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1 ( 1 ( UM ÜLHAR EVOLUCIONISTA PARA A PSICOLOGIA1 César Ades Desde que se constituiu, a psicologia procurou estabe- lecer a independência de seu enfoque e de seu método em relação à biologia. Mas nunca deixou de pagar um tribu- to ao biológico, nem que fosse como o reconhecimento do substrato a partir do qual outra forma de organização (da mente, do comportamento) se origina. Na origem do pensamento psicológico, está uma posição cartesiana, rara- mente explicitada, mas que incomoda (como Descartes esteve incomodado para explicar a origem, ao mesmo tempo corporal e mental, das paixões humanas) por não indicar uma fronteira nítida entre o psicológico e o bioló- gico e por não proporcionar uma epistemologia capaz de dar conta, independentemente, do psicológico. O deter- minante biológico não é negado, mas colocado fora do âmbito das explicações relevantes acerca da mente ou do comportamento. Sobre esta ambigüidade, desenvolvem-se dicotomias que se auto-reforçam, como a dicotomia entre natureza e criação (nature and nurture), entre biologia e cultura, entre inato e aprendido, e se criam distâncias ainda maiores do que as que normalmente existem entre as ciências, os departamentos e os cientistas. O conhecimento fica encap- sulado em áreas não apenas especializadas, mas que se colocam como incomensuráveis. Acaba-se tendo a impres- 1Versão de uma palestra apresentada no N Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, Salvador, Bahia (2005) e do texto correspondente à palestra publicado em Psicologia: novas direções no diálogo com outros campos do saber (Nádia Maria Dourado Rocha e Antonio Virgilio Bittencourt Bastos, Coordenadores), Casa do Psicólogo, 2007. são de que o objeto de estudo, o ser humano, perde sua unicidade e se fragmenta de acordo com as perspectivas e • os recortes impostos. Não faz tanto tempo, fui convidado pelo centro acadê- mico de um curso de psicologia para participar de uma mesa-redonda sobre "Hereditariedade e Ambiente" (composta de apenas dois participantes, uma antropóloga e eu mesmo, talvez no propósito de nos ver defender, ela o aporte ambiental e cultural, eu, a base instintiva e bioló- gica, o que, de fato, fizemos). O tema é bastante polêmi- co, mais ainda numa época como a nossa, marcada por um progresso enorme no conhecimento dos processos genéticos e por tentativas audazes de aplicação desse conhe- cimento, inclusive ao comportamento. Em Tdbula Rasa (2004), Stephen Pinker gasta quase 700 páginas para reba- ter, com paixão, a idéia de que a mente da criança é uma folha em branco, na qual a sociedade e a cultura inscrevem tudo. No debate, a fala da antropóloga foi principalmente dedicada ao estabelecimento do cultural e do psicológico como essencialmente independentes do biológico. A natu- reza simbólica do ser humano, o arbitrário e o cumulati- vo do fato cultural, as transformações da história foram contrastados com a determinação mecânica do processo genético, incapaz de dar conta do significado. Fez-se também uma crítica às interpretações funcionalistas/ evolucionistas do comportamento humano, perigosas pelas implicações em termos de darwinismo social. Justi- ficariam tudo o que fosse considerado geneticamente adaptativo, inclusive o estupro. Estava clara, nas coloca- ções, a permanência de uma postura dicotômica, com raízes na distinção de Dil they ( 18 83) entre ciências natu- rais (Naturwissenchaften) e ciências do espírito ( Geiteswis- senchaften). Como integrar a intenção de compreender com a de medir e interpretar de fora, por assim dizer, o objeto estudado? Interpretar dados (o problema é definir o que são dados) psicológicos em termos biológicos seria perder um conteúdo essencial, alienando o conhecimen- to do ser humano da rede de significados que o constitui e que passa pela linguagem. Apesar das divergências, o debate com a antropóloga foi cordial. Mas não é na mesa de discussão que poderá progredir muito o esforço de integração entre as perspectivas da biologia e das ciências humanas. Não se trata de apenas efetuar uma tradução de termos ou um cut-and-paste de idéias. Mais estimu- lante e produtivo é o contato que se dá em regiões de fronteira, em torno de assuntos suficientemente próximos para que a vantagem de olhar de dois ou mais pontos de vista se torne explícita. A aproximação se dá, então, atra- vés do interesse convergente dos pesquisadores e de uma transferência natural de modos de pensar e de métodos de um lado a outro. Piaget disse uma vez que uma regra de criatividade era olhar ao lado do assunto pesquisado (Lino de Macedo, comunicação pessoal), aventurar-se fora dos esquemas, procurando outras formas de ver os fatos, à maneira do antropólogo que aborda uma sociedade que ele pretende compreender com curiosidade e desejo de assimilação. Ainda usando o pensamento de Piaget, eu diria que é necessário descentrar a sua perspectiva, ou seja, ver o mesmo objeto de uma outra perspectiva, sem abandonar a base , de especialização. E no surpreender-se diante do objeto (porque visto dentro de outro referencial) que está uma das raízes da integração entre perspectivas: prender-se menos aos modos habituais de conhecer e às posições teóri- cas e mais à necessidade de conhecer o objeto da forma mais completa e interativa possível. A hierarquia que o senso comum estabelece entre as ciências faz muitos temerem que, num empreendimento conjunto, os enunciados da psicologia acabem se reduzin- do aos da biologia. Não há razão, contudo, para pensar que a migração de conceitos seja unidirecional, não há perspectivas necessariamente mais básicas ou mais ricas na produção de perguntas. Vale uma epistemologia cruzada, que se constitui na pesquisa efetuada com conceitos e modelos transpostos de uma área para outra. Em vez de pensar como reducionista o desenvolvimento do contato entre psicologia e biologia prefiro entendê-lo como Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 1 1 produto de uma coevolução que instaura interdependên- cias2. Neste texto, abordo a perspectiva evolucionista que interpreta o comportamento humano como adaptação às condições do ambiente físico e social em que o ser huma- no evoluiu enquanto espécie. Do mesmo jeito como se supõe ser adaptativo, porque pode afugentar predadores, o movimento deimático de um louva-a-deus que se ergue e estica as asas coloridas, ou a resposta do pavão de abrir em leque a sua cauda, porque atrai as fêmeas, também podem ser interpretados os comportamentos do ser huma- no como produtos de uma evolução que os tornou funcio- nais, isto é, que lhes atribuiu uma vantagem em termos de sobrevivência e reprodução. Transpõe-se uma maneira de conceituar o comportamento animal para o compor- tamento humano. Pode-se argüir que é inevitável esta transposição, uma vez que, sendo ele próprio um animal, o ser humano tem seu comportamento regido pelos mesmos princípios (darwinistas) que regem o comportamento animal. Mas este argumento, simples e lógico como é, não convence necessariamente: embora sendo um animal, o ser humano poderia seguir princípios comportamentais diferentes - decorrentes de sua natureza diferente. simbólica, cultural, histórica às vezes entendidos como princípios emer- gentes, libertos das contingências originais (Sawyer, 2002). A questão que se coloca, então, é saber se as diferenças do ser humano com os outros animais implicam necessa- riamente, e desde o ponto de partida, a impossibilidade de aplicar-se o modelo evolucionista ao comportamento humano. As diferenças que marcam, obviamente, o comportamento humano poderiam ser análogas às que diferenciam um tipo de animal de outro, isto é, poderiam ser assimiláveis a uma lógica evolutiva geral. Ou poderiam, ao contrário, determinar um campo empírico sujeito a princípios próprios, não-evolutivos. 2Sociedades científicas, como a Sociedade Latino-Americana de Psicobio- logia, que se transformou em Sociedade Brasileira de Psicobiologia, que,por sua vez, gerou a Sociedade Brasileira de Neurociência e Comporta- mento, foram bases importantes para uma interação psicobiológica em nosso meio. A Sociedade Brasileira de Ecologia (SBEc), de cujos encontros anuais participam psicólogos e especialistas em diversas áreas biológicas e estudantes de diversos cursos de graduação, tem sido ponto de convergência e de progresso na área. A Revista de Ecologia, uma publicação da SBEt e do Instituto de Psicologia da USP, tem abordado questões de fronteira com o comportamento humano. Disciplinas como Ecologia e Comportamento Animal, oferecidas no Instituto de Psicologia da USP, que reúnem alunos de biologia e de psicologia, além de outros, demonstram na prática das discussões de aula a viabilidade da integração de perspectivas. 12 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia Embora não existam critérios rigorosos para decidir entre a comensurabilidade e a incomensurabilidade, pare- ce-me apressada a proposição de que, se há diferenças, torna-se necessário aceitar uma ruptura epistemológica entre as áreas de pesquisa envolvidas. Se um peixe respira através de guelras, um modo muito diferente da respiração de organismos terrestres, isto não implica que devamos construir, para os peixes, uma biologia especial ( e que deva- mos supor que eles não tenham sofrido uma história evolu- tiva). O mesmo vale para o biossonar dos morcegos, os dentes "recicláveis" dos tubarões, as asas das aves, o órgão detector de temperatura das cobras e um número imenso de diferenças entre animais. A abordagem evolucionista não pretende (nem poderia, sem entrar em contradição com a sua própria proposta) reduzir a estrutura de um animal, ou a sua fisiologia, ou o seu comportamento, à estrutura, à fisiologia ou ao comportamento de outro animal. Pretende, ao contrário, a partir de princípios gerais (seleção natural, seleção sexual e suas decorrências), expli- car como teriam sido geradas as diferenças essenciais e importantes entre os animais. Não há, nesta perspectiva, contradição ou impossibilidade epistemológica em reco- nhecer as características específicas do ser humano e em acreditar que se insiram num esquema mais amplo de semelhanças e de continuidade evolutiva. Trata-se de uma abordagem comparativa, que parte das semelhanças e diferenças entre o ser humano e outros animais e busca examinar, através do confronto, a viabili- dade de aplicação dos princípios de uma lógi,ca evolucio- nista. Entender o comportamento humano consiste em tomá-lo como um caso especial e em verificar a validade, neste caso, dos princípios de interpretação desenvolvidos para a vida animal. Esta aplicação não é pura transposição. Interpretar evolutivamente significa levar em conta a novi- dade das características específicas (no sentido de próprias da espécie) e aproveitá-las, num movimento de retorno, para enriquecer o esquema geral. A linguagem e a cultura, das quais muito nos orgulhamos porque nos diferenciam, surgem como novidades no cená- rio evolutivo e têm de ser tomadas como tais. O esforço comparativo pode nos levar a perceber que a novidade, que tanto impressiona, é uma novidade rei.ativa: estudos sobre a capacidade de primatas não-humanos adquirirem o uso de símbolos em suas interações com o ser humano, se não provam (e a intenção não é absolutamente provar) que esses animais possam falar como seres humanos, mostram que eles possuem aptidões que prenunciam a linguagem (Sava- ge-Rumbaugh, Shanker e Taylor, 1998). Do mesmo jeito, prenunciam a cultura humana as observações, feitas em , chimpanzés de diversas regiões da Africa, de diferenças comportamentais estáveis e provavelmente transmitidas de uma geração para outra (Perry e Manson, 2003). A abordagem comparativa focaliza ao mesmo tempo causa e função. A distinção entre categorias "causal" e "funcional", ou entre a "causação próxima'' e a "causação última'' (Alcock, 2001), esteve sempre implícita, desde Darwin, na abordagem evolucionista. Foi posta em relevo por Tinbergen (1963), na sua famosa formulação das quatro perguntas básicas para a pesquisa etológica. Sem retornar a uma definição ou discussão dessas categorias, vale a pena notar que é possível interessar-se, em certo estágio de investigação, mais pela estrutura e funciona- mento de um processo comportamental, isto é, pelas suas características descritivas e causais, do que pelas implica- ções evolucionistas. O fato de não se saber por que (em termos funcionais) o riso humano tem as características sonográficas que tem, não impede que haja interesse em descrever de forma minuciosa as suas emissões, verifican- do o quanto são estereotipadas (Provine e Yong, 1991) ou o quanto são variáveis, compostas de episódios vocalizados e não-vocalizados (Bachorowski, Smoski e Owren, 2001). Do mesmo jeito, pode-se investir tempo de pesquisa regis- trando os contextos em que pessoas riem (às vezes à toa, sem que haja nada de humorístico na situação, Provine, 1993), ou formular uma teoria sobre a determinação social do riso, mostrando que depende da motivação do emissor, de seu relacionamento com o ouvinte e que atua como modificador de afetos (Owren e Bachorowski, 2003), antes ou independentemente da formulação de hipóteses evolu- • • ClOnlStas. Também pode existir um interesse maior pelo teste de uma hipótese funcional do que pela análise do mecanismo causal subjacente. Não pode haver contradição entre as duas abordagens, mas elas podem proceder independen- temente, de acordo com os objetivos da investigação empreendida. A pesquisa psicológica comumente se centra sobre questões causais (por exemplo, contextos em que aparecem falsas memórias, efeito da disposição do mobi- liário de uma creche sobre o comportamento de crianças pequenas, capacidade que bebês têm de imitar expressões faciais etc.), enquanto muito da pesquisa em comporta- mento animal, dentro de uma perspectiva biológica, busca comprovar hipóteses funcionais (por exemplo, relativas às idéias de Trivers, 1972, sobre investimento parental). Isso significa que não é necessário que toda pesquisa psicológica passe a se pautar por hipóteses evolucionistas, embora, a longo prazo e dentro de uma visão unificada, os níveis causal e funcional devam ter uma conexão flexí- vel e de mútua influência. Hipóteses evolucionistas são formuladas a partir de estudos causais e precisam deles para alcançar sua formulação mais precisa e para encontrar a sua comprovação. A avaliação de hipóteses a respeito do apego, enquanto estratégia evolutiva, depende do conhe- cimento de como se desenvolve a relação mãe-criança, da descrição dos tipos de apego etc. Estudos sobre os proces- sos cognitivos, dentro de um quadro causal, produzem informações relevantes às formulações evolucionistas a respeito da modularidade dos mecanismos mentais. De maneira inversa, a abordagem evolucionista pode ser vista como um programa heurístico de pesquisa, capaz de gerar perguntas e hipóteses, e de motivar pesquisas com meto- dologia própria (Lakatos, 1970). Abre campos empíricos inatingidos até o momento e proporciona idéias para pesquisas causais, fechando o círculo. COEVOLUÇÃO / PSICOBIOLOGICPA: MOMENTO I Nunca foi tranqüila a história da inserção, ou tentativa de inserção, das idéias evolucionistas na psicologia. A revi- são desta história mostra que ela é pontuada por polêmi- cas científicas e até pessoais, muitas vezes duras, pouco construtivas. A polêmica indica que não é num clima de neutralidade científica que se desenvolvem e se articulam as teorias psicobiológicas, mas num contexto marcado pela referência às concepções correntes sobre o que é a socie- dade humana e sobre os perigos que poderiam advir de uma teoria científica que se transforme em justificativa para práticas injustas. Rimos bastante, hoje, das charges publicadas na época de Darwin a respeito da teoria evolu- cionista, muitas delas representando Darwin meiohomem, meio macaco. Mas elas eram sintomáticas de uma percep- ção de perigo ou de inconveniência, recuperavam mitos antigos, nem sempre apaziguadores, de participação do ser humano na natureza animal. Mas também se nota, revendo a história, o quanto as idéias evolucionistas estiveram presentes desde o início do desenvolvimento da psicologia, enquanto ciência. Wundt, um dos pioneiros da psicologia científica, escreveu, com um certo teor recapitulacionista: "Se tentarmos resolver, a partir da comparação dos atributos psíquicos, a questão geral da relação genética entre o homem e os animais, devemos admi- tir, dada a semelhança dos elementos psíquicos e de suas Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 13 formas mais simples e mais gerais de combinação, que é possível que a consciência humana tenha se desenvolvido a partir de uma forma inferior de consciência animal. Este pressuposto também é fortemente reforçado pelo fato de que se encontra no reino animal uma série completa de estágios diferentes de desenvolvimento psíquico e de que cada ser humano individual passa por um desenvolvimento análogo" (Wundt, 1897, pp. 280-281). Romanes, naturalista amigo de Darwin, e Lloyd Morgan, psicólogo inglês, professor de zoologia na Universidade de Bristol, foram darwinistas no campo ainda incipiente das interpretações evolucionistas para o comportamento. Romanes (1883) preocupou-se em demonstrar a flexibi- lidade do instinto, na andorinha que melhora a construção de seu ninho, nos cães de caça que adquirem hábitos muito diferentes dos hábitos naturais e em estabelecer paralelos com a consciência humana. Descreveu, por exemplo, como proposital e consciente o comportamento de um macaco que numa certa oportunidade desfez os nós de uma corda para balançar-se nela, alcançar a porta de sua gaiola e fugir. A postura anedótica e antropomórfica de Romanes foi criticada por Lloyd Morgan (1894), cujo cânone, ampla- mente citado, estabelecia limites para a interpretação de processos mentais em animais. Mas o propósito dos primei- ros darwinistas era mesmo o de demonstrar a continuida- de essencial entre a psicologia animal e a psicologia huma- na, partindo da consciência humana e indicando o seu surgimento evolutivo de formas mais simples, como o reflexo ou o instinto. A influência de Darwin também se manifestou sobre o jovem Freud. Ainda aluno de medicina, fora enviado à estação de biologia marinha de Trieste pelo seu orientador, o professor Klaus, um darwinista convicto. A missão de Freud era dissecar enguias, em busca de possíveis bases anatômicas para a distinção entre enguia-macho e enguia- fêmea. O artigo que resultou dessa pesquisa tem a minú- cia e o rigor que o tema exigia. Coloca-se a questão do quanto permaneceu deste ponto de partida biológico no desenvolvimento da psicanálise, e de quanto não seria propícia uma revisão reintegrativa da questão das relações entre psicanálise e pesquisa psicológica (Ades, 2001). A repressão, enquanto mecanismo (freudiano) através do qual idéias são mantidas fora da consciência, talvez pudes- se ser explicada através do funcionamento da memória operacional, de aumentos na atividade nervosa do córtex pré-frontal dorsolateral e da redução da atividade hipo- campal, mostrando a possibilidade de convergência (Xavier e Helene, 2005). 14 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia Em seu livro que nos cativa pela forma saborosa com a qual se refere aos fenômenos psicológicos ("estas coisas que chamamos sentimentos, desejos, cognições, raciocínios, decisões e outros que tais" ... ), William James (1890/1952) afirmava que "um certo tanto de psicologia-do-cérebro deve ser pressuposto ou incluído na psicologia'' (p. 3). Mas James ,., . . , nao apenas se preocupa com centros e vias neurais poss1- veis, ele cria outra convergência com a biologia, e usa, talvez pela primeira vez, a expressão "psicologia evolucionista'', que sugere serem os fenômenos psicológicos produtos de uma longa e lenta transformação da espécie. Observa primeiro que "com o surgimento da consciência, uma nova natureza parece introduzir-se, algo cuja potência não resul- ta dos meros átomos em expansão do caos original" (p. 95). Parece haver incomensurabilidade entre as leis da matéria e as do sentimento e da vida mental em geral. Mas James logo defende o princípio de continuidade: "deveríamos de modo sincero tentar de todas as possíveis maneiras conce- ber o surgimento da consciência de modo que não pareça equivalente à irrupção no universo de uma nova substância, até então não-existente" (p. 97). Nesta tentativa de tomar a mente, "como um objeto num mundo de outros objetos", James se preocupa, entre outras coisas, com instintos. Não é necessário dar-se ao esforço de comprovar a sua existência no mundo animal: são muitos os casos. Mas eles também existem no ser humano, e em variedade maior. Fiquei impressionado de encontrar, em James, evidentemente de forma mais espe- culativa, a idéia de que os instintos se transformam, pela sua própria execução, e que vão construindo, assim, expec- tativas aprendidas a respeito do contexto. "Cada ato instin- tivo, num animal dotado de memória, deixa de ser "cego" depois da primeira repetição" (p. 704). Assim, "já que o animal de razão mais rica pode ser também o animal mais rico em impulsos instintivos, ele (o ser humano) nunca poderia parecer-se com o autômato fatal que um animal meramente instintivo seria'' (p. 706). Também fiquei impressionado com a percepção, muito moderna, de como a evolução dos organismos implica também a evolução dos ambientes em que sobrevivem: "nossas faculdades internas estão adaptadas de antemão às características do mundo em que vivemos, adaptadas, eu entendo, de modo a conseguirmos nossa segurança e nossa prosperidade nele ... mente e mundo evoluíram juntos e, em conseqüência, demonstram um ajustamento mútuo" Qames, 1892, p. 3-4). Esta suposição de que atuam, no ser humano, impulsos ou motivações típicas que o definem como tal, análogos aos que existem em animais, e esta percepção de que estes impulsos ou motivações não são necessariamente cegos e estanques à experiência são um prenúncio das colocações etológicas e da moderna psicologia evolucionista. Encon- tram sua raiz em Darwin, que tinha previsto a importân- cia de sua teoria para a psicologia. No final de A Origem das Espécies (1872), ele escreve: "num futuro distante, eu vejo campos abertos para pesquisas muito mais importan- tes. A psicologia encontrará uma base segura no funda- mento ... da aquisição necessária de cada poder mental e de cada capacidade mental de forma gradativa. Muita luz será lançada sobre a origem do homem e sobre sua histó- ria'' (Darwin, 1859/1996, p. 394). Darwin não esperou esse futuro distante para realizar um exercício de aplicação do pensamento evolucionista ao domínio psicológico. Em vez de estudar o lado "mental" das emoções, como faria Wundt, dirigiu seu olhar natu- ralista, colecionador de detalhes, à expressão das emoções no homem e nos animais. O título do seu livro coloca bem a crença de que existe entre os (outros) animais e o ser humano uma continuidade suficiente para que compara- ções possam ser estabelecidas, reveladoras de semelhanças e de diferenças, indícios do partilhamento de uma história evolutiva (Darwin, 1872). O livro, que foi um dos primei- ros a usar fotografias com finalidade científica, foi um verdadeiro best-seller, na época de seu lançamento, em 1872. Mas não teve impacto sobre a pesquisa. Levou quase um século para que a sua proposta fosse recuperada por Paul Ekman, um psicólogo que dedicou uma carreira intei- ra ao estudo de como a face espelha ou esconde a raiva, a tristeza, o nojo, a alegria, a surpresa, o medo, o desprezo e outras emoções. Ekman promoveu a reedição de A Expressão das Emoções ... (Darwin, 1998) que ele conside- rava "um livro extraordinário, radical para o seu tempo emesmo hoje" (Ekman, 2003, p. 1)3• Darwin sugere, no primeiro capítulo de seu livro (cita- do aqui na versão traduzida, Darwin, 2000), as fontes nas quais foi buscar informação. Em sua maioria, ainda são válidas. Dentre elas, observar as crianças, pois elas exibem muitas emoções com "extraordinária intensidade" (p. 23), de uma maneira mais reveladora, às vezes, do que mais tarde na vida; usar fotos de expressões faciais para serem avaliadas, quanto à emoção transmitida ["muitas das 3Nota das organizadoras: no Brasil, o livro encontra-se traduzido para o português e publicado pela Companhia das Letras, em 2000, por reco- mendação do professor Renato Queiroz, do Departamento de Antropo- logia da USP. expressões foram imediatamente reconhecidas por quase todos, ainda que descritas não da mesma maneira'' (p. 23)]; buscar descrições de como manifestam emoção pessoas em outras culturas, de preferência não em contato com europeus ["sempre que determinadas mudanças nas feições e no corpo exprimirem as mesmas emoções nas diferentes raças humanas, poderemos inferir, com grande probabili- dade, que estas são expressões verdadeiras, ou seja, que são inatas ou instintivas. Expressões ou gestos adquiridos por convenção na infância provavelmente difeririam tanto quanto diferem as línguas" (p. 24)]; descrever as expressões que animais mais comuns exibem, "claro que não para decidir", escreve Darwin, "até onde no homem algumas expressões são características de determinados estados de espírito, mas para proporcionar a mais segura base para se generalizarem as causas, ou origens, dos vários movimen- tos de Expressão. Ao observar animais, estamos menos propensos a nos deixar influenciar pela nossa imaginação; e podemos estar seguros de que suas expressões não são convencionadas" (p. 27). Darwin acreditava que as emoções não fossem exclusivas dos seres humanos. "Até as abelhas podem ficar com raiva, dizia Darwin. Só nos últimos anos é que os estudiosos do comportamento animal pararam de se acanhar do perigo do antropomorfismo e aceitam as sábias observações de Darwin, segundo as quais, muitas . . ,... vezes, os contextos soc1a1s que geram emoçoes nos seres humanos também as produzem em animais" (Ekman, 2003, p. 2). Vê-se que Darwin (falando em raiva nas abelhas!) usava o método comparativo nas duas direções: do animal para o ser humano e deste para o animal, de uma forma que seria difícil taxar de reducionista. - / COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: MOMENT02 A tentação da abordagem biológica ao comportamento humano, depois destas tentativas isoladas, reaparece com Lorenz e Tinbergen. Sua intenção inicial era recuperar a noção de instinto um tanto maltratada pelo behavio- rismo que, em tudo ou quase tudo, queria ver aprendiza- gem colocando-a numa perspectiva evolutiva. Tanto Lorenz (1937), sob a influência do ornitólogo Heinroth, como Tinbergen (1958), andando pelas dunas holandesas para observar vespas caçadoras e gaivotas, estavam queren- do construir uma ciência do comportamento animal, mas ambos acabaram incluindo o ser humano em sua proposta. Duas são, a meu ver, as principais contribuições da etolo- Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 15 gia clássica: a primeira, mais essencial, a insistência de que se deve encontrar raízes instintivas (típicas da espécie, gené- ticas ou qualquer outro termo que se queira usar) no comportamento humano e, isso, usando os métodos apon- tados por Darwin: voltar aos primeiros desempenhos do bebê ou da criança pequena, na tentativa de surpreender o que não possa ser atribuído à experiência cultural; demonstrar a transculturalidade de certos comportamen- tos humanos. O livro Human Ethology, de Eibl-Eibesfeldt (1989), com suas cerca de 800 páginas, representa bem a riqueza de material empírico que as hipóteses etológicas são capazes de gerar. A segunda contribuição é metodológica. Os etólogos clássicos propunham que se observasse o comportamento humano como o naturalista observa o comportamento animal: pondo entre parênteses os pressupostos, não indo direto ao processo inferido, não buscando aplicar a todo custo um esquema preconcebido; em suma, deixando o sujeito observado livre para demonstrar o seu modo de interagir com o ambiente. Desmond Morris, que começou observador de aves, dizia que podia haver man watching ( ou, de forma menos sexista, person watchin~ do mesmo jeito que há bird watchinge se propôs a cultivar este olhar curioso em relação ao corriqueiro da vida das pessoas (Morris, 1977). Os estudos etológicos sobre o comportamento infantil têm por modelo as descrições minuciosas de BlurtonJones (1972/1981). Muitos estudos brasileiros podem ser citados como argumento da relevância de se olhar com atenção e de se categorizar o comportamento humano. Se hoje não se ressalta nem se discute a questão da observação, em psicologia, é que a técnica se integrou às outras, a ponto de não ser necessário remontar às suas origens. Do mesmo modo como noções psicanalíticas passaram a fazer parte do conhecimento comum, certos conceitos e formulações etológicos difundem-se através da mídia, atendendo à curiosidade a respeito das semelhanças ou dessemelhanças entre a mente humana e a animal. São versões modernas de atitudes e crenças muito antigas. Um certo modo de divulgar idéias etológicas veio com os textos de Lorenz sobre os males da humanidade e, principalmente, com os livros de Morris que usa um misto de conhecimentos cien- tíficos com observações em que o senso comum se reco- nhece. O Macaco Nu (1997/2003) teve enorme repercus- são; agora, temos A Mulher Nua (Morris, 2004/2005). Embora este tipo de divulgação tenha o mérito de colocar, para um público maior, a plausibilidade de uma perspec- tiva psicobiológica, pode criar a impressão de que as inter- 16 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia pretações biológicas são intuitivas ou simplificadoras em demasia. Incomodado com a definição dicotômica que Lorenz dava do comportamento instintivo, ligado como que inevi- tavelmente à genética e, através da genética, à ação do ambiente evolutivo, Lehrman (1953) teceu críticas duras ao inatismo e defendeu a interação genes-ambiente como feição constante da ontogênese. Os argumentos giravam em torno do comportamento animal, mas tinham óbvias implicações para o ser humano. Lorenz acabou conceden- do que não há traço comportamental em princípio livre de efeitos ontogenéticos, sem, contudo, abandonar a sua ênfase no caráter típico-da-espécie, dos padrões instintivos. A controvérsia Lorenz-Lehrman põe em destaque a neces- sidade antiga mas sempre atual de criar uma ferra- menta conceitua! para dar conta da constância e da varia- bilidade dos comportamentos adaptativos. - / COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: MOMENT03 Quando o mirmecólogo Edward Wilson saiu de seu campo de especialização e publicou Sociobiology: a new synthesis (1975), também gerou uma enorme resistência, e não apenas entre cientistas sociais (Rose, Kamin e Lewon- tin, 1985; Gould e Lewontin, 1979; ver também Yama- moto, Cap. 1 deste livro). Como o próprio Wilson nota, embora suas idéias sobre animais tivessem sido aceitas, de imediato, "a generalização ... das teorias da Sociobiologia aos seres humanos ... teve uma recepção totalmente dife- rente, pelo menos fora da biologia. Nos anos setenta, preva- lecia nas ciências sociais a idéia de que não existe uma base biológica para a natureza humana, que o comportamento humano tem uma origem quase integralmente sociocul- tural e, portanto, que os genes desempenham pouco ou nenhum papel além de auferir capacidade intelectual ou emocional. Eu defendi o contrário, que a biologia desem- penha um papel maior, em estreita sintonia com a cultu- ra, e que o comportamento humano não pode ser compre- endido sem a biologia'' (Wilson, 1995). A ambição de Wilson era aplicar à sociedade humana e aos animais os princípios de uma novacompreensão dos mecanismos de sobrevivência, baseada nos trabalhos teóri- cos de Hamilton sobre a genética do comportamento social (Hamilton, 1964a, 1964b) e de Williams (1966), de acor- do com os quais a seleção atua, não sobre características de uma espécie, mas sobre as características do indivíduo. Daí o surgimento da noção de "gene egoísta'', populariza- da por Dawkins (1999) e o abandono da concepção, acei- ta por etólogos clássicos, de atos selecionados "pelo bem da espécie". Os debates foram acalorados. Gould e Dawkins, ambos admiradores de Darwin, escreviam resenhas um dos livros do outro, trocando comentários ácidos. Do lado de Wilson, estavam, além de Dawkins, Stephen Pinker (autor de Como a Mente Funciona, 1997/2001 e, mais recentemente, de Tábula Rasa, 2002/2004), e Alcock, o autor de um exce- lente manual evolucionista sobre comportamento animal (Alcock, 2001) e de um livro que transmite, a partir de seu título ( The Triumph of Sociobiology, 2001), a exultação de quem acredita estar do lado certo. - / COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: MOMENT04 Um quarto momento na coevolução entre psicologia e biologia ocorre quando arrefece a polêmica sociobiológica e se estende até hoje. Marca-se pela proposta de constituição de uma psicologia evolucionista. O nome, como foi visto, remonta a William James. A diferença é que agora se colo- ca explicitamente como uma perspectiva autônoma para a análise do comportamento humano, constituída em torno de um conjunto de pressupostos, com presença institucio- nal enquanto campo de pesquisa e disciplina acadêmica. Não se trata de apenas efetuar empréstimos metodoló- gicos à biologia ou de interpretar processos psicológicos conhecidos de uma forma evolucionista, mas de assimilar o modo de pensar evolucionista, criando um programa de pesquisa nascido, por assim dizer, de dentro da psicologia. Um nome-resumo confere coerência e visibilidade social, tende a constituir-se em bandeira. Foi o caso com a socio- biologia, em que Wilson, em desafio à dicotomia tradi- cional (sabendo o quanto a sua "consiliência'' iria provocar de reação), juntou socio com bio, criando um nome-resu- mo rapidamente empregado em cursos, encontros cientí- ficos e no título de revistas. Também é o caso da antropo- logia evolucionista e, de uma forma mais espetacular, da ecologia comportamental, a sucessora imediata da sociobio- logia. Na criação desses nomes, observa-se uma caracte- rística comum: a junção de campos epistemológicos diver- sos, como se de linhas tradicionais, postas em convergên- cia, pudessem resultar princípios mais abrangentes e , produtivos. E evidente que o nome não garante, por si, a coerência e a validade de um programa científico. A psicologia evolucionista é identificada a partir de seus primeiros protagonistas, entre os quais John Tooby e Leda Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Barba- ra (Barkow, Cosmides e Tooby, 1992; Cosmides e Tooby, 1989; 1999); Martin Daly e Marga Wilson, da MacMas- ter University, do Canadá (Daly e Wilson, 1996, 1999), e David Buss, da Universidade do Texas, em Austin (Buss, 1990, 2005). A psicologia evolucionista está em fase de expansão. "O campo da psicologia evolucionista emergiu dramaticamen- te nos últimos 15 anos como o indica o crescimento expo- nencial no número de artigos teóricos e empíricos na área'', escrevem Durrant e Ellis (2003, p. 1), apoiando-se em esta- tísticas: de quatro artigos, indicados por uma busca pelos índices da Psychlnfo, entre 198 5 e 1988, passou-se para 231, entre 1997 e 2000. Creio que deva ser ainda maior a conta- gem, em 2006. A psicologia evolucionista tem sua socieda- de (Human Behavior and Evolution Society), seus manuais; suas reuniões anuais; as pesquisas dentro de seu âmbito são veiculadas em várias revistas especializadas. No Brasil, uma iniciativa marcante foi a reunião durante o congresso da ANPEPP, emAracruz, Espírito Santo, em 2004 do grupo de trabalho "Psicologia Evolucionista''. A Psicologia Evolu- cionista marca-se pelo senso de renovação e pela idéia de que será possível transcender a crônica divisão epistemoló- gica da psicologia através da perspectiva da evolução. Eviden- • • A • temente, tanto entusiasmo gera res1stenc1as. A Psicologia Evolucionista rejeita o que Cosmides e Tooby denominam "modelo padrão das ciências sociais", exemplificado pela posição da co-participante, antropó- loga, no simpósio sobre hereditariedade e ambiente ao qual me referi no começo deste ensaio. Retoma por conta própria a interpretação do comportamento humano como pré-selecionado e adaptativo, também central às propostas da etologia clássica e da sociobiologia. "Sofremos todos de cegueira para os instintos", escrevem Cosmides e Tooby (1999, p. 2). " ... uma abordagem evolucionista ... permi- te reconhecer que competências naturais existem, indica que a mente é uma coleção heterogênea destas competên- cias e, o que é o mais importante, fornece teorias concre- tas acerca de suas estruturas" (grifo meu). As competências naturais são adaptações produzidas pela seleção natural e pela seleção sexual em mecanismos psico- lógi,cos que não representam uma pura manifestação gené- tica, mas decorrem de uma interação genes/fatores ambien- tais que produz toda uma gama de desempenhos compor- tamentais e cognitivos. De acordo com Buss (1999), os mecanismos psicológicos são estruturas que se desenvolve- Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 17 ram, ao longo da evolução, por resolver problemas especí- ficos de sobrevivência e de reprodução. São seletivos (levam em conta apenas determinados aspectos do ambiente), funcionam de acordo com regras e procedimentos especí- ficos e geram informação para outros mecanismos ou se traduzem diretamente em comportamento. Os psicólogos evolucionistas se incomodam com a idéia de que existem mecanismos de efeitos generalizados, pron- tos para lidar com uma gama extensa de desafios ambien- tais. Preferem pensar que a mente é composta por uma coleção de aptidões restritas, de uma certa quantidade de mecanismos psicológicos, cada qual selecionado de acordo com uma finalidade particular. A busca de alimento, a seleção de um parceiro reprodutivo, a evitação do incesto, a aquisição de uma posição na hierarquia de dominância , são problemas que requerem soluções específicas. E mais plausível imaginar que tenham acabado por ser atendidos por mecanismos modulares. Não há soluções gerais porque não há problemas gerais (ver também Seidl de Moura e Oliva e Ottoni, Caps. 5 e 6 deste livro). Trata-se de uma questão de engenharia e de otimização de desempenho. Imagine-se uma fábrica com uma única máquina polivalente versus uma fábrica com máquinas feitas sob medida para cada tarefa. Acreditam os psicólogos evolu- cionistas que a segunda seria certamente mais eficiente e que, na contrapartida comportamental, o mesmo mecanis- mo cognitivo raramente seria capaz de resolver problemas adaptativos diferentes. Isso representa um retorno à intuição jamesiana de que o ser humano, ao invés de ser desprovido de instintos, como afirma o senso comum, os tem em quan- tidade. Dentre os instintos que compõem a lista de James: a pugnacidade, a emulação, o medo, a apropriação ou "aqui- sitividade", a construtividade, a brincadeira, a curiosidade, a secretividade, a vergonha, o amor. James afirma que o ciúme é "inquestionavelmente instintivo" (p. 735). Veremos mais adiante algo a respeito. Mas os mecanismos psicológicos não são todos facil- mente especificáveis, nem pode ser sempre determinada sua localização no sistema nervoso, e nem podem ser total- mente independentes uns dos outros: a crença na modu- laridade não vai tão longe. Alguns psicólogos evolucionis- tas concedem que "qualquer que seja a taxonomia de meca- nismos especializados que seja proposta para dar conta da mente humana, deve incluir também alguns processos não-específicos. Os mecanismos envolvidosno condicio- namento clássico e operante podem ser exemplos bons destes processos não-específicos" (Durrant e Ellis, 2003, p. 1 O). Falta uma discussão dos critérios para distinguir o 18 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia campo de atuação de processos de domínio específico e de processos de domínio geral e das pressões evolutivas para o surgimento de uns e de outros. A idéia da especi- ficidade gera hipóteses de trás-para-diante: a partir da função que se supõe exercida por um determinado meca- nismo, pode-se imaginar quais devam ser as suas caracte- rísticas estruturais (diferentes das características de meca- nismos que servem outras funções). Os mecanismos psicológicos são remanescentes de uma adaptação adquirida em épocas ancestrais. Para a Psicologia Evolucionista, é essencial a distinção entre o ambiente em que a seleção atuou sobre uma determinada população de organismos, moldando as suas características em função das demandas ambientais, e o ambiente em que estas adap- tações são postas em funcionamento, às vezes em condições que as tornam contraproducentes. O ambiente da seleção é o ambiente de adaptação evolutiva (ver também lzar, Cap. 3 deste livro). Supõe-se então que muitos dos traços psico- lógicos que nos caracterizam tenham sido formados neste longo e nebuloso passado, a respeito do qual temos poucos indícios inequívocos. A civilização moderna, que remonta à invenção da agricultura, há poucos milhares de anos atrás, não exerceu papel seletivo apreciável, e não há por que pensar que, hoje, dispomos de adaptações genéticas para ver programas de TY, para utilizar a Internet ou para diri- gir carros no terrível trânsito de São Paulo. De acordo com uma certa interpretação, estaríamos controlados por prin- cípios motivacionais e de cognição válidos para ambientes que não são mais os nossos. A compreensão do comporta- mento humano dependeria então do confronto entre os contextos atual e primordial. "Obviamente", concedem Cosmides e Tooby, "somos capazes de resolver problemas que nunca se colocaram para caçador-coletor algum, pode- mos aprender matemática, a dirigir carros, a usar compu- tadores. Nossa habilidade para resolver problemas como estes é um efeito colateral ou uma conseqüência dos circui- tos que foram delineados para atender a problemas adap- tativos" (Cosmides e Tooby, 1999, p. 6). Estudo de Caso I: Reconciliação Usarei dois exemplos de aplicação de uma abordagem comparativa/evolucionista a campos psicológicos. A idéia é mostrar que esta abordagem funciona como um progra- ma de pesquisa, gerador de perguntas e de metodologias, cuja riqueza depende do quanto de novidade empírica fornece e do quanto promete em termos de reorganização , . teor1ca. O primeiro exemplo, sobre a reconciliação, visa ilustrar o valor heurístico da transposição de perguntas entre etolo- gia-animal e etologia-humana, a partir de comportamen- tos ou processos que apresentam semelhanças descritivas , ou causais. E uma estratégia que, do pressuposto da seme- lhança, parte para a descoberta de elementos que possam , confirmá-la. E biunívoca, pode partir do homem como modelo para o animal (no bom sentido de antropomor- fismo, defendido por de Waal, 1997) ou do animal para o homem. O objetivo, vale a pena voltar a dizer, não é nem redução, nem identificação total. Se chimpanzés se tocam e se beijam depois de um episó- dio de briga (ao invés de se evitarem) e se, com isso, pare- cem voltar a ter uma interação pacífica, não seria de se esperar que crianças (ou adultos) evidenciassem uma tendência semelhante? A idéia nasceu da leitura de um artigo que Franz de Waal publicou em 1979, com van Roosmalen (de Waal e van Roosmalen, 1979), sobre a reconciliação em chimpanzés. Sempre que dois chimpan- zés, da colônia do zoológico de Arnhem, na Holanda, entrassem em conflito, o comportamento de um deles era observado por mais 45 minutos. Embora, de imediato, os oponentes se afastassem um do outro, era notável que fossem vistos emitindo, depois, comportamentos amigá- veis, como abraçar-se, esticar a mão, emitir uma vocaliza- ção de submissão e até beijar-se. No período após o conflito, os atos afiliativos eram mais freqüentes do que num período correspondente sem conflito, o que sugere que a aproxi- mação fosse produto do próprio conflito, e talvez produto de uma motivação para recuperar uma interação pacífica. Daí o termo "reconciliação". Quando Paula Maria de Almeida Fríoli me procurou para escolhermos um tema de pesquisa para o doutorado, pensamos em buscar estes correlatos no comportamento de crianças (Fríoli, 1997). As referências acerca da agres- sividade infantil eram fartas, mas havia muito pouco publi- cado a respeito de uma possível pacificação pós-conflito (Sackin e Thelen, 1984). No pátio de uma escola de São Paulo, Paula observou 256 crianças, de 4 a 5 anos (estágio I), de 5 a 6 anos ( estágio II) e de 7 a 8 anos ( estágio III). O comportamento das crianças, registrado em videoteipe, foi classificado em categorias amplas, sendo também regis- tradas as interferências de terceiros, as relações de amizade entre as crianças etc. Depois de uma fase de registros focais, procedeu-se à observação dos episódios de conflito, sempre que surgissem. O registro, iniciado com as primeiras provo- cações, ia até o final da briga e abrangia um período suple- mentar de cinco minutos. Os meninos se mostraram mais agressivos, fisicamente, do que as meninas; estas, mais afiliativas e reconciliatórias. No estágio I, a disputa pela posse de objetos ou pela ocupação de espaço eram os desen- cadeadores básicos e a agressão se manifestava por movi- mentos de bater, de perseguir, de puxar, com apelos de mediação à professora. Nos estágios seguintes, aumenta- vam em freqüência formas simbólicas, ritualizadas de agre- dir, como as ameaças e agressões verbais. Isso estava de acordo com as expectativas. A existência de comportamen- tos reconciliatórios, nos três níveis de idade, foi uma novi- dade e uma confirmação. A reconciliação se manifestava, de início, através de atos como beijar, abraçar, ficar de mãos dadas, colocar o braço no ombro do outro etc. em grupos geralmente de mesmo sexo. A reaproximação era, muitas vezes, espontânea e sem marcação explícita entre "estar de mal" e "estar de bem": uma simples continuação da brincadeira interrompida. No segundo estágio, os comportamentos de "ficar de mal" e "fazer as pazes" apareciam de maneira mais nítida, dota- dos de uma característica de desafio e eram usados mesmo que não houvesse um motivo aparente para a briga, como se as crianças estivessem testando sua capacidade de romper ou instaurar relacionamentos. O terceiro estágio era marca- do pelo aparecimento pleno das formas ritualizadas de rompimento e de reatamento. Não era apenas o objeto ou o status em disputa que mais importavam, mas a definição do relacionamento. "Mãos no rosto" era um ficar de mal ritualizado, exibido principalmente por meninas. Duran- te um episódio de conflito ou no final deste, uma das crianças levava o dedo indicador de uma bochecha à outra, queixo para cima em atitude de desafio ou de superiori- dade, muitas vezes dizendo: "Belém, Belém, nunca mais fico de bem, nem agora, nem no ano que vem." Reconci- liações verbais pedidos de desculpas, oferecimentos simbólicos ("amanhã eu te empresto o meu caminhão, tá?") ou real ("toma a minha banheirà') ocorriam com maior freqüência. Os comportamentos aftliativos eram mais freqüentes logo depois da briga do que num período pacífico do dia seguinte, o que garante que tinham uma fonte motivacional própria. Tem algo a ver a reconciliação animal com a reconci- liação humana? Não estaríamos, ao usar o mesmo nome, fazendo de uma semelhança superficial a base para uma comparação em profundidade? E o significado que o rela- cionamento tem para uma criança, as fantasias que ela cria em torno dele, as regras, os princípios morais que vigoramno seu grupo? Questionamentos como estes se baseiam num modelo de identidade absoluta, traem a dimensão Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 19 comparativa. Não se trata de negar a dimensão própria dos relacionamentos de crianças, mesmo pequenas. Nossa pesquisa mostra como, ao longo dos níveis de idade, mudam os modos através dos quais é restabelecido o equi- líbrio depois do conflito. A natureza dos conflitos se trans- forma quando entram em jogo regras de comportamento verbalizáveis (como "eu cheguei primeiro" ou "foi a tia que me deu" ou "você já tem um brinquedo"). O aparecimen- to de formas ritualizadas "Belém, Belém ... " indica que "estar de bem'' ou "estar de mal" deixaram sua fluidez inicial e se colocam como estruturas afetivas próprias, dentro da representação que a criança tem de seu grupo social. Por isso, são usadas de forma quase lúdica, como se as crianças brincassem de experimentar com as formas de relacionamento. A perspectiva evolucionista tem a vantagem de inserir os processos estudados no ser huma- no num quadro comparativo amplo em que as diferenças importam, mas têm significado em função das semelhan- ças que lhes dão origem. Estudo de Caso 2: Ciúme O exemplo a seguir sobre o ciúme mostra que é possí- vel deduzir, de um conjunto de princípios da teoria evolu- cionista, conseqüências capazes de ser verificadas no comportamento humano. O exemplo difere do exemplo sobre a reconciliação, em que não havia definição prévia de hipótese funcional e em que a passagem de uma pers- pectiva para a outra se dava a partir da analogia entre comportamentos concretos. No exemplo do ciúme, as semelhanças de cenário ou de desempenho não importam tanto, mas sim a idéia de que o ser humano se submete aos princípios evolucionistas gerais que gerenciam o comportamento de qualquer espécie. A lógica evolucionista entende que cada indivíduo deva atuar de maneira a favorecer a propagação de seus genes. Não há intencionalidade consciente nisso, apenas a expres- são da maneira como os organismos foram selecionados, ao longo de incontáveis gerações. No cálculo de custos e benefícios que rege a função reprodutiva, o investimento diferencial do macho e da fêmea na produção da prole é importante, predeterminando a maneira como macho e , fêmea se comportarão um em relação ao outro. E uma história complexa, na qual as idéias de Hamilton (1964a, b), Trivers (1972) e de outros biólogos tiveram um papel importante. De acordo com a teoria, os machos têm normalmente por objetivo biológico reproduzir-se com o maior número possível de fêmeas, competindo e/ou se 20 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia exibindo; as fêmeas têm normalmente o objetivo biológico de escolher o melhor macho possível para a sua prole (ver de Sousa e Mota, Cap. 12 deste livro). Em caso de compe- tição, as fêmeas se importarão com a qualidade do macho e com os recursos que poderá proporcionar a elas e à prole, os machos com a fertilidade da fêmea e em afastar concor- rentes. Machos, em certas espécies, montarão guarda para impedir que a fêmea com a qual irão copular ou com a qual já tenham copulado possa acasalar-se com outros. Em que medida poder-se-ia dizer que existem compor- tamentos humanos análogos às táticas de guarda de parcei- ros dos animais? No levantamento de Buss (1988), efetu- ado com estudantes universitários, constam categorias como vigiar o parceiro, monopolizar o seu tempo, depre- ciar possíveis rivais, usar de manipulação emocional e até ameaçar ou punir a infidelidade, comportamentos de "guarda'' que não é difícil atribuir ao ciúme. Indo além da analogia, cabe verificar se a teoria evolucionista propõe hipóteses testáveis a respeito do ciúme humano. Uma hipó- tese parte da idéia de que há uma diferença no modo de pais e mães investirem na criação dos filhos. Ao homem, só valeria a pena fornecer este cuidado se tivesse certeza de paternidade. Portanto, o ciúme masculino reflete essa preocupação. Sua motivação seria impedir a infidelidade sexual da parceira e seu sofrimento, a suspeita a este respei- to. À mulher, interessaria manter junto a si um parceiro capaz de prover recursos para o desenvolvimento dos filhos e haveria preocupação com a perda ou a diminuição deste apoio, que poderia ocorrer como resultado de uma nova ligação afetiva. Haveria, então, uma variedade masculina do ciúme provocada pelas iniciativas sexuais ( concretas ou imaginadas) da mulher; e uma variedade feminina desper- tada por uma traição afetiva ( concreta ou imaginada). Inspirei-me, numa pesquisa sobre as diferenças de sexo no ciúme (Ades, 2003), no trabalho de Geary, Rumsey, Bow-Thomas e Hoard (1995), em que um questionário de ciúme era aplicado a estudantes universitários norte- americanos e chineses, visando avaliar o sofrimento que lhes causaria uma infidelidade ( 1) emocional ("seu parcei- ro está tendo um relacionamento emocional profundo com outra pessoa'') ou (2) sexual ("seu parceiro está tendo relações sexuais intensas com outra pessoa''). Havia dife- renças culturais marcadas quanto à experiência amorosa: a maioria dos chineses não tinha tido relacionamentos prévios e, pouquíssimos, relacionamentos envolvendo sexo; a maioria dos norte-americanos mantinha relacio- namentos envolvendo sexo. Os resultados confirmaram a hipótese evolucionista: um número significativamente maior de homens (do que de mulheres), tanto norte-ameri- canos como chineses, relatou mais sofrimento ao imaginar a infidelidade sexual do que ao imaginar uma infidelidade afetiva. O contexto cultural teve, contudo, influência: a proporção de indivíduos relatando maior sofrimento pela infidelidade sexual era maior entre os norte-americanos do que entre os chineses. Com um grupo de alunos4, repliquei a pesquisa de Geary et al. (1995). Nossa amostra, composta de estudan- tes universitários de vários cursos da Universidade de São Paulo, assemelhava-se mais à amostra norte-americana em matéria de experiência de namoro do que da amostra chinesa. Os dados também deram apoio à hipótese evolu- cionista. Uma porcentagem maior de homens brasileiros (50,90/o) do que de mulheres (13,50/o) disse sentir-se mais afetada quando imaginava o parceiro tendo relações sexuais ardentes com alguém do que quando o imaginava apaixo- nado. A porcentagem se aproximava mais da encontrada por Geary et al. (1995) em norte-americanos do que em chineses, o que reforça a interpretação de que um maior sentimento de ciúme sexual surge em contextos de maior liberdade sexual (e, portanto, mais ameaçadores). Um resultado surpreendente da pesquisa foi a semelhan- ça entre homens e mulheres quanto às emoções desperta- das pela infidelidade do parceiro. No caso da traição afeti- va, tanto homens como mulheres diziam-se mais magoa- dos e ciumentos do que enraivecidos; quando se tratava de traição sexual, a raiva era fortemente manifestada, em homens e mulheres, às vezes ultrapassando o nível do ciúme e da mágoa. Concluímos que "embora confirman- do a natureza transcultural das diferenças homem/ mulher quanto ao tipo de ciúme (sexual vs. emocional), nossos resultados mostram que estas diferenças não se encontram em todas as dimensões do comportamento ciumento e parecem ser flexíveis e sujeitas a influências contextuais" (Ades, 2003, p. 1186). PRODUTIVIDADE E PERSPECTIVAS DO PROGRAMA EVOLUCIONISTA O programa evolucionista aplicado à pesquisa psicoló- gica tem tido grande produtividade, tem levado a insights 4Ana Paula Ferreira Moreira, Ana Paula Sammogini, Ana Luísa Tisselli, Cláudia Fernanda Rodriguez, Janaína Silva, Kátia Ackermann e Luciana Palma. nas áreas de agressão, da violência doméstica, do apego e das relações pais-filhos, da formação de amizades e alianças, da psicopatologia e em outros temas. Os dados que têm trazido não são conhecimentos de senso comum reelabora- dos. Não é trivial a pergunta "Por que é que mulheres são mais propensas a ter relaçõesextraconjugais quando estão ovulando?" e nem é fácil enquadrar a resposta, seja no senso comum, seja numa das nossas teorias psicológicas. Uma primeira contribuição do programa evolucionista consiste numa ênfase metodológica na observação do comportamento em situações do dia-a-dia (naturais?), ilus- trada pelo exemplo do comportamento de reconciliação. Mas nem tudo (na verdade, pouco) pode ser diretamente observado. Entrevistas, questionários, avaliações, escalas são instrumentos necessários do psicólogo evolucionista para abordar atitudes e afeto (como no caso do ciúme). Uma segunda contribuição do programa evolucionista, mais importante, tem a ver com a construção de um quadro teórico integrador de observações e gerador de hipóteses. Uma teoria evolucionista do comportamento humano tem uma certa vantagem em termos de abrangência, uma vez que coloca, na mesma perspectiva teórica, animais e seres humanos. Princípios do comportamento não são fechados no círculo da espécie, mas referem-se a estruturas em trans- formação que mantêm, entre si, uma semelhança básica, dife- renciando-se, contudo, de acordo com o grupo ou espécie em que se concretizam. "Ao invés de nos apegarmos à idéia do quanto somos diferentes de qualquer outro animal", afrr- ma de Waal (em entrevista a M. F. Small, 2001), "a identi- dade humana deveria ser construída sobre a idéia de que somos animais que levaram adiante, num grau significativo, certas capacidades. Nós e os outros animais somos iguais e Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 21 diferentes e a igualdade é o único quadro dentro do qual se pode tornar concreta a diferençà'. A abrangência teórica da perspectiva evolucionista cons- trói-se de forma bidirecional, entre o conhecimento dos animais e o conhecimento do ser humano. Uma tarefa difícil, quando são detectadas semelhanças, é saber se expressam homologia (mecanismos provenientes de uma ascendência evolutiva comum) ou homopl.asia (mecanismos convergentes, sem ancestralidade comum). O mecanismo de reconheci- mento da face, por exemplo, apresenta várias características comuns ao ser humano e a primatas não-humanos que apóiam a hipótese da homologia (Hauser e Spelke, 2004). É a reconciliação entendida como a presença de uma moti- vação para a retomada de contato e interação após uma briga entre crianças uma característica homóloga ou homoplás- tica, em relação à reconciliação de primatas não-humanos em circunstâncias semelhantes? Mesmo que não seja prudente responder que sim, a comparação pode ser frutífera. Os dados com animais indicam claramente existir conti- nuidade evolutiva em muitos processos sociais e inclusive na possibilidade de transmissão de tradições comporta- mentais de uma geração para outra. Fornecem ainda uma base forte para a idéia de que o ser humano é biologica- mente cultural (de acordo com a bela expressão de meus colegas Vera Sílvia Bussab e Fernando Leite Ribeiro, 1998). No entanto, a compreensão do comportamento humano permanece necessariamente aberta aos aportes de um olhar psicológico, centrado na experiência individual, e ao olhar antropológico dirigido aos aspectos coletivos da experiên- cia. Não reduzir, mas ver melhor as características distin- tivas e a complexidade do fenômeno humano na conti- nuidade/ descontinuidade com outras espécies e dentro do quadro evolutivo do qual ele não pode escapar. 26-1600 27-1600 28-1600 29-1600 30-1600 31-1600 32-1600 33-1600 34-1600 35-1600 36-1600 37-1600
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