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1 ( 
1 ( 
UM ÜLHAR EVOLUCIONISTA 
PARA A PSICOLOGIA1 
César Ades 
Desde que se constituiu, a psicologia procurou estabe-
lecer a independência de seu enfoque e de seu método em 
relação à biologia. Mas nunca deixou de pagar um tribu-
to ao biológico, nem que fosse como o reconhecimento 
do substrato a partir do qual outra forma de organização 
(da mente, do comportamento) se origina. Na origem do 
pensamento psicológico, está uma posição cartesiana, rara-
mente explicitada, mas que incomoda (como Descartes 
esteve incomodado para explicar a origem, ao mesmo 
tempo corporal e mental, das paixões humanas) por não 
indicar uma fronteira nítida entre o psicológico e o bioló-
gico e por não proporcionar uma epistemologia capaz de 
dar conta, independentemente, do psicológico. O deter-
minante biológico não é negado, mas colocado fora do 
âmbito das explicações relevantes acerca da mente ou do 
comportamento. 
Sobre esta ambigüidade, desenvolvem-se dicotomias 
que se auto-reforçam, como a dicotomia entre natureza e 
criação (nature and nurture), entre biologia e cultura, entre 
inato e aprendido, e se criam distâncias ainda maiores do 
que as que normalmente existem entre as ciências, os 
departamentos e os cientistas. O conhecimento fica encap-
sulado em áreas não apenas especializadas, mas que se 
colocam como incomensuráveis. Acaba-se tendo a impres-
1Versão de uma palestra apresentada no N Congresso Norte-Nordeste de 
Psicologia, Salvador, Bahia (2005) e do texto correspondente à palestra 
publicado em Psicologia: novas direções no diálogo com outros campos 
do saber (Nádia Maria Dourado Rocha e Antonio Virgilio Bittencourt 
Bastos, Coordenadores), Casa do Psicólogo, 2007. 
são de que o objeto de estudo, o ser humano, perde sua 
unicidade e se fragmenta de acordo com as perspectivas e 
• os recortes impostos. 
Não faz tanto tempo, fui convidado pelo centro acadê-
mico de um curso de psicologia para participar de uma 
mesa-redonda sobre "Hereditariedade e Ambiente" 
(composta de apenas dois participantes, uma antropóloga 
e eu mesmo, talvez no propósito de nos ver defender, ela 
o aporte ambiental e cultural, eu, a base instintiva e bioló-
gica, o que, de fato, fizemos). O tema é bastante polêmi-
co, mais ainda numa época como a nossa, marcada por 
um progresso enorme no conhecimento dos processos 
genéticos e por tentativas audazes de aplicação desse conhe-
cimento, inclusive ao comportamento. Em Tdbula Rasa 
(2004), Stephen Pinker gasta quase 700 páginas para reba-
ter, com paixão, a idéia de que a mente da criança é uma 
folha em branco, na qual a sociedade e a cultura inscrevem 
tudo. 
No debate, a fala da antropóloga foi principalmente 
dedicada ao estabelecimento do cultural e do psicológico 
como essencialmente independentes do biológico. A natu-
reza simbólica do ser humano, o arbitrário e o cumulati-
vo do fato cultural, as transformações da história foram 
contrastados com a determinação mecânica do processo 
genético, incapaz de dar conta do significado. Fez-se 
também uma crítica às interpretações funcionalistas/ 
evolucionistas do comportamento humano, perigosas 
pelas implicações em termos de darwinismo social. Justi-
ficariam tudo o que fosse considerado geneticamente 
adaptativo, inclusive o estupro. Estava clara, nas coloca-
ções, a permanência de uma postura dicotômica, com 
raízes na distinção de Dil they ( 18 83) entre ciências natu-
rais (Naturwissenchaften) e ciências do espírito ( Geiteswis-
senchaften). Como integrar a intenção de compreender 
com a de medir e interpretar de fora, por assim dizer, o 
objeto estudado? Interpretar dados (o problema é definir 
o que são dados) psicológicos em termos biológicos seria 
perder um conteúdo essencial, alienando o conhecimen-
to do ser humano da rede de significados que o constitui 
e que passa pela linguagem. Apesar das divergências, o 
debate com a antropóloga foi cordial. Mas não é na mesa 
de discussão que poderá progredir muito o esforço de 
integração entre as perspectivas da biologia e das ciências 
humanas. Não se trata de apenas efetuar uma tradução 
de termos ou um cut-and-paste de idéias. Mais estimu-
lante e produtivo é o contato que se dá em regiões de 
fronteira, em torno de assuntos suficientemente próximos 
para que a vantagem de olhar de dois ou mais pontos de 
vista se torne explícita. A aproximação se dá, então, atra-
vés do interesse convergente dos pesquisadores e de uma 
transferência natural de modos de pensar e de métodos 
de um lado a outro. 
Piaget disse uma vez que uma regra de criatividade era 
olhar ao lado do assunto pesquisado (Lino de Macedo, 
comunicação pessoal), aventurar-se fora dos esquemas, 
procurando outras formas de ver os fatos, à maneira do 
antropólogo que aborda uma sociedade que ele pretende 
compreender com curiosidade e desejo de assimilação. 
Ainda usando o pensamento de Piaget, eu diria que é 
necessário descentrar a sua perspectiva, ou seja, ver o mesmo 
objeto de uma outra perspectiva, sem abandonar a base 
, 
de especialização. E no surpreender-se diante do objeto 
(porque visto dentro de outro referencial) que está uma 
das raízes da integração entre perspectivas: prender-se 
menos aos modos habituais de conhecer e às posições teóri-
cas e mais à necessidade de conhecer o objeto da forma 
mais completa e interativa possível. 
A hierarquia que o senso comum estabelece entre as 
ciências faz muitos temerem que, num empreendimento 
conjunto, os enunciados da psicologia acabem se reduzin-
do aos da biologia. Não há razão, contudo, para pensar 
que a migração de conceitos seja unidirecional, não há 
perspectivas necessariamente mais básicas ou mais ricas na 
produção de perguntas. Vale uma epistemologia cruzada, 
que se constitui na pesquisa efetuada com conceitos e 
modelos transpostos de uma área para outra. Em vez de 
pensar como reducionista o desenvolvimento do contato 
entre psicologia e biologia prefiro entendê-lo como 
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 1 1 
produto de uma coevolução que instaura interdependên-
cias2. 
Neste texto, abordo a perspectiva evolucionista que 
interpreta o comportamento humano como adaptação às 
condições do ambiente físico e social em que o ser huma-
no evoluiu enquanto espécie. Do mesmo jeito como se 
supõe ser adaptativo, porque pode afugentar predadores, 
o movimento deimático de um louva-a-deus que se ergue 
e estica as asas coloridas, ou a resposta do pavão de abrir 
em leque a sua cauda, porque atrai as fêmeas, também 
podem ser interpretados os comportamentos do ser huma-
no como produtos de uma evolução que os tornou funcio-
nais, isto é, que lhes atribuiu uma vantagem em termos 
de sobrevivência e reprodução. Transpõe-se uma maneira 
de conceituar o comportamento animal para o compor-
tamento humano. 
Pode-se argüir que é inevitável esta transposição, uma 
vez que, sendo ele próprio um animal, o ser humano tem 
seu comportamento regido pelos mesmos princípios 
(darwinistas) que regem o comportamento animal. Mas 
este argumento, simples e lógico como é, não convence 
necessariamente: embora sendo um animal, o ser humano 
poderia seguir princípios comportamentais diferentes -
decorrentes de sua natureza diferente. simbólica, cultural, 
histórica às vezes entendidos como princípios emer-
gentes, libertos das contingências originais (Sawyer, 
2002). 
A questão que se coloca, então, é saber se as diferenças 
do ser humano com os outros animais implicam necessa-
riamente, e desde o ponto de partida, a impossibilidade 
de aplicar-se o modelo evolucionista ao comportamento 
humano. As diferenças que marcam, obviamente, o 
comportamento humano poderiam ser análogas às que 
diferenciam um tipo de animal de outro, isto é, poderiam 
ser assimiláveis a uma lógica evolutiva geral. Ou poderiam, 
ao contrário, determinar um campo empírico sujeito a 
princípios próprios, não-evolutivos. 
2Sociedades científicas, como a Sociedade Latino-Americana de Psicobio-
logia, que se transformou em Sociedade Brasileira de Psicobiologia, que,por sua vez, gerou a Sociedade Brasileira de Neurociência e Comporta-
mento, foram bases importantes para uma interação psicobiológica em 
nosso meio. A Sociedade Brasileira de Ecologia (SBEc), de cujos encontros 
anuais participam psicólogos e especialistas em diversas áreas biológicas e 
estudantes de diversos cursos de graduação, tem sido ponto de convergência 
e de progresso na área. A Revista de Ecologia, uma publicação da SBEt e do 
Instituto de Psicologia da USP, tem abordado questões de fronteira com o 
comportamento humano. Disciplinas como Ecologia e Comportamento 
Animal, oferecidas no Instituto de Psicologia da USP, que reúnem alunos 
de biologia e de psicologia, além de outros, demonstram na prática das 
discussões de aula a viabilidade da integração de perspectivas. 
12 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 
Embora não existam critérios rigorosos para decidir 
entre a comensurabilidade e a incomensurabilidade, pare-
ce-me apressada a proposição de que, se há diferenças, 
torna-se necessário aceitar uma ruptura epistemológica 
entre as áreas de pesquisa envolvidas. Se um peixe respira 
através de guelras, um modo muito diferente da respiração 
de organismos terrestres, isto não implica que devamos 
construir, para os peixes, uma biologia especial ( e que deva-
mos supor que eles não tenham sofrido uma história evolu-
tiva). O mesmo vale para o biossonar dos morcegos, os 
dentes "recicláveis" dos tubarões, as asas das aves, o órgão 
detector de temperatura das cobras e um número imenso 
de diferenças entre animais. A abordagem evolucionista 
não pretende (nem poderia, sem entrar em contradição 
com a sua própria proposta) reduzir a estrutura de um 
animal, ou a sua fisiologia, ou o seu comportamento, à 
estrutura, à fisiologia ou ao comportamento de outro 
animal. Pretende, ao contrário, a partir de princípios gerais 
(seleção natural, seleção sexual e suas decorrências), expli-
car como teriam sido geradas as diferenças essenciais e 
importantes entre os animais. Não há, nesta perspectiva, 
contradição ou impossibilidade epistemológica em reco-
nhecer as características específicas do ser humano e em 
acreditar que se insiram num esquema mais amplo de 
semelhanças e de continuidade evolutiva. 
Trata-se de uma abordagem comparativa, que parte das 
semelhanças e diferenças entre o ser humano e outros 
animais e busca examinar, através do confronto, a viabili-
dade de aplicação dos princípios de uma lógi,ca evolucio-
nista. Entender o comportamento humano consiste em 
tomá-lo como um caso especial e em verificar a validade, 
neste caso, dos princípios de interpretação desenvolvidos 
para a vida animal. Esta aplicação não é pura transposição. 
Interpretar evolutivamente significa levar em conta a novi-
dade das características específicas (no sentido de próprias 
da espécie) e aproveitá-las, num movimento de retorno, 
para enriquecer o esquema geral. 
A linguagem e a cultura, das quais muito nos orgulhamos 
porque nos diferenciam, surgem como novidades no cená-
rio evolutivo e têm de ser tomadas como tais. O esforço 
comparativo pode nos levar a perceber que a novidade, que 
tanto impressiona, é uma novidade rei.ativa: estudos sobre 
a capacidade de primatas não-humanos adquirirem o uso 
de símbolos em suas interações com o ser humano, se não 
provam (e a intenção não é absolutamente provar) que esses 
animais possam falar como seres humanos, mostram que 
eles possuem aptidões que prenunciam a linguagem (Sava-
ge-Rumbaugh, Shanker e Taylor, 1998). Do mesmo jeito, 
prenunciam a cultura humana as observações, feitas em 
, 
chimpanzés de diversas regiões da Africa, de diferenças 
comportamentais estáveis e provavelmente transmitidas de 
uma geração para outra (Perry e Manson, 2003). 
A abordagem comparativa focaliza ao mesmo tempo 
causa e função. A distinção entre categorias "causal" e 
"funcional", ou entre a "causação próxima'' e a "causação 
última'' (Alcock, 2001), esteve sempre implícita, desde 
Darwin, na abordagem evolucionista. Foi posta em relevo 
por Tinbergen (1963), na sua famosa formulação das 
quatro perguntas básicas para a pesquisa etológica. Sem 
retornar a uma definição ou discussão dessas categorias, 
vale a pena notar que é possível interessar-se, em certo 
estágio de investigação, mais pela estrutura e funciona-
mento de um processo comportamental, isto é, pelas suas 
características descritivas e causais, do que pelas implica-
ções evolucionistas. O fato de não se saber por que (em 
termos funcionais) o riso humano tem as características 
sonográficas que tem, não impede que haja interesse em 
descrever de forma minuciosa as suas emissões, verifican-
do o quanto são estereotipadas (Provine e Yong, 1991) ou 
o quanto são variáveis, compostas de episódios vocalizados 
e não-vocalizados (Bachorowski, Smoski e Owren, 2001). 
Do mesmo jeito, pode-se investir tempo de pesquisa regis-
trando os contextos em que pessoas riem (às vezes à toa, 
sem que haja nada de humorístico na situação, Provine, 
1993), ou formular uma teoria sobre a determinação social 
do riso, mostrando que depende da motivação do emissor, 
de seu relacionamento com o ouvinte e que atua como 
modificador de afetos (Owren e Bachorowski, 2003), antes 
ou independentemente da formulação de hipóteses evolu-
• • 
ClOnlStas. 
Também pode existir um interesse maior pelo teste de 
uma hipótese funcional do que pela análise do mecanismo 
causal subjacente. Não pode haver contradição entre as 
duas abordagens, mas elas podem proceder independen-
temente, de acordo com os objetivos da investigação 
empreendida. A pesquisa psicológica comumente se centra 
sobre questões causais (por exemplo, contextos em que 
aparecem falsas memórias, efeito da disposição do mobi-
liário de uma creche sobre o comportamento de crianças 
pequenas, capacidade que bebês têm de imitar expressões 
faciais etc.), enquanto muito da pesquisa em comporta-
mento animal, dentro de uma perspectiva biológica, busca 
comprovar hipóteses funcionais (por exemplo, relativas às 
idéias de Trivers, 1972, sobre investimento parental). 
Isso significa que não é necessário que toda pesquisa 
psicológica passe a se pautar por hipóteses evolucionistas, 
embora, a longo prazo e dentro de uma visão unificada, 
os níveis causal e funcional devam ter uma conexão flexí-
vel e de mútua influência. Hipóteses evolucionistas são 
formuladas a partir de estudos causais e precisam deles 
para alcançar sua formulação mais precisa e para encontrar 
a sua comprovação. A avaliação de hipóteses a respeito do 
apego, enquanto estratégia evolutiva, depende do conhe-
cimento de como se desenvolve a relação mãe-criança, da 
descrição dos tipos de apego etc. Estudos sobre os proces-
sos cognitivos, dentro de um quadro causal, produzem 
informações relevantes às formulações evolucionistas a 
respeito da modularidade dos mecanismos mentais. De 
maneira inversa, a abordagem evolucionista pode ser vista 
como um programa heurístico de pesquisa, capaz de gerar 
perguntas e hipóteses, e de motivar pesquisas com meto-
dologia própria (Lakatos, 1970). Abre campos empíricos 
inatingidos até o momento e proporciona idéias para 
pesquisas causais, fechando o círculo. 
COEVOLUÇÃO 
/ 
PSICOBIOLOGICPA: MOMENTO I 
Nunca foi tranqüila a história da inserção, ou tentativa 
de inserção, das idéias evolucionistas na psicologia. A revi-
são desta história mostra que ela é pontuada por polêmi-
cas científicas e até pessoais, muitas vezes duras, pouco 
construtivas. A polêmica indica que não é num clima de 
neutralidade científica que se desenvolvem e se articulam 
as teorias psicobiológicas, mas num contexto marcado pela 
referência às concepções correntes sobre o que é a socie-
dade humana e sobre os perigos que poderiam advir de 
uma teoria científica que se transforme em justificativa 
para práticas injustas. Rimos bastante, hoje, das charges 
publicadas na época de Darwin a respeito da teoria evolu-
cionista, muitas delas representando Darwin meiohomem, 
meio macaco. Mas elas eram sintomáticas de uma percep-
ção de perigo ou de inconveniência, recuperavam mitos 
antigos, nem sempre apaziguadores, de participação do 
ser humano na natureza animal. 
Mas também se nota, revendo a história, o quanto as 
idéias evolucionistas estiveram presentes desde o início do 
desenvolvimento da psicologia, enquanto ciência. Wundt, 
um dos pioneiros da psicologia científica, escreveu, com um 
certo teor recapitulacionista: "Se tentarmos resolver, a partir 
da comparação dos atributos psíquicos, a questão geral da 
relação genética entre o homem e os animais, devemos admi-
tir, dada a semelhança dos elementos psíquicos e de suas 
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 13 
formas mais simples e mais gerais de combinação, que é 
possível que a consciência humana tenha se desenvolvido a 
partir de uma forma inferior de consciência animal. Este 
pressuposto também é fortemente reforçado pelo fato de 
que se encontra no reino animal uma série completa de 
estágios diferentes de desenvolvimento psíquico e de que 
cada ser humano individual passa por um desenvolvimento 
análogo" (Wundt, 1897, pp. 280-281). 
Romanes, naturalista amigo de Darwin, e Lloyd Morgan, 
psicólogo inglês, professor de zoologia na Universidade de 
Bristol, foram darwinistas no campo ainda incipiente das 
interpretações evolucionistas para o comportamento. 
Romanes (1883) preocupou-se em demonstrar a flexibi-
lidade do instinto, na andorinha que melhora a construção 
de seu ninho, nos cães de caça que adquirem hábitos muito 
diferentes dos hábitos naturais e em estabelecer paralelos 
com a consciência humana. Descreveu, por exemplo, como 
proposital e consciente o comportamento de um macaco 
que numa certa oportunidade desfez os nós de uma corda 
para balançar-se nela, alcançar a porta de sua gaiola e fugir. 
A postura anedótica e antropomórfica de Romanes foi 
criticada por Lloyd Morgan (1894), cujo cânone, ampla-
mente citado, estabelecia limites para a interpretação de 
processos mentais em animais. Mas o propósito dos primei-
ros darwinistas era mesmo o de demonstrar a continuida-
de essencial entre a psicologia animal e a psicologia huma-
na, partindo da consciência humana e indicando o seu 
surgimento evolutivo de formas mais simples, como o 
reflexo ou o instinto. 
A influência de Darwin também se manifestou sobre o 
jovem Freud. Ainda aluno de medicina, fora enviado à 
estação de biologia marinha de Trieste pelo seu orientador, 
o professor Klaus, um darwinista convicto. A missão de 
Freud era dissecar enguias, em busca de possíveis bases 
anatômicas para a distinção entre enguia-macho e enguia-
fêmea. O artigo que resultou dessa pesquisa tem a minú-
cia e o rigor que o tema exigia. Coloca-se a questão do 
quanto permaneceu deste ponto de partida biológico no 
desenvolvimento da psicanálise, e de quanto não seria 
propícia uma revisão reintegrativa da questão das relações 
entre psicanálise e pesquisa psicológica (Ades, 2001). A 
repressão, enquanto mecanismo (freudiano) através do 
qual idéias são mantidas fora da consciência, talvez pudes-
se ser explicada através do funcionamento da memória 
operacional, de aumentos na atividade nervosa do córtex 
pré-frontal dorsolateral e da redução da atividade hipo-
campal, mostrando a possibilidade de convergência (Xavier 
e Helene, 2005). 
14 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 
Em seu livro que nos cativa pela forma saborosa com a 
qual se refere aos fenômenos psicológicos ("estas coisas que 
chamamos sentimentos, desejos, cognições, raciocínios, 
decisões e outros que tais" ... ), William James (1890/1952) 
afirmava que "um certo tanto de psicologia-do-cérebro deve 
ser pressuposto ou incluído na psicologia'' (p. 3). Mas James 
,., . . , 
nao apenas se preocupa com centros e vias neurais poss1-
veis, ele cria outra convergência com a biologia, e usa, talvez 
pela primeira vez, a expressão "psicologia evolucionista'', 
que sugere serem os fenômenos psicológicos produtos de 
uma longa e lenta transformação da espécie. Observa 
primeiro que "com o surgimento da consciência, uma nova 
natureza parece introduzir-se, algo cuja potência não resul-
ta dos meros átomos em expansão do caos original" (p. 95). 
Parece haver incomensurabilidade entre as leis da matéria 
e as do sentimento e da vida mental em geral. Mas James 
logo defende o princípio de continuidade: "deveríamos de 
modo sincero tentar de todas as possíveis maneiras conce-
ber o surgimento da consciência de modo que não pareça 
equivalente à irrupção no universo de uma nova substância, 
até então não-existente" (p. 97). 
Nesta tentativa de tomar a mente, "como um objeto 
num mundo de outros objetos", James se preocupa, entre 
outras coisas, com instintos. Não é necessário dar-se ao 
esforço de comprovar a sua existência no mundo animal: 
são muitos os casos. Mas eles também existem no ser 
humano, e em variedade maior. Fiquei impressionado de 
encontrar, em James, evidentemente de forma mais espe-
culativa, a idéia de que os instintos se transformam, pela 
sua própria execução, e que vão construindo, assim, expec-
tativas aprendidas a respeito do contexto. "Cada ato instin-
tivo, num animal dotado de memória, deixa de ser "cego" 
depois da primeira repetição" (p. 704). Assim, "já que o 
animal de razão mais rica pode ser também o animal mais 
rico em impulsos instintivos, ele (o ser humano) nunca 
poderia parecer-se com o autômato fatal que um animal 
meramente instintivo seria'' (p. 706). 
Também fiquei impressionado com a percepção, muito 
moderna, de como a evolução dos organismos implica 
também a evolução dos ambientes em que sobrevivem: 
"nossas faculdades internas estão adaptadas de antemão às 
características do mundo em que vivemos, adaptadas, eu 
entendo, de modo a conseguirmos nossa segurança e nossa 
prosperidade nele ... mente e mundo evoluíram juntos e, 
em conseqüência, demonstram um ajustamento mútuo" 
Qames, 1892, p. 3-4). 
Esta suposição de que atuam, no ser humano, impulsos 
ou motivações típicas que o definem como tal, análogos 
aos que existem em animais, e esta percepção de que estes 
impulsos ou motivações não são necessariamente cegos e 
estanques à experiência são um prenúncio das colocações 
etológicas e da moderna psicologia evolucionista. Encon-
tram sua raiz em Darwin, que tinha previsto a importân-
cia de sua teoria para a psicologia. No final de A Origem 
das Espécies (1872), ele escreve: "num futuro distante, eu 
vejo campos abertos para pesquisas muito mais importan-
tes. A psicologia encontrará uma base segura no funda-
mento ... da aquisição necessária de cada poder mental e 
de cada capacidade mental de forma gradativa. Muita luz 
será lançada sobre a origem do homem e sobre sua histó-
ria'' (Darwin, 1859/1996, p. 394). 
Darwin não esperou esse futuro distante para realizar 
um exercício de aplicação do pensamento evolucionista 
ao domínio psicológico. Em vez de estudar o lado "mental" 
das emoções, como faria Wundt, dirigiu seu olhar natu-
ralista, colecionador de detalhes, à expressão das emoções 
no homem e nos animais. O título do seu livro coloca bem 
a crença de que existe entre os (outros) animais e o ser 
humano uma continuidade suficiente para que compara-
ções possam ser estabelecidas, reveladoras de semelhanças 
e de diferenças, indícios do partilhamento de uma história 
evolutiva (Darwin, 1872). O livro, que foi um dos primei-
ros a usar fotografias com finalidade científica, foi um 
verdadeiro best-seller, na época de seu lançamento, em 
1872. Mas não teve impacto sobre a pesquisa. Levou quase 
um século para que a sua proposta fosse recuperada por 
Paul Ekman, um psicólogo que dedicou uma carreira intei-
ra ao estudo de como a face espelha ou esconde a raiva, a 
tristeza, o nojo, a alegria, a surpresa, o medo, o desprezo 
e outras emoções. Ekman promoveu a reedição de A 
Expressão das Emoções ... (Darwin, 1998) que ele conside-
rava "um livro extraordinário, radical para o seu tempo emesmo hoje" (Ekman, 2003, p. 1)3• 
Darwin sugere, no primeiro capítulo de seu livro (cita-
do aqui na versão traduzida, Darwin, 2000), as fontes nas 
quais foi buscar informação. Em sua maioria, ainda são 
válidas. Dentre elas, observar as crianças, pois elas exibem 
muitas emoções com "extraordinária intensidade" (p. 23), 
de uma maneira mais reveladora, às vezes, do que mais 
tarde na vida; usar fotos de expressões faciais para serem 
avaliadas, quanto à emoção transmitida ["muitas das 
3Nota das organizadoras: no Brasil, o livro encontra-se traduzido para o 
português e publicado pela Companhia das Letras, em 2000, por reco-
mendação do professor Renato Queiroz, do Departamento de Antropo-
logia da USP. 
expressões foram imediatamente reconhecidas por quase 
todos, ainda que descritas não da mesma maneira'' (p. 23)]; 
buscar descrições de como manifestam emoção pessoas 
em outras culturas, de preferência não em contato com 
europeus ["sempre que determinadas mudanças nas feições 
e no corpo exprimirem as mesmas emoções nas diferentes 
raças humanas, poderemos inferir, com grande probabili-
dade, que estas são expressões verdadeiras, ou seja, que são 
inatas ou instintivas. Expressões ou gestos adquiridos por 
convenção na infância provavelmente difeririam tanto 
quanto diferem as línguas" (p. 24)]; descrever as expressões 
que animais mais comuns exibem, "claro que não para 
decidir", escreve Darwin, "até onde no homem algumas 
expressões são características de determinados estados de 
espírito, mas para proporcionar a mais segura base para se 
generalizarem as causas, ou origens, dos vários movimen-
tos de Expressão. Ao observar animais, estamos menos 
propensos a nos deixar influenciar pela nossa imaginação; 
e podemos estar seguros de que suas expressões não são 
convencionadas" (p. 27). Darwin acreditava que as emoções 
não fossem exclusivas dos seres humanos. "Até as abelhas 
podem ficar com raiva, dizia Darwin. Só nos últimos anos 
é que os estudiosos do comportamento animal pararam 
de se acanhar do perigo do antropomorfismo e aceitam as 
sábias observações de Darwin, segundo as quais, muitas . . ,... 
vezes, os contextos soc1a1s que geram emoçoes nos seres 
humanos também as produzem em animais" (Ekman, 
2003, p. 2). Vê-se que Darwin (falando em raiva nas 
abelhas!) usava o método comparativo nas duas direções: 
do animal para o ser humano e deste para o animal, de 
uma forma que seria difícil taxar de reducionista. 
- / 
COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: 
MOMENT02 
A tentação da abordagem biológica ao comportamento 
humano, depois destas tentativas isoladas, reaparece com 
Lorenz e Tinbergen. Sua intenção inicial era recuperar a 
noção de instinto um tanto maltratada pelo behavio-
rismo que, em tudo ou quase tudo, queria ver aprendiza-
gem colocando-a numa perspectiva evolutiva. Tanto 
Lorenz (1937), sob a influência do ornitólogo Heinroth, 
como Tinbergen (1958), andando pelas dunas holandesas 
para observar vespas caçadoras e gaivotas, estavam queren-
do construir uma ciência do comportamento animal, mas 
ambos acabaram incluindo o ser humano em sua proposta. 
Duas são, a meu ver, as principais contribuições da etolo-
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 15 
gia clássica: a primeira, mais essencial, a insistência de que 
se deve encontrar raízes instintivas (típicas da espécie, gené-
ticas ou qualquer outro termo que se queira usar) no 
comportamento humano e, isso, usando os métodos apon-
tados por Darwin: voltar aos primeiros desempenhos do 
bebê ou da criança pequena, na tentativa de surpreender 
o que não possa ser atribuído à experiência cultural; 
demonstrar a transculturalidade de certos comportamen-
tos humanos. O livro Human Ethology, de Eibl-Eibesfeldt 
(1989), com suas cerca de 800 páginas, representa bem a 
riqueza de material empírico que as hipóteses etológicas 
são capazes de gerar. 
A segunda contribuição é metodológica. Os etólogos 
clássicos propunham que se observasse o comportamento 
humano como o naturalista observa o comportamento 
animal: pondo entre parênteses os pressupostos, não indo 
direto ao processo inferido, não buscando aplicar a todo 
custo um esquema preconcebido; em suma, deixando o 
sujeito observado livre para demonstrar o seu modo de 
interagir com o ambiente. Desmond Morris, que começou 
observador de aves, dizia que podia haver man watching 
( ou, de forma menos sexista, person watchin~ do mesmo 
jeito que há bird watchinge se propôs a cultivar este olhar 
curioso em relação ao corriqueiro da vida das pessoas 
(Morris, 1977). 
Os estudos etológicos sobre o comportamento infantil 
têm por modelo as descrições minuciosas de BlurtonJones 
(1972/1981). Muitos estudos brasileiros podem ser citados 
como argumento da relevância de se olhar com atenção e 
de se categorizar o comportamento humano. Se hoje não 
se ressalta nem se discute a questão da observação, em 
psicologia, é que a técnica se integrou às outras, a ponto 
de não ser necessário remontar às suas origens. Do mesmo 
modo como noções psicanalíticas passaram a fazer parte 
do conhecimento comum, certos conceitos e formulações 
etológicos difundem-se através da mídia, atendendo à 
curiosidade a respeito das semelhanças ou dessemelhanças 
entre a mente humana e a animal. São versões modernas 
de atitudes e crenças muito antigas. Um certo modo de 
divulgar idéias etológicas veio com os textos de Lorenz 
sobre os males da humanidade e, principalmente, com os 
livros de Morris que usa um misto de conhecimentos cien-
tíficos com observações em que o senso comum se reco-
nhece. O Macaco Nu (1997/2003) teve enorme repercus-
são; agora, temos A Mulher Nua (Morris, 2004/2005). 
Embora este tipo de divulgação tenha o mérito de colocar, 
para um público maior, a plausibilidade de uma perspec-
tiva psicobiológica, pode criar a impressão de que as inter-
16 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 
pretações biológicas são intuitivas ou simplificadoras em 
demasia. 
Incomodado com a definição dicotômica que Lorenz 
dava do comportamento instintivo, ligado como que inevi-
tavelmente à genética e, através da genética, à ação do 
ambiente evolutivo, Lehrman (1953) teceu críticas duras 
ao inatismo e defendeu a interação genes-ambiente como 
feição constante da ontogênese. Os argumentos giravam 
em torno do comportamento animal, mas tinham óbvias 
implicações para o ser humano. Lorenz acabou conceden-
do que não há traço comportamental em princípio livre 
de efeitos ontogenéticos, sem, contudo, abandonar a sua 
ênfase no caráter típico-da-espécie, dos padrões instintivos. 
A controvérsia Lorenz-Lehrman põe em destaque a neces-
sidade antiga mas sempre atual de criar uma ferra-
menta conceitua! para dar conta da constância e da varia-
bilidade dos comportamentos adaptativos. 
- / 
COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: 
MOMENT03 
Quando o mirmecólogo Edward Wilson saiu de seu 
campo de especialização e publicou Sociobiology: a new 
synthesis (1975), também gerou uma enorme resistência, 
e não apenas entre cientistas sociais (Rose, Kamin e Lewon-
tin, 1985; Gould e Lewontin, 1979; ver também Yama-
moto, Cap. 1 deste livro). Como o próprio Wilson nota, 
embora suas idéias sobre animais tivessem sido aceitas, de 
imediato, "a generalização ... das teorias da Sociobiologia 
aos seres humanos ... teve uma recepção totalmente dife-
rente, pelo menos fora da biologia. Nos anos setenta, preva-
lecia nas ciências sociais a idéia de que não existe uma base 
biológica para a natureza humana, que o comportamento 
humano tem uma origem quase integralmente sociocul-
tural e, portanto, que os genes desempenham pouco ou 
nenhum papel além de auferir capacidade intelectual ou 
emocional. Eu defendi o contrário, que a biologia desem-
penha um papel maior, em estreita sintonia com a cultu-
ra, e que o comportamento humano não pode ser compre-
endido sem a biologia'' (Wilson, 1995). 
A ambição de Wilson era aplicar à sociedade humana 
e aos animais os princípios de uma novacompreensão dos 
mecanismos de sobrevivência, baseada nos trabalhos teóri-
cos de Hamilton sobre a genética do comportamento social 
(Hamilton, 1964a, 1964b) e de Williams (1966), de acor-
do com os quais a seleção atua, não sobre características 
de uma espécie, mas sobre as características do indivíduo. 
Daí o surgimento da noção de "gene egoísta'', populariza-
da por Dawkins (1999) e o abandono da concepção, acei-
ta por etólogos clássicos, de atos selecionados "pelo bem 
da espécie". 
Os debates foram acalorados. Gould e Dawkins, ambos 
admiradores de Darwin, escreviam resenhas um dos livros 
do outro, trocando comentários ácidos. Do lado de Wilson, 
estavam, além de Dawkins, Stephen Pinker (autor de Como 
a Mente Funciona, 1997/2001 e, mais recentemente, de 
Tábula Rasa, 2002/2004), e Alcock, o autor de um exce-
lente manual evolucionista sobre comportamento animal 
(Alcock, 2001) e de um livro que transmite, a partir de 
seu título ( The Triumph of Sociobiology, 2001), a exultação 
de quem acredita estar do lado certo. 
- / 
COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA: 
MOMENT04 
Um quarto momento na coevolução entre psicologia e 
biologia ocorre quando arrefece a polêmica sociobiológica 
e se estende até hoje. Marca-se pela proposta de constituição 
de uma psicologia evolucionista. O nome, como foi visto, 
remonta a William James. A diferença é que agora se colo-
ca explicitamente como uma perspectiva autônoma para a 
análise do comportamento humano, constituída em torno 
de um conjunto de pressupostos, com presença institucio-
nal enquanto campo de pesquisa e disciplina acadêmica. 
Não se trata de apenas efetuar empréstimos metodoló-
gicos à biologia ou de interpretar processos psicológicos 
conhecidos de uma forma evolucionista, mas de assimilar 
o modo de pensar evolucionista, criando um programa de 
pesquisa nascido, por assim dizer, de dentro da psicologia. 
Um nome-resumo confere coerência e visibilidade social, 
tende a constituir-se em bandeira. Foi o caso com a socio-
biologia, em que Wilson, em desafio à dicotomia tradi-
cional (sabendo o quanto a sua "consiliência'' iria provocar 
de reação), juntou socio com bio, criando um nome-resu-
mo rapidamente empregado em cursos, encontros cientí-
ficos e no título de revistas. Também é o caso da antropo-
logia evolucionista e, de uma forma mais espetacular, da 
ecologia comportamental, a sucessora imediata da sociobio-
logia. Na criação desses nomes, observa-se uma caracte-
rística comum: a junção de campos epistemológicos diver-
sos, como se de linhas tradicionais, postas em convergên-
cia, pudessem resultar princípios mais abrangentes e 
, 
produtivos. E evidente que o nome não garante, por si, a 
coerência e a validade de um programa científico. 
A psicologia evolucionista é identificada a partir de seus 
primeiros protagonistas, entre os quais John Tooby e Leda 
Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Barba-
ra (Barkow, Cosmides e Tooby, 1992; Cosmides e Tooby, 
1989; 1999); Martin Daly e Marga Wilson, da MacMas-
ter University, do Canadá (Daly e Wilson, 1996, 1999), 
e David Buss, da Universidade do Texas, em Austin (Buss, 
1990, 2005). 
A psicologia evolucionista está em fase de expansão. "O 
campo da psicologia evolucionista emergiu dramaticamen-
te nos últimos 15 anos como o indica o crescimento expo-
nencial no número de artigos teóricos e empíricos na área'', 
escrevem Durrant e Ellis (2003, p. 1), apoiando-se em esta-
tísticas: de quatro artigos, indicados por uma busca pelos 
índices da Psychlnfo, entre 198 5 e 1988, passou-se para 231, 
entre 1997 e 2000. Creio que deva ser ainda maior a conta-
gem, em 2006. A psicologia evolucionista tem sua socieda-
de (Human Behavior and Evolution Society), seus manuais; 
suas reuniões anuais; as pesquisas dentro de seu âmbito são 
veiculadas em várias revistas especializadas. No Brasil, uma 
iniciativa marcante foi a reunião durante o congresso da 
ANPEPP, emAracruz, Espírito Santo, em 2004 do grupo 
de trabalho "Psicologia Evolucionista''. A Psicologia Evolu-
cionista marca-se pelo senso de renovação e pela idéia de 
que será possível transcender a crônica divisão epistemoló-
gica da psicologia através da perspectiva da evolução. Eviden-
• • A • 
temente, tanto entusiasmo gera res1stenc1as. 
A Psicologia Evolucionista rejeita o que Cosmides e 
Tooby denominam "modelo padrão das ciências sociais", 
exemplificado pela posição da co-participante, antropó-
loga, no simpósio sobre hereditariedade e ambiente ao 
qual me referi no começo deste ensaio. Retoma por conta 
própria a interpretação do comportamento humano como 
pré-selecionado e adaptativo, também central às propostas 
da etologia clássica e da sociobiologia. "Sofremos todos de 
cegueira para os instintos", escrevem Cosmides e Tooby 
(1999, p. 2). " ... uma abordagem evolucionista ... permi-
te reconhecer que competências naturais existem, indica 
que a mente é uma coleção heterogênea destas competên-
cias e, o que é o mais importante, fornece teorias concre-
tas acerca de suas estruturas" (grifo meu). 
As competências naturais são adaptações produzidas pela 
seleção natural e pela seleção sexual em mecanismos psico-
lógi,cos que não representam uma pura manifestação gené-
tica, mas decorrem de uma interação genes/fatores ambien-
tais que produz toda uma gama de desempenhos compor-
tamentais e cognitivos. De acordo com Buss (1999), os 
mecanismos psicológicos são estruturas que se desenvolve-
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 17 
ram, ao longo da evolução, por resolver problemas especí-
ficos de sobrevivência e de reprodução. São seletivos (levam 
em conta apenas determinados aspectos do ambiente), 
funcionam de acordo com regras e procedimentos especí-
ficos e geram informação para outros mecanismos ou se 
traduzem diretamente em comportamento. 
Os psicólogos evolucionistas se incomodam com a idéia 
de que existem mecanismos de efeitos generalizados, pron-
tos para lidar com uma gama extensa de desafios ambien-
tais. Preferem pensar que a mente é composta por uma 
coleção de aptidões restritas, de uma certa quantidade de 
mecanismos psicológicos, cada qual selecionado de acordo 
com uma finalidade particular. A busca de alimento, a 
seleção de um parceiro reprodutivo, a evitação do incesto, 
a aquisição de uma posição na hierarquia de dominância 
, 
são problemas que requerem soluções específicas. E mais 
plausível imaginar que tenham acabado por ser atendidos 
por mecanismos modulares. Não há soluções gerais porque 
não há problemas gerais (ver também Seidl de Moura e 
Oliva e Ottoni, Caps. 5 e 6 deste livro). 
Trata-se de uma questão de engenharia e de otimização 
de desempenho. Imagine-se uma fábrica com uma única 
máquina polivalente versus uma fábrica com máquinas feitas 
sob medida para cada tarefa. Acreditam os psicólogos evolu-
cionistas que a segunda seria certamente mais eficiente e 
que, na contrapartida comportamental, o mesmo mecanis-
mo cognitivo raramente seria capaz de resolver problemas 
adaptativos diferentes. Isso representa um retorno à intuição 
jamesiana de que o ser humano, ao invés de ser desprovido 
de instintos, como afirma o senso comum, os tem em quan-
tidade. Dentre os instintos que compõem a lista de James: 
a pugnacidade, a emulação, o medo, a apropriação ou "aqui-
sitividade", a construtividade, a brincadeira, a curiosidade, 
a secretividade, a vergonha, o amor. James afirma que o 
ciúme é "inquestionavelmente instintivo" (p. 735). Veremos 
mais adiante algo a respeito. 
Mas os mecanismos psicológicos não são todos facil-
mente especificáveis, nem pode ser sempre determinada 
sua localização no sistema nervoso, e nem podem ser total-
mente independentes uns dos outros: a crença na modu-
laridade não vai tão longe. Alguns psicólogos evolucionis-
tas concedem que "qualquer que seja a taxonomia de meca-
nismos especializados que seja proposta para dar conta da 
mente humana, deve incluir também alguns processos 
não-específicos. Os mecanismos envolvidosno condicio-
namento clássico e operante podem ser exemplos bons 
destes processos não-específicos" (Durrant e Ellis, 2003, 
p. 1 O). Falta uma discussão dos critérios para distinguir o 
18 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 
campo de atuação de processos de domínio específico e 
de processos de domínio geral e das pressões evolutivas 
para o surgimento de uns e de outros. A idéia da especi-
ficidade gera hipóteses de trás-para-diante: a partir da 
função que se supõe exercida por um determinado meca-
nismo, pode-se imaginar quais devam ser as suas caracte-
rísticas estruturais (diferentes das características de meca-
nismos que servem outras funções). 
Os mecanismos psicológicos são remanescentes de uma 
adaptação adquirida em épocas ancestrais. Para a Psicologia 
Evolucionista, é essencial a distinção entre o ambiente em 
que a seleção atuou sobre uma determinada população de 
organismos, moldando as suas características em função 
das demandas ambientais, e o ambiente em que estas adap-
tações são postas em funcionamento, às vezes em condições 
que as tornam contraproducentes. O ambiente da seleção 
é o ambiente de adaptação evolutiva (ver também lzar, Cap. 
3 deste livro). Supõe-se então que muitos dos traços psico-
lógicos que nos caracterizam tenham sido formados neste 
longo e nebuloso passado, a respeito do qual temos poucos 
indícios inequívocos. A civilização moderna, que remonta 
à invenção da agricultura, há poucos milhares de anos atrás, 
não exerceu papel seletivo apreciável, e não há por que 
pensar que, hoje, dispomos de adaptações genéticas para 
ver programas de TY, para utilizar a Internet ou para diri-
gir carros no terrível trânsito de São Paulo. De acordo com 
uma certa interpretação, estaríamos controlados por prin-
cípios motivacionais e de cognição válidos para ambientes 
que não são mais os nossos. A compreensão do comporta-
mento humano dependeria então do confronto entre os 
contextos atual e primordial. "Obviamente", concedem 
Cosmides e Tooby, "somos capazes de resolver problemas 
que nunca se colocaram para caçador-coletor algum, pode-
mos aprender matemática, a dirigir carros, a usar compu-
tadores. Nossa habilidade para resolver problemas como 
estes é um efeito colateral ou uma conseqüência dos circui-
tos que foram delineados para atender a problemas adap-
tativos" (Cosmides e Tooby, 1999, p. 6). 
Estudo de Caso I: Reconciliação 
Usarei dois exemplos de aplicação de uma abordagem 
comparativa/evolucionista a campos psicológicos. A idéia 
é mostrar que esta abordagem funciona como um progra-
ma de pesquisa, gerador de perguntas e de metodologias, 
cuja riqueza depende do quanto de novidade empírica 
fornece e do quanto promete em termos de reorganização 
, . 
teor1ca. 
O primeiro exemplo, sobre a reconciliação, visa ilustrar 
o valor heurístico da transposição de perguntas entre etolo-
gia-animal e etologia-humana, a partir de comportamen-
tos ou processos que apresentam semelhanças descritivas 
, 
ou causais. E uma estratégia que, do pressuposto da seme-
lhança, parte para a descoberta de elementos que possam 
, 
confirmá-la. E biunívoca, pode partir do homem como 
modelo para o animal (no bom sentido de antropomor-
fismo, defendido por de Waal, 1997) ou do animal para 
o homem. O objetivo, vale a pena voltar a dizer, não é 
nem redução, nem identificação total. 
Se chimpanzés se tocam e se beijam depois de um episó-
dio de briga (ao invés de se evitarem) e se, com isso, pare-
cem voltar a ter uma interação pacífica, não seria de se 
esperar que crianças (ou adultos) evidenciassem uma 
tendência semelhante? A idéia nasceu da leitura de um 
artigo que Franz de Waal publicou em 1979, com van 
Roosmalen (de Waal e van Roosmalen, 1979), sobre a 
reconciliação em chimpanzés. Sempre que dois chimpan-
zés, da colônia do zoológico de Arnhem, na Holanda, 
entrassem em conflito, o comportamento de um deles era 
observado por mais 45 minutos. Embora, de imediato, os 
oponentes se afastassem um do outro, era notável que 
fossem vistos emitindo, depois, comportamentos amigá-
veis, como abraçar-se, esticar a mão, emitir uma vocaliza-
ção de submissão e até beijar-se. No período após o conflito, 
os atos afiliativos eram mais freqüentes do que num período 
correspondente sem conflito, o que sugere que a aproxi-
mação fosse produto do próprio conflito, e talvez produto 
de uma motivação para recuperar uma interação pacífica. 
Daí o termo "reconciliação". 
Quando Paula Maria de Almeida Fríoli me procurou 
para escolhermos um tema de pesquisa para o doutorado, 
pensamos em buscar estes correlatos no comportamento 
de crianças (Fríoli, 1997). As referências acerca da agres-
sividade infantil eram fartas, mas havia muito pouco publi-
cado a respeito de uma possível pacificação pós-conflito 
(Sackin e Thelen, 1984). No pátio de uma escola de São 
Paulo, Paula observou 256 crianças, de 4 a 5 anos (estágio 
I), de 5 a 6 anos ( estágio II) e de 7 a 8 anos ( estágio III). 
O comportamento das crianças, registrado em videoteipe, 
foi classificado em categorias amplas, sendo também regis-
tradas as interferências de terceiros, as relações de amizade 
entre as crianças etc. Depois de uma fase de registros focais, 
procedeu-se à observação dos episódios de conflito, sempre 
que surgissem. O registro, iniciado com as primeiras provo-
cações, ia até o final da briga e abrangia um período suple-
mentar de cinco minutos. Os meninos se mostraram mais 
agressivos, fisicamente, do que as meninas; estas, mais 
afiliativas e reconciliatórias. No estágio I, a disputa pela 
posse de objetos ou pela ocupação de espaço eram os desen-
cadeadores básicos e a agressão se manifestava por movi-
mentos de bater, de perseguir, de puxar, com apelos de 
mediação à professora. Nos estágios seguintes, aumenta-
vam em freqüência formas simbólicas, ritualizadas de agre-
dir, como as ameaças e agressões verbais. Isso estava de 
acordo com as expectativas. A existência de comportamen-
tos reconciliatórios, nos três níveis de idade, foi uma novi-
dade e uma confirmação. 
A reconciliação se manifestava, de início, através de atos 
como beijar, abraçar, ficar de mãos dadas, colocar o braço 
no ombro do outro etc. em grupos geralmente de mesmo 
sexo. A reaproximação era, muitas vezes, espontânea e sem 
marcação explícita entre "estar de mal" e "estar de bem": 
uma simples continuação da brincadeira interrompida. 
No segundo estágio, os comportamentos de "ficar de mal" 
e "fazer as pazes" apareciam de maneira mais nítida, dota-
dos de uma característica de desafio e eram usados mesmo 
que não houvesse um motivo aparente para a briga, como 
se as crianças estivessem testando sua capacidade de romper 
ou instaurar relacionamentos. O terceiro estágio era marca-
do pelo aparecimento pleno das formas ritualizadas de 
rompimento e de reatamento. Não era apenas o objeto ou 
o status em disputa que mais importavam, mas a definição 
do relacionamento. "Mãos no rosto" era um ficar de mal 
ritualizado, exibido principalmente por meninas. Duran-
te um episódio de conflito ou no final deste, uma das 
crianças levava o dedo indicador de uma bochecha à outra, 
queixo para cima em atitude de desafio ou de superiori-
dade, muitas vezes dizendo: "Belém, Belém, nunca mais 
fico de bem, nem agora, nem no ano que vem." Reconci-
liações verbais pedidos de desculpas, oferecimentos 
simbólicos ("amanhã eu te empresto o meu caminhão, 
tá?") ou real ("toma a minha banheirà') ocorriam com 
maior freqüência. Os comportamentos aftliativos eram 
mais freqüentes logo depois da briga do que num período 
pacífico do dia seguinte, o que garante que tinham uma 
fonte motivacional própria. 
Tem algo a ver a reconciliação animal com a reconci-
liação humana? Não estaríamos, ao usar o mesmo nome, 
fazendo de uma semelhança superficial a base para uma 
comparação em profundidade? E o significado que o rela-
cionamento tem para uma criança, as fantasias que ela cria 
em torno dele, as regras, os princípios morais que vigoramno seu grupo? Questionamentos como estes se baseiam 
num modelo de identidade absoluta, traem a dimensão 
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 19 
comparativa. Não se trata de negar a dimensão própria 
dos relacionamentos de crianças, mesmo pequenas. Nossa 
pesquisa mostra como, ao longo dos níveis de idade, 
mudam os modos através dos quais é restabelecido o equi-
líbrio depois do conflito. A natureza dos conflitos se trans-
forma quando entram em jogo regras de comportamento 
verbalizáveis (como "eu cheguei primeiro" ou "foi a tia que 
me deu" ou "você já tem um brinquedo"). O aparecimen-
to de formas ritualizadas "Belém, Belém ... " indica 
que "estar de bem'' ou "estar de mal" deixaram sua fluidez 
inicial e se colocam como estruturas afetivas próprias, 
dentro da representação que a criança tem de seu grupo 
social. Por isso, são usadas de forma quase lúdica, como 
se as crianças brincassem de experimentar com as formas 
de relacionamento. A perspectiva evolucionista tem a 
vantagem de inserir os processos estudados no ser huma-
no num quadro comparativo amplo em que as diferenças 
importam, mas têm significado em função das semelhan-
ças que lhes dão origem. 
Estudo de Caso 2: Ciúme 
O exemplo a seguir sobre o ciúme mostra que é possí-
vel deduzir, de um conjunto de princípios da teoria evolu-
cionista, conseqüências capazes de ser verificadas no 
comportamento humano. O exemplo difere do exemplo 
sobre a reconciliação, em que não havia definição prévia 
de hipótese funcional e em que a passagem de uma pers-
pectiva para a outra se dava a partir da analogia entre 
comportamentos concretos. No exemplo do ciúme, as 
semelhanças de cenário ou de desempenho não importam 
tanto, mas sim a idéia de que o ser humano se submete 
aos princípios evolucionistas gerais que gerenciam o 
comportamento de qualquer espécie. 
A lógica evolucionista entende que cada indivíduo deva 
atuar de maneira a favorecer a propagação de seus genes. 
Não há intencionalidade consciente nisso, apenas a expres-
são da maneira como os organismos foram selecionados, 
ao longo de incontáveis gerações. No cálculo de custos e 
benefícios que rege a função reprodutiva, o investimento 
diferencial do macho e da fêmea na produção da prole é 
importante, predeterminando a maneira como macho e 
, 
fêmea se comportarão um em relação ao outro. E uma 
história complexa, na qual as idéias de Hamilton (1964a, 
b), Trivers (1972) e de outros biólogos tiveram um papel 
importante. De acordo com a teoria, os machos têm 
normalmente por objetivo biológico reproduzir-se com o 
maior número possível de fêmeas, competindo e/ou se 
20 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 
exibindo; as fêmeas têm normalmente o objetivo biológico 
de escolher o melhor macho possível para a sua prole (ver 
de Sousa e Mota, Cap. 12 deste livro). Em caso de compe-
tição, as fêmeas se importarão com a qualidade do macho 
e com os recursos que poderá proporcionar a elas e à prole, 
os machos com a fertilidade da fêmea e em afastar concor-
rentes. Machos, em certas espécies, montarão guarda para 
impedir que a fêmea com a qual irão copular ou com a 
qual já tenham copulado possa acasalar-se com outros. 
Em que medida poder-se-ia dizer que existem compor-
tamentos humanos análogos às táticas de guarda de parcei-
ros dos animais? No levantamento de Buss (1988), efetu-
ado com estudantes universitários, constam categorias 
como vigiar o parceiro, monopolizar o seu tempo, depre-
ciar possíveis rivais, usar de manipulação emocional e até 
ameaçar ou punir a infidelidade, comportamentos de 
"guarda'' que não é difícil atribuir ao ciúme. Indo além da 
analogia, cabe verificar se a teoria evolucionista propõe 
hipóteses testáveis a respeito do ciúme humano. Uma hipó-
tese parte da idéia de que há uma diferença no modo de 
pais e mães investirem na criação dos filhos. Ao homem, 
só valeria a pena fornecer este cuidado se tivesse certeza 
de paternidade. Portanto, o ciúme masculino reflete essa 
preocupação. Sua motivação seria impedir a infidelidade 
sexual da parceira e seu sofrimento, a suspeita a este respei-
to. À mulher, interessaria manter junto a si um parceiro 
capaz de prover recursos para o desenvolvimento dos filhos 
e haveria preocupação com a perda ou a diminuição deste 
apoio, que poderia ocorrer como resultado de uma nova 
ligação afetiva. Haveria, então, uma variedade masculina 
do ciúme provocada pelas iniciativas sexuais ( concretas ou 
imaginadas) da mulher; e uma variedade feminina desper-
tada por uma traição afetiva ( concreta ou imaginada). 
Inspirei-me, numa pesquisa sobre as diferenças de sexo 
no ciúme (Ades, 2003), no trabalho de Geary, Rumsey, 
Bow-Thomas e Hoard (1995), em que um questionário 
de ciúme era aplicado a estudantes universitários norte-
americanos e chineses, visando avaliar o sofrimento que 
lhes causaria uma infidelidade ( 1) emocional ("seu parcei-
ro está tendo um relacionamento emocional profundo 
com outra pessoa'') ou (2) sexual ("seu parceiro está tendo 
relações sexuais intensas com outra pessoa''). Havia dife-
renças culturais marcadas quanto à experiência amorosa: 
a maioria dos chineses não tinha tido relacionamentos 
prévios e, pouquíssimos, relacionamentos envolvendo 
sexo; a maioria dos norte-americanos mantinha relacio-
namentos envolvendo sexo. Os resultados confirmaram a 
hipótese evolucionista: um número significativamente 
maior de homens (do que de mulheres), tanto norte-ameri-
canos como chineses, relatou mais sofrimento ao imaginar 
a infidelidade sexual do que ao imaginar uma infidelidade 
afetiva. O contexto cultural teve, contudo, influência: a 
proporção de indivíduos relatando maior sofrimento pela 
infidelidade sexual era maior entre os norte-americanos 
do que entre os chineses. 
Com um grupo de alunos4, repliquei a pesquisa de 
Geary et al. (1995). Nossa amostra, composta de estudan-
tes universitários de vários cursos da Universidade de São 
Paulo, assemelhava-se mais à amostra norte-americana em 
matéria de experiência de namoro do que da amostra 
chinesa. Os dados também deram apoio à hipótese evolu-
cionista. Uma porcentagem maior de homens brasileiros 
(50,90/o) do que de mulheres (13,50/o) disse sentir-se mais 
afetada quando imaginava o parceiro tendo relações sexuais 
ardentes com alguém do que quando o imaginava apaixo-
nado. A porcentagem se aproximava mais da encontrada 
por Geary et al. (1995) em norte-americanos do que em 
chineses, o que reforça a interpretação de que um maior 
sentimento de ciúme sexual surge em contextos de maior 
liberdade sexual (e, portanto, mais ameaçadores). 
Um resultado surpreendente da pesquisa foi a semelhan-
ça entre homens e mulheres quanto às emoções desperta-
das pela infidelidade do parceiro. No caso da traição afeti-
va, tanto homens como mulheres diziam-se mais magoa-
dos e ciumentos do que enraivecidos; quando se tratava 
de traição sexual, a raiva era fortemente manifestada, em 
homens e mulheres, às vezes ultrapassando o nível do 
ciúme e da mágoa. Concluímos que "embora confirman-
do a natureza transcultural das diferenças homem/ mulher 
quanto ao tipo de ciúme (sexual vs. emocional), nossos 
resultados mostram que estas diferenças não se encontram 
em todas as dimensões do comportamento ciumento e 
parecem ser flexíveis e sujeitas a influências contextuais" 
(Ades, 2003, p. 1186). 
PRODUTIVIDADE E 
PERSPECTIVAS DO PROGRAMA 
EVOLUCIONISTA 
O programa evolucionista aplicado à pesquisa psicoló-
gica tem tido grande produtividade, tem levado a insights 
4Ana Paula Ferreira Moreira, Ana Paula Sammogini, Ana Luísa Tisselli, 
Cláudia Fernanda Rodriguez, Janaína Silva, Kátia Ackermann e Luciana 
Palma. 
nas áreas de agressão, da violência doméstica, do apego e 
das relações pais-filhos, da formação de amizades e alianças, 
da psicopatologia e em outros temas. Os dados que têm 
trazido não são conhecimentos de senso comum reelabora-
dos. Não é trivial a pergunta "Por que é que mulheres são 
mais propensas a ter relaçõesextraconjugais quando estão 
ovulando?" e nem é fácil enquadrar a resposta, seja no senso 
comum, seja numa das nossas teorias psicológicas. 
Uma primeira contribuição do programa evolucionista 
consiste numa ênfase metodológica na observação do 
comportamento em situações do dia-a-dia (naturais?), ilus-
trada pelo exemplo do comportamento de reconciliação. 
Mas nem tudo (na verdade, pouco) pode ser diretamente 
observado. Entrevistas, questionários, avaliações, escalas 
são instrumentos necessários do psicólogo evolucionista 
para abordar atitudes e afeto (como no caso do ciúme). 
Uma segunda contribuição do programa evolucionista, 
mais importante, tem a ver com a construção de um 
quadro teórico integrador de observações e gerador de 
hipóteses. 
Uma teoria evolucionista do comportamento humano 
tem uma certa vantagem em termos de abrangência, uma 
vez que coloca, na mesma perspectiva teórica, animais e seres 
humanos. Princípios do comportamento não são fechados 
no círculo da espécie, mas referem-se a estruturas em trans-
formação que mantêm, entre si, uma semelhança básica, dife-
renciando-se, contudo, de acordo com o grupo ou espécie 
em que se concretizam. "Ao invés de nos apegarmos à idéia 
do quanto somos diferentes de qualquer outro animal", afrr-
ma de Waal (em entrevista a M. F. Small, 2001), "a identi-
dade humana deveria ser construída sobre a idéia de que 
somos animais que levaram adiante, num grau significativo, 
certas capacidades. Nós e os outros animais somos iguais e 
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 21 
diferentes e a igualdade é o único quadro dentro do qual se 
pode tornar concreta a diferençà'. 
A abrangência teórica da perspectiva evolucionista cons-
trói-se de forma bidirecional, entre o conhecimento dos 
animais e o conhecimento do ser humano. Uma tarefa difícil, 
quando são detectadas semelhanças, é saber se expressam 
homologia (mecanismos provenientes de uma ascendência 
evolutiva comum) ou homopl.asia (mecanismos convergentes, 
sem ancestralidade comum). O mecanismo de reconheci-
mento da face, por exemplo, apresenta várias características 
comuns ao ser humano e a primatas não-humanos que 
apóiam a hipótese da homologia (Hauser e Spelke, 2004). É 
a reconciliação entendida como a presença de uma moti-
vação para a retomada de contato e interação após uma briga 
entre crianças uma característica homóloga ou homoplás-
tica, em relação à reconciliação de primatas não-humanos em 
circunstâncias semelhantes? Mesmo que não seja prudente 
responder que sim, a comparação pode ser frutífera. 
Os dados com animais indicam claramente existir conti-
nuidade evolutiva em muitos processos sociais e inclusive 
na possibilidade de transmissão de tradições comporta-
mentais de uma geração para outra. Fornecem ainda uma 
base forte para a idéia de que o ser humano é biologica-
mente cultural (de acordo com a bela expressão de meus 
colegas Vera Sílvia Bussab e Fernando Leite Ribeiro, 1998). 
No entanto, a compreensão do comportamento humano 
permanece necessariamente aberta aos aportes de um olhar 
psicológico, centrado na experiência individual, e ao olhar 
antropológico dirigido aos aspectos coletivos da experiên-
cia. Não reduzir, mas ver melhor as características distin-
tivas e a complexidade do fenômeno humano na conti-
nuidade/ descontinuidade com outras espécies e dentro do 
quadro evolutivo do qual ele não pode escapar. 
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