaico-cristã e a Bíblia; da romana, as formas de ordenamento do poder, a atitude pragmática em face do real e a sua corres- pondente metafísica. Toda a Idade Média cristã, latina e bizantina, é romana. Nesse sentido, afirma Alain de Libera (2004, p. 11-12): A Idade Média – era intermediária entre a Antiguidade e os tempos modernos – é, segundo diz, o período compreen- dido entre a queda do Império Romano do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453). Dois eventos políticos circunscrevem esses dez séculos. A própria natureza desses acontecimentos mostra que a compreensão tradicional do período medieval está centrada, inconscien- 12 temente, na romanidade. [...] Embora a tomada de Constan- tinopla marque o fim da Idade Média, portanto, da Idade Média ocidental, a história do Império Romano do Oriente não faz parte da história ocidental. No fundo, a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado de “Ocidente cristão”, ela está nele centrada, e o que não é, simultane- amente ocidental e cristão é posto à margem, considerado apêndice exótico, sem legitimidade própria. Portanto, para Alain de Libera (2004), na visão tradicional da história, a Idade Média é confundida com o ocidente cristão e nele é centrada. Nessa perspectiva, o que não é cristão e ocidental é posto à margem, não tem legitimidade própria. Vejamos o caso dos bizantinos: são cristãos, mas não ocidentais; e o caso dos judeus e muçulmanos: ainda morando no ocidente, não eram cristãos. Na dupla oposição ocidente-oriente, a “Idade Média” é confiscada em proveito de um só grupo: os ocidentais cristãos ou cristãos ocidentais” (LIBERA, 2004, p. 12). A propósito da existência de uma filosofia medieval Se a Idade Média é uma invenção, então também seria a filosofia medieval? A filosofia medieval pode ser distinguida de uma teologia revelada, filosofi- camente equipada? Essas questões são geralmente levantadas por filósofos e historiadores da filosofia e merecem a nossa atenção. A filosofia medieval enquanto objeto de estudo é algo inventado muito recentemente. Pelo menos é o que parece. Aliás, durante muito tempo se duvidou que houvesse mesmo uma filosofia medieval, tanto entre os filósofos quanto entre os historiadores da filosofia. Quais são as razões para isso? Pois bem, é certo que elas são encontradas na íntima relação entre filosofia e teologia: “estudiosos discutem para saber se de fato houve filosofia nesse período, ou se tudo o que se fez foi teologia. Poucos eram os autores cristãos que se julgavam filósofos. Por várias razões, eles preferiam ser denominados teólogos” (STORCK, 2003, p. 10). Exemplificando A título de exemplificação, na primeira metade do século XX, o filósofo inglês Bertrand Russell afirmou que não há filosofia medieval e que tudo na Idade Média é teologia. Nessa mesma direção, o filósofo alemão Martin Heidegger viu no pensamento medieval o encontro entre o aristotelismo e o modo de representação oriundo do judeu-cristia- 13 nismo. Nesse mesmo período, o historiador Paul Vignaux publicou um livro com o título O pensamento na Idade Média (1938) e somente 20 anos depois o rebatizou como A filosofia na Idade Média (LIBERA, 1999). Em 1922, o destacado historiador da filosofia medieval Étienne Gilson publicou a primeira versão do seu La Philosophie au Moyen Âge (A Filosofia na Idade Média), evitando o uso do termo filosofia medieval. Surpreendentemente, essa obra permanece intempestiva, ainda que o conhe- cimento atual de filosofia medieval seja muito maior do que era possível na primeira metade do século XX. Isto porque, entre a respeitável massa de documentos ainda inéditos, foi descoberto um número significativo de obras, com autoria e datação determinados, além de velhas edições refeitas e vastas edições críticas em como comentários em grande escala (ESTEVÃO, 2011). O mesmo Etienne Gilson reconheceu a existência de uma filosofia medieval ao confessar no prefácio da obra L’Esprit de la philosophie médiévale (O espírito da filosofia medieval), publicada pela primeira vez em 1932, que descobriu que não só existe uma filosofia medieval como ela é uma filosofia cristã por excelência. Ainda assim, reconhece que não se poderia afirmar que não houve, na Idade Média, outra filosofia que não a cristã. Ainda em fins do século XX, Alain de Libera, historiador da filosofia francesa, publicou uma obra intitulada Pensar na Idade Média (1991), jogando com o primeiro título de Paul Vignaux, mas trocando o substantivo pelo verbo e enfocando em como nós concebemos o pensamento medieval (ESTEVÃO, 2011). A propósito de Alain de Libera, há pelo menos 20 anos ele estuda diferentes formas de filosofia praticadas na Idade Média e seu interesse não é apologético-religioso, como muitas vezes ocorre com estudiosos do pensamento medieval. É dele a citação a seguir e que representa a problemá- tica até aqui tratada: Aprisionada na rede complexa e paralisante de tradi- ções historiográficas multisseculares, objeto de conflitos, projetos e dissociações impostas aos fatos por paixões contraditórias, a filosofia medieval nunca se libertou total- mente das imagens e dos preconceitos cultivados tanto por partidários como por seus adversários. (LIBERA, 1990, p. 7) Para Alain de Libera (1990), os mil anos de pensamento, reflexão, inova- ções e trabalho da temporalidade que ficou conhecida como Idade Média ficaram adormecidos no intervalo entre a Antiguidade e a Idade Média. 14 Portanto, caracterizariam uma longa transição ora invocada como “a idade ideal do magistério intelectual da igreja”, ora como rebaixada como a “época infeliz de um longo e laborioso sacrifício do pensamento”, ora adornada “com os faustos equívocos de uma clareza para sempre perdida” e ora perse- guida e denunciada como “a manifestação mais evidente do ‘obscurantismo’” (LIBERA, 1990, p. 7). E de onde provém essa depreciação da filosofia medieval? Essa é uma questão historiográfica que remonta ao Humanismo. Alain de Libera (1991) ressalta como a historiografia tradicional interiorizou a visão renascentista acerca desse aspecto da realidade social medieval. A visão negativa e pejora- tiva acerca da Idade Média foi construída a partir do olhar dos renascentistas,que enxergavam nessa temporalidade um longo período de adormecimento do conhecimento dos antigos gregos e que foi resgatado por eles na transição para a modernidade. Em contraposição a isso, Libera (1990; 1991) defende o lugar da Idade Média na filosofia, não como a manutenção do antigo ou o anúncio do novo tempo, mas como temporalidade repleta de movimentos de ideias não disso- ciadas da organização da vida intelectual. Afirma que “os estudos de história da filosofia medieval emanciparam-se progressivamente dessas tutelas narra- tivas”, dentre as quais a “retomada não crítica da distinção entre razão e fé, e em sua repartição institucional, sem levar em conta a pluralidade das formas do racional e da interpenetração dos domínios” (LIBERA, 1991, p. 144). Mas, afinal, o que se entende por filosofia medieval? Como o próprio nome indica, filosofia medieval é o conjunto de formas de pensamento filosófico que se desenvolveu na Europa durante a Idade Média (entre os séculos V e XV). Se levarmos em consideração que a Idade Média tem início (pelos marcos temporais tradicionais) no século V, então a chamada Patrística, reflexão filosófica dos primeiros padres da igreja, não estaria incluída nessa expressão. No entanto, praticamente todos os manuais de história da filosofia medieval, a Patrística está presente e nesse livro não será diferente. Feitas essas considerações iniciais, é necessário deixar claro que a filosofia produzida na Idade Média não é apenas uma filosofia cristã, tal como autores como Etienne Gilson (2006) nos fizeram acreditar. E Alain de Libera ressalta muito bem isso: A história da filosofia medieval é escrita, em geral, do ponto de vista do cristianismo ocidental. Este gesto não é isento de consequências: ele fixa os objetos, os problemas, 15 os campos de investigação, avalia, distribui, poda, reparte segundo suas perspectivas, interesses, tradições, impõe seus esquecimentos, imprimi suas diretrizes e direções. (LIBERA, 2004, p. 7) A filosofia medieval, portanto, deve ser analisada como o produto das relações intermitentes entre ocidente e oriente. Não podemos nos esquecer que o pensamento árabe e judaico é tão profundo quanto o cristão. E “essa simples constatação implica não apenas que conside- remos a origem e o desenvolvimento de cada uma dessas formas, mas também que possamos identificar as possíveis influências e fontes comuns” (STORCK, 2003, p. 8). Ademais, convém destacar que a filosofia medieval tem origem na filosofia grega. Santo Agostinho, filósofo da Patrística, se utilizou de categorias do pensamento de Platão para fundamentar os dogmas cristãos na virada da Antiguidade para o medievo. Depois, os sírios transmitiram a mesma filosofia grega aos árabes e estes em boa medida aos judeus. Mais tarde, “os cristãos novamente a recuperaram, assimilando teses árabes e judaicas, e buscando mais uma vez as fontes gregas. Os especialistas designam esse movimento de transmissão de translatio studiorum, isto é, o deslocamento dos saberes” (STORCK, 2003, p. 8-9). No que se refere às relações entre filosofia e teologia no medievo, apesar de os pensadores cristãos refutarem a designação de filósofos – já que para eles filósofos eram pagãos, como Aristóteles ou Platão, ou infiéis, como Avicena e Averróis – eles tinham uma ideia bem clara do que era filosofia, entendendo-a não como uma disciplina específica, mas como o conjunto das disciplinas científicas. Desse modo, compreendiam a sua estrutura e “participavam de polêmicas sobres os limites e as pretensões da filosofia. Considerando esse fato, podemos investigar o que os medievais pensavam acerca da filosofia, mesmo se eles, e principalmente os cristãos, não se reconhecessem como filósofos” (STORCK, 2003, p. 9). Para além disso, “se entendermos por ‘filosofia’ a prática da argumentação, os teólogos medievais acabaram por filosofar tanto ou até mais que os filósofos de ‘ofício’” (LIBERA, 1991, p. 146), o fato é que a oposição entre a razão dos filósofos e a fé dos teólogos é mesmo anterior à Idade Média. Na Antiguidade Tardia, houve o choque efetivo de uma filosofia grega ainda viva e a teologia dos padres da igreja, em fase de conquista. 16 Assimile O conceito de Antiguidade Tardia foi cunhado pelos historiadores para designar o período de translatio entre a Antiguidade Clássica e a Idade Média, momento em que a sociedade medieval ainda não estava formada e a sociedade antiga já não mais existia. As interpretações historiográficas ora enfocam as rupturas, ora as continuidades, e estão diretamente relacionadas com a abordagem teórico-metodológica e com concepções do próprio historiador. Para entender mais sobre essas discussões, faça a leitura do seguinte texto: AMARAL, R. A Antiguidade Tardia nas discussões historiográficas acerca dos períodos de translatio. Alétheia – Revista de estudos sobre Antigui- dade e Medievo, p. 1-08, jan./dez. 2008. Convém afirmar, também, que a filosofia medieval possui formas e modos de expressão filosófica que são particulares do período e que seguiam normas mais ou menos precisas e expressavam uma certa ideia de rigor e de método filosófico. Nesse sentido, a filosofia medieval é compreendida como a configuração de um modelo de diálogo filosófico, imbuído de um novo método, sobretudo porque representa a acolhida do pensamento antigo, greco-romano, com os dados da revelação judaico-cristã. Trata-se de um sistema que busca a compreensão da verdade que é Deus. Este modelo de pensamento trouxe um novo conceito de ciência em relação aos dados da fé e sua vinculação aos norteamentos da razão natural, dos mitos que transitavam pelas comunidades ocidentais primitivas em relação a este mesmo vínculo. Pelo fato de estar na história e ter uma história, a filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais próxima, às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores dividem a história da sociedade ocidental. Não que esses momentos representem, de fato, toda a filosofia produzida na Idade Média. No entanto, serve de referencial para pensarmos as influências da filosofia grega e do pensamento dos judeus e dos muçulmanos no pensamento filosó- fico ocidental. Devemos, contudo, ressaltar que alguns historiadores consi- deram como medieval apenas a filosofia escolástica. A seguir, uma divisão ainda muito divulgada hodiernamente: 1. Filosofia Patrística, com três períodos: I. Patrística Incipiente (sécs. I-III); II. Apogeu da Patrística (sécs. IV-V); III. Patrística Tardia (sécs. VI-VIII). 17 2. Pré-escolástica (sécs. IX-X). 3. Filosofia escolástica, com três períodos: I. Escolástica Incipiente (sécs. XI-XII); II. Apogeu da Escolástica (séc. XIII); III. Decadência Escolástica (sécs. XIV-XV). Após a compreensão do contexto histórico em que se desenvolveu a filosofia medieval, a defesa de sua existência e a sua caracterização, temos condições de avançar nas discussões acerca das suas peculiaridades, enten- dendo desde a ação dos chamados padres apologistas, passando pela Patrística e Santo Agostinho, pela gênese da escolástica, até chegar na crise desta e na transição para o pensamento filosófico moderno. Sem medo de errar A situação-problema que abre esta seção nos leva a pensar a existência de uma filosofia medieval e suas características. No cenário apresentado, um grupo de pessoas que participa de um Ciclo de Palestras sobre a Filosofia Medieval relembra o famoso jogo de futebol filosófico (The Philosophers’ Football Match) encenado no filme Monty Python ao Vivo no Hollywood Bowl, de 1982. Nesse jogo, temos um time formado por filósofos gregos e outro time formado por filósofos alemães. A questão levantada refere-se ao fato de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino serem os bandeirinhas do jogo. Ora, não são considerados filósofos? Melhor: houve filosofia na Idade Média? Não é ela a época das trevas? Não lhe faltaram as luzes do pensar ea claridade da razão? Como então, falar de filosofia na Idade Média? Para responder a essas perguntas, precisamos, primeiramente, entender que a caracterização do medievo como idade das trevas, do obscurantismo, aconteceu a posteriori, inclusive a nomenclatura “Tempo Médio” foi dada pelos renascen- tistas, que viam essa temporalidade como um longo intervalo entre a Antiguidade e a Modernidade. Essa visão negativa foi perpetuada pelos pensadores dos séculos seguintes e se concretizou com os iluministas do século XVIII. Aliás, a própria ideia de um período medieval como componente de uma história universal é datada do século XVII, quando Christoph Cellarius cunhou o termo “Idade Média”. Essa visão negativa a Idade Média repercutiu na história da filosofia, principalmente pelo fato de a igreja cristã ter sido a instituição mais poderosa do período medieval. Nesse sentido, o pensamento filosófico na Idade Média é confundido com a própria teologia, já que a justificação dos dogmas cristãos e da fé subjugou a razão humana em diversos momentos. Por isso mesmo, 18 muito filósofos e historiadores da filosofia desconfiavam da existência de uma filosofia medieval e afirmavam que na Idade Média tudo é teologia. O fato é que a filosofia medieval enquanto objeto de estudo é algo recente e tem sido defendida por pesquisadores como Alain de Libera (1999), que enxerga o lugar dela na história da filosofia. Esse período é rico em movimentos de ideias filosóficas que deve ser compreendida à luz das carac- terísticas da sociedade de então. Podemos nomear esses movimentos, tais como Patrística e escolástica, mas não podemos nos esquecer que a filosofia medieval não é apenas uma filosofia cristã, dada a existência e a influência dos judeus e dos muçulmanos nesses movimentos e na construção do pensa- mento filosófico ocidental tal como nós estudamos. Faça valer a pena 1. “Exaltados aqui por evocar a idade ideal do magistério intelectual da igreja, rebaixados ali por assinalar a época infeliz de um longo e laborioso sacrifício do pensamento, adornados, segundo alguns, com os faustos equívocos de uma clareza para sempre perdida, perseguidos e denunciados por outros como a manifestação mais evidente das trevas do ‘obscurantismo’, mil anos de pensa- mento, de reflexão, de inovações e de trabalho dormem no silencioso inter- regno que separa a Antiguidade da improvável configuração formada pelo Renascimento, a Reforma e a época dita ‘clássica’.” (LIBERA, 1990, p. 7) Considerando as informações apresentadas, analise as afirmativas a seguir: I. Os dez séculos que compõem a Idade Média caracterizam um longo parênteses na história da filosofia ocidental. II. Devido à influência da igreja cristã em todos os âmbitos da vida em sociedade, inclusive nas formas de pensar, na Idade Média não houve filosofia e sim teologia. III. A Idade Média é uma temporalidade repleta de movimentos de ideias filosóficas, não dissociadas da organização da vida intelectual. Considerando o contexto apresentado, é correto o que se afirma em: a. I, apenas. b. II, apenas. c. III, apenas. d. I e II, apenas. e. II e III, apenas. 19 2. “Vista da Índia ou China, nossa civilização ocidental aparece como uma subsidiária da civilização grega [...]. Mas a transição da Grécia clássica para a Europa moderna não foi alcançada por filiação direta: houve, entre ambos, lugar para mediações; aqueles que representam o Renascimento humanista e, antes disso, cristianismo medieval são bem conhecidos por todos.” (MARROU, 1977, p. 8) Com base na leitura da citação, podemos concluir que: a. A Idade Média não deixou seu legado para civilização ocidental, já que nosso conhecimento é subsidiário do grego. b. Na Idade Média, o cristianismo foi reinante e que a produção de conhecimento ficou estagnada. c. A transição da antiguidade para a modernidade se deu de maneira obscura, pela existência do medievo como idade das trevas. d. Os gregos e o modernos foram os grandes responsáveis pela formação da civilização ocidental e que nada de importante existiu entre eles. e. Apesar de parecer que a civilização ocidental é subsidiária da grega, cujo conhecimento foi retomado pelos modernos, muita coisa aconteceu no medievo e isso não pode ser ignorado. 3. “[...] se alguém der uma olhada na prateleira de filosofia numa livraria, certamente vai encontrar algum volume com o título ‘filosofia medieval’. Tudo isso parece familiar e sem problemas. Nem desconfiamos que a expressão ‘filosofia medieval’ esconde uma quantidade de problemas. Comecemos, portanto, perguntando se houve mesmo uma idade média e se houve mesmo uma filosofia nessa tal idade média.” (NASCIMENTO, 1992, p. 9) Acerca da Idade Média e da filosofia medieval, classifique as afirmativas a seguir em (V) verdadeiras ou (F) falsas. ( ) Tanto a periodização da história ocidental em antiga, medieval e moderna como a interpretação negativa do período medieval são resultados de inter- pretações do período contemporâneo. ( ) Na modernidade, a expressão “Tempo Médio”, de cunho pejorativo, foi empregada para denominar o intervalo entre a antiguidade e a modernidade. Tal expressão foi substituída por “Idade Média” no século XVII e a visão negativa do período foi reforçada no século XVIII pelos iluministas. 20 ( ) As razões para a desconfiança da existência de uma filosofia medieval encontram-se na íntima relação desta com a teologia. ( ) Ainda hoje, é consenso entre os filósofos e historiadores da filosofia que na Idade Média, a fé predominava sobre a razão e que é complicado falar em pensamento filosófico nesse período. Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta de classificação, de cima para baixo. a. V – V – F – F. b. F – F – V – F. c. F – V – V – F. d. V – F – V – F. e. F – F – F – V. 21 Seção 2 O cristianismo e a filosofia Diálogo aberto Agora que você já compreendeu as discussões historiográficas acerca da existência da filosofia medieval, bem como o contexto histórico em que ela emergiu e as suas principais características, é o momento de entender outra polêmica: a existência uma filosofia cristã medieval, uma noção desta e suas características. Esse tema tem íntima relação com a nossa disciplina e suscita debates interessantes e relevantes para a sua compreensão. Vamos fazer isso por meio de outra situação-problema, que servirá de base para nossas reflexões. A pesquisadora Fabiane Taís foi contactada por uma revista científica para escrever um artigo sobre a filosofia medieval, com enfoque no pensa- mento dos filósofos cristãos. A premissa inicial é a de que na Idade Média a filosofia desenvolvida foi de caráter eminentemente cristão e que a sua influ- ência sobre o pensamento ocidental foi demasiadamente importante. Essa discussão, longe de ser ultrapassada, tem a sua pertinência ainda nos dias atuais em virtude das características de uma sociedade que se encontra, de certo modo, em crise com seus valores éticos e princípios morais. Como primeiro passo para a construção do artigo, Fabiane Taís fez um levantamento bibliográfico a fim de verificar o que os historiadores da filosofia debateram e debatem sobre essa temática. A partir da análise atenta da bibliografia levantada, constatou que há um consenso acerca da influ- ência da filosofia grega e helenística no cristianismo no período da Patrística e da escolástica. De fato, os pensadores cristãos utilizaram a filosofia para compreender as verdades reveladas e aceitas pela fé e para defendê-las dos seus adversários intelectuais. Para tanto, utilizaram e incorporaram catego- rias do pensamento de Platão e de Aristóteles, conciliando fé e razão. Entretanto, Fabiane Taís se deparou com questões importantes: a filosofia medieval foi afetada pelo contato com o cristianismo? Ou será que apenas o cristianismo foi afetado pelo contato com a filosofia? Para diversos autores, apenas a segunda pergunta é respondida de modo afirma- tivo.No entanto, o filósofo e historiador da filosofia Étienne Gilson procura demonstrar em seus escritos que a filosofia da Idade Média é uma filosofia cristã por excelência. Estaria Étienne Gilson correto em sua perspectiva? Seria a filosofia medieval uma filosofia cristã? Mas, afinal, o que podemos entender por filosofia cristã? 22 Não pode faltar O problema de uma filosofia cristã No prefácio da obra O espírito da filosofia medieval, Étienne Gilson (2006) esclarece que não apenas descobriu que há uma filosofia medieval, como também ela é uma filosofia cristã por excelência. Isso não implica em dizer que não houve outra filosofia que não a cristã naquele período, mas sim em “saber se a noção de filosofia cristã tem sentido e se a filosofia medieval, considerada em seus representantes mais conceituados, não seria a expressão histórica mais adequada” (GILSON, 2006, p. 2). E já conclui de antemão que o espírito da filosofia medieval é o espírito cristão que penetra na tradição grega, trabalhando-a por dentro e fazendo-a produzir uma visão do mundo especificamente cristã. Ao se debruçar sobre a problemática da filosofia cristã, Étienne Gilson (2006) afirma, de imediato, que o pensamento cristão medieval manteve estreitas relações com o pensamento judaico e com o pensamento muçulmano e que não seria adequado estudá-lo de maneira isolada. Esse não seria o problema, portanto, já que é puramente histórico e facilmente resolvido. O verdadeiro problema seria saber se houve filósofos cristãos na Idade Média, problema este que se colocaria de modo semelhante para os muçulmanos e judeus. De acordo Étienne Gilson (2006), caracterizar a existência ou a possi- bilidade de uma filosofia cristã se torna problemático e esbarra em alguns obstáculos. O primeiro deles é a crítica de historiadores da filosofia e filósofos que desacreditam a sua existência. Comecemos com os historiadores, que antes mesmo de discutir a existência ou possibilidade de uma filosofia cristã, afirmam os pensadores cristãos da Idade Média (e aqui a referência é feita aos escolásticos) deixaram para a posteridade apenas uma colcha de retalhos de doutrinas gregas (Platão e Aristóteles) mal tecida com a teologia. Entre os filósofos, aqueles de orientação racionalista afirmam que entre religião e filosofia existe uma diferença de essência que torna impossível a colaboração entre elas. Mesmo não estando de acordo acerca da essência da religião, afirmam que a razão não lhe pertence. E se a razão pertence à filosofia, ela é inconciliável com a irracionalidade da revelação. Portanto, não há que se falar em filosofia cristã (GILSON, 2006). Exemplificando Emile Bréhier (1876-1952) é um filósofo francês e historiador da filosofia que representa muito bem esse pensamento dos racionalistas. Na sua 23 obra Histoire de la Philosophie, afirma o seguinte: “esperamos, pois, mostrar, neste capítulo e nos seguintes, que o desenvolvimento do pensamento filosófico não foi influenciado demasiadamente pelo advento do cristianismo, e para resumir nosso pensamento em uma palavra: não há filosofia cristã” (BRÉHIER, 1977, p. 207-208). Emile Bréhier (1977) teorizou sobre a impossibilidade de haver uma ciência com influências deterministas externas, como é o caso da fé, que aceita verdades reveladas de maneira extrínseca ao homem. Por isso mesmo, não poderia existir uma filosofia cristã e uma ciência teológica, já que a fé não tem condições de fornecer elementos essenciais para uma reflexão científica. Ademais, desacredita de qualquer contribuição medieval ao pensamento racional, devido à forte presença do elemento religioso (SANTOS, 2019). Nesse mesmo sentido, entre os filósofos neoescolásticos, alguns admitem as premissas da argumentação racionalista e até aceitam a sua conclusão, apesar de jamais negarem a relação entre filosofia e religião. Aceitam que Tomás de Aquino fundou uma filosofia cristã, mas seria ele o único, já que sua filosofia se constituiu em um plano puramente racional? Assim, “é muito mais uma discordância sobre os fatos que os separa dos racionalistas do que uma discor- dância sobre os princípios” (GILSON, 2006, p. 8). Em resumo, se para os racio- nalistas, a filosofia está no topo das ciências e se identifica com a sabedoria, para os neoescolásticos, a filosofia é subalterna à teologia, ainda que alguns pensem que a sua natureza é idêntica à filosofia concebida pelos racionalistas. Assimile Neoescolástica é a designação dada ao movimento filosófico e teoló- gico que teve início no século XIX e que procurou revitalizar a escolástica medieval. O impulso inicial foi dado pela encíclica Aeterni Patris (1879), do papa Leão XIII, que propôs a filosofia de Tomás de Aquino como resposta contra os desafios lançados contra a doutrina católica pelas escolas de pensamento modernas. De início, ficou restrita aos centros e instituições de ensino ligados à igreja católica na Itália, Espanha e França e, somente no final do século XIX, conseguiu se desvencilhar das amarras eclesiás- ticas, com a ampliação de suas pesquisas para além desses países. Entretanto, ainda que historiadores, filósofos racionalistas e filósofos neoes- colásticos neguem a existência ou mesmo a possiblidade de uma filosofia cristã na Idade Média, o fato é que nenhum deles recusa o fato de que houve uma 24 relação muito próxima entre o pensamento filosófico e a fé cristã. A questão que surge imediatamente é saber como essa relação afetou a ambos. O segundo obstáculo para caracterizar a existência ou a possibilidade de uma filosofia cristã é a concepção de renomados historiadores da filosofia de que o cristianismo primitivo se baseia no caráter exclusivamente prático, sem qualquer aspecto especulativo. Étienne Gilson (2006) reconhece que o cristianismo primitivo não é uma filosofia, mas não se pode afirmar que não há nele nenhum elemento especulativo, sob pena de ir além do que a análise histórica permite. Nesse sentido, argumenta que, ainda que a Bíblia não seja um livro filosófico, seria errôneo afirmar que ela não possa ter influenciado o desenvolvimento da filosofia e essa possibilidade se encontra nos elementos especulativos contidos nas origens da vida cristã: O terceiro obstáculo para caracterizar a existência ou a possibilidade de uma filosofia cristã é a aparente independência filosófica do pensamento moderno em relação à filosofia medieval. Contrário a esse argumento, Étienne Gilson (2006) advoga a favor da influência do pensamento cristão na filosofia medieval que pode ser percebida, inclusive, nos filósofos modernos. Ao argumentar contra todos esses obstáculos apresentados, Étienne Gilson (2006) procura demonstrar a plausibilidade de uma filosofia da Idade Média como uma filosofia cristã. Isto não porque considera que ela foi construída fielmente sobre bases bíblicas, mas por ter sido radicalmente influenciada pelo cristianismo em todos os seus aspectos. Ainda que a filosofia cristã seja pautada nos elementos da fé, ela motiva e gera a razão na busca por respostas e reflexões de seus elementos. Mas você pode se perguntar agora: Étienne Gilson (2006) foi o único a argumentar em favor da existência de uma filosofia cristã? Pois bem, a resposta é: não! É que ele talvez seja o mais expressivo dentre os historia- dores da filosofia e que conhecemos por aqui. No entanto, outros filósofos e historiadores da filosofia corroboram com essa ideia. Por exemplo, Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês, não descarta o argumento histórico desenvolvido por Gilson (2006), mas vai além deste ao afirmar que a razão é um dom de Deus para a humanidade e que a filosofia, ainda que nutrida pela revelação, possui o exercício da razão e, portanto, é autônoma em relação à teologia no período medieval (SANTOS, 2019). Anterior a Gilson e Maritan, August Heinrich Ritter (1791-1869), filósofo e historiador alemão da filosofia que, em meados do século XIX, modificou radicalmente o quadrohistoriográfico relativo à formação do pensamento moderno, pugnou pela existência de uma filosofia cristã, argumento que o cristianismo exerceu influência importante para a filosofia, apresentando novos problemas e exigindo dela investigações aprofundadas. Ademais: 25 Chamamos nossa filosofia de “filosofia cristã” pela única razão de que o acompanhamento dos desenvolvimentos que ela abraça deriva essencialmente de movimentos históricos que a expansão do espírito cristão aumentou na humanidade. (RITTER, 1843, p. 30-32) Enfim, Gilson, Maritain e Ritter, no decorrer das obras citadas, teorizaram em defesa da existência de uma genuína filosofia cristã na Idade Média, ainda que entre eles existissem diferenças na forma como esboçaram essa defesa. Acreditando na influência positiva da fé cristã na história da filosofia, enten- deram que o legado da antiguidade e o nascimento da modernidade foram enriquecidos com a filosofia cristã surgida na transição para o medievo. Assimile Em 21 de março de 1931, Étienne Gilson, Jacques Maritain e Heinrich Ritter se envolveram num debate sobre a existência de uma filosofia cristã, promovido pela Société Française de Philosophie, em Paris. Defensores daquela, eles tiveram como adversários os filósofos modernos Emile Bréhier e Léon Brunschvicg. Foi uma discussão oriunda do “pensamento católico francês” (BORGHESI, 1999, p. 313). Naquele contexto, “[...] a Europa assiste à imposição de um totali- tarismo pagão e, paralelamente, à decadência daquela subjetivi- dade que deveria constituir a nova metafísica, edificada, em grande medida, pelo cristianismo” (BORGHESI, 1999, p. 314). Posteriormente, o debate saiu dos limites do pensamento intelectual francês envolveu outros interlocutores, dentro e fora da França. A noção de filosofia cristã Em outra obra de grande relevância, História da Filosofia Cristã (1991), Philotheus Boehner e Étienne Gilson denominam de filosofia cristã o conjunto de sistemas filosóficos surgidos desde os tempos apostólicos até os nossos dias. Esses sistemas não são homogêneos e, portanto, possuem divergências e contrastes, por vezes, notáveis, mas se constituem em um todo fundamen- talmente unitário. Não justificando o conceito propriamente dito de filosofia cristã, explicam que o sentido dado por eles é exclusivamente histórico e limitado especificamente com o fim de demarcar o mais exatamente possível o fato histórico por ela representado. Sendo assim, apresentam, ainda que provisoriamente, a seguinte definição: 26 É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais, e não obstante vê na revelação cristã um auxílio valioso, e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão. (BOEHNER; GILSON, 1991, p. 9). Ainda o cristianismo não seja uma religião filosófica, ele encontra sua satisfação na própria reflexão filosófica. Partindo de uma série de fatos históricos, o cristianismo apresenta uma mensagem histórica de redenção. Acompanhado de todas as exigências morais, ascéticas e religiosas, ele não pode ser tido como uma filosofia, porque é perma- nentemente uma religião. Isto porque a filosofia tem seu ponto de partida no homem e apela para o seu intelecto, principalmente, tratando de noções e problemas puramente naturais com o objetivo de fornecer uma interpretação racional do mundo, da natureza, da sociedade e do homem (BOEHNER; GILSON, 1991). No entanto, ainda que não seja uma filosofia, o cristianismo deu origem a um movimento filosófico de grandes proporções. A razão, orientada pela fé, seria o ponto de partida para o aprofundamento racional das verdades reveladas. Estas verdades religiosas possuem em germe e em estado latente muitas doutrinas filosóficas que, ao serem trazidas à luz pelo esforço especulativo de gerações sucessivas, demons- tram-se passíveis de desenvolvimento filosófico extremamente fecundo (BOEHNER; GILSON, 1991). Vamos agora entender como se deu a aproximação do cristianismo com a filosofia. Para tanto, é necessário retornar ao contexto de crise e queda do Império Romano do Ocidente, momento em que a experiência religiosa desenvolvida pelos cristãos modificou o entendimento do homem e da socie- dade acerca da religião. Essa modificação, em grande medida, atingiu tanto o campo das religiões de uma maneira geral quanto os grupos sociais sem religião definida (SANTOS, 2019). Para Carlos Palácio (1991), filosofia e cristianismo não são duas grandezas homogêneas. Enquanto a filosofia se situa na inteligibilidade do real, o cristia- nismo tem seu ponto de partida num acontecimento real, a vida e a morte de Jesus. A tensão entre a experiência e razão (logos) atravessa toda a história do próprio cristianismo. Mas a pergunta a ser feita é: por que o cristianismo manifestou desde a sua origem essa irresistível atração pela razão? A reposta pode ser encontrada nos meandros da história: 27 A história das relações entre cristianismo e filosofia se confunde, em grande parte, com a história do próprio cristianismo. Foi ele, com efeito, o herdeiro indiscutível da “antiguidade tardia” (essa grande tradição cultural que foi a civilização greco-romana) e a matriz fecunda de uma nova cultura, dessa fantástica aventura histórica, religiosa e cultural que foi o ocidente cristão. Cultura cristã, inegavel- mente teológica nas suas raízes, mas misteriosa e parado- xalmente anticristã neste seu momento particularmente crítico e sombrio. Começo do fim ou prenuncio de outra cultura? (PALÁCIO, 1991, p. 508) É fato que o cristianismo, desde seu início, manteve relações com a filosofia pagã, marcada pela filosofia dos estoicos, dos cínicos e dos epicu- ristas. Por uma necessidade histórica e psicológica interna, o cristianismo tomou contato com a filosofia, tendo sido dominante nos primeiros séculos da era cristã, o que lhe exigiu uma tomada de posição. O cristianismo estava repleto de ideias suscetíveis de desenvolvimento e valorizadas pelo esforço especulativo sistemático, principalmente no sentido de confrontar posicio- namentos religiosos da filosofia pagã helenística. Sendo assim, o cristianismo assumiu uma postura crítica em relação a essa filosofia e, dotado de uma verdade dita absoluta, a da revelação, garantiu aos cristãos um critério seguro de julgamento em face das especulações gregas (BOEHNER; GILSON, 1991). É preciso frisar que os apóstolos São Paulo e São João utilizaram conceitos e termos próprios da filosofia pagã nos seus ensinamentos. Entre eles ainda não havia filosofia, até mesmo porque havia uma relação dúbia com essa filosofia, ora rejeitando-a com o horror próprio daquele contexto, ora aceitando-a e entendo-a como uma aliada. A partir disso, no século II, com os ataques feitos à fé cristã por alguns filósofos pagãos, surgiram os primeiros pensadores cristãos no Oriente e no Ocidente, os apologistas, elaborando obras e discursos calcados na razão instrumental e da fé, principalmente (SALES, 2008). Portanto, nos primeiros séculos da era cristã, a filosofia foi utilizada para fundamentar o discurso cristão. Santo Agostinho (354-430) talvez represente o ápice da conciliação entre cristianismo e filosofia, naquilo que convencio- nou-se chamar de nostra philosphia christiana (SALES, 2008). O objetivo central de Agostinho era demonstrar a revelação cristã como a verdadeira filosofia, o que nos permite concluir que ele entendeu a sua atividade como a de um filósofo. E, mais, “a postura teórica de Agostinho ganha expressão muito antes no seguinte dito: se Platão fosse vivo, racionalmente ele teria de dar razão ao cristianismo” (HORN, 2003, p. 229). 28 Isso nos leva à afirmação de Boehner e Gilson (1991) de que a tradição é o que norteia a filosofia cristã e que quase todos os pensadores cristãos levaram em consideração seus predecessores imediatos, procurando aprofundar ou melhorar suas obras e a eles reportando-se ouse sentindo devedores: “Justino, por exemplo, descobre os elementos cristãos na filosofia grega e muitos “escolásticos” do século XVIII se apoiam em Agostinho e nos padres da igreja. Em parte alguma se verifica ruptura completa com o passado” (BOEHNER; GILSON, 1991, p. 11). Boehner e Gilson (1991) descrevem as propriedades essenciais da filosofia cristã. Em primeiro lugar, uma filosofia cristã consta exclusivamente de proposições suscetíveis de demonstração natural. Ou seja, só podemos falar filosofia cristã quando a concordância às proposições por ela anunciadas se basear nas reflexões de ordem racional. Seu ponto de partida não são as verdades reveladas (inacessíveis à razão), mas o esforço de compressão e a percepção da ação de Deus. Em segundo lugar, uma filosofia cristã jamais irá de encontro às verdades de fé claramente formuladas pela igreja. Ou seja, uma filosofia cristã não tolera a contradição consciente à doutrina da igreja, caso contrário não será denominada de cristã essa filosofia. Portanto, a filosofia cristã “deve origi- nar-se sob a influência consciente da fé cristã. Mas esta influência não é de natureza sistemática, e sim psicológica” (BOEHNER; GILSON, 1991, p. 10). Sua manifestação ocorre, sobretudo, de quatro maneiras: a. A fé preserva a filosofia de muitos erros, dando à razão certos limites de caráter inviolável. b. A fé propõe certas metas ao conhecimento racional, cabendo à razão analisar e aprofundar as verdades reveladas, descobrir para elas um fundamento acessível ao saber natural com a finalidade de trans- formar as convicções religiosas em evidências racionais. c. A fé determina a atitude cognoscitiva do filósofo cristão, fornecendo uma concepção de mundo que lhe proporciona uma visão onicom- preensiva do mundo e da vida. d. A fé determina o sentido do labor filosófico, que assume a feição de verdadeira tarefa religiosa, colocando o pensador cristão a serviço da edificação da igreja. No que concerne às caraterísticas da filosofia cristã, Boehner e Gilson (1991) escrevem que ela tende a fazer a seleção dos seus problemas. Isto pode ser explicado a partir da sua finalidade, que consiste na elucidação da fé e, sendo assim, nem todos os problemas interessam igualmente. Nesse sentido, 29 três classes de problemas podem ser distinguidos: os de base, tais como o da existência da imortalidade da alma e o da liberdade; os imprescindíveis para toda a construção filosófica, tais como as questões de natureza lógica e epistemológica, as da divisão e natureza das ciências; os não essenciais, quase todos pertencentes à filosofia da natureza. Além disso, outra característica da filosofia cristã é que ela manifesta, quase sempre, tendência sistematizadora, aspirando a uma visão total da realidade. Para tanto, empenha-se mais em coordenar os problemas já aprofundados em um grande conjunto harmônico do que em aprofundar problemas isolados, compensando a sua falta de espírito criativo pelo vigor de sua visão em conjunto. Uma visão geral é proporcionada ao pensador cristão pela revelação e pela sistemática da fé (BOEHNER; GILSON, 1991). A fé em busca de entendimento (fides quaerens intellectum). É em torno desse princípio que toda a especulação medieval gravitou, incluindo a filosofia cristã. Da revelação, apenas algumas verdades acreditadas podem ser tornar verdades inteligíveis. E esse é o objeto da filosofia cristã: o corpo de verdades reveladas inteligíveis por meio da razão e com o sentido exata- mente definido por ela. Nas palavras de Étienne Gilson (2006, p. 42-43): “o conteúdo cia filosofia cristã é, portanto, o corpo das verdades racionais que foram descobertas, aprofundadas ou simplesmente salvaguardadas, graças à ajuda que a revelação deu à razão”. Reflita É na atmosfera religiosa que o homem medieval nasce, vive e morre e que sua inteligência pensante se move. Quando decide pensar racio- nalmente o mundo e a vida (portanto, filosofar), o homem medieval encontra os pressupostos no credo da sua fé. Seria, então pensar racio- nalmente, já que a fé não é, em si mesma, um pensamento pensado pelo homem, mas um pensamento revelado por Deus? O fato é que o homem medieval sentiu a nessessidade (própria na natureza humana) de pensar por si o mundo e a vida e, ao fazê-lo, não se propunha a encontrar a inteligibilidade ou o sentido ignorados (por não o eram), mas pensar por si o que já estava dado pela divina revelação. Munido dessas informações acerca da existência e das características da filosofia cristã, bem sobre a existência de uma filosofia medieval multi- facetada, você terá condições de refletir e analisar criticamente os demais conteúdos deste livro, principalmente a influência da Bíblia no pensamento ocidental e os movimentos filosóficos característicos da Idade Média. Avante! 30 Sem medo de errar A pesquisadora Fabiane Taís é contactada por uma revista para escrever um artigo sobre a filosofia medieval, com enfoque no pensamento dos filósofos cristãos. Em suas pesquisas, se deparou com um debate interessante: a filosofia medieval sido teria sido o que foi sem o contato com o cristia- nismo? Ao perceber que a maioria dos pesquisadores responde “sim” para essa pergunta, entendeu que há no senso comum uma ideia de que apenas o cristianismo foi influenciado pela filosofia, mas não o contrário. Mas há um autor em especial que defende veementemente a influência do cristianismo na filosofia bem como a existência de uma genuína filosofia cristã como essência da filosofia medieval: Étienne Gilson (2006). A grande questão é saber se esse autor está correto na sua perspectiva e, em caso afirmativo, quais seriam as características de uma filosofia cristã. Para resolver essa problemática, é necessário, primeiramente, entender os argumentos contrários à uma filosofia cristã. Em primeiro lugar, historia- dores e filósofos céticos em relação à filosofia na Idade Média afirmam que os pensadores cristãos se apoderaram das ideias dos filósofos clássicos (notada- mente Platão e Aristóteles) e de aplicá-las a seus dogmas cristãos, não contri- buindo em nada com as discussões filosóficas. Dentre estes, os racionalistas puros diferenciam essencialmente religião e filosofia, dizendo que a razão (pertencente à ordem da filosofia) tornaria impossível a colaboração entre elas. Além disso, os filósofos escolásticos entendem que a única filosofia cristã existente é a de Tomás de Aquino, justamente porque ele fez a conciliação entre fé e razão. Em segundo lugar, encontra-se a concepção de renomados historiadores da filosofia de que o cristianismo primitivo se baseia no caráter exclusivamente prático, sem qualquer aspecto especulativo e, portanto, sem espaço para a filosofia. Por fim, em terceiro lugar, a aparente independência filosófica do pensamento moderno em relação à filosofia medieval, como se tivesse acontecido um salto entre os gregos e os modernos. Étienne Gilson rebate todos os argumentos contrários à existência de uma filosofia cristã ao afirmar que a razão filosófica é essencial para a inteli- gibilidade humana das verdades relevadas por Deus. Portanto, não haveria incompatibilidade entre filosofia e cristianismo. Além disso, o cristianismo primitivo também possuía elementos especulativos, contidos nas origens da vida cristã. E mais, o pensamento moderno seria herdeiro do pensamento medieval em muitos aspectos, notadamente da escolástica. Ao caracterizar a filosofia cristã, Étienne Gilson (2006) elenca duas grandes propriedades: uma filosofia cristã consta exclusivamente de propo- sições suscetíveis de demonstração natural; uma filosofia cristã jamais irá de 31 encontro às verdades de fé claramente formuladas pela igreja. Além disso, elenca algumas características principais: a filosofia cristã é norteada pela tradição e seus pensadores sempre levam em consideração os seus predeces- sores imediatos; a filosofia cristã tende a selecionar seus problemas, já que nem tudo interessana defesa da fé; a filosofia cristã manifesta, quase sempre, tendência sistematizadora, aspirando a uma visão total da realidade. Faça valer a pena 1. “Na verdade, os trabalhos de Gilson foram influenciados por um debate mais amplo, ocorrido nos anos de 1930-40, em torno da possibilidade em geral de uma filosofia ‘cristã’. Buscava-se saber se, ao fazer filosofia, um cristão deveria respeitar certos elementos básicos (a existência de Deus, a existência de uma alma espiritual, a salvação do gênero humano, a centralidade de Cristo etc.). E, caso houvesse tais elementos, se isso não representaria um atentado contra a autonomia da razão filosófica.” (SAVIAN FILHO, 2010, p. 67) Sobre o conteúdo dos trabalhos de Étienne Gilson (2006) acerca da filosofia cristã medieval, analise as afirmativas a seguir: I. Para Étienne Gilson (2006), não somente há uma filosofia na Idade Média, como nela se encontra o ápice do que se poderia chamar de uma filosofia cristã. II. Étienne Gilson (2006) defende a presença positiva e sempre influente da fé cristã sobre a própria história da filosofia. III. Com suas obras, o objetivo de Étienne Gilson (2006) é propor que a filosofia medieval foi construída sobre fundamentos bíblicos. Considerando o contexto apresentado, está correto o que se afirma em: a. I, apenas. b. II, apenas. c. III, apenas. d. I e II, apenas. e. II e III, apenas. 2. “Não há expressão que venha mais naturalmente ao pensamento de um historiador da filosofia medieval do que filosofia cristã; nenhuma, parece, que possa levantar menos dificuldades, portanto não há por que se espantar de 32 vê-la empregada com tanta frequência. Mas há poucas que, refletindo melhor, se revelam mais obscuras e incômodas de definir.” (GILSON, 2006, p. 5) Acerca da problemática que envolve a filosofia cristã, assinale a alter- nativa correta: a. Considerando a essência da filosofia e da religião, uma de caráter racional e a outra de caráter dogmático, não há que se falar em aproxi- mação entre elas. b. A impossibilidade de existência de uma filosofia cristã reside no fato de nem mesmo os pensadores cristãos se considerarem filósofos. c. Se a religião possui a teologia enquanto ciência para estudar a natureza de Deus, seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo, isso por si só impediria a existência de uma filosofia cristã. d. Os racionalistas estão corretos ao afirmarem que a discordância entre a fé e a filosofia é um sinal certo de erro filosófico que impede a carac- terização de uma filosofia cristã. e. A filosofia medieval não teria sido o que foi sem a influência do cristianismo e isso permite caracterizar existência de uma genuína filosofia cristã na Idade Média. 3. “Das atividades culturais, na ordem da natureza, nenhuma entende tão de perto com os destinos da pessoa como a filosofia. Fruto da razão no exercício do seu mais nobre mister, apresenta-se como a sabedoria: explicação do universo e norma da vida. O homem é, por natureza, racional. Em face da multiplicidade das cousas e do mistério da consciência indaga porquês e investiga razões. [...] O cristianismo não se apresentou como uma filosofia, mas como uma salvação. [...] Será então que o cristianismo passará à margem da filosofia sem conhecê-la, nem influenciá-la? As duas sabedorias – a cristã e a humana – continuarão a desenvolver-se, uma ao lado da outra, sem influ- ências, como paralelas que se ignoram?” (FRANÇA, 1951, p. 148-149) Acerca das razões para essa problemática, analise as asserções e relação proposta entre elas: I. De início, entre o cristianismo nascente e a filosofia pagã a oposição foi radical. Na consciência dos primeiros discípulos do Evangelho vivia a forte impressão de uma incompatibilidade irredutível entre ambos. 33 PORQUE II. As relações históricas entre o cristianismo e o paganismo nos permitem constatar que os primeiros pensadores cristãos se valeram de conceitos e termos do pensamento grego e helenístico, mas entre eles ainda não havia filosofia. A respeito dessas asserções e da relação entre elas, assinale a alternativa correta: a. As asserções I e II são proposições verdadeiras e a II justifica a I. b. As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não justifica a I. c. A asserção I é uma proposição verdadeira e II, falsa. d. A asserção I é uma proposição falsa e II, verdadeira. e. As asserções I e II são proposições falsas. 34 Seção 3 A influência da Bíblia no pensamento ocidental Diálogo aberto Você já conhece as noções introdutórias acerca da Filosofia Medieval e da Filosofia Cristã e compreende as principais discussões acerca da existência ou da possibilidade de existência de uma e de outra. Nesse sentido, para você, já deve estar claro que a Idade Média é um período muito controverso na história ocidental e que o pensamento filosófico medieval é cercado de diversos aspectos religiosos, os quais, muitas vezes, levaram ao seu descré- dito. Ao centrarmos nossa atenção especialmente nas relações entre filosofia e cristianismo, somos levados, naturalmente, a analisar a influência da mensagem bíblica no pensamento filosófico medieval e que chegou até a atualidade. Esse, portanto, é o tema desta seção. Vamos problematizá-lo com outra situação-problema! Você atua em uma ONG cristã denominada Visão Mundial e foi incum- bido pelo presidente dela a organizar uma palestra aberta à comunidade, cujo tema deve ser relacionado aos dogmas cristãos na atualidade. Então, você entrou em contato com a pesquisadora e teóloga Bernadete de Lourdes e a convidou para proferir a referida palestra. De pronto, ela aceitou, enxergando na palestra uma ótima oportunidade para compartilhar os resultados da sua mais recente pesquisa relacionada à temática. Já na palestra, Bernadete de Lourdes iniciou com a seguinte problemática: vocês já pararam para pensar em todas as mudanças ocorridas nos últimos séculos em termos de produção de conhecimento? Ora, a ciência moderna, surgida entre os século XVII e XVIII, com Galileu Galilei, René Descartes, Isaac Newton, Nicolau Copérnico, Francis Bacon, entre outros pesquisadores (que também eram filósofos), procurou sistematicamente se afastar da influ- ência da religião cristã e dos estudos antigos em filosofia natural por enxer- garem uma excessiva dependência de especulações metafísicas. A palestrante afirmou que, naquele contexto de surgimento da ciência moderna, o enfoque passou a ser dado na experiência como verdadeira forma de produzir conhecimento – aí as origens do método experimental/empírico. Esses estudos científicos não provocaram transformações apenas na metodo- logia de produção do conhecimento mas também na visão do mundo. Uma nova visão científica emergiu em contraste àquela até então predominante, oriunda da mistura de elementos da filosofia antiga e da filosofia e religião 35 medievais. No centro dessa nova visão, o mundo físico como responsável pelos processos mecânicos que envolvem o movimento dos corpos. Continuando sua fala, Bernadete de Lourdes ressaltou que a ciência caminhou a largos passos, com progressos em diversas áreas, proporcio- nando ao ser humano avanços advindos do uso político-ideológico ou técnico dos seus conhecimentos. A crença no poder da ciência foi triunfante entre intelectuais e cientistas. O Positivismo como corrente teórica influen- ciou as ciências sociais e humanas. E Darwin, influenciado por todo esse movimento científico, cunhou a teoria da evolução das espécies, pondo em xeque a explicação religiosa da criação da natureza e do homem por Deus. Então, Bernadete lançou algumas perguntas para a plateia, incluindo você: com todas essas transformações na maneira de produzir conhecimento e enxergar o mundo, que são oriundas da ciência moderna, qual é o lugar da mensagem bíblica no pensamento ocidental? Será que ainda hoje as ideias inovadoras do Novo Testamento encontram seu lugar na nossa forma de conceber o mundo? O criacionismofoi de fato superado ou ainda encon- tramos resquícios dele entre nós? Quais são os conhecimentos suficientes para responder a essas questões levantadas por Bernadete de Lourdes? Com as discussões que serão travadas nesta seção, você terá condições de refletir acerca desses questionamentos e compreender como a mensagem bíblica perpassou a Idade Média e chegou até a contemporaneidade. Não pode faltar A Bíblia no contexto medieval Nas sociedades do ocidente medieval, herdeiras do mundo greco-ro- mano e optantes pelo cristianismo e sua forma romana, a escrita teve impor- tância significativa. Ainda que na Alta Idade Média (séculos V a X) a orali- dade tenha sido privilegiada em todos os atos cotidianos, principalmente nos da liturgia (apoiada em textos codificados), a escrita operava certa magia. É nesse contexto que se insere a história da Bíblia, que não é apenas a história de um livro ou de sua recepção, de sua leitura e de seus leitores, de suas funções e de seus usos, mas também das perseguições ao seu texto e de seus conte- údos pelos códigos sociais. A Bíblia alimentou e inspirou a maior parte das criações medievais, isto porque as Sagradas Escritas Cristãs foram reconhe- cidas como elemento superior da sociedade, representando a segurança contra o esquecimento e, portanto, a memória da lei (LOBRICHON, 2006). 36 Durante a Idade Média ocidental, sobre a Bíblia, se pronunciavam juramentos, compromissos de fé e promessas essenciais. Na cerimônia de vassalagem, por exemplo, ao receber as terras do suserano, o vassalo presta- va-lhe homenagem e jurava-lhe fidelidade enquanto punha as mãos na Bíblia. Os prelados (autoridades eclesiásticas), quando empossados, usam a Bíblia como horóscopo para fazer previsões sobre o seu governo. Certos guerreiros levavam uma Bíblia de alto valor para o combate para servir de escudo protetor e signo de eleição para seus guardiões. Portanto, a Bíblia era a autoridade principal no período medieval, a lei dos cristãos, um código ou norma intocável (LOBRICHON, 2006). A palavra “bíblia” advém do grego biblía e significa “livros”. É, na verdade, a coletânea de uma série de livros, com títulos e peculiaridades específicas. Há quem afirme que ela seria uma “coletânea de coletânea de livros”, já que alguns deles são precisamente a coletânea de outros. Ao todo, são 73 livros considerados inspirados, divididos em Antigo Testamento (46 livros) e Novo Testamento (27 livros). Os livros do Antigo Testamento foram redigidos entre, aproximada- mente, 1300 a.C. e 100 a.C., e os primeiros baseiam-se em uma tradição oral antiquíssima. Dividem-se em livros históricos, livros didáticos e livros profé- ticos. Os primeiros cinco livros históricos (Genesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) são os livros da Lei ou Pentateuco. Os livros do Novo Testamento remontam todos ao século I d.C., centrando-se inteiramente na nova mensagem de Cristo, sendo composto pelos quatro Evangelhos, pelas Cartas de Paulo, pelas Cartas dos Apóstolos e pelo Apocalipse (REALE; ANTISERI, 2005). Os livros que compõem a Bíblia foram redigidos em três línguas: hebraico (maior parte do Antigo Testamento); aramaico, dialeto hebraico (uma pequena parte); e grego (alguns textos do Antigo Testamento e prati- camente todos do Novo Testamento). Das traduções realizadas, duas tiveram grande importância histórica. A primeira foi a tradução de todo o Antigo Testamento, feita do hebraico para o grego, que teve início em Alexandria, no século III a.C., e ficou conhecida como “Versão dos Setenta” (ou Septuaginta), pois setenta e dois rabinos (seis de cada uma das doze tribos) foram respon- sáveis pela tradução. A segunda, por sua vez, foi a tradução para o latim feita por São Jerônimo (entre os séculos IV e V d.C.), que ficou denominada de “Vulgata” e se impôs de modo mais estável, a ponto de ser adotada pela Igreja. Na Baixa Idade Média (séculos XI a XV), os redatores de inventários tratavam a Bíblia como um objeto presente em todo lugar e destinado a ser usado em bibliotecas de instituições eclesiásticas, igrejas, mosteiros, confra- rias, casas partículas, sobretudo, de clérigos, como também em casas de leigos, burgueses e camponeses, principalmente, após a diminuição da taxa de analfabetismo no final da Idade Média. Foi a partir do século IX que nas 37 bíblias começaram a se multiplicar os apoios à leitura e à interpretação, tais como os prólogos, a lista de cânones e as interpretações de nomes hebraicos, ainda que a eficácia desses instrumentos e a sua utilidade sejam questioná- veis. Mas, no século XIII, o ordenamento das partes da Bíblia foi estabili- zado e surgiram instrumentos mais práticos, tais como o moderno sistema de capítulos, que se impôs sobre as divisões anteriores, e o “índex”, desti- nado aos mestres do ensino bíblico e aos pregadores, que tinham a missão de selecionar um tema da Escritura para resumir as intenções da liturgia. Os eruditos passaram a se interessar em uniformizar o texto bíblico entre 1253 e 1280. A ideia era difundir um texto mais preciso, revisado, respondendo às exigências científicas da época (LOBRICHON, 2006). Importante nesse processo foi a tentativa de uniformização do texto bíblico no chamado Renascimento Carolíngio (séculos VIII e IX), ocorrido no reinado de Carlos Magno e caracterizado pelo florescimento artístico e literário, que resultou na conservação e cópia de manuscritos, bem como no emprego de modelos romanos na arquitetura, além da invenção da minús- cula carolíngia. A tarefa coube ao monge inglês Alcuíno de Iorque (735-804), que se baseou na versão latina feita por São Jerônimo, mas dela eliminando interpolações, revendo a tradução e corrigindo passagens. Além disso, o monge “reviu várias obras litúrgicas, preparando o fim da diversidade de ritos existente na Cristandade latina” (FRANCO JR., 2001, p. 148). Assimile O formato em livro da Bíblia foi invenção do século III, em substituição ao formato cilíndrico anterior, e isso foi resultado da necessidade de manuseio por parte dos membros da Igreja. Entretanto, esse novo formato guardava certas dificuldades práticas, já que ainda era uma obra pesada, contendo dois ou mais volumes. Nos séculos VI e VII, houve a necessidade de abastecer as novas igrejas com a Bíblia, e os ateliês italianos ficaram encarregados de recopiar os textos sagrados em escri- turas comumente mais legíveis, em letras grandes e arredondadas, dando origem aos tomos. Com a criação da caligrafia minúscula carolíngia no século VIII (mais fácil dos que as anteriores), a produção tornou-se relativa dos livros, bem como a sua circulação. Mas, isso ainda não levou necessariamente à diminuição do formato da Bíblia. A ideia da Bíblia de bolso surgiu apenas no século XIII, e as universidades e os ateliês de Paris até fizeram disso uma especialidade. Com a invenção da imprensa, no século XV, o livro ganhou difusão devido à maior rapidez de cópia e de seu menor custo, mas o seu formato ainda era pouco menor do que o manus- crito. Portanto, o formato da Bíblia não é o melhor indício para avaliar a sua difusão, e sim as suas marcas de uso e de posse (LOBRICHON, 2006). 38 As ideias bíblicas que impactaram o pensamento filosófico ocidental Ainda que não seja um livro filosófico, a Bíblia contém mensagens que impactaram diferentemente a filosofia e influenciaram a formação do pensa- mento ocidental. Antigo professor de Filosofia da Universidade de Chartres e do Instituto Pontifício de Estudos Medievais em Toronto, Édouard Jeauneau (1986) afirma que, se perguntássemos aos filósofos medievais qual elemento teve maior importância na origem de sua filosofia, eles certamente menciona- riam a Bíblia, notadamente o Novo Testamento. Temos, então, que a difusão da mensagem do Novo Testamento mudou irreversivelmente as caracterís- ticas da espiritualidade ocidental, produzindo uma verdadeira revolução na abordagem de temas tratados pela filosofia anteriormente, bem como daqueles
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