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" .•••."' •• " •. ~l •• 74 MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA lIustríssimo chefe indígena Aliado dos portugueses na conquista do Rio de Janeiro, o índio Araribóia foi enobrecido, ganhou benesses e virou motivo de orgulho para seus descendentes rente a frente com um representante do rei, o índio cometeu uma descortesia: sentou-se sobre as pernas cruzadas. O ato foi imediatamente repreendido, mas em vez de se penitenciar, o índio decidiu con- frontar a autoridade. "Não sem cólera e arrogância", respondeu o seguinte: "Se tu souberas quão cansa- das eu tenho as pernas das guerras em que servi a el- rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno des- canso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos des- ses pontos e não retornarei mais à tua corte". O episódio, verídico ou não, foi relatado por frei Vi- cente de Salvador e teria ocorrido em 1575, quando H o novo governador do Rio de Janeiro, Antonio Sale- ma, foi recebido por personalidades locais. Entre os presentes àquela importante recepção estava o líder indígena temiminó conhecido como Araribóia. A forma altiva e orgulhosa como respondeu à reprimenda do governador é reveladora da posi- ção que este indígena ocupava diante das autori- dades portuguesas. Araribóia demonstra cons- ciência sobre seu papel na defesa da terra e como intermediário entre culturas diferentes. Por isso portou-se como um grande chefe ofendido com outro que não lhe prestara o devido respeito. E sua ameaça - "não retornarei mais à sua corte" - não se concretizou. Como um dos principais res- ponsáveis pela conquista da Baía de Guanabara, e pela conseqüente fundação do Rio de Janeiro, Ara- ribóia continuou gozando de grande prestígio en- tre os portugueses. Antes que os portugueses se lançassem na guer- ra pela ocupação da Guanabara, os índios que ocu- pavam a região hoje conhecida como ilha do Go- vernador eram chamados de maracajá ("índios do Gato", em tupi) , liderados por Maracajaguaçu (o "Grande Gato"). Viviam em guerra com os vizinhos tamoios. Sentindo-se ameaçados, solicitaram aos portugueses quatro embarcações, a fim de fugirem para a capitania do Espírito Santo, onde se estabe- leceram em 1555. Em terras capixabas, surgem as primeiras menções aos temiminós liderados por Araribóia, grupo que talvez tenha se originado de uma dissidência dos maracajás. O que se sabe é 7S TI M kC. 2008 Gravura de Theodore de Br"y. 1592. A alian- ça entre nativos e portugueses era van- tajosa para ambos os lados: supria a carên- cia de combatentes na tropa portuguesa em troca de patentes militares e títulos para os índios. Na página anterior a estátua de Araribóia no centro da cidade de Niterói. estado do Rio de Janeiro. reflete o orgulho de seus habitantes por um fundador tão ilustre. No Espírito Santo, os temiminós se destacaram na luta contra outras tribos hostis e contra piratas na costa que, ao chegarem ao Espírito Santo, alguns desses índios provenientes do Rio se embrenharam pelo sertão e só seriam aldeados em 1562, com um no- vo chefe. Este já seria Araribóia. A aliança com os portugueses era estratégica pa- ra os grupos indígenas. Para muitos deles, era con- veniente ingressar em aldeias estabelecidas pelas autoridades coloniais - isso significava segurança, algo cada vez mais dificil de ser alcançado nos s.er- tões onde guerras, massacres e escravizações eram freqüentes. Tomavam-se índios aldeados e súditos __~''''''1'''''''"0 1 O - C sputa entre por- gueses e franceses oeías terras da Guanabara teve de lado os temimi- nos. aliados dos por- gueses. e do outro os tamoios. aliados oos franceses, Gravura de Theodore Ge Bry. 1592, 76 cristãos do rei. Apesar dessa situação subalterna, sujeita ao trabalho compulsório, tinham algumas vantagens, diante do caos da colonização. A legisla- ção estabelecia, por exemplo, a doação de terras e o direito de não serem escravizados. No Espírito Santo, a parceria com os temiminós rendeu a Portugal importantes ações de defesa do território. Os índios destacaram-se na luta contra outras tribos hostis e contra piratas na costa. Tan- to que, em 1564, Araribóia e seus liderados jun- tam-se a Estácio de Sá (1520-1567) em investidas contra os franceses, com o objetivo de fundar a po- voação do Rio de Janeiro. "Acompanhava a frota um índio, de nome Arary-boia - que ficou registra- do na história do tempo como Martim Afonso Ara- ribóia - e que era amigo dos portugueses desde a época em que a terra de Piratininga fora desbrava- da. Agora, fizera companhia a Estácio para o ajudar a estabelecer-se na terra dos Tamoios", relata o pa- dre José de Anchieta (1534-1597). Além de manterem a aliança com os portugue- ses, para os temiminós a volta para o Rio de Janei- ro era uma oportunidade que tinham de combater seus antigos inimigos, os tamoios, reconquistando o território que haviam abandonado. Em 1565, com a expulsão dos franceses, deu-se a fundação da cidade do Rio de Janeiro. E o papel de Araribóia na conquista foi devidamente reco- nhecido. Três anos depois, foi-lhe dado o direito de escolher uma parte das terras da "banda d'além", ou seja, do outro lado da Baía. para se estabelecer com sua gente. Recebida na forma de sesmaria, a área passou a abrigar a aldeia de São Lourenço, ori- gem da cidade de Niterói (ou "águas escondidas", na língua indígena), oficialmente criada em 1573. Os portugueses tinham o hábito de valorizar os líderes nativos que os apoiavam. Os chefes indíge- nas recebiam concessão de favores, titulos, patentes militares e nomes portugueses de prestigio. Arari- bóia foi batizado de Martim Afonso de Sousa, agra- ciado com o Hábito de Cavaleiro da Ordem de Cris- to, e recebeu uma tença (pensão) de 12 mil-réis. Para completar, recebeu o posto de capitão-mor da aldeia de São Lourenço e tornou-se proprietário de casas na Rua Direita (atual Primeiro de Março), onde resi- diam os notáveis do Rio de Janeiro, incluindo o go- vernador. Seu casamento foi realizado com grande pompa, digna dos altos mandatários do Reino. A morte de Araribóia é um assunto controverso. Dizem que morreu afogado, mas é possível tam- bém que tenha sido vitima de uma epidemia. O fa- to é que seu prestígio sobreviveu, estendendo-se às gerações posteriores. O cargo hereditário de capi- tão-mor da aldeia de São Lourenço passou a ser ocupado por seus descendentes. Estes sempre fa- ziam questão de mencionar Araribóia em petições encaminhadas ao rei, identificando-se pelo nome de batismo e pela aldeia em que moravam. As au- toridades, por sua vez, reconheciam e valorizavam a prestigiosa memória de Araribóia, contribuindo para perpetuá-Ia. O governador Salvador Correa de Sá e Benevides (1637-1642), ao conferir a Brás de Souza o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lou- renço, declarou que o nomeava "visto ser descen- dente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo". e gozará de todas as honras e proeminên- cias que tem e gozaram os mais Capitães seus ante- cessores". Os grandes feitos do líder temiminó e de seus seguidores eram trunfos devidamente ressal- tados nesses documentos. Durante o século XIX, com o argumento de que os índios já estavam civilizados e deveriam ser assi- milados como cidadãos do Império, todas as aldeias foram extintas e suas terras incorporadas ao patri- mônio dos municípios. Foi o que aconteceu com a aldeia de São Lourenço em 1866. Ainda assim, a imagem de Araribóia, construída por índios e por- tugueses em relações de alianças e conflitos, deixou raízes que resistiram aos séculos. Apesar das imen- sas diferenças que separavam o Araribóia do século XVI e seus descendentes dos séculos seguintes, per- cebe-se a identificação entre eles pelo sentimento de pertencer à aldeia e liderarym grupo étnico e so- cial específico - os índios aldeados de São Lourenço, com direito à terra coletiva e à vida comunitária. Jo- H sé Cardoso de Souza (1782-1837), considerado o úl- timo capitão-mor da aldeia de São Lourenço, ainda em 1820 protestava judicialmente contraparticula- res queesbulhavam terrenos dos índios. No século seguinte, a nobre memória de Arari- bóia continuava viva e forte em iterói. Em 1930, um dos membros da Comissão Glorificadora a Ara- ribóia era José Luiz de Araribóia Cardoso, arquivista e zelador da Igreja de São Lourenço dos Índios, que com orgulho afirmava sua ascendência indígena. Pa- ra José Luiz, Araribóia fora mais do que o fundador de Niterói e do Rio de Janeiro. Cabia ao índio o mé- rito de ter inaugurado "a nacionalidade brasileira". Mais de quatro décadas depois, na comemoração oficial dos 400 anos de Niterói, em 22 de novembro de 1973, coube ao prefeito partir o bolo, oferecendo em seguida o primeiro pedaço a uma das mulheres presentes. Sem saber, estava homenageando o pre- cursor do município. Foi o que Gilda Rodrigues tra- tou de informar a Iohana Freitas, Marilia dos Santos e Tarso Vicente, alunos do curso de História Oral da UFF, em entrevista realizada em fevereiro de 2003, pois era descendente do grande Araribóia, Como entender a persistência dessa memória, manifestada por Gilda e José Luiz - e também pelos inúmeros grupos emergentes no Nordeste, por lon- go tempo confundidos com a massa da população, que aparecem agora reivindicando a identidade indí- gena e buscando suas origens nas aldeias coloniais? Os índios insistem em continuar existindo e im- põem aos historiadores e antropólogos a tarefa de rever conceitos e teorias, reinterpretar documen- tos e contar uma outra história sobre sua presença e atuação na América portuguesa. Afinal. a História do Brasil nos ensina que os índios perderam suas culturas, identidades étnicas e quaisquer possibili- dades de resistir e atuar na Colônia, diluídos entre os escravos e a população pobre. A trajetória dos temiminós revela uma realidade bem diferente. Em vez de desaparecerem, reelabora- ram culturas, memórias e identidades que lhes per- mitiram sobreviver por três séculos como índios da aldeia de São Lourenço. Esta identidade, sugerida ou imposta pelos colonizadores, foi por eles apropriada e amplamente utilizada, como demonstram as peti- ções dos líderes que enfatizam a procedência do gru- po a partir do estabelecimento da aldeia e da doação de terras. Esses documentos são mais uma evidência de que os índios da Colônia não desapareceram, nem deixaram de ser agentes da História. H MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA É PROFESSORA DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) E AUTORA DO LIVRO METAMORFOSES INDíGENAS: IDENTIDA- DES E CULTURA NAS ALDEIAS COLONIAIS DO RIO DE JANEIRO (ARQUIVO NACIONAl. 2003). 77 T '" 2008 Saiba Mais KNAUSS, Paulo."Herói da Cidade - imagem in- dígena e mitologia políti- ca". In:Knauss, Paulo (coord). Sorriso da CIdade. 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