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Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ANTOLOGIA 2 
2005 
 
 
 
 
 3 
 
 
PROJETO ENTRE NA RODA: LEITURA NA ESCOLA E NA COMUNIDADE (VERSÃO PRELIMINAR) 
 Iniciativa e Autoria e 
 apoio realização 
 
 
Fundação Volkswagen 
Via Anchieta, km 23,5 CPI 1394 Bairro Demarchi 
09823-901 São Bernardo do Campo / SP 
http://www.vw.com.br/fundacaovw 
Presidente do Conselho de Curadores 
Ricardo L.. S. Carvalho 
Diretora de Administração e Relações Institucionais 
Simone Nagai 
e-mail: fundacao@volkswagen.com.br 
CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária 
R. Dante Carraro, 68 – Pinheiros 
05422-060 São Paulo SP 
http://www.cenpec.org.br 
Fone/Fax 3816.0666 
Direção geral 
Maria Alice Setubal 
Coordenação geral 
Maria do Carmo Brant de Carvalho 
Coordenação da equipe Currículo e Escola 
Maria Silvia Bonini Tararam 
e-mail: leituraescrita@cenpec.org.br 
Autoria do material 
América dos Anjos Costa Marinho 
Maria Alice Mendes de Oliveira Armelin 
Zoraide Inês Faustinoni da Silva 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4
O HOMEM QUE ENGANOU A MORTE 
Eugênio Amado 
 
(...) Há muito tempo atrás, mas 
muito tempo mesmo, morava lá para os 
lados da Lagoa Seca um médico famoso, 
chamado Doutor Finfim. Ele era velho como 
a serra. Pouco antes de morrer, contou a 
história de sua vida, que agora vou repetir, 
do mesmo jeito que escutei da minha 
falecida mãe. Acho que ela chegou a 
conhecer o sujeito. 
Um casal lá daquelas bandas tinha 
tantos filhos, mas tantos, que todo mundo 
da vila já tinha sido chamado para ser 
compadre deles. O último filho que nasceu 
veio ao mundo sem que houvesse na Lagoa 
Seca mais um só cristão que pudesse ser 
seu padrinho. 
Acontece que a mãe do menino 
sentiu que iria morrer em poucos dias, 
Assim, quando a Morte chegou para levar a 
coitada, ela pediu um favor: que a Morte 
fosse a madrinha da criança. A Morte ficou 
até orgulhosa com o convite. Assim, poucos 
dias depois, batizou o menino, que recebeu 
o nome de Serafim, já que não havia meio 
de nascer outro daquela mãe. E lá foi 
vivendo, criado pelo pai e pelos irmãos, sem 
nem saber quem era sua madrinha. 
Quando Serafim — que todos 
chamavam de Finfim — ficou rapaz e já se 
preparava para escolher seu rumo na vida, 
a Morte lhe apareceu um dia, e o 
tranqüilizou, dizendo: 
— Não te assustes, que não vim 
levar-te. Vim apenas revelar um segredo: 
sou tua madrinha. A única coisa que te 
posso dar de presente é o conhecimento do 
tempo de vida que cada pessoa ainda tem. 
Assim, aconselho-te a ser médico. Sempre 
saberás se teu paciente irá viver ou se está 
para morrer. Quando fores visitar teus 
pacientes, vais enxergar-me junto ao seu 
leito. Então, fica sabendo: se eu estiver 
junto à cabeceira, quer dizer que ele vai 
viver. Podes receitar o que te der na telha, 
que ele em breve há de sarar. Mas se eu 
estiver ao pé da cama, de nada adianta o 
tratamento: esse aí já está condenado. É 
caso perdido. 
Finfim apreciou aquele presente, 
que poderia torná-lo famoso ou rico em 
pouco tempo. E foi de fato o que sucedeu. 
Ele botou uma tabuleta na porta dizendo 
que era médico, e dentro em pouco foi 
chamado para ver um doente. Lá chegando, 
encontrou um moço que até parecia 
defunto, de tão magro e pálido que estava. 
Mas a morte estava parada junto à 
cabeceira — só Finfim podia ver. Portanto, 
ele iria viver. Finfim tirou de sua mala uma 
porção de pomadas e pós, misturou tudo, 
mandou ferver e adoçar, receitou aquilo 
para o moço e foi-se embora. Daí a poucos 
dias, o moço sarou, recuperou as forças, 
voltou a ficar gordo e corado, atribuindo sua 
cura ao remédio do Doutor Finfim. 
Desse dia em diante, sua fama se 
espalhou. Se ele dizia que fulano iria 
morrer, de nada valiam rezas e remédios: o 
doente ia para o beleléu. Mas se ele dizia 
que ia tentar, sua cura era certa — só 
questão de tempo. 
Seu nome ficou tão conhecido, que 
chegou até os ouvidos do Coronel Quirino, 
Já ouviram falar dele? Era o fazendeiro 
mais rico da região. O filho dele tinha caído 
do cavalo, batido a cabeça no chão, e 
estava muito mal. Veio um médico da 
Capital, olhou o moço e disse que era caso 
perdido. Morte certa. Desesperado, o pai 
resolveu chamar o tal de Doutor Finfim, do 
qual se diziam maravilhas. 
E ele se foi. Levou dois dias para 
chegar. Entretanto no quarto do doente, 
enxergou a Morte esperando por ele para 
dar o aviso combinado, sentadinha junto ao 
pé da cama do pobre coitado. 
Como ele estava demorando muito 
para chegar, a Morte aproveitou para tirar 
um cochilo. Finfim teve uma idéia. 
Chamando os empregados e pedindo 
silêncio, mandou que virassem a cama, 
 5 
passando os pés para a cabeceira e a 
cabeceira para os pés. A Morte ressonava, 
sem dar conta do que estava acontecendo. 
Quando acordou, viu que tinha sido 
enganada pelo afilhado. Mas como 
promessa é dívida, nada disse, deixando o 
rapaz viver. E Finfim viu sua fama e sua 
fortuna aumentarem, pois o Coronel 
recompensou com grande generosidade a 
cura milagrosa de seu filho. 
Certo dia, a Morte apareceu no 
quarto do afilhado e convidou-o a visitar sua 
casa. Finfim aceitou, e ela o levou até lá. 
Entrando num salão, ele avistou milhares de 
velas acesas, de todos os tamanhos. 
Algumas enormes, de quase chegar ao teto. 
Outras estavam pela metade, e outras 
estavam quase no fim. Perguntando o que 
significava aquilo, a madrinha lhe 
respondeu: 
— São as vidas dos homens. As 
velas grandes são das pessoas que ainda 
terão muitos anos de vida, as pequenas são 
as daquelas que já estão perto de morrer. 
— E onde está a minha vela, 
Madrinha? 
— É esse toquinho aqui, meu 
afilhado. Tua hora chegou. Não dá tempo 
de rezar um Pai-nosso. 
— Madrinha, não faça isso comigo, 
Dê-me um prazo de pelo menos 
encomendar minha alma: deixe-me rezar 
um Pai-nosso. 
— Eu não devia deixar, pois já me 
enganaste uma vez, salvando a vida do filho 
do Coronel Quirino. Mas como és meu 
afilhado, vá lá, podes rezar um Pai-nosso. 
Mas em seguida vou levar-te comigo. 
— Obrigada, Madrinha. Então, 
vamos lá: “Pai-nosso que estais no Céu...” 
— e calou-se. 
— Vamos, Serafim, continua a 
oração. 
— E eu disse que ia terminar 
depressa? Vai levar muitos anos até que eu 
resolva rezar o que falta. 
Enganada pela segunda vez, a 
Morte resmungou, mas nada pôde fazer. E 
foi assim que o Doutor Finfim ainda viveu 
muitos e muitos anos: casou, teve filhos, 
netos e bisnetos; todos morriam e ele 
continuava vivendo. 
Num dia em que foi ao cemitério 
assistir ao enterro de seu tataraneto, depois 
que a cerimônia acabou e todos foram 
embora, ele ficou ali, pensando no que já 
tinha feito, em quantas pessoas havia 
conhecido, e resolveu que era tempo de dar 
adeus à vida. Já estava cansado de tanto 
viver. Ali mesmo terminou o Pai-Nosso 
interrompido tanto tempo atrás, e no mesmo 
instante a Morte o levou, com um suspiro de 
alívio. 
Só que, pouco antes de morrer, ele 
contou sua história para o coveiro, que 
contou para minha mãe, que a contou para 
mim, que a estou contando para vocês. 
Depois disso, nunca mais a Morte se deixou 
enganar por outro vivente. (...) 
 
(AMADO, Eugênio. O homem que enganou a morte. 
Villa Rica: Belo Horizonte/ Rio de Janeiro, 1991. 
p. 6-12) 
 
 
 
A NOITE ASSOMBRADA 
Sonia Junqueira 
 
Contam que antigamente, no tempo 
em que galinha tinha dente, moravam numa 
cidadezinha do interior do Brasil uma moça 
e sua mãe velhinha. 
O pai da moça tinha morrido havia 
pouco tempo. E, se no tempo dele já eram 
pobres, depois de sua morte ficaram 
miseráveis, ela e a mãe. Não tinham 
dinheiro pra comer nem pra comprar roupas 
nem pra passear... nem pra morar. Isso 
mesmo: não podendo pagar o aluguel, 
haviam sido despejadas da casinha humilde 
onde moravam. 
 6
E agora? Pra onde ir? Os poucos 
parentes que tinham não queriam recebê-
las em suas casas — afinal, seriam maisduas bocas pra alimentar, e eram todos 
muito pobres. 
A mesma coisa acontecia com os 
amigos: ninguém podia ajudá-las. 
Como não havia muito a fazer, a 
moça e a mãe fizeram o pouco que podiam: 
juntaram suas coisas — umas trouxas de 
roupas, uma mesa e algumas cadeiras, um 
armário velho, duas camas meio capengas 
e um relógio de parede, daqueles de cuco 
—, puseram na carroça de um vizinho, 
puxada por um burro velho, e se foram. Pra 
onde? Ora, pra onde vão quase todas as 
pessoas na situação delas (pelo menos nas 
histórias): para a periferia da cidadezinha, 
onde ficam os pobres mais pobres, os 
casebres mais casebres, a tristeza mais 
triste. O dono da carroça ajudou-as a 
descarregar suas coisas no final de uma rua 
escura e esburacada e se foi, desejando: 
— Deus tome conta de vocês, 
irmãs! 
A moça olhou em volta: barracos 
caindo aos pedaços, crianças magras com 
caras espantadas, mulheres de olhar 
desconfiado, uns cachorros sarnentos e a 
noite que lá vinha vindo detrás do morro. À 
beira de soltar um suspiro de desespero, a 
moça de repente se animou: 
— Mãe, podemos ir para a casa dos 
gemidos! 
A mãe, que chorava desconsolada, 
custou a entender: 
— O quê, minha filha? Pra onde?!? 
— Pra casa dos gemidos, mãe! 
Aquela que fica perto da gruta, mais ali 
adiante! 
— Você endoidou, criatura?! A casa 
dos gemidos é mal-assombrada! Nunca 
nenhum ser vivente deu conta de pousar lá! 
— Mas, mãe! Isso é bobagem! É 
gente que tem medo do escuro e do 
assobio do vento e do pio da coruja! Vamos, 
mãe! 
A mãe resistia, não queria ir, tinha 
medo — mas se não fossem, o que seria 
delas? Pelo menos aquela noite, ou uns 
dois dias, poderiam se abrigar na casa dos 
gemidos. Depois, Deus havia de apontar o 
caminho... 
Foram, arrastando como podiam — 
e com a ajuda de alguns daqueles meninos 
esfomeados — os trastes que eram sua 
única fortuna. 
A casa dos gemidos era conhecida 
de todos os que viviam na região. Era tão 
assombrada, mas tão assombrada, que o 
mato crescera em volta, na altura das 
janelas, de tanto que ninguém chegava 
perto. Corria que de noite a casa era só 
gemidos e urros horripilantes... 
Não era uma casa grande, e estava 
caindo aos pedaços de não ser cuidada. 
Mas a construção era boa, sólida, protegia 
bem da chuva e do vento. Da noite. 
Mãe e filha entraram receosas, 
ressabiadas. A moça espirrou com a poeira, 
a mãe suspirou com os rangidos; a moça 
estacou com os estalos, a mãe estremeceu 
com os zunidos... Mas ficaram — fazer o 
quê? 
Remexendo nas trouxas, a mãe 
encontrou uns tocos de velas, uma caixa de 
fósforos, e a pouca luz deu pra elas se 
ajeitarem — a mesa e as cadeiras num 
canto, o armário ali perto, as trouxas 
amontoadas numa das camas e as duas, 
mãe e filha, agarradas uma na outra, na 
cama de casal. 
Naquela noite não houve gemidos 
nem uivos. 
Dia seguinte fez sol. Mãe e filha — 
que tinham acabado por dormir, apesar do 
medo — se levantaram cedo e 
inspecionaram a casa. 
Tinha cinco cômodos: dois quartos, 
uma sala pequena, cozinha e um banheiro 
minúsculo. Até que era ajeitadinha... Se 
dessem uma faxina, arrumassem as coisas, 
capinassem em volta, quem sabe... 
Mas... e a assombração? Ora! Tinha 
aparecido alguma assombração na noite 
anterior, tinha? Então... será?! Quem 
sabe?... 
 7 
Arrumaram tudo, limparam, ficaram 
cansadas. De noitinha, comeram um pouco 
de frutas que tinham colhido ali por perto e 
foram dormir — desta vez, cada uma num 
quarto. 
No silêncio da noite, o relógio cuco 
fazia um barulho assustador, mas logo se 
acostumaram. Depois, foi a moça que teve 
de se acostumar com os roncos da mãe. 
Em seguida ela mesma começou a dormir e 
logo estava sonhando com um baile 
encantado numa noite enluarada e um 
moço bonito e... 
— Eu caio! 
... e uma carruagem e... 
— Eu CAIO! 
— Hum? O... o quê? Mãe! É você? 
— Eu CAIO! 
— Hã?! — a moça acordou de vez e 
se sentou. 
— Que-quem está aí? 
— Eu CAIO!!! 
— Mãe?? — mas os roncos que 
vinham do outro quarto lhe diziam que não 
era a mãe. — Que-que-quem esta aí??? 
— E-E-EU CAAAIOOO! — a voz 
tremia, cavernosa. 
— Socorro! — gritou a moça, mas o 
medo era tanto que a voz saiu fininha, 
fraquinha... e logo ela desmaiou e não viu 
mais nada. 
Dia seguinte, sol de novo. A moça 
acordou, se lembrou de tudo, olhou em 
volta, mas a única coisa que viu caída no 
chão foi seu lencinho de algodão 
estampado. 
— Deve ter sido sonho! — concluiu. 
A mãe também achou que era: 
— Você sabe, minha filha, a casa 
tem fama de assombrada, e a imaginação 
da gente é poderosa... 
E, depois, a casinha era tão jeitosa 
que dava pena ir embora, mesmo se 
tivessem pra onde... 
Arrumaram mais a casa, trouxeram 
flores silvestres para enfeitá-la prepararam 
comida e mais uma noite chegou, ventosa e 
fria. 
Desta vez a coisa aconteceu de 
madrugada: 
— Eu caio! 
— Hum...hum? Hã?? 
— EU CAIO! 
— O...o quê??! 
Um pulo na cama, um suor frio, uma 
tremedeira — e uma coragem repentina. 
Foi isso, nessa ordem, que 
aconteceu com a moça. 
— Cai? Quem cai? Quem está aí?... 
— E-E-EU CAAAIIOOOO!!! 
Era uma voz horrenda, tremida, 
rouca, parecia vir das profundezas dos 
infernos. 
Apesar do medo, a moça resolveu 
esperar — em silêncio. 
— E-E-EU CAAAIIOOOO!!! 
Silêncio. 
— E-E-EU CAAAIIOOOO!!! 
— Pois caia, porcaria! 
— E-E-EU CAAAIIIIIIIO!!! 
Desta vez a voz veio mais 
horripilante ainda, com sete is. 
— Caia! Caia! Pode cair! Você 
repete tanto que até o medo da gente 
desiste! 
PLOFF! E, quando a moça viu o que 
era, quem caiu foi ela. Desmaiada. 
Dia seguinte, chuva fina, ar 
cinzento, frio úmido e a moça com febre. 
Delirou a manhã toda, mas depois acabou 
acreditando que tinha tido outro sonho ruim. 
Pesadelo, como dizem. Tinha visto alguma 
coisa caída no chão do quarto, de manhã, 
tinha? 
E, depois, a necessidade exigia que 
fosse corajosa. Se saíssem dali, pra onde 
iriam? 
Passou a tarde meditando e se 
preparou para não dormir à noite. Ia esperar 
e enfrentar o assombrado — se é que ele 
existia. 
Ao primeiro “Eu caio!”, foi logo se 
sentando na cama e dizendo: 
— Pois caia. Mas caia mesmo! Caia 
que nós vamos resolver isso é agora! 
A coisa que queria cair deve ter 
sentido firmeza na voz dela, pois pulou os 
 8
“Eu caio!” seguintes e partiu para o ... 
PLOFF! era uma PERNA HUMANA! 
A moça gelou, tremeu, suou... mas 
ficou firme. 
— Caia! Caia mais! 
PLOFF! A outra perna. 
— Isso! Continue! Vamos! 
PAFF! Um braço. 
A moça batia os dentes de tanta 
tremedeira, mas não deu o braço a torcer. 
PAFF! Outro braço. 
— Ca-ca-caia! — parecia que a 
coragem estava indo embora. 
CABRUM!!! Um tronco humano! 
“Ai, meu Deus. Ai, meu anjo da 
guarda. Ai, minha fada madrinha. Ai, meu 
preto velho...” rezava a moça. Mas sabia — 
sentia — que não podia recuar. 
— Vamos, caia! — gemeu, num 
fiapo de voz. 
TUM! Num ruído seco, caiu a 
cabeça. 
A moça sentiu que ia desmaiar, mas 
respirou fundo e ficou firme. E viu: cabeça, 
tronco e membros, como num desenho 
animado, se juntaram e... Naquele tempo 
não havia desenho animado. Mas eu estou 
contando esta história hoje, quando já 
existe até desenho animadíssimo... 
— Minha santa! Minha salvadora! 
Deus lhe pague! 
Diante dela estava um homem. Nem 
alto nem baixo, nem velho nem novo, nem 
bonito nem feio: um homem de terno 
riscado, botina ringideira, um jeito meio 
antigo, de mãos postas agradecendo. 
— Qu-quem é o senhor? Po-posso 
saber o que significa tudo isso? 
— Minha santinha! Deus lhe pague! 
Eu vou lhe contar tudo, fique calma. 
E contou: 
— Há mais de cinqüenta anos eu 
vivia aqui, nesta mesma casa. Eu era o 
dono dela e de muitas terras em volta. 
Tinha muitos empregados, e cada dia que 
passava ficava mais rico. E, quanto mais 
rico eu ficava, mais pão-duro e cruel eu 
também ficava. Explorava meus 
empregados, maltratava os outros, roubava, 
ria da miséria alheia. Um dia morri — picado 
por uma cobra venenosa, veja só. E fui 
condenado a me transformar em alma 
penada e ficar vagando sem descanso, 
assombrandoquem por aqui passasse. 
— E agora, o que vai acontecer? — 
mais calma, a moça até conseguiu 
perguntar. 
— Pois. Minha condenação 
terminaria quando alguém tivesse a 
coragem de esperar todas as minhas partes 
caírem e se juntarem, como você fez. Não 
têm conta os mendigos e bêbados que 
saíram daqui apavorados. Nunca ninguém 
esperou a segunda perna cair... 
— E...? 
— Agora estou livre para descansar 
em paz na eternidade. E você... 
— Eu?!... 
— É, você. Como recompensa por 
ter me libertado, vai ficar com toda a minha 
fortuna, que está enterrada no quintal, 
embaixo da janela deste quarto... 
Dizendo isso, a alma penada 
começou a desaparecer. Foi sumindo... 
sumindo... sumiu. Não sobrou nem uma 
linha pontilhada. 
A moça não teve tempo de ficar 
assombrada com a cena: correu para o 
quintal e, um pouco com a pá, um pouco 
com as mãos, desenterrou do local indicado 
um saco escuro, pesado, cheirando a mofo 
e cheio de... moedas de ouro e jóias! 
Depois disso, ela e a mãe viveram 
felizes — quer dizer, ricas — para sempre. 
Felizes, não sei... 
 
(JUNQUEIRA, Sonia. A noite assombrada. São 
Paulo: Atual, 1994) 
 
 
 9 
O PÁSSARO LAPÃO 
Pedro Bandeira 
 
Do tal Pedro Malasartes, 
você já ouviu falar? 
Pois prepare sua risada 
que estou pronto para contar. 
 
Esse Pedro Malasartes 
bem do tipo brasileiro: 
é quietão, de fala mansa 
mas sabido e muito arteiro. 
 
Pra dar duro no batente, 
nosso Pedro é só preguiça. 
Mas não perde ocasião 
de vingar uma injustiça. 
 
E injustiça é o que não falta 
pra qualquer pobre roceiro, 
pois a lei só anda ao lado 
de quem tem muito dinheiro. 
 
Foi assim que certa vez 
o Martinho Deodato, 
capataz do coronel, 
foi caçar jacu no mato. 
 
Quando ouviu um barulhinho, 
levou a espingarda ao peito, 
mas errou a pontaria, 
deu um tiro tão sem jeito 
que matou o cabritinho 
da viúva do Chicão! 
E em vez de pagar a perda 
ainda disse um palavrão! 
 
A viúva foi ao Pedro 
contar a situação. 
Pedro não era de briga, 
mas jurou reparação. 
 
Tratou logo de comer 
uma janta reforçada: 
rapadura, dois repolhos 
E uma enorme feijoada... 
 
E, montado na mulinha, 
foi trotando, num instante, 
passou pelo boticário 
e tomou um bom purgante! 
 
 Frente à casa do Martinho, 
agachou-se bem na estrada. 
Esperou fazer efeito 
e soltou a feijoada! 
 
Com o seu velho chapéu, 
tudo aquilo ele tapou 
e agarrando bem nas abas 
calmamente ele esperou. 
 
Foi aí que o Deodato 
a tal cena veio ver, 
mas achando muito estranho 
malcriado quis saber: 
 
— Mas que cheiro será esse? 
Que fedor vem dessa estrada! 
— É catinga da mulinha, 
que anda meio enfastiada... 
 
— Que será que está havendo? 
Será louco esse sujeito? 
O que está fazendo aí, 
agachado desse jeito? 
Pra erguer esse chapéu 
você não tem força não? 
Ou será que o chapéu 
tá pregado aí no chão? 
 
Malasartes até gostou 
da caçoada do safado, 
pois chegara a ocasião 
de fisgá-lo bem fisgado. 
 
— Nada disso, meu amigo, 
é que eu consegui pegar 
o tal pássaro lapão 
que não pode me escapar. 
Ele é muito valioso: 
a mulher do delegado 
prometeu dar um milhão 
se eu pegar esse danado... 
 
 Quando ouviu falar daquilo, 
 a cobiça começou 
 a crescer no Deodato, 
 e o safado comentou: 
 
 10
 
 
— Um milhão é bom dinheiro, 
muito mais que o senhor pensa. 
E por que não vai buscar 
essa grande recompensa? 
 
— Mas que cheiro será esse? 
Que fedor vem dessa estrada! 
— É catinga da mulinha, 
que anda meio enfastiada... 
 
A arapuca estava pronta, 
só faltava um bocadinho 
para ver o Deodato 
cair nele direitinho. 
 
— Esse é um bicho delicado, 
qualquer coisa lhe faz mal. 
Só se deve transportá-lo 
em gaiola especial. 
E a gaiola é muito cara, 
fabricada no estrangeiro, 
e eu nem sei o que fazer 
já que não tenho dinheiro... 
 
— Mas que cheiro será esse? 
Que fedor vem dessa estrada! 
— É catinga da mulinha, 
que anda meio enfastiada... 
 
A cobiça foi crescendo, 
até dava comichão, 
pois aquele capataz 
só pensava no milhão: 
 
— Vou enganar esse caipira, 
pelo jeito ele é um cretino. 
Não fosse eu o Deodato, 
um sujeito tão ladino... 
 
Se a questão era dinheiro 
e se o outro nada tinha 
para ele estava fácil, 
era só manter a linha: 
 
— Gostaria de ajudar 
e o problema resolver. 
A gaiola quanto custa? 
gostaria eu de saber... 
 
 
 
 Malasartes suspirou, 
fez um cálculo mental, 
lembrou da boa viúva 
e do seu pobre animal. 
 
— A gaiola, meu amigo, 
é bem cara, eu admito. 
Ela custa, lá na venda, 
mais que o preço de um cabrito... 
 
— Mas que cheiro será esse? 
Que fedor vem dessa estrada! 
— É catinga da mulinha, 
que anda meio enfastiada... 
 
Sem perder nem um segundo, 
nem contar o que continha, 
Deodato lhe estendeu 
a carteira bem cheinha: 
 
— Aqui está todo o dinheiro, 
não precisa nem contar. 
Deixe que eu seguro as abas, 
e a gaiola vá comprar! 
 
Malasartes foi pegando 
o dinheiro sem demora, 
montou rápido na mula 
e tratou de ir logo embora. 
 
Foi pra casa da viúva, 
que chegou a dar um grito 
quando viu tanto dinheiro 
pra comprar outro cabrito. 
 
Agarrado bem nas abas, 
pôs-se o Martinho a pensar, 
ainda achando muito estranho 
aquele cheiro no ar: 
 
— Mas que cheiro será esse? 
Que fedor vem dessa estrada! 
Vai ver foi mesmo a mulinha, 
que anda meio enfastiada! 
 
 E o Martinho Deodato 
 ficou vendo o Pedro ir 
 e assim que se viu sozinho, 
 bem feliz ficou a rir: 
 11 
 
 
— Pelo preço de um cabrito, 
vou ganhar esse milhão! 
Agora é só agarrar 
o tal pássaro lapão! 
 
Foi pegar o passarinho, 
mas, com medo de feri-lo, 
devagar ergueu a aba 
e enfiou a mão naquilo! 
 
Ai, que o Pedro Malasartes 
é um sujeito bem danado! 
E eu estou muito contente 
se alguém achou gozado. 
 
Só que eu quero uma ajuda 
pra fazer final diverso 
para a história que eu contei 
e que foi escrita em verso. 
 
O final de uma anedota 
muito jeito tem pra ser. 
Se me acharem boa rima, 
outro verso eu vou fazer: 
 
Foi pegar o passarinho 
de uma forma meio lerda 
Devagar ergueu a aba 
E enfiou a mão na .... 
 
Mas que sensibilidade! 
que um anjinho diga amém! 
Uma alma de poeta 
é o que vocês todos têm! 
 
Uma rima é uma rima 
dos poetas é a glória, 
pois podia ser assim 
o final da nossa história: 
 
Foi pegar o passarinho, 
Bem do jeito que ele gosta. 
Devagar ergueu a aba 
e enfiou a mão na ... 
 
 
 
 
 
Vocês são poetas natos 
Do começo até o final! 
Isso eu posso garantir: 
são artistas sem igual! 
 
De encontrar fico feliz 
tão profunda inspiração. 
Ver poesia a transbordar 
da alma e do coração! 
 
Fazer poesia é bem fácil, 
vou contar como se faz. 
Todo verso dá bem certo 
para a frente e para trás. 
 
Estes versos, eu repito, 
pra o que eu disse comprovar, 
vamos ver se fica certo 
se as palavras eu mudar: 
 
Fico feliz de encontrar 
inspiração tão profunda. 
Ver transbordar a poesia 
do coração e da... alma?! 
 
Parece que não deu certo 
Esse jeito de rimar... 
Artistas como vocês 
é impossível enganar! 
 
Só que agora eu me despeço, 
Pois eu tenho de partir. 
Mas eu levo o seu carinho 
se quiserem me aplaudir! 
 
 
 
 
(BANDEIRA, Pedro. Malasaventuras: 
safadezas de Malasarte. São Paulo: 
Moderna, 1996. p.7-15) 
 
 
 
 
 
 
 12
O PRÍNCIPE ENCANTADO NO REINO DA ESCURIDÃO 
Ricardo Azevedo 
 
Era uma vez um negociante muito rico 
e poderoso. Vivia feliz com uma mulher e uma 
filha pequena. 
Um dia, sua mulher começou a tossir. 
Médicos foram chamados. Tratamentos foram 
experimentados. Infelizmente, a doença era 
grave e a pobre mulher acabou morrendo. 
Com uma filha pequena para cuidar, o 
negociante resolveu casar-se de novo. Sua 
nova mulher era viúva, mãe de duas filhas. 
Logo a filha do homem rico e poderoso 
começou a sofrer nas mãos da madrasta e 
suas filhas. Os piores serviços ficavam para 
ela. As piores roupas. As piores comidas. Seu 
pai viajava muito e não sabia de nada. 
Quando fez 15 anos, a moça chamou o 
pai.Contou que pretendia morar sozinha. O 
pai estranhou. A filha não queria criar caso. 
Inventou que desejava viver por conta própria 
para conhecer mais a vida. Apesar dos 
protestos do pai, foi viver numa casa no meio 
da floresta. O tempo passou. 
Um dia, um mendigo bateu na porta da 
casa da filha do negociante. Pediu ajuda. 
Disse que estava morto de fome. O homem 
era horrível. Devia ter alguma doença. Andava 
enrolado num pedaço de pele e parecia não 
tomar banho há anos. Mesmo assim, a moça 
pediu a ele que entrasse, deixou que 
descansasse, serviu um ótimo jantar e ainda 
ofereceu lugar para que ele pudesse passar a 
noite. 
O mendigo agradeceu muito. Apesar 
da aparência, parecia ser um homem bom. 
Conversando depois do jantar, ele contou que 
era adivinho. Previu que o negociante, pai da 
menina, iria viajar para um país muito 
distante. Disse que nesse lugar existia um 
jardim encantado com as mais lindas rosas do 
mundo. As rosas eram brancas, vermelhas e 
roxas. 
A menina imaginou aquele jardim 
encantado. Sonhou acordada. Como aquilo 
devia ser lindo! 
Naquela mesma noite, quando já 
estava quase dormindo, a menina escutou 
uma voz no quarto: “Cuidado! Se precisar de 
mim, basta chamar o príncipe Encantado no 
Castelo de Ferro do Reino da Escuridão”. 
A filha do comerciante levou um susto. 
Correu para acender a luz. Olhou atrás do 
armário. Olhou debaixo da cama. No quarto 
não havia ninguém! 
No dia seguinte, logo cedo, foi acordar 
o mendigo. Apesar das portas da casa 
estarem trancadas por dentro, o homem havia 
desaparecido. 
Mais tarde, alguém bateu na porta. Era 
o pai da moça. O negociante estava com 
pressa. Explicou que vinha para matar a 
saudade da filha e também para se despedir. 
Contou que pretendia viajar para um reino 
distante. Perguntou se a filha queria alguma 
coisa de lembrança. Na hora, a menina 
lembrou-se do jardim encantado. 
— Sim — disse ela — Se for possível, 
quero três rosas do jardim encantado: uma 
branca, uma vermelha e outra roxa. 
O negociante anotou o pedido, beijou a 
filha e partiu. 
O reino distante ficava realmente muito 
longe. Foi difícil encontrar o jardim encantado. 
O lugar ficava quase no fim do mundo. Mesmo 
assim o pai da moça foi. Andou, andou, andou 
e conseguiu chegar lá. Encontrou as rosas 
branca, vermelha e roxa. 
Quando voltou, foi direto procurar a 
filha. 
As rosas eram mesmo muito bonitas. A 
menina ficou encantada. 
Depois, o negociante foi para casa. 
Sua mulher e as duas enteadas logo quiseram 
saber se ele havia trazido alguma coisa para 
elas. Ele disse que não. 
— Aposto que para aquelazinha ele 
trouxe um rico presente — disse a madrasta 
em voz baixa, cheia de ciúme, inveja e dor-de-
cotovelo. 
E fez uma combinação com as duas 
filhas. 
No dia seguinte, a filha mais velha 
apareceu de surpresa na casa da filha do 
comerciante. Mentiu. Disse que estava 
 13 
passando por ali por acaso. Tinha resolvido 
fazer uma visitinha. Pediu para entrar. 
A menina deixou. A filha mais velha da 
madrasta entrou e logo foi perguntando se por 
acaso a menina tinha recebido algum 
presente do pai. 
— Sim — disse ela toda feliz. — 
Ganhei essas rosas lindas. 
A filha mais velha da madrasta não 
gostou. Arrancou a flor branca do vaso e a 
despetalou. Depois deu risada e foi embora. 
A menina ficou muito triste. Naquela 
noite, quando já estava quase dormindo, 
escutou uma voz: 
— Não devia ter deixado despetalar a 
rosa branca. Dentro dela estava a sua 
felicidade! Cuidado! Se precisar de mim, basta 
chamar o príncipe Encantado no Castelo de 
Ferro do Reino da Escuridão. 
A menina levou um susto. Correu para 
acender a luz. Olhou atrás do armário. Olhou 
debaixo da cama. No quarto não havia 
ninguém. 
No dia seguinte, a filha mais nova da 
madrasta apareceu de surpresa na casa da 
filha do negociante. Mentiu. Disse que estava 
passando por ali por acaso. Tinha resolvido 
fazer uma visitinha. Pediu para entrar. 
A menina deixou. A filha mais nova da 
madrasta entrou e logo foi perguntando se por 
acaso a menina tinha recebido algum 
presente do pai. 
— Sim — disse ela toda feliz. — 
Ganhei essas rosas lindas. 
A filha mais nova da madrasta não 
gostou. Arrancou a flor vermelha do vaso e a 
despetalou. Depois deu risada e foi embora. 
A menina ficou muito triste. Naquela 
noite, quando já estava quase dormindo, 
escutou uma voz. A voz estava zangada: 
— Não devia ter deixado despetalar a 
rosa vermelha. Dentro dela estava a sua 
riqueza! Cuidado! Se precisar de mim, basta 
chamar o príncipe Encantado no Castelo de 
Ferro do Reino da Escuridão. 
A menina levou um susto. Correu para 
acender a luz. Olhou atrás do armário. Olhou 
debaixo da cama. No quarto não havia 
ninguém. 
No dia seguinte, a própria madrasta 
apareceu de surpresa na casa da filha do 
negociante. Mentiu. Disse que estava 
passando por ali por acaso. Tinha resolvido 
fazer uma visitinha. Pediu para entrar. 
A menina deixou. A madrasta entrou e 
logo foi perguntando se por acaso a menina 
tinha recebido algum presente do pai. A 
inocência da menina era muito grande. 
— Sim — disse ela toda feliz. — 
Ganhei essa rosa linda. 
A madrasta não gostou. Arrancou a flor 
roxa do vaso e a despetalou. Depois deu 
risada e foi embora. 
A menina ficou muito triste. Naquela 
noite, quando já estava quase dormindo, 
escutou uma voz. A voz estava furiosa: 
— Não devia ter deixado despetalar a 
rosa roxa. Dentro dela estava o seu amor! 
Cuidado! Se precisar de mim, basta chamar o 
príncipe Encantado no Castelo de Ferro do 
Reino da Escuridão. 
Naquela noite, a filha do comerciante 
teve um sonho. 
Sonhou que estava num lugar 
desconhecido diante de um enorme palácio. 
Quando acordou, tomou um enorme 
susto. Estava lá mesmo! 
Sem saber o que fazer, sem saber se 
era sonho ou realidade, a menina respirou 
fundo, tomou coragem e resolveu bater na 
porta do palácio. 
Pediu emprego. 
Acabou sendo contratada como criada. 
Com o passar do tempo, descobriu que 
ali morava uma rainha. A mulher tinha uma 
grande dor na vida. Seu filho querido, o 
príncipe herdeiro, a luz de sua vida, havia 
desaparecido. Alguns diziam que o rapaz 
havia morrido. Outros que havia sido raptado 
por bandidos. Outros achavam ainda que 
tinha sido raptado por piratas. 
Como era muito trabalhadora, 
inteligente e talentosa, a menina começou a 
agradar a rainha, que ficava cada vez mais 
contente com seu serviço caprichado e sua 
alegria de viver. 
Isso despertou inveja nas outras 
criadas. 
 14
Uma delas, só de maldade, um dia, 
disse à rainha que, na cozinha, a moça se 
gabava de ser a melhor criada do mundo, 
capaz de lavar e passar toda a roupa do 
castelo em três dias. 
A rainha mandou chamar a moça. 
Perguntou se era verdade. 
A menina disse que nunca tinha falado 
aquilo. 
Mas a rainha gostou da idéia. Disse 
que sentia que ela era capaz sim. 
A menina insistiu que não. 
A rainha não gostava de ouvir a 
palavra não. Bateu o pé. Deu uma ordem: 
— Ou lava e passa toda a roupa em 
três dias ou vai para a forca! 
Naquele dia, a pobre filha do 
negociante voltou para o quarto sem saber o 
que fazer. Logo chegaram homens trazendo 
dez carroças com toda a roupa do palácio 
Disseram que era melhor ela correr pois três 
dias passam depressa. 
Sentada na cama, a menina começou a 
chorar. Foi quando escutou uma voz: 
— Se precisar de mim, basta chamar o 
Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do 
Reino da Escuridão. 
A menina estava cansada. Dormiu. 
No dia seguinte, quando abriu os 
olhos, encontrou toda a roupa lavada e 
passada. 
Ao saber da notícia, a rainha ficou feliz 
da vida. 
— Eu sabia! — disse ela, esfregando 
as mãos. 
Cumprimentou a moça. Afirmou que 
ela era muito inteligente e talentosa. 
As outras criadas não gostaram nem 
um pouco. 
Passados uns dias, outra criada veio 
contar à rainha que, na cozinha, a moça se 
gabava de ser a melhor criada do mundo, 
capaz de limpar toda a prata e toda a louça da 
rainha de um dia para o outro. 
Arainha mandou chamar a moça. 
Perguntou se era verdade. 
A menina disse que nunca tinha falado 
aquilo. 
Mas a rainha gostou da idéia. Disse 
que sentia que ela era capaz sim. 
A menina insistiu que não. 
A rainha não gostava de ouvir a 
palavra não. Bateu o pé. Deu uma ordem: 
— Ou lava toda a prata e toda a louça 
de um dia para o outro ou vai para a forca!. 
Naquele dia, a pobre filha do 
negociante voltou para o quarto sem saber o 
que fazer. Logo chegaram homens trazendo 
dez carroças com toda a prata e toda a louça 
da rainha. Disseram que era melhor ela correr 
pois de um dia para o outro é quase nada. 
Sentada na cama, a menina começou a 
chorar. Foi quando escutou uma voz: 
— Se precisar de mim, basta chamar o 
Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do 
Reino da Escuridão. 
A menina estava cansada. Dormiu. 
No dia seguinte, quando acordou, 
encontrou a prata brilhando e a louça lavada. 
Ao saber da notícia, a rainha ficou feliz 
da vida. 
— Eu sabia! — disse ela, esfregando 
as mãos. 
Cumprimentou a moça. Afirmou que 
ela era muito inteligente e talentosa. 
As outras criadas não se conformavam. 
Passados uns dias, outra criada veio 
contar à rainha que, na cozinha, a moça se 
gabava de ser a melhor criada do mundo, 
capaz até de conseguir salvar o querido filho 
da rainha, o príncipe-herdeiro, que ou tinha 
morrido ou estava seqüestrado ou era 
prisioneiro de piratas. 
A rainha deu um pulo. Mandou chamar 
a menina. Caiu de joelhos. Chorou. 
— Salve meu filho! – implorou ela. 
A menina baixou a cabeça. Disse que 
sim. 
— Pode levar meus soldados! Pode 
levar todos os exércitos! — ofereceu a rainha, 
aflita. 
A menina disse que preferia ir sozinha. 
Saiu de lá desesperada. Sabia que não 
podia cumprir sua promessa. Jamais 
conseguiria salvar o filho da rainha. Ficou 
andando sem saber para onde ir. Chegou num 
 15 
alto morro de pedra. Sua vontade era pular de 
lá e acabar com tudo. 
Foi quando escutou uma voz: 
— Quantas vezes mais vou precisar 
repetir que se precisar de mim basta chamar o 
Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do 
Reino da Escuridão? 
A menina tentava encontrar a voz no 
ar. 
— Preste atenção – continuou a voz 
invisível. — Sou o filho da rainha. Sou o 
príncipe-herdeiro. Espere ficar escuro. Vá até 
meu quarto. Procure dentro do armário. Pegue 
uma vassoura, uma faca e uma caixa de 
veludo. Depois, tome a primeira estrada que 
aparecer e saia pelo mundo até encontrar um 
castelo de ferro. Vai ser fácil reconhecer. Sua 
porta principal não pára de mexer. Fica 
batendo, abrindo, fechando, fechando, 
abrindo e batendo o tempo todo. 
A menina quase não respirava de tanto 
prestar atenção. 
A voz continuou: 
— Vá em frente. Enfie a faca na porta. 
Ela vai parar na hora. Entre no castelo de 
ferro. Não tenha medo. Vai encontrar uma 
bruxa varrendo o chão com um pedaço de 
barbante. Dê a vassoura a ela e siga pelo 
corredor. Vai encontrar um leão faminto diante 
de um prato de capim e um cavalo prateado 
diante de um prato cheio de carne. Dê a carne 
ao leão e o capim ao cavalo. Continue. Suba 
uma escada. Vai encontrar um sapo. Pegue o 
bicho, guarde na caixa de veludo e saia do 
castelo. Mas cuidado! — advertiu a voz: — 
não olhe para trás de jeito nenhum. Se você 
olhar, tudo está perdido, não sei nem o que 
vai acontecer! 
A filha do negociante esperou a noite 
chegar. Foi a ao quarto do príncipe, encontrou 
a vassoura, a faca e a caixa de veludo. 
Depois, foi embora. 
Tomou a primeira estrada que 
apareceu. Não sabia para onde ir, por isso foi 
seguindo em frente. 
Andou, andou, andou, três dias e três 
noites. Acabou chegando num castelo de ferro 
com uma porta abrindo e fechando. A menina 
teve medo mas seguiu os conselhos da voz. 
Enfiou a faca na porta. Deu a vassoura para a 
bruxa. Deu a carne para o leão e o capim para 
o cavalo prateado. Encontrou o sapo, guardou 
na caixa de veludo, deu meia-volta e fugiu. 
Uma voz tenebrosa explodiu no fundo 
do castelo: 
— Cavalo prateado, não deixe a 
menina passar! 
Mas o cavalo relinchou: 
— Deixo sim! Foi ela quem me deu o 
capim! 
E a voz tenebrosa: 
— Leão, não deixe a menina passar! 
Mas o leão rugiu: 
— Deixo sim! Foi ela quem me deu a 
carne! 
E a voz tenebrosa, cada vez mais 
tenebrosa: 
— Bruxa danada, não deixe a menina 
passar! 
Mas a bruxa respondeu: 
— Deixo sim! Foi ela quem me deu a 
vassoura! 
A voz tenebrosa agora berrava e 
suplicava: 
— Porta! Não deixe a menina passar! 
Mas a porta disse: 
— Deixo sim! Graças a ela não fico 
mais batendo, abrindo e fechando o dia 
inteiro! 
Quando a menina conseguiu sair do 
castelo, escutou um estrondo e sem querer, 
sem pensar, sem lembrar, olhou para trás. 
O castelo de ferro havia evaporado no 
ar. 
Infelizmente, a caixa de veludo com o 
sapo dourado também sumiu de suas mãos. 
Perdida e sozinha num lugar 
desconhecido, a menina sentiu que o único 
jeito era seguir em frente. Pegou a primeira 
estrada que apareceu e foi andando. 
Acabou ficando muito cansada. 
Quando não agüentava mais, deitou-se 
debaixo de uma árvore e fechou os olhos. 
Ficou quieta esperando alguma coisa. Sentiu 
uma tontura. Achou que daquela vez a morte 
ia chegar. Desmaiou. 
Enquanto isso, o sapo dourado, que 
era o príncipe, saiu da caixa de veludo, ficou 
 16
desencantado e viu que tinha ido parar na 
porta de seu palácio. 
Foi uma alegria! 
Ao vê-lo, a rainha sua mãe quase 
enlouqueceu de tanta felicidade. O príncipe 
também estava contente mas muito 
preocupado. Disse que só sossegava quando 
encontrasse a moça bonita que o tinha 
libertado. 
Pediu um cavalo, despediu-se da 
rainha e saiu galopando com vários soldados. 
Precisava encontrar a moça de qualquer jeito. 
Depois de muito procurar, acabou 
dando com a menina desmaiada debaixo de 
uma árvore. 
Desesperado, o rapaz mandou chamar 
um médico. Enquanto isso, conseguiu dar 
água e um pouco de comida para a moça. 
Logo a filha do comerciante recuperou 
suas forças. 
Um vento morno soprou cheio de vida. 
Os dois então se abraçaram. 
O rapaz contou que estivera encantado 
por muito tempo. Contou que era ele o 
mendigo que tempos atrás havia estado na 
casa dela pedindo ajuda. 
— Desde aquele tempo fiquei 
apaixonado — confessou ele beijando as 
mãos da moça. — Desde então, sigo você 
por toda a parte. Acho que foi isso o que me 
salvou! 
A menina foi levada para o palácio. A 
rainha botou as mãos no peito: 
— Mas é ela! A minha criada! 
A mãe do príncipe ficou feliz da vida. O 
casamento foi marcado. 
O negociante foi convidado. Apareceu 
sozinho. Abraçou a filha. Disse que todo 
aquele tempo tinha andado à procura dela. 
Contou que tinha abandonado aquela mulher 
má, que por causa de ciúme e inveja o havia 
afastado de sua filha querida. 
Quanto às criadas mentirosas, quase 
foram despedidas, mas acabaram sendo 
perdoadas. 
Uma linda festa foi realizada. 
Os dois jovens viveram felizes por 
muitos e muitos anos. 
 
Diz que a festa foi bonita 
Teve doce de montão 
Como não fui convidado 
Fiquei com a cara no chão! 
 
(AZEVEDO, Ricardo. No meio da noite escura tem 
um pé de maravilha! São Paulo: Ática. s/d) 
 
 
O LOBO E O CORDEIRO 
 (Fábula de Esopo) 
 
Aquele verão estava muito quente e um 
lobo dirigiu-se a um riachinho, disposto a 
refrescar-se um pouco. Quando se preparava 
para mergulhar o focinho na água, ouviu um 
leve rumor e viu a grama se mexendo. Ao olhar 
em direção ao barulho, avistou, logo adiante, 
um cordeirinho, que bebia tranqüilamente. 
— Que sorte! — pensou o lobo. — Vim 
para beber água e encontro comida também... 
Pôs um tom severo na voz e chamou: 
— Ei, você aí! 
— É comigo que o senhor está falando? 
— surpreendeu-se o cordeirinho. Que deseja? 
— O que é que eu desejo?! Ora, seu 
mal-educado! Não vê que, ao beber, você suja 
a minha água? Nunca ninguém ensinou você a 
respeitar os mais velhos? 
— Senhor... Como pode dizer isso? Olhe 
como bebo com a ponta da língua... Além do 
mais, com sua licença,eu estou mais abaixo, e 
o senhor mais acima... A água passa primeiro 
pelo senhor e só depois por mim. Não é 
possível que eu o incomode! — respondeu o 
cordeirinho, com voz trêmula. 
— Ora essa! Com a sua idade já quer 
me ensinar para que lado corre a água? 
— Não, de jeito nenhum, não é isso... Só 
queria que reparasse... 
— Que reparar que nada! Você não me 
engana! Pensa que escapará, como no ano 
passado, quando andava por aí, falando mal da 
 17 
minha família? “Os lobos são assim, os lobos 
são assado!” Você teve muita sorte, por nunca 
termos nos encontrado, senão eu já teria 
mostrado a você como são os lobos! 
— Nem imagino quem lhe contou isso, 
senhor, mas é mentira. A prova é que, no ano 
passado, eu nem tinha nascido... 
— Pois se não foi você, foi o seu pai! — 
rosnou o lobo, saltando em cima do pobre 
inocente e devorando-o. 
 
Moral da história: 
Quando uma pessoa está decidida a fazer o 
mal, qualquer razão lhe serve, inclusive uma 
mentira. 
 
(DRUMMOND, Regina. Fábulas de Esopo. 
Adaptação de Regina Drummond. São Paulo: 
Paulus, 1996. p. 12-14) 
 
 
 
O LOBO E O CORDEIRO 
(Fábula de La Fontaine) 
 
A razão do mais forte 
É sempre a melhor. 
Eis a lição desta história 
Que a gente já sabe de cor. 
 
Um cordeirinho matava a sede 
Nas águas de um riacho transparente 
Quando um lobo, em jejum, 
Perguntou-lhe num tom diferente: 
 
“Quem é você, que perturba minha paz? 
Quem fez você tão ousado 
Que se atreve a turvar minha água? 
Vou beber, mas antes você será castigado.” 
 
O cordeiro era humilde. 
Com sua voz de criança 
Quis se desculpar, ser gentil, 
Para não ter de forrar aquela pança. 
 
“Não fique tão bravo, senhor. 
Para mim, é impossível o que diz. 
Estou vinte passos abaixo da corrente. 
Por favor, não me castigue: eu nada fiz.” 
“Como, nada fez?! Suja minha água, 
A água que eu vou beber, 
E ainda soube que, no ano passado, 
Mal de mim ouviram você dizer.” 
 
“Eu, senhor?! Que injustiça! 
No ano passado, eu nem tinha nascido!” 
“Então foi o seu irmão. 
Alguém seu, é claro, só pode ter sido!” 
 
E, antes que o cordeirinho retrucasse, 
O lobo pulou sobre ele de um salto só, 
Agarrou-o, derrubou-o, matou-o 
E comeu-o inteirinho, sem dó. 
 
 
 
 
 
 
(DRUMMOND, Regina. Fábulas de La Fontaine. 
Adaptação de Regina Drummond. São Paulo: 
Paulus, 1996. p. 47- 48) 
 
 
O LOBO E O CORDEIRO 
(Fábula de Monteiro Lobato) 
 
Estava o cordeiro a beber num córrego, 
quando apareceu um lobo esfaimado, de 
horrendo aspecto. 
— Que desaforo é esse de turvar a água 
que venho beber? — disse o monstro 
arreganhando os dentes. — Espere, que vou 
castigar tamanha má-criação!... 
O cordeirinho, trêmulo de medo, 
respondeu com inocência: 
— Como posso turvar a água que o 
senhor vai beber se ela corre do senhor para 
mim? 
Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-
se com a resposta. Mas não deu o rabo a 
torcer. 
— Além disso — inventou ele — sei que 
você andou falando mal de mim o ano passado. 
— Como poderia falar mal do senhor o 
ano passado, se nasci este ano? 
 18
 
Novamente confundido pela voz da 
inocência, o lobo insistiu: 
— Se não foi você, foi seu irmão mais 
velho, o que dá no mesmo. 
— Como poderia ser o meu irmão mais 
velho, se sou filho único? 
O lobo, furioso, vendo que com razões 
claras não vencia o pobrezinho, veio com uma 
razão de lobo faminto: 
— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai 
ou seu avô! 
— E — nhoque! — sangrou-o no 
pescoço. 
 
Contra a força não há argumentos. 
 
( LOBATO, Monteiro. Obra infantil completa. Vol. 3. 
São Paulo: Brasiliense, s/d. p.538) 
 
O LOBO E O CORDEIRO 
(Fábula de Millôr Fernandes) 
 
Estava o cordeirinho bebendo água, 
quando viu refletida no rio a sombra do lobo. 
Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz 
cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu 
miserável crime”. “Que crime?” — perguntou o 
cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já 
sabia que com lobo não adianta argumentar. “O 
crime de sujar a água que eu bebo”. “Mas como 
posso sujar a água que bebes se sou lavado 
diariamente pelas máquinas automáticas da 
fazenda?” — indagou o cordeirinho. “Por mais 
limpo que esteja, um cordeiro é sempre sujo 
para um lobo” — retrucou dialeticamente o lobo. 
“E vice-versa” — pensou o cordeirinho, mas 
disse apenas: “Como posso eu sujar a sua água 
se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi 
você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro 
ancestral e eu vou comê-lo de qualquer 
maneira, pois como rezam os livros de 
lobologia, eu só me alimento de carne de 
cordeiro” — finalizou o lobo preparando-se para 
devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein 
moment!“ — gritou o cordeirinho traçando lá o 
seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas 
faço-lhe uma proposta: se me deixar livre 
atrairei pra cá todo o rebanho”. “Chega de 
conversa” — disse o lobo — “vou comê-lo logo, 
e está acabado”. “Espera aí” — falou firme o 
cordeiro — “isso não é ético. Eu tenho, pelo 
menos, direito a três perguntas”. “Está bem” — 
cedeu o lobo irritado com a lembrança do 
código milenar da jungle. — “Qual é o animal 
mais estúpido do mundo?” “O homem casado” 
— respondeu prontamente o cordeiro. “Muito 
bem, muito bem!” — disse o lobo, logo 
refreando, envergonhado o súbito entusiasmo. 
“Outra: a zebra é um animal branco de listras 
pretas ou um animal preto de listras brancas?” 
“Um animal sem cor pintado de preto e branco 
para não passar por burro”. — respondeu o 
cordeirinho. “Perfeito!” — disse o lobo engolindo 
em seco. “Agora, por último, diga uma frase de 
Bernard Shaw”. “Vai haver eleições em 66”. — 
respondeu logo o cordeirinho mal podendo 
conter o riso. “Muito bem, muito certo, você 
escapou!” — deu-se o lobo por vencido. E já ia 
se preparando para devorar o cordeiro quando 
apareceu o caçador e o esquartejou. 
 
MORAL: QUANDO O LOBO TEM FOME NÃO 
DEVE SE METER EM FILOSOFIAS. 
 
( FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de 
Janeiro: Nórdica, 1973. P. 21)
 
 
UM APÓLOGO 
Machado de Assis 
 
Era uma vez uma agulha, que disse a 
um novelo de linha: 
— Por que está você com esse ar, 
toda cheia de si, toda enrolada, para fingir 
que vale alguma cousa neste mundo? 
— Deixe-me, senhora. 
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? 
Porque lhe digo que está com um ar 
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre 
que me der na cabeça. 
— Que cabeça, senhora? A senhora não 
é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. 
Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar 
 19 
que Deus lhe deu. Importe-se com sua vida e 
deixe a dos outros. 
— Mas você é orgulhosa. 
— Decerto que sou. 
— Mas por quê? 
— É boa! Porque coso. Então os 
vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que 
os cose, senão eu? 
— Você? Esta agora é melhor. Você é 
que os cose? Você ignora que quem os cose 
sou eu, e muito eu? 
— Você fura o pano, nada mais; eu é 
que coso, prendo um pedaço ao outro, dou 
feição aos babados... 
— Sim, mas que vale isso? Eu é que 
furo o pano, vou adiante, puxando por você, que 
vem atrás, obedecendo ao que eu faço e 
mando... 
— Também os batedores vão adiante do 
imperador. 
— Você é imperador? 
— Não digo isso. Mas a verdade é que 
você faz um papel subalterno, indo adiante; vai 
só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho 
obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, 
ajunto... 
Estavam nisso, quando a costureira 
chegou à casa da baronesa, que tinha a 
modista ao pé de si, para não andar atrás dela. 
Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da 
agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha 
e entrou a coser. Uma e outra iam andando 
orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor 
das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis 
como galgos de Diana — para dar a isto uma 
cor poética. E dizia a agulha: 
— Então senhora linha, ainda teima no 
que dizia há pouco? Não repara que esta 
distinta costureira só se importa comigo; eu é 
que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a 
eles, furando abaixo e acima... 
A linha não respondia nada; ia andando. 
Buraco aberto pela agulha era logo enchido por 
ela,silenciosa e ativa, como quem sabe o que 
faz, e não está para ouvir palavras loucas. A 
agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, 
calou-se também e foi andando. E era tudo 
silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais 
que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. 
Caindo o sol, a costureira dobrou a costura para 
o dia seguinte; continuou ainda nesse e no 
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou 
esperando o baile. 
Veio a noite do baile, e a baronesa 
vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, 
levava a agulha espetada no corpinho, para dar 
algum ponto necessário. E enquanto compunha 
o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou 
outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, 
abotoando, acolchetando, a linha para mofar da 
agulha, perguntou-lhe: 
— Ora, agora, diga-me quem é que vai 
ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte 
do vestido e da elegância? Quem é que vai 
dançar com ministros e diplomatas, enquanto 
você volta para a caixinha da costureira, antes 
de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga 
lá. 
Parece que a agulha não disse nada; 
mas um alfinete de cabeça grande e não menor 
experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em 
abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da 
vida, enquanto ficas na caixinha de costura. 
Faze como eu, que não abro caminho a 
ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de 
melancolia, que me disse, abanando a cabeça: 
— Também eu tenho servido de agulha 
a muita linha ordinária! 
 
(ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de 
Janeiro: Aguilar, 1974, v.2. p. 554-556)
 
 
APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA 
Antônio de Alcântara Machado 
 
O trenzinho recebeu em Maguari o 
pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já 
era noite. Só se sentia o cheiro doce de sangue. 
As manchas na roupa dos passageiros ninguém 
via porque não havia luz. De vez em quando 
passava uma fagulha que a chaminé da 
locomotiva botava. E os vagões no escuro. 
Trem misterioso. Noite fora noite 
dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de 
cigarro na boca. Chegava a passagem bem 
perto da ponta acesa e dava uma chupada para 
fazer mais luz. Via mal-e-mal a data e ia 
guardando no bolso. Havia sempre uns que 
gritavam: 
 20
— Vá pisar no inferno! 
Ele pedia perdão (ou não pedia) e 
continuava seu caminho. Os vagões 
sacolejando. 
O trenzinho seguia danado para Belém 
porque o maquinista não tinha jantado até 
aquela hora. Os que não dormiam aproveitando 
a escuridão conversavam e até gesticulavam 
por força do hábito brasileiro. Ou então 
cantavam, assobiavam. Só as mulheres se 
encolhiam com medo de algum desrespeito. 
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é 
que alumiavam as caras cansadas e a pretidão 
feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era 
assim mesmo todos os dias. O pessoal do 
matadouro já estava acostumado. Parecia trem 
de carga o trem de Maguari. 
 
 * * * 
 
Porém aconteceu que no dia 6 de maio 
viajava no penúltimo banco do lado direito do 
segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego 
baiano das margens do Verde de Baixo. 
Flautista de profissão dera um concerto em 
Bragança. Parara em Maguari. Voltava para 
Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O 
taioca, guia dele, só dava folga no bocejo para 
cuspir. 
Baiano velho estava contente. Primeiro 
deu uma cotovelada no secretário e puxou 
conversa, Puxou à toa porque não veio nada. 
Então principiou a assobiar. Assobiou uma 
valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e 
depois descendo, vêm descendo), uma polca, 
um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns 
tempos. De repente deu uma cousa nele. 
Perguntou para o rapaz: 
— O jornal não dá nada sobre a 
sucessão presidencial? 
O rapaz respondeu: 
— Não sei, nós estamos no escuro. 
 — No escuro? 
— É. 
Ficou matutando calado. Claríssimo 
que não compreendia bem. Perguntou de novo: 
 — O vagão está no escuro? 
— Está. 
De tanta indignação bateu com o 
porrete no soalho. E principiou a grita dele 
assim: 
— Não pode ser! Estrada relaxada! 
Que é que faz que não acende? Não se pode 
viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o 
maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz! 
E a luz não foi feita. Continuou 
berrando: 
— Luz! Luz! Luz! 
Só a escuridão respondia. 
Baiano velho estava fulo. Urrava. 
Vozes perguntaram dentro da noite: 
— Que é que há? 
Baiano velho trovejou: 
— Não tem luz! 
Vozes concordaram: 
— Pois não tem mesmo. 
 
 * * * 
 
Foi preciso explicar que era um 
desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas 
é cuspir no progresso da Humanidade. Depois a 
gente tem a obrigação de reagir contra os 
exploradores do povo. No preço da passagem 
está incluída a luz. O governo não toma 
providências? Não toma? A turba ignara fará 
valer seus direitos sem ele. Contra ele se 
necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é 
tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega 
um dia e a cousa pega fogo. 
Todos gritavam discutindo com calor e 
palavrões. Um mulato propôs que se matasse o 
chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou: 
— Ele é pobre como a gente. 
Outro sugeriu uma grande passeata 
em Belém, com banda de música e discursos. 
 — Foguetes também? 
— Foguetes também. 
— Be-le-za! 
Mas João Virgulino observou: 
— Isso custa dinheiro. 
— Que é que se vai fazer então? 
Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. 
Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou 
a faca da cinta e começou a esquartejar o 
banco de palhinha. Com todas as regras do 
ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e 
disse: 
— Dois quilos de lombo! 
Cortou outro e disse: 
— Quilo e meio de toucinho! 
Todos os passageiros, magarefes e 
auxiliares, imitaram o chefe. Os instintos 
carniceiros se satisfizeram plenamente. A 
indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas 
janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens 
 21 
partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, 
gargalhadas. 
— Quantas reses, Zé Bento? 
— Eu estou na quarta, Zé Bento! 
Baiano velho quando percebeu a 
história pulou de contente. O chefe do trem 
correu quase que chorando. 
— Que é isso? Que é isso? É por 
causa da luz? 
Baiano velho respondeu: 
— É por causa das trevas! 
O chefe do trem suplicava: 
— Calma! Calma! Eu arranjo umas 
velinhas. 
João Virgulino percorria os vagões 
apalpando os bancos: 
— Aqui ainda tem uns três quilos de 
coxão-mole! 
O chefe do trem foi para o cubículo 
dele e se fechou dentro rezando. Belém já 
estava perto. Dos bancos só restava a armação 
de ferro. Os passageiros de pé contavam 
façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua 
lavra Às Armas Cidadãos! O taioquinha 
embrulhava no jornal a faca surrupiada na 
confusão. 
Tocando a sineta o trem de Maguari 
fundou na estação de Belém. Em dois tempos 
os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o 
chefe, muito pálido. 
 
 * * * 
 
Belém vibrou com a história. Os jornais 
afixaram cartazes. Era assim o título de um : Os 
Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-
se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. 
Mas foi substituído porque se prestava a 
interpretações que feriam de frente o decoro 
das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um 
conflito sangrento entre populares. 
Dada a queixa à polícia foi iniciado o 
inquérito para apurar as responsabilidades. 
Perante grande número de advogados, 
representantes da imprensa, curiosos e 
pessoas gradas, o delegado ouviu vários 
passageiros. Todos se mantiveram na negativa, 
menos um que se declarou protestante e trazia 
um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado 
perguntou: 
— Qual a verdadeira causa do motim? 
O homem respondeu: 
— A causa verdadeira do motim foi a 
falta de luz nos vagões, 
O delegado olhou firme nos olhos do 
passageiro e continuou: 
— Quem encabeçou o movimento? 
Em meio à ansiosa expectativa dos 
presentes, o homem revelou: 
— Quem encabeçou o movimento foi 
um cego! 
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi 
imediatamente recolhido ao xadrez por que com 
autoridadenão se brinca. 
 
(MACHADO, Antônio Alcântara. “Apólogo brasileiro 
sem véu de alegoria”. In Antologia escolar de contos 
brasileiros. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d, p. 
111 – 116.) 
 
 
A PEDRA ARDE 
Eduardo Galeano 
 
 
No povoado de Nevoeiro vivia um velho 
sozinho e só. 
Ele fazia cestos de vime e sandálias de 
cânhamo. Dava as sandálias e as cestas aos 
vizinhos e se ofendia se queriam pagar-lhe por 
isso. A vida, ele a ganhava como guardador de 
pomares. 
O velho viera de muito distante e nunca 
falava de sua vida. 
Ninguém se atrevia a perguntar-lhe: 
“Você sempre foi assim tão velho?”, 
nem tampouco: 
“Você sempre foi assim tão feio?” 
Ele andava curvado e mancava de uma 
perna. Era muito branco o pouco cabelo que 
restava em sua cabeça. Uma cicatriz 
atravessava-lhe a face. Tinha um nariz torto e 
quando ria abria uma janela entre os dentes de 
cima. 
 
Em uma noite de outono, um menino 
chamado Carassuja saltou o muro de um 
pomar. Pensava roubar maçãs. 
 
Carassuja não teve sorte. Quando 
escapava, escorregou e caiu, ferindo-se num 
 22
prego fincado no muro. As maçãs rolaram pelo 
chão, e Carassuja caiu sobre os espinhos de 
algumas plantas. Gritou. 
 
O velho guardador não lhe lascou o 
chinelo no bumbum, nem foi contar para sua 
mãe. Nem o repreendeu. Balançou a cabeça, 
resmungou, limpou-lhe os arranhões dos braços 
e das pernas e acompanhou Carassuja até a 
porta de sua casa, sem dizer uma palavra 
sequer. 
Da calça rasgada de Carassuja caía 
uma tira de pano, como se fosse rabo de 
ovelha. 
 
Poucos dias depois, Carassuja se 
perdeu num bosque. Caminhava e caminhava, 
e por mais que caminhasse não conseguia 
achar a saída. 
 
O teto das árvores apenas deixava ver o 
céu. Carassuja andava, enroscando-se nas 
ramagens e sapateando no barro, quando viu 
uma pedra brilhante. 
 
A pedra brilhava, mesmo estando 
coberta de musgo e barro. Morto de cansaço, 
Carassuja sentou-se na pedra. Isto é, tentou 
sentar-se, porque mal encostou o traseiro na 
pedra, deu um pulo e soltou um grito de dor. 
Pobre Carassuja. Poucos dias antes, 
havia caído sobre os espinhos. Agora, tinha 
sentado no ferrão de uma abelha. 
Mas não! Não havia nenhuma abelha. A 
culpa era da pedra, que queimava como brasa. 
Furioso, Carassuja chutou a pedra. 
Quando o sapato bateu na pedra, 
raspando-a, surgiram pequenas letras. 
Carassuja abriu a boca, surpreso. 
 
Então Carassuja, que era um menino 
curioso, esfregou a pedra com um galho. A 
pedra ardente mais brilhava à medida que 
Carassuja ia tirando o barro e o musgo. 
Por fim, ele pôde ler estas palavras na 
pedra já limpa: 
Jovem serás, se és velhinho, 
quebrando-me em pedacinhos. 
 
Carassuja, que não era velho, pensou: 
“Se quebro a pedra, que me acontecerá? 
Voltarei a ser um bebê de colo e não saberei 
andar. E depois? Ah, não! Isso é que não! Terei 
que começar a escola novamente!” Também 
pensou: “Que azar! Encontro uma pedra mágica 
e ela não me serve para nada!” 
 
Lembrou-se no mesmo instante, do 
velho guardador de pomares, que havia sido 
bom para ele e era bom para todos os outros. 
“O velho dançará feliz, vai pular de 
alegria como uma pulga e voará como um 
pássaro! Não vai mais tossir. Terá as pernas 
curadas, um rosto sem marcas e a boca com 
todos os dentes.” 
 
Diante de uma descoberta tão 
maravilhosa, Carassuja esqueceu-se de uma 
situação. 
“É muito tarde” — pensou, e sentiu 
medo. 
Para encorajar-se falou em voz alta. 
Ao escutar a sua própria voz, sentiu 
menos medo. Carassuja disse: 
— Agora tenho que voltar. 
E perguntou-se: 
— E depois, como encontrarei a pedra? 
E respondeu: 
— Vou deixar sinais no caminho. 
 
Carassuja tirou a camisa e rasgou-a em 
tiras. 
Procurou um caminho de saída. 
Enquanto caminhava deixava tiras de pano 
penduradas nas árvores. Ia aos tropeços e 
muito lentamente, porque o bosque estava 
escuro e ameaçador. 
 
O caminho não levava à saída e 
Carassuja voltou à pedra brilhante. 
Tentou outro caminho, que também não 
servia. 
Os joelhos de Carassuja tremiam. 
— Fora medo! — disse em voz alta. 
E como as pernas continuavam 
tremendo, ele gritou: 
— Fora, medo! Fora daqui! 
As pernas continuavam tremendo, mas 
só de frio. 
 
Quando Carassuja conseguiu sair do 
bosque já era noite. A lua iluminou seus passos 
até sua casa. 
 
Na manhã seguinte, Carassuja voltou 
aos pomares. O velho carregava um balde de 
cal e uma broxa feita de ramos. Ele se deteve e 
Carassuja escutou-lhe a respiração difícil. 
 23 
Carassuja falou-lhe da pedra. 
O velho acariciou a cabeça do menino, 
bebeu um gole de vinho e aceitou acompanhá-
lo aos pântanos do bosque. 
 
Seguindo o caminho das tiras de pano, 
chegaram à pedra. 
— E então? — perguntou Carassuja. 
O velho mirava a pedra mágica com o 
rosto franzido e os olhos apertados. A pedra 
brilhava, desafiando-o. 
— Vamos, quebre-a! — disse Carassuja, 
puxando-lhe a roupa. 
Porém o velho não se mexia. 
 
O velho apoiou-se no tronco de uma 
árvore e apanhou o cachimbo dentro de uma 
pequena bolsa. 
— Ah! — disse Carassuja — 
esquecemos o martelo. Como você vai quebrar 
a pedra sem martelo? 
O velho, muito lentamente, como se 
fosse trabalho de séculos, continuava 
preparando o cachimbo. 
— Você quer que eu vá buscar o 
martelo? — ofereceu-se Carassuja. Já conheço 
o caminho e não me perderei. 
— Não, não quero — disse o velho. 
— Mas você não vai quebrar a pedra? 
 
O velho encostou um galho seco na 
pedra quente. Esperou que o galho pegasse 
fogo e acendeu com ele seu cachimbo. 
— Mas... — Carassuja sentiu que as 
lágrimas rolavam olhos abaixo. 
Ficou muito bravo e gritou: 
— Foi para isso que me queimei? Para 
isso passei tanto frio e tanto medo? 
 
O velho soltou uma baforada de fumaça. 
— Vem — disse, e pôs uma de suas 
mãos sobre o ombro de Carassuja. 
— Eu sei o que você pensa e quero 
explicar. Sou velho, embora menos velho do 
que você acha, sou manco e estou desfigurado. 
Eu sei. Mas não pense que eu sou tonto, 
Carassuja. Eu não sou tonto. 
 
E pela primeira vez, em tantos anos, o 
velho contou sua história. 
— Estes dentes não caíram sozinhos. 
Foram arrancados à força. Esta cicatriz que 
marca meu rosto não vem de um acidente. Os 
pulmões ... a perna... Quebrei a perna quando 
escapei da prisão ao saltar um muro alto. Há 
outras marcas mais, que você não pode ver. 
Marcas visíveis no corpo e outras que ninguém 
pode ver. 
Os clarões da pedra ardente iluminavam 
o rosto do velho, lançando brilho de faíscas em 
seus olhos. 
— Se quebro a pedra, estas marcas 
somem. E elas são meus documentos, 
compreendes? Meus documentos de 
identidade. Olho-me no espelho e digo: “Esse 
sou eu”, e não sinto pena de mim. Lutei muito 
tempo. A luta pela liberdade é uma luta que 
nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, 
lá longe, lutando como eu lutei. Mas minha terra 
e minha gente ainda não são livres, e eu não 
quero esquecer. Se quebro a pedra cometo 
uma traição, compreendes? 
 
Através do bosque, caminharam de volta 
ao povoado de Nevoeiro. 
Iam de mãos dadas. 
O menino sentia que a mão quentinha 
do velho também aquecia a sua mão. 
 
(GALEANO, Eduardo. A pedra arde. São Paulo: 
Loyola, 1980) 
 
 
 
BOM DIA, TODAS AS CORES 
 
Ruth Rocha 
 
Meu amigo Camaleão acordou de bom 
humor. 
— Bom dia, sol, bom dia, flores, bom dia 
todas as cores! 
Lavou o rosto numa folha cheia de 
orvalho, mudou sua cor para cor-de-rosa, 
que ele achava a mais bonita de todas, e 
saiu par o sol, contente da vida. 
 
Meu amigo Camaleão estava feliz porque 
tinha chegado a primavera. 
E o sol, finalmente, depois de um inverno 
longo e frio, brilhava, alegre, no céu. 
 24
— Eu hoje estou de bem com a vida — 
ele disse.— Quero ser bonzinho pra todo 
mundo... 
 
Logo que saiu de casa, o Camaleão 
encontrou o professor Pernilongo. 
O professor Pernilongo toca violino na 
orquestra do Teatro Florestal. 
— Bom dia, professor! 
Como vai o senhor? 
— Bom dia, Camaleão! 
Mas o que é isso meu irmão? 
Por queé que mudou de cor? 
Essa cor não lhe vai bem... 
Olhe para o azul do céu. 
Por que não fica azul também? 
 
O Camaleão, amável como ele era, 
resolveu ficar azul como o céu de 
primavera... 
 
Até que numa clareira o Camaleão 
encontrou o Sabiá-laranjeira. 
— Meu amigo Camaleão, muito bom dia a 
você! 
Mas que cor é essa, agora? 
O amigo está azul por quê? 
 
E o sabiá explicou que a cor mais linda do 
mundo era a cor alaranjada, 
cor de laranja, dourada. 
 
Nosso amigo, bem depressa, resolveu 
mudar de cor. 
Ficou logo alaranjado, louro, laranja, 
dourado. 
 
E cantando, alegremente lá se foi, ainda 
contente... 
 
Na pracinha da floresta, 
saindo da capelinha, 
vinha o senhor Louva-a-Deus 
mais a família inteirinha. 
Ele é um senhor muito sério, 
que não gosta de gracinha. 
— Bom dia, Camaleão! 
Que cor mais escandalosa! 
Parece até fantasia 
pra baile de carnaval... 
Você devia arranjar 
uma cor mais natural... 
Veja o verde da folhagem... 
Veja o verde da campina... 
Você devia fazer 
o que a natureza ensina. 
 
É claro que o nosso amigo 
resolveu mudar de cor. 
Ficou logo bem verdinho 
e foi pelo seu caminho... 
 
Por isso, naquele dia, cada vez que se 
encontrava 
com algum de seus amigos, e que o 
amigo 
estranhava a cor com que ele estava... 
Adivinhe o que fazia o nosso Camaleão. 
Pois ele logo mudava, mudava para outro 
tom... 
 
Vocês agora já sabem como era o 
Camaleão. 
Bastava que alguém falasse, mudava de 
opinião. 
Ficava roxo, amarelo, ficava cor de pavão. 
Ficava de toda cor. Não sabia dizer NÃO. 
 
Mudou de rosa para azul 
De azul para alaranjado 
De laranja para verde. 
De verde para encarnado. 
 
Mudou de preto pra branco. 
 
De branco ficou roxinho. 
 
De roxo para amarelo, 
E até para cor de vinho... 
 
Quando o sol começou a se pôr no 
horizonte, Camaleão resolveu voltar para 
casa. 
Estava cansado do longo passeio e mais 
cansado ainda de tanto mudar de cor. 
 
Entrou na sua casinha. 
Deitou para descansar. 
E lá ficou a pensar: 
 
— Por mais que a gente se esforce, 
não pode agradar a todos. 
Alguns gostam de farofa. 
Outros preferem farelo... 
Uns querem comer maçã. 
Outros preferem marmelo... 
Tem quem goste de sapato. 
Tem quem goste de chinelo... 
 25 
E se não fossem os gostos, 
que seria do amarelo? 
 
Por isso, no outro dia, 
Camaleão levantou-se bem cedinho. 
— Bom dia, sol, 
bom dia, flores, bom dia, 
todas as cores! 
Lavou o rosto numa folha cheia de 
orvalho, 
mudou sua cor para cor-de-rosa, 
que ele achava a mais bonita de todas, 
e saiu para o sol, contente da vida, 
 
Logo que saiu, Camaleão encontrou o 
Sapo Cururu, 
Que é cantor de sucesso na Rádio Jovem 
Floresta. 
 — Bom dia, meu caro Sapo! Que dia mais 
lindo, não? 
 
 — Muito bom dia, amigo Camaleão! 
 Mas que cor mais engraçada, 
 antiga, tão desbotada... 
 Por que é que você não usa 
 uma cor mais avançada? 
 
O Camaleão sorriu e disse pro amigo: 
— Eu uso as cores que eu gosto, 
e com isso faço bem. 
Eu gosto dos bons conselhos, 
mas faço o que me convém. 
Quem não agrada a si mesmo, não 
pode agradar a ninguém... 
 
E assim aconteceu 
o que acabei de contar. 
Se gostaram, muito bem! 
Se não gostaram, AZAR! 
 
(ROCHA, Ruth. Bom dia, todas as cores. São Paulo: 
Círculo do Livro. S/d) 
 
A conta 
Luís Fernando Veríssimo 
 Dois casais de amigos. Acabam de 
jantar num bom restaurante. Um dos homens 
faz sinal para o garçom. 
— Companheiro... 
Faz o tradicional gesto de escrever no ar 
com uma caneta fantasma. 
— A conta. 
— Deixa comigo — diz o outro homem, 
levando a mão ao bolso de trás para pegar a 
carteira. O outro o detém. 
— Pare. Não se mexa. A conta é minha. 
— De maneira nenhuma. 
— Sim, senhor. Faço questão. 
— Que esperança. Pago eu. 
— Pago eu e está acabado. 
Quando chega o garçom, o outro dá um 
pulo e pega a conta da sua mão. 
— Epa, dá aqui. 
— Não dou. Eu é que pago. 
— Não banque o idiota. Me dá essa 
conta. 
— Não dou. 
— Quer fazer o favor? 
— Não amola. 
As mulheres se divertem com a 
discussão. Uma delas sugere: 
— Quem sabe a gente racha? 
— Não. Fui eu que pedi a conta, eu é 
que pago. Dá aqui. 
— Não dou. 
— Se você tocar nessa carteira... 
O outro: 
— Eu ganho mais que você. 
— Quem foi que disse? 
— Brincadeira, pô. 
Os dois ficam sérios, se encarando. 
Estão de pé. O garçom intervém, só para cortar 
o silêncio: 
— O serviço não está incluído. 
— Você vai me dar essa conta? 
— Não me diga que você ficou sentido... 
— Não interessa. Me dá essa conta. 
— Está bem, está bem. Vamos dividir. 
— Não vamos dividir nada. Eu pago. 
O outro olha em volta. Todo o 
restaurante parou para acompanhar a briga. 
— Vocês são testemunhas. Eu tentei 
transigir e... 
O outro aproveita e mergulha para pegar 
a conta. Os dois se engalfinham. Caem por 
cima da mesa. As mulheres gritam. O garçom 
tenta apartar. Vem o gerente. 
— Senhores, por favor! 
As pessoas erguem-se de suas mesas e 
se achatam contra as paredes. Os dois rolam 
 26
pelo chão. Quando, finalmente, são separados, 
o que pegou a conta do garçom levanta-se com 
a conta ainda na mão, triunfante. Com a outra 
mão pega uma cadeira e ameaça os que o 
cercam. 
— Para trás. Para trás. 
O outro bufando. 
— Me dá essa conta! 
— Vem buscar! 
— Cachorro! 
— É você. 
O gerente dirige-se para o telefone. 
— Cretino! 
— Cretino é você! 
Um garçom tenta pegar o que segura a 
conta e a cadeira por trás mas é repelido com 
uma cotovelada. O outro salta com os dois pés 
no seu peito. Alguém tenta acertar o que pulou 
com uma mesa, que se espatifa no chão. Uma 
garrafa voa pelo ar. 
— Segura! 
— Eles estão indo para a cozinha! 
Os dois entram na cozinha, agarrados. 
As duas mulheres vão atrás, implorando para 
que parem. Eles trocam socos e pontapés. 
— Não, o facão não! 
Chega a polícia. 
Uma semana depois, um visita o outro 
no hospital, arrastado pela mulher. 
— Ele veio pedir desculpa. 
— Não precisava. 
— Precisava, sim. Onde se viu? Dois 
amigos de tantos anos... 
— Que papelão. 
Os dois começam a rir. 
— Foi um papelão mesmo... 
— Nós somos uns cavalos. 
— Desculpe, viu? 
— O que é isso. Eu é que peço 
desculpa. 
— Como é que você está? 
— Só dói um pouco aqui, no corte. E 
você? 
— Olha o meu olho... 
— Somos uns cavalos. 
Entra um homem no quarto e apresenta-
se como representante do restaurante. Questão 
de uma conta por estragos e danos... Os dois 
se entreolham e sorriem. 
— Demolimos o lugar... 
— Parece que é. 
— Dá aqui essa conta que eu pago tudo. 
— Por que você? Eu ajudei a demolir. 
— A culpa foi minha. Eu pago. 
— De maneira nenhuma. 
— Faço questão. 
— Nem pensar. Pago eu. 
— Pago eu e está acabado. 
— Não toque nessa carteira! 
 
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Festa de criança. São 
Paulo: Ática, 2002. p. 73-76) 
 
 
PEÇA INFANTIL 
Luís Fernando Veríssimo 
A professora começa a se arrepender de 
ter concordado (“Você é a única que tem 
temperamento para isto”) em dirigir a peça 
quando uma das fadinhas anuncia que precisa 
fazer xixi. É como um sinal. Todas as fadinhas 
decidem que precisam, urgentemente, fazer 
xixi. 
— Está bem, mas só as fadinhas — diz 
a professora. — E uma de cada vez! 
Mas as fadinhas vão em bando para o 
banheiro. 
— Uma de cada vez! Uma de cada vez! 
E você, onde é que você pensa que vai? 
— Ao banheiro. 
— Não vai não. 
— Mas tia... 
— Em primeiro lugar, o banheiro já está 
cheio. Em segundo lugar, você não é fadinha, é 
caçador. Volte para o seu lugar. 
Um pirata chega atrasado e com a 
notícia de que sua mãe não conseguiu terminar 
a capa. Serve uma toalha? 
— Não. Você vai ser o único de capa 
branca. É melhor tirar o tapa-olho e ficar de 
anão. Vai ser um pouco engraçado, oito anões, 
mas tudo bem. Por que você está chorando? 
— Eu não quero ser anão. 
— Então fica de lavrador. 
— Posso ficar com o tapa-olho? 
— Pode. Um lavrador de tapa-olho. Tudo 
bem. 
— Tia, onde é que eu fico? 
É uma margarida. 
— Você fica ali. 
A professora se dá conta de que as 
margaridas estão desorganizadas. 
— Atenção,margaridas! Todas ali. Você 
não. Você é coelhinho. 
 27 
— Mas meu nome é Margarida. 
— Não interessa! Desculpe, a tia não 
quis gritar com você. Atenção, coelhinhos. 
Todos comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. 
Lavradores daquele lado, árvores atrás. Árvore, 
tira o dedo do nariz. Onde é que estão as 
fadinhas? Que xixi mais demorado. 
— Eu vou chamar. 
— Fique onde está, lavrador. Uma das 
margaridas vai chamá-las. 
— Já vou. 
— Você não, Margarida! Você é 
coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá 
chamar as fadinhas. Piratas, fiquem quietos. 
— Tia, o que é que eu sou? Esqueci o 
que eu sou. 
— Você é o Sol. Fica ali que depois a 
tia... Piratas, por favor! 
As fadinhas começam a voltar. Com 
problemas. Muitas se enredaram nos véus e 
não conseguem arrumá-los. Ajudam-se 
mutuamente, mas no seu nervosismo só pioram 
a confusão. 
— Borboletas, ajudem aqui — pede a 
professora. 
Mas as borboletas não ouvem. As 
borboletas são etéreas. As borboletas fazem 
poses, fazem esvoaçar seus próprios véus e 
não ligam para o mundo. A professora, com a 
ajuda de um coelhinho amigo, de uma árvore e 
de um camponês, desembaraça os véus das 
fadinhas. 
— Piratas, parem. O próximo que der um 
pontapé vai ser anão. 
Desastre: quebrou uma ponta da Lua. 
— Como é que você conseguiu isso? — 
pergunta a professora sorrindo, sentindo que o 
seu sorriso deve parecer demente. 
— Foi ela! 
A acusada é uma camponesa gorda que 
gosta de distribuir tapas entre os seus 
inferiores. 
— Não tem remédio. Tira isso da cabeça 
e fica com os anões. 
— E a minha frase? 
A professora tinha esquecido. A Lua tem 
uma fala. 
— Quem diz a frase da Lua é, deixa 
ver... O relógio. 
— Quem? 
— O relógio. Cadê o relógio? 
— Ele não veio. 
— O quê? 
— Está com caxumba. 
— Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que 
falar pela Lua. Sol, está me ouvindo? 
— Eu? 
— Você, sim senhor. Você é o Sol. Você 
sabe a fala da Lua? 
— Me deu uma dor de barriga. 
— Essa não é a frase da Lua. 
— Me deu mesmo, tia. Tenho que ir 
embora. 
— Está bem, está bem. Quem diz a 
frase da Lua é você. 
— Mas eu sou caçador. 
— Eu sei que você é caçador! Mas diz a 
frase da Lua! E não quero discussão! 
— Mas eu não sei a frase da Lua. 
— Piratas, parem! 
— Piratas, parem. Certo. 
— Eu não estava falando com você. 
Piratas, de uma vez por todas... 
A camponesa resolve tomar a justiça nas 
mãos e dá um croque num pirata. A classe é 
unida e avança contra a camponesa, que recua, 
derrubando uma árvore. As borboletas 
esvoaçam. Os coelhinhos estão em polvorosa. 
A professora grita: 
— Parem! Parem! A cortina vai abrir. 
Todos a seus lugares. Vai começar! 
— Mas, tia, e a frase da Lua? 
— “Boa noite, Sol.” 
— Boa noite. 
— Eu não estou falando com você! 
— Eu não sou mais o Sol? 
— É, mas eu estava dizendo a frase da 
Lua. “Boa noite, Sol.” 
— Boa noite, Sol. Boa noite, Sol. Não 
vou esquecer. Boa noite, Sol... 
— Atenção, todo mundo! Piratas e anões 
nos bastidores. Quem fizer um barulho antes de 
entrar em cena, eu esgoelo. Coelhinhos nos 
seus lugares. Árvores, para trás. Fadinhas, 
aqui. Borboletas, esperem a deixa. Margaridas, 
no chão. 
— Todos se preparam. 
— Você não, Margarida! Você é 
coelhinho! 
Abre o pano. 
 
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Festa de criança. São 
Paulo: Ática, 2002. p. 11 - 14) 
 
 
 28
FESTA DE ANIVERSÁRIO 
Luís Fernando Veríssimo 
Os ingredientes são: uma porção de 
caos, duas de confusão e uma pobre mãe 
exausta — tudo misturado com um cão latindo e 
balões estourando. 
Uma boa festa de aniversário deve ter 
no mínimo vinte crianças, sendo uma de colo, 
que chora o tempo todo, uma maior do que as 
outras, chamada Eurico, que bate nas menores 
e acabará mordida pelo cachorro, para a 
secreta satisfação de todos; e uma de rosto 
angelical, olhar límpido e vestido impecável, que 
conseguirá sentar em cima do bolo de 
chocolate. Esta deve se chamar Cândida. 
Boa festa de aniversário é aquela em 
que, depois que todos foram embora, a mãe do 
aniversariante examina os destroços com o 
mesmo olhar que Napoleão lançou sobre os 
campos de Waterloo, depois da batalha, e fica 
indecisa entre chorar, fugir de casa ou rolar pelo 
tapete dando gargalhadas histéricas. Desiste de 
rolar pelo tapete porque o tapete está coberto 
de restos de comida. 
É indispensável que no fim da festa 
sobre uma criança que ninguém sabe como foi 
parar embaixo do sofá. 
— Como é seu nome, meu bem? 
— Cândida. 
É ela de novo. E as grandes camadas de 
chocolate no seu traseiro não estão ajudando o 
tapete. 
A mãe do aniversariante decide chorar. 
Melhor ainda são os pais que vêm 
buscar as crianças e ficam para tomar uma 
cervejinha. A noite já vai alta, os filhos dormem 
nos seus colos com a boca aberta, os balões 
coloridos presos ao dedo de cada criança fazem 
um balé em câmara lenta no meio da sala e os 
pais não vão embora. A mãe do aniversariante 
não sente mais as pernas. Apalpa um joelho 
para ver se a perna ainda está lá. Fantástico: 
está. E então ouve, incrédula, a voz do marido: 
 — Carminha, traz mais uma cerveja 
para o doutor Ariel... 
Será que o inconsciente não sabe que 
ela teve que correr o dia inteiro? Que encheu os 
balões com seus próprios pulmões? Que fez a 
torta de chocolate com a sua própria receita? 
Que por pouco não estrangulou vinte crianças 
com as suas próprias mãos? Boa festa de 
aniversário é a que acaba com a mãe do 
aniversariante querendo estrangular o próprio 
marido. 
E o padrinho do aniversariante, que vem 
de longe especialmente para o aniversário e é 
ignorado pelo afilhado? 
— Ora, Rodolfo, é que ele não via você 
há dois anos. Criança esquece depressa. 
— Ele jamais gostou de mim. 
— Gosta sim, Rodolfo. Ó Beto, vem cá 
pedir a bênção a seu padrinho. 
— A bênção, padrinho. 
— Agora dê um beijo nele. Pronto. E 
agora agradeça o presente que ele trouxe para 
você. 
— Obrigado pelo “Forte Apache”. 
— Viu só, Rodolfo? Você não pode se 
queixar do seu afilhado. Ele adora você. 
— É. Só que o meu presente não foi o 
“Forte Apache”. 
O padrinho ficará com a cara trágica até 
o fim da festa. Recusará salgadinhos e cervejas 
e suspirará muito. Antes de dormir, o afilhado 
virá correndo lhe dar um beijo espontâneo e um 
longo abraço. Na hora de ir embora, Rodolfo 
confidenciará aos compadres: 
— Ele me adora. 
Uma boa festa de aniversário deve ter 
guaraná morno e show de mágica. O mágico 
deve ser arranjado à última hora e não pode ser 
muito bom. A mãe do aniversariante deve 
contratar o mágico na certeza de que, depois de 
cantarem o “Parabéns a você”, comerem a torta 
de chocolate e beberem o guaraná morno, as 
crianças não terão mais o que fazer, perderão o 
interesse e a festa será um fracasso. É preciso 
um show para entretê-las. 
— Crianças, atenção! Uma surpresa 
para vocês! 
Dona Carminha não consegue atrair a 
atenção das crianças. Há um grupo brincando 
de pegar, outro brincando de cabra-cega, um 
terceiro improvisando um renhido futebol com 
balões, e a Cândida que — com sua cara de 
querubim — prepara-se para amarrar uma jarra 
caríssima no rabo do cachorro. 
— Crianças! Por favor, silêncio! Parem 
imediatamente tudo o que estão fazendo. Para 
vocês não ficarem sem o que fazer, vamos 
apresentar um show de mágicas! 
 Deve ser uma luta para reunir as 
crianças em torno do mágico. Antes que o 
espetáculo acabe, as crianças estarão 
participando ativamente de cada truque, 
espiando para dentro da manga, descobrindo 
 29 
todos os compartimentos secretos e 
desmoralizando por completo o mágico, que no 
dia seguinte mudará de profissão. Em seguida, 
a mãe do aniversariante tentará organizar um 
calmo e instrutivo jogo de charadas, mas 
ninguém lhe dará bola. As crianças agora 
brincam de Zorro, e o Eurico, montado no 
cachorro, faz um rápido “Z” com um jato de 
Coca-Cola na parede da sala. 
Uma boa festa de aniversário deve 
terminar depois da meia-noite, quando o último 
pai sai arrastando a última criança, e a criança, 
o último balão, que estoura

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