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FIL OS OF IA Pré -Ve sti bu lar 10 00 FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L FI L Fil os ofi a 18 1 Capítulo 1 Filoso� a: origens e temas ................................254 Exercícios Propostos .................................... 270 Módulo 1 Do mito ao logos: origens da Filoso� a ....... 270 Módulo 2 Temas de � loso� a: conhecimento .............. 275 Módulo 3 Temas de � loso� a: ética e política .............. 279 Gabarito dos Exercícios Propostos................ 283 MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C 25 4 DI M IT RI OS . S HU TT ER ST OC K CO LE ÇÃ O PA RT IC UL AR 1 Filosofia: origens e temas Na mitologia grega, Atena, também conhecida como Pa- las Atena, era a deusa da sabedoria, entre outras qualidades que lhes eram atribuídas pelos gregos antigos. Tales de Mi- leto, que viveu entre os séculos VII e VI a.C., é considerado o primeiro filósofo ocidental. As imagens, que são idealizações dessas personagens, ilustram um importante momento da história do conhecimento: a passagem da mitologia para a filosofia, da cosmogonia para a cosmologia. 1. Do mito ao logos: origens da filosofia Os estudos de filosofia são, frequentemente, antece- didos pela seguinte interrogação: o que é a filosofia? Uma resposta direta a essa questão, porém, não é capaz de ofe- recer uma definição satisfatória dessa forma de conheci- mento. Afinal, a filosofia caracteriza-se por considerável amplitude e, de suas origens à atualidade, percorre uma história na qual se inscrevem significativas transforma- ções, com a constituição de diferentes áreas de pesquisa e sucessivas reorientações das tarefas pertinentes à ativi- dade filosófica. Sendo assim, se pretendemos atingir uma compreensão básica da filosofia, mais adequado do que a busca por sua definição preliminar é o exame gradual do seu surgimento, das perguntas que mobilizam a reflexão filosófica, da formação de seus campos temáticos e das relações entre o saber filosófico e as demais modalidades de conhecimento. MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 25 5 PV 2D -1 7- 10 A filosofia consiste em uma elaboração cultural da hu- manidade. No interior do próprio processo de humanização, desde os seus primórdios, os seres humanos se distinguem crescentemente como seres socioculturais: com sua inteli- gência, elaboram socialmente conhecimentos vinculados às necessidades práticas, desenvolvem recursos técnicos e pro- jetam-se além da condição que lhes é imediatamente apre- sentada pela natureza. Em outras palavras, produzem uma realidade propriamente humana, a cultura. Cultura, em seu amplo significado antropológico, envol- ve não apenas um segmento específico das atividades hu- manas ou os equipamentos com os quais os seres humanos se relacionam com o meio natural, mas também a dimensão dos valores morais, dos símbolos, das normas sociais, dos padrões de comportamento e das visões de mundo social- mente construídas. Como seres sociais e culturais, os se- res humanos enfrentam questões que ultrapassam as exigências materiais de sua sobrevivência, perguntam-se sobre a origem do Universo, sobre os fenômenos naturais, sobre a vida. As primeiras respostas socioculturais a essas questões são apresentadas na esfera do pensamento mítico, ou seja, nas mais remotas sociedades humanas, nas civilizações do Antigo Oriente – Egito, Mesopotâmia, Pérsia, dentre outras – e nos séculos iniciais da Antiguidade grega, em que predo- minam as narrativas mitológicas que conferem sentido ao conjunto da realidade cósmica, natural e social. Os relatos míticos são descrições que pretendem justificar a ordena- ção do Universo, os eventos da natureza e as relações so- ciais em bases sobrenaturais, quer dizer, nos domínios do pensamento mitológico, a realidade tem seu ponto de par- tida e fundamentação nas relações hierarquizadas entre os deuses e nas forças divinas que, supostamente, estabele- cem a ordem universal. Didaticamente, podemos dividir os mitos em teogo- nias e cosmogonias. As teogonias, discorrendo sobre as genealogias dos deuses, realizam a exposição das relações hierárquicas entre os seres divinos, em seus conflitos e suas alianças, com os quais se originam os seres do mundo. As cosmogonias, por seu turno, relatam a ordenação do mundo precisamente a partir dos des- dobramentos das relações das divindades entre si, pro- curando, dessa forma, fundamentar os fenômenos que presenciamos no mundo. Transmitidos através das gerações, os mitos são acei- tos sob o prisma da tradição cultural amparada na crença na supranaturalidade. Essa aceitação de seus relatos, me- diada por autoridades políticas e religiosas, não comporta atitudes críticas, pautadas por questionamentos aos seus conteúdos. Nesse contexto, os mitos cumprem a finalidade pedagógica de orientar os seres humanos, situando-os em um mundo presumivelmente regido por uma ordem fixada em planos divinos. A prevalência sociocultural da mitologia se estende por muitos milênios em diferentes sociedades humanas, permanecendo absoluta até meados do século VI a.C., quando, na Grécia Antiga, desenvolveu-se uma forma de pensamento exterior ao mito e à religiosidade, instauran- do uma inovação cultural cujas repercussões seriam deci- sivas para a história da humanidade: trata-se do surgimen- to da filosofia. A. O surgimento da filosofia Para entender o surgimento da filosofia no mundo grego, é preciso, inicialmente, examinar uma questão fun- damental: o que caracteriza a originalidade do emergente pensamento filosófico? Diferentemente das narrativas mi- tológicas, sustentadas pela crença na supranaturalidade, a atitude filosófica converte os temas da origem e da ordem do mundo à condição de problemas a serem resolvidos es- tritamente pela inteligência humana. A atividade filosófica compromete-se com a busca pelo conhecimento exclusiva- mente racional da realidade, sem recorrer, portanto, à credu- lidade prévia nos seres divinos e à aceitação de pressupos- tos sobrenaturais. Os primeiros filósofos gregos dedicaram-se ao exame da physis, termo convencionalmente traduzido por natureza. Entretanto, é preciso notar que o teor semântico de physis é mais vasto e profundo, se comparado ao significado que nossa cultura contemporânea atribui à expressão ‘natureza’. Physis é o princípio originário, fundamento de tudo o que existe (a arqué), o princípio interno responsável pela geração e pela organização do cosmos e de seus diversos componentes. É a realidade subjacente à nossa experiência, ou seja, o que é pri- mário, fundamental e persistente, contrastando, então, com aquilo que é secundário, derivado e transitório. É a substân- cia de que são feitas todas as coisas, ao mesmo tempo que consiste no próprio processo de surgimento e de desenvol- vimento do conjunto da realidade. É a essência presente na pluralidade ou, dito de outra maneira, physis é a totalidade daquilo que é: céu, pedras, estrelas, seres humanos, enfim, a multiplicidade de elementos existentes pertencem à physis, uma vez que são a physis. Esse entendimento mínimo sobre a noção grega de physis auxilia na compreensão da originalidade da postu- ra de Tales de Mileto (625-586 a.C.), identificado como o personagem inaugural da filosofia pela maioria dos histo- riadores. Tales afirma que a água é o princípio originário, a unidade primordial do cosmos e da diversidade que encon- tramos em seu interior. Para o primeiro filósofo, portanto, a água é a physis, o princípio fundamental, presente na tota- lidade daquilo que existe. Uma asserção desse tipo parece pouco relevante e mes- mo extravagante sob o prisma contemporâneo, motivo pelo qual é necessário sublinhar o ineditismo de Tales. Ao declarar tal sentença, esse pensador esboça uma explicação racio- nal acerca do cosmos, excluindo os pressupostos divinos da ordenação do mundo e inaugurando a problematizaçãofilosófica. Dessa forma, Tales inicia a filosofia ao converter os temas tradicionais da mitologia em problemas para os quais se devem oferecer soluções racionais. Sua declaração de que a água é a unidade fundamental do cosmos contém, implici- tamente, a indicação de relevantes questionamentos filosófi- cos, tais como: • Qual é o princípio originário do cosmos? • Como se processam a geração, o crescimento e a cor- rupção dos seres? • O que permanece em meio às múltiplas transforma- ções que observamos no mundo? Tais questões, pensadas rigorosamente como problemas filosóficos, exigem a elaboração de respostas demonstradas de modo racional e, de maneira diversa dos mitos, cujo valor de verdade é postulado com base na autoridade da tradição, LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 25 6 PV 2D -1 7- 10 as teses autenticamente filosóficas – que pretendem se estabelecer como explicações racionais da realidade – são avaliadas de forma crítica sob a perspectiva da razão. O mito reivindica a veracidade de seus relatos na reverência aos an- cestrais, em seu viés religioso e na autoridade de quem os pronuncia, excluindo a postura crítica daqueles que acolhem seus ensinamentos. Já a tese filosófica sustenta-se unica- mente em sua racionalidade e, sendo assim, é passível de ser criticada de modo racional. Uma afirmação filosófica como a de Tales, em razão de sua pretensão racional, é sujeita a críticas, a contra-argu- mentações, a reformulações e correções racionalmente su- geridas. A nascente atividade filosófica, portanto, introduz na cultura grega e, em sentido mais amplo, na cultura ocidental, um espaço crítico e racional de diálogos, debates e argumen- tações, isto é, a filosofia ultrapassa os limites do pensamento mitológico e realiza-se na esfera do logos. Logos é o vocábulo grego que, de maneira muito re- sumida e condensada, é empregado nos dias atuais como sinônimo de razão. Em seu sentido originariamente grego, logos remete a significados diferentes e articulados entre si, tais como pensamento, linguagem, discurso, argumen- to, norma, conhecimento racional e ser ou realidade ínti- ma e essencial de algo. A constatação das diferenças entre o mito e a filosofia são suficientes para concluir que entre pensamento filosó- fico e pensamento mítico verifica-se um corte radical – ou, entre ambos, haveria uma espécie de linha de continuida- de? Não há interpretação unânime ou consensual a res- peito da transição do mito ao logos entre os historiadores da filosofia. Destaca-se, isto sim, a divergência: há os que defendem a existência de vínculos essenciais entre narrati- vas míticas e discursos filosóficos e aqueles que atribuem à pesquisa filosófica uma ruptura completa em relação aos relatos míticos. Sob o ponto de vista da continuidade da fi- losofia com o mito, a filosofia não surge exatamente entre os gregos. Ela procede das antigas civilizações orientais nas quais se sistematizaram extensas narrativas mitológicas. Sob o ponto de vista do total rompimento da filosofia com o mito, a filosofia corresponde a uma criação plenamente original da cultura grega. Entre os estudiosos que compreendem a filosofia como prolongamento do mito, ainda que sob forma notavelmente modificada, situam-se Werner Jaeger (1888-1961) e Francis Macdonald Cornford (1874-1943), para os quais a filosofia transfere as formulações míticas para o plano do discurso laico, quer dizer, consiste na progressiva racionalização dos conteúdos da mitologia. De acordo com essa perspectiva, a filosofia não se diferencia essencialmente do mito, pois os primeiros filósofos mantêm a estrutura das narrativas míticas e não submetem suas teses à experimentação e à prova, limi- tando-se a reelaborar os conteúdos míticos sob uma estrutu- ra discursiva abstrata. A tese que concebe o pensamento filosófico como com- pleta ruptura em relação ao mito difunde-se amplamente com os escritos do intelectual britânico John Burnet (1863-1928), para quem as diferenças entre a mitologia e a filosofia não são secundárias, mas sim essenciais. Segundo essa con- cepção, os mitos se restringem a narrativas pretéritas, pro- curando justificar a realidade em acontecimentos que teriam transcorrido no passado. Já a filosofia lança-se à busca da identificação de princípios explicativos que continuam atuando no tempo presente. Distinção ainda mais essencial procede da observação de que os relatos míticos são reple- tos de contradições, com as quais se reforça seu caráter supranatural e misterioso. A filosofia, ao contrário, procura suprimir racionalmente as contradições em um discurso coerente. Sob essa ótica, não há vínculos fundamentais en- tre mito e filosofia. Vigora, assim, uma nítida linha de conti- nuidade entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico, que se desenvolveria na era moderna. Além disso, afirma-se que a filosofia é uma criação absolutamente origi- nal dos gregos antigos, teoria que é conhecida como tese do milagre grego. Atualmente, porém, predomina uma interpretação inter- mediária, que recusa os extremismos das teses anteriores. Um expoente desse pensamento é o historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), que supera as concepções extremas com seu conceito de transformação qualitativa. Ele considera pertinentes os apontamentos sobre os elos entre mito e filosofia, bem como os registros acerca das influências das culturas orientais sobre os gregos antigos. Entretanto, rejeita a hipótese que reduz a filosofia a uma modalidade di- ferenciada da linguagem mítica. Vernant afirma que os pen- sadores gregos recolhem a herança mítica e cultural, trans- formando-a qualitativamente na elaboração de uma forma inédita de investigação da realidade. Trata-se, segundo esse historiador, do pensamento filosófico, cujas principais carac- terísticas são: a racionalidade como critério de verdade, a ne- cessidade de o discurso demonstrar a concepção defendida, a exigência de pesquisa racional dos problemas teóricos, a busca pela explicação das causas dos fenômenos, a análise crítica e a tendência à generalização. B. As condições históricas do surgimento da filosofia Ao se considerar a origem grega da filosofia, emerge a se- guinte questão: quais são as condições históricas que propor- cionam o contexto sociocultural favorável ao desenvolvimen- to do pensamento filosófico? São muitos os fatores históricos que costumam ser indicados como oportunos ao nascimento da filosofia: a humanização dos deuses gregos, as viagens marítimas, o desenvolvimento de uma economia comercial urbana, a utilização em larga escala da moeda, a criação de um calendário laico, o uso do alfabeto e a atividade política. A projeção de traços humanos nas divindades gregas ou a concepção dos deuses à imagem dos seres humanos faci- lita a autonomia humana em relação à religiosidade, algo que constituiria importante aspecto da especulação filosófica. No mesmo sentido, atuam as viagens marítimas, que revelam a discrepância entre os relatos míticos e as observações geo- gráficas efetuadas, e a adoção de um calendário desvincula- do da religião, organizado com base em eventos humanos e regularidades da natureza. A economia comercial urbana, a circulação generalizada da moeda e o uso do alfabeto tam- bém contribuem para o desenvolvimento de um pensamento abstrato, por serem atividades que exigem, em si mesmas, razoável nível de abstração. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 25 7 PV 2D -1 7- 10 A articulação entre esses aspectos históricos e sua participação no contexto sociocultural que explica o surgimen- to da filosofia apenas se tornam realmente compreensíveis no universo da pólis grega. Nos reinos orientais da Antigui- dade e no início da história antiga grega, o poder administrativoconcentra-se na figura do monarca que, legitimado por sua suposta descendência dos deuses, exerce verticalmente sua autoridade e representa a noção de permanência da ordem social tecida pelas divindades. As cidades-Estado gregas, formadas no período arcaico e consolidadas em con- figurações democráticas ou oligárquicas na época clássica da Antiguidade helênica (séculos V a.C. e IV a.C.), instituem uma novidade histórica. Trata-se do surgimento da política, compreendida como corpo cívico no qual os cidadãos, em igualdade de condições, apresentam propostas, debatem e participam diretamente das decisões de sua comunidade. Nas assembleias das cidades gregas, o discurso racional assume o plano principal dos debates, pois os temas da coletivi- dade são discutidos por cidadãos que, para a defesa de seus pontos de vista, dependem apenas da qualidade de suas argumen- tações. Neste domínio público da cidadania, com suas práticas de pensamento separadas da religiosidade, transcorre a racio- nalização das relações sociopolíticas e a constituição de uma cultura propensa à dessacralização do saber. Pode-se constatar que o surgimento da filosofia – investigação racional do cosmos e, posteriormente, das questões humanas – corresponde ao exercício da política na dimensão do logos. 01. Unioeste-PR Advento da polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos, os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega. Assim recolocada na história, a filosofia despoja-se desse caráter de re- velação absoluta que às vezes lhe foi atribuído, saudando, na jovem ciência dos jônios, a razão intemporal que veio encarnar-se no Tempo. A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma razão, uma primeira forma de racionalidade. Jean Pierre Vernant Sobre a filosofia, seguem as seguintes afirmações. I. Ela foi revelada pela deusa Razão a Tales de Mileto quando este afirmou que o princípio de tudo era a água. II. Ela foi inventada pelos gregos e decorre do advento da pólis, a cidade organizada por leis e instituições que, por meio delas, eliminou todo tipo de disputa. III. Ela rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos; problematiza, discute e põe em questão até mesmo as teorias racionais elaboradas com rigor filosófico. IV. Surgiu no século VI a.C. nas colônias gregas da Magna Grécia e da Jônia e apenas no século seguinte deslocou-se para Atenas. V. Ocupa-se com os princípios, as causas e as condições do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; põe em questão e problematiza valores morais, políticos, religiosos, artísticos e culturais. Das afirmações feitas acima: a. I, III e V são corretas. b. I e II são incorretas. c. II, IV e V são corretas. d. todas são corretas. e. todas são incorretas. Resolução O texto de Jean-Pierre Vernant vincula o surgimento e o desenvolvimento inicial da filosofia às condições sócio-his- tóricas das antigas cidades gregas, caracterizadas pela atividade política como esfera de argumentações e debates. As afirmações III e V versam sobre a atividade filosófica grega. A asserção IV descreve corretamente a localização geo- gráfica do surgimento da atividade filosófica e o posterior deslocamento de seu núcleo para Atenas. Os itens I e II são falsos. Observamos que a afirmação II torna-se falsa quando declara que leis e instituições eliminaram as disputas nas cidades gregas. Alternativa correta: B APRENDER SEMPRE 24 2. A filosofia pré-socrática As especulações em torno da physis recebem o nome de cosmologia, por consistirem na investigação racional do cos- mos, termo grego que significa o Universo ordenado, a ordem natural do mundo. Os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, pesquisam a origem do cosmos, a passagem do uno ao múltiplo, suas transformações, as causas dos fenô- menos naturais. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 25 8 PV 2D -1 7- 10 A expressão pré-socráticos, consagrada na história da filosofia, procede da importância central que os his- toriadores atribuem ao ateniense Sócrates no curso do pensamento filosófico – alguns entendem, inclusive, que a filosofia realmente se inicia com a proposta socrática de investigação dialética da natureza humana. Cumpre des- tacar que o prefixo pré, neste caso, não possui sentido exatamente cronológico, uma vez que alguns dos deno- minados filósofos pré-socráticos foram contemporâneos de Sócrates. É sabido que Tales de Mileto é considerado o fundador da filosofia. Ao declarar que a água é a arqué, a unidade primor- dial da physis – presente na diversidade ordenada do cos- mos –, Tales situa o princípio explicativo da natureza na pró- pria natureza. Dessa forma, descarta a concepção mítica de que o mundo supranatural seja o suporte do mundo natural ordenado, a ideia de uma natureza governada pelos deuses. Além disso, efetua a tentativa inaugural de reduzir a multipli- cidade percebida no mundo – os diferentes elementos e se- res existentes – à unidade exigida pela razão, comprometida com a revelação da essência originária do cosmos. NU LL |D RE AM ST IM E Ao afirmar a água como arqué, Tales atribui à própria natureza o seu princípio explicativo. Por não examinar a transformação do princípio primordial na diversidade interna que caracteriza o cosmos, Tales de Mi- leto não respondeu à questão: como se realiza a passagem da arqué para todas as coisas que existem? Compondo um discurso racional que contempla a totalidade da physis, de sua arqué ao seu vir a ser, os primeiros filósofos que apresen- tam uma explicação sobre a passagem do uno ao múltiplo são Anaximandro de Mileto (620-547 a.C.), Anaxímenes de Mileto (585-528 a.C.) e os componentes da escola pitagórica. Para Anaximandro, o ápeiron, infinito espacial e qualitativo, é a uni- dade geradora do cosmos, o princípio do qual surge o mundo pela separação de contrários. Conforme sua concepção, a for- mação do cosmos inicia-se com a divisão entre quente e frio: dela surgem o sol, a lua a os astros, derivados do quente, e o céu, a terra e o mar, derivados do frio. Nesta permanente ten- são entre contrários, desenvolve-se a vida, dos seres aquáti- cos às suas formas mais sofisticadas. Anaxímenes de Mileto, por sua vez, afirma que o ar é a arqué, argumentando que sua ausência inicial de forma permite que se transforme na imensa variedade de coisas existentes, por meio da conden- sação e da rarefação, fenômenos que constituem o Universo como um complexo ser vivo. Tese consideravelmente original é a desenvolvida pela escola pitagórica, fundada por Pitágo- ras de Samos (570-497 a.C.), na cidade grega de Crotona. O pitagorismo declara a harmonia inteligível como fundamen- to da harmonia sensível, sentenciando que o cosmos tem o número como arqué, ou seja, os princípios matemáticos são os elementos constitutivos do Universo. Para os pitagóricos, a arqué é o uno primordial imutável, que contém em si a pari- dade e a imparidade, das quais desdobram-se a totalidade da physis e os seres em sua pluralidade. Com Heráclito de Éfeso (540-475 a.C.) e Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), a filosofia pré-socrática atinge novo pa- tamar especulativo, estabelecendo-se o conflito entre as te- ses heraclitianas do devir e as teses parmenidianas do ser ou entre ser e devir, que exerceria profunda ascendência sobre os caminhos posteriores do pensamento filosófico. Em Heráclito de Éfeso, a reflexão filosófica concentra-se no devir, pois, de acordo com esse pensador, o conjunto da realidade consiste no incessante vir a ser, o fluxo universal que produz a mudança ininterrupta de todas as coisas. Na mobilidade perpétua, um ser não permanece idêntico a si mesmo, desloca-se necessariamente em seu contrário. O dia converte-se em noite, o calorconverte-se em frio, a saúde converte-se em doença, a vida converte-se em morte, a noite converte-se em dia, o frio converte-se em calor, a morte con- verte-se em vida. O devir é eterno e a estabilidade é ilusória. A imagem da eternidade do vir a ser é oferecida pelo próprio Heráclito, ao declarar que um mesmo homem jamais poderá entrar no mesmo rio, porque o ser humano já não seria idên- tico à sua anterioridade e outras seriam as águas do rio. Na perspectiva heraclitiana, a guerra é o fundamento de todas as coisas, a tensão dos contrários que se harmonizam por seus limites – por exemplo, a doença é que confere valor à saúde –, articuladas no princípio superior do fogo primordial. O fogo primordial é o logos, a racionalidade imanente ao Universo, que sustenta a multiplicidade na unidade de opostos, unida- de do movimento universal. Se a filosofia de Heráclito se notabiliza por sua dedicação em revelar racionalmente o mundo dos fenômenos, o devir, Par- mênides de Eleia, em sentido contrário, rejeita a aparente mul- tiplicidade do vir a ser com sua afirmação racional da realidade exclusiva do ser. Comparativamente aos filósofos pré-socráticos anteriores, que se perguntavam pelo princípio da ordenação do cosmos, Parmênides propõe uma indagação absolutamente ori- ginal: o que é o ser? E sua resposta é surpreendente: o ser é. Em termos mais extensos, essa resposta adquire a formulação: o ser é (o que é é) e o não ser não é (o que não é não é). Entende-se melhor essa solução teórica parmenidia- na ao observar que esse filósofo, pretendendo manter-se nos limites fixados pela coerência da razão, pensa o ser em si, sentenciando sua plena positividade e recusando a hipótese de transição do ser ao não ser e do não ser ao ser. Parmênides caracteriza o ser como uno, eterno, imu- tável, indivisível e pleno. O ser é uno, pois a admissão de uma pluralidade de seres implicaria a introdução do não ser no ser. É eterno porque a aceitação da noção de tempo- ralidade conduziria à afirmação de seu surgimento a partir do não ser. Da mesma forma, é imutável e indivisível, uma vez que a transformação deslocaria o ser para o não ser e LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 25 9 PV 2D -1 7- 10 a divisibilidade resultaria na multiplicidade no interior do ser. Por fim, o ser é pleno, dado que não se aceita racional- mente a existência do não ser. Para Parmênides, portanto, o pensamento e a linguagem, corretamente conduzidos, exprimem necessariamente o ser – não se pode pensar o não ser, o nada. E o mundo da experiên- cia, dos fenômenos e do devir, aquilo que percebemos com os nossos sentidos, é desprezado por não se compatibilizar com o exame racional que esse filósofo realiza do ser. Na questão proposta por Parmênides – o que é o ser? – e em suas teses filosóficas, anuncia-se um novo campo de reflexões filosóficas, antes apenas latente nos discur- sos cosmológicos, a metafísica ou ontologia. A metafísica versa sobre o ser enquanto ser, o ser em geral, o ser em si, além das aparências e das experiências físicas. A ontologia de Parmênides é defendida pelos procedimen- tos argumentativos de Zenão de Eleia (490-430 a.C.), filósofo que refuta racionalmente os dados da experiência, preten- dendo demonstrar aos críticos da concepção parmenidiana as contradições de suas teses. Os paradoxos apresentados por esse pensador têm o propósito de esclarecer que noções como divisibilidade, mobilidade e multiplicidade, ou seja, o devir, não se sustentam em um discurso racional. Um dos ar- gumentos utilizados por Zenão é conhecido como o paradoxo de Aquiles. Aquiles é um importante personagem da mitologia grega e a velocidade é uma de suas importantes característi- cas. Entretanto, observa o filósofo, Aquiles não conseguiria su- perar uma tartaruga em uma corrida, desde que o animal saís- se à sua frente. Considerando a hipótese do espaço divisível, Zenão destaca que o herói mítico, desejando alcançar sua opo- nente, deveria, para começar, percorrer metade da distância entre ele e a tartaruga. Antes disso, contudo, deveria percor- rer metade dessa metade e assim sucessivamente, ou seja, Aquiles jamais atingiria a mesma posição de sua adversária, nunca a ultrapassaria. Com a exposição de paradoxos deste tipo, esse pensador defende o teor ilusório dos fenômenos recolhidos por nossas sensações e reafirma a confluência do pensamento com o ser, fixada racionalmente por Parmênides. ZE RB OR |D RE AM ST IM E Outro paradoxo utilizado por Zenão é o argumento do arco e da flecha. Repartindo o suposto movimento da flecha em direção ao alvo em cada um de seus instantes, tem-se sempre a flecha parada. A ideia de movimento, conclui o filósofo, não resiste à avaliação criteriosa da razão. 01. UEL-PR A Rainha Vermelha diz uma frase enigmática: “Pois aqui, como vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar”. CARROL, L. Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 186. Já na Grécia antiga, Zenão de Eleia enunciara uma tese também enigmática, segundo a qual o movimento é ilusório, pois, numa corrida, o corre- dor mais rápido jamais consegue ultrapassar o mais lento, visto o perseguidor ter de primeiro atingir o ponto de onde partiu o perseguido, de tal forma que o mais lento deve manter sempre a dianteira. ARISTÓTELES. Física. Z 9, 239 b 14. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os pré-socráticos. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 284. Com base no problema filosófico da ilusão do movi- mento em Zenão de Eleia, é correto afirmar que a. se baseia na observação da natureza e de suas transformações, resultando, por essa razão, numa explicação naturalista pautada pelos sentidos. b. confunde a ordem das coisas materiais (sensível) e a ordem do ser (inteligível), pois avalia o sensí- vel por condições que lhe são estranhas. c. ilustra a problematização da crença numa verda- deira existência do mundo sensível, à qual se che- garia pelos sentidos. d. mostra que o corredor mais rápido ultrapassará inevitavelmente o corredor mais lento, pois isso nos apontam as evidências dos sentidos. e. pressupõe a noção de continuidade entre os ins- tantes, contida no pressuposto da aceleração do movimento entre os corredores. Resolução O paradoxo desenvolvido por Zenão problematiza as noções que nos são fornecidas pelos sentidos, concluin- do que os fenômenos do devir devem ser descartados por sua irracionalidade. Alternativa correta: C APRENDER SEMPRE 25 O contraste entre a filosofia de Heráclito e a concepção eleata do ser promove um impasse no pensamento filosó- fico e instaura um corte conceitual entre os fenômenos do devir e as exigências racionais do ser. Nesse contexto, os últimos filósofos pré-socráticos desenvolvem teses dedica- das à conciliação da realidade heraclitiana com o conceito parmenidiano de ser, ou seja, à conjugação entre cosmologia e metafísica. Em geral, essas filosofias conservam as noções de eternidade e de imutabilidade do ser, mas pensam o ser no plural e concebem o devir como composição e decompo- sição de seres eternos e indestrutíveis, e não como transi- ção do não ser ao ser e do ser ao não ser. Essa orientação filosófica, intitulada pluralista, tem seus representantes em Empédocles de Agrigento (483-421 a.C.), Anaxágoras de Cla- zômenas (500-428 a.C.) e nos atomistas Leucipo (provavel- mente 480-420 a.C.) e Demócrito de Abdera (460-370 a.C.). LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 0 PV 2D -1 7- 10 Empédocles de Agrigento afirma que os seres primordiais são a água, a terra, o fogo e o ar. Essa pluralidade de seres imu- táveis se articula sob o amor e o ódio, forças cósmicas, respecti- vamente, de atração e de dispersão, que definemo fundamento do devir. Anaxágoras de Clazômenas explica a physis por uma multiplicidade de elementos ou sementes originais, as homeo- merias, inicialmente agrupadas em uma totalidade que tem em si todos os diversos componentes do cosmos. Segundo Anaxá- goras, um princípio inteligente, o nous, é responsável pela dis- persão dessa unidade primordial e pelos arranjos que formam o Universo. Leucipo e Demócrito, por sua vez, compreendem a pluralidade dos seres em dimensão simplesmente quantitativa, e não qualitativa: trata-se de elementos indivisíveis, denomina- dos de átomos, que não se distinguem entre si por suas qua- lidades, possuindo apenas diferentes tamanhos e formas. Sob o ponto de vista do atomismo, a geração do cosmos e de sua diversidade interna corresponde às múltiplas combinações de átomos. O nascimento de algo não é a passagem do não ser ao ser, e a morte não é a transição do ser ao não ser: nascimento é reunião de átomos e morte é decomposição atômica. Ao percorrer as origens da filosofia caracterizando-a em seu surgimento na Grécia Antiga como forma de pensamento distinta do mito, foram apresentadas, brevemente, as espe- culações filosóficas iniciais, a filosofia pré-socrática. Em sua etapa inaugural, a filosofia realiza-se como cosmologia e como metafísica, em um debate crítico e mobilizado por diferentes teses filosóficas. Foi assinalada a tensão conceitual entre ser e devir, delineada com as filosofias de Parmênides e de Herácli- to, e os esforços, ainda no horizonte da reflexão pré-socrática, de superá-la na articulação da cosmologia com a metafísica. Esse problema filosófico, a relação entre ser e devir, pro- longa-se muito além da fase pré-socrática, permeando a tradi- ção filosófica até os dias atuais. Evidencia-se uma permanen- te herança pré-socrática, com suas questões e elaborações racionais constituindo o pressuposto das problematizações e dos desenvolvimentos teóricos subsequentes da filosofia. Tal constatação não significa que a filosofia não tenha se modificado no curso do tempo. O pensamento filosófico prota- goniza sua própria história e transforma a si mesmo com sua história. Os filósofos de determinada época dialogam com os filósofos de outros períodos e dialogam também com o contex- to sociocultural de seu tempo: a filosofia exercita consistente diálogo com o passado e com o presente. No interior desse de- bate, problemas antes nucleares para a reflexão filosófica são transferidos para plano secundário, bem como desenvolvem-se diversificadas áreas temáticas para a pesquisa filosófica, susci- tadas não somente pelas iniciativas de alguns pensadores, mas em igual medida pelas mudanças das sociedades humanas. Ainda na Antiguidade, no período clássico da filosofia gre- ga, sobrevém a primeira mudança de orientação temática no pensamento filosófico. Com os sofistas e, em especial, com Sócrates, a filosofia transita dos temas da physis para as per- guntas centradas no ser humano. Nessa conversão filosófi- ca, delimitam-se áreas específicas do saber filosófico, como a ética, a antropologia filosófica e a política, que receberiam tratamento sistemático nas teorias de Platão e de Aristóteles. Da filosofia antiga à filosofia contemporânea, prosseguem as transformações, consolidando-se diferentes campos da pes- quisa filosófica, tais como a teoria do conhecimento, a filoso- fia da mente, a filosofia da ciência, a estética, a filosofia da história e a filosofia da linguagem. 3. Temas de filosofia: o conhecimento como tema filosófico A transição do pensamento mítico para o pensamento fi- losófico já foi descrita, evidenciando contraste nas diferentes formas de explicação do mundo. Assinalou-se o surgimento da filosofia como atividade racional de reflexão sobre a realidade, caracterizada pela argumentação, pelo confronto de ideias e pelo debate. Enquanto o mito se oferece como um conheci- mento pronto e definitivo sobre o cosmos, os fenômenos na- turais e os seres humanos, a filosofia se delineia como um per- curso reflexivo e discursivo que pretende atingir racionalmente o conhecimento, a verdade. No primeiro caso, não há margem para questionamentos; no segundo, diferentemente, a própria natureza racional da atividade filosófica exige uma postura crí- tica mediante as teses apresentadas pelos filósofos. A dimensão dialógica da filosofia e as discordâncias dos filósofos pré-socráticos em torno da origem e da ordenação do Universo autorizam a exposição da seguinte pergunta: em que medida seria legítimo declarar a falsidade ou a verdade das divergentes cosmologias pré-socráticas? Essa indaga- ção não se limita a examinar o valor singular das diferentes proposições dos primeiros filósofos, ou seja, não se trata de inspecionar se esta ou aquela explicação sobre o cosmos é verdadeira ou falsa. Questiona-se, isto sim, o fundamento, a condição de possibilidade do conhecimento. É imprescindível mencionar que os pensadores pré-so- cráticos não elaboram essa pergunta, entretanto o caráter especulativo de sua atividade intelectual concede à filosofia a oportunidade de exceder os temas cósmicos, naturais e hu- manos, problematizando a si mesma com esta interrogação: o que é o conhecimento? Em sua história, a filosofia reflete sobre o conhecimento, transformando-o em tema específico de suas especulações, investigado em um horizonte de instigantes problemas como: • O que realmente caracteriza o conhecimento? • Como se diferencia o conhecimento da simples opinião? • Quais critérios definem como verdadeira uma declara- ção sobre a realidade? • Os seres humanos são capazes de conhecer comple- tamente a realidade? • O conhecimento se inicia pela razão ou pelos sentidos? OLEKSANDR TKACHUK | DREAM STIM E O pensador, estátua em bronze do escultor francês Auguste Rodin, de 1904. Na atividade filosófica, o pensamento questiona o próprio conhecimento, refletindo sobre suas possibilidades e seus hipotéticos limites. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 1 PV 2D -1 7- 10 Na filosofia moderna, verifica-se a delimitação do conheci- mento como campo particular de investigações, área denomi- nada teoria do conhecimento, gnosiologia ou epistemologia. É possível observar, porém, que suas raízes remontam ao prin- cípio da filosofia na Antiguidade, uma vez que a compreensão do conhecimento como construção racional desdobra-se na problematização filosófica do próprio conhecimento. É muito comum a utilização dos termos gnosiologia e epistemologia como sinônimos, ambos nomeando a teoria do conhecimento. Entretanto, em sentido rigoroso, a ex- pressão gnosiologia possui maior alcance semântico em relação à palavra epistemologia. Gnosiologia refere-se à pesquisa filosófica sobre o conhecimento em seu amplo conjunto de problemas, isto é, consiste na teoria do co- nhecimento. Epistemologia designa a reflexão filosófica centrada na ciência, examina especificamente os funda- mentos, os métodos e as práticas científicas. Na filosofia pré-socrática, precisamente no discurso cos- mológico de Heráclito de Éfeso e na ontologia de Parmênides de Eleia, insinuam-se as primeiras reflexões acerca do co- nhecimento. Heráclito, assumindo o devir, fluxo de constan- tes transformações, como a essência do real, sentencia que os sentidos são fonte de confusões, o que conduz à ilusão da estabilidade, de que os seres permanecem idênticos a si mesmos quando, na realidade, estão em incessante conver- são para seus opostos. Parmênides, com sua concepção de que o pensamento é necessariamente pensamento do ser, ser uno, eterno, indivisível e imutável, declara como ilusórios os fenômenos de transformação identificados no mundo por meio dos sentidos. Tanto em Heráclito quanto em Parmênides, apesar do antagonismo radical entre suas teses filosóficas, nota-se uma dissociação entre aparência e realidade, bem como o desprezo pelossentidos como fonte de conhecimen- to – e este teria seu verdadeiro ponto de partida na razão. As questões concernentes ao conhecimento expan- dem-se em meados do século V a.C., com os sofistas e com Sócrates. Sofistas e Sócrates renunciam às especulações cosmológicas e transferem o ser humano para o centro das problematizações filosóficas. Na cidade de Atenas, no auge de sua organização sociopolítica democrática, os sofistas concentram-se nas temáticas éticas e políticas. Atuam como professores de retórica cuja tarefa é o desenvolvimento das habilidades discursivas entre os cidadãos, preparando-os para o exercício de suas atividades cívicas. A retórica dos sofistas não se compromete com a identificação de critérios universais de distinção entre o falso e o verdadeiro, com a busca de verdades universais que devem ser racionalmente admitidas por todos os seres humanos. Exemplar a esse res- peito são as antilogias do sofista Protágoras de Abdera. Elas consistem na apresentação de raciocínios diferentes e opos- tos sobre um mesmo tema, hipóteses igualmente racionais e que se excluem reciprocamente, sem que exista um critério externo para atestar a verdade de um argumento e a falsidade de outro. Ainda mais incisivas são as declarações do sofista Górgias de Leontinos, segundo as quais o ser não existe; se existisse, não poderia ser conhecido; e, se pudesse ser co- nhecido, não seria passível de comunicação pela linguagem. Dessa forma, os sofistas colocam em dúvida a possibilidade de o conhecimento encontrar verdades universalmente acei- tas pela humanidade. Diferente é a atitude filosófica de Sócrates. Para ele, os sofistas não realizam uma autêntica atividade filosófica, dado que esta, de acordo com a perspectiva socrática, define-se pela busca sistemática de verdades universais. Sua proposta filosófica, que articula a tentativa de readequação do logos ao ser com o esforço pela identificação da finalidade da vida humana, tem na aceitação inicial da ignorância o seu pressu- posto. Trata-se de um movimento de remoção dos falsos sa- beres, as opiniões convencionalmente expressas pelos seres humanos acerca de diferentes aspectos da realidade, com a intenção de lançar as bases para um saber verdadeiro, cons- truído mediante diálogos racionais. A reflexão sobre o conhecimento recebe considerável es- paço nas teorias filosóficas de Platão (427-347 a.C.) e de Aris- tóteles (384-322 a.C.), filósofos que, inspirados pela propos- ta socrática, desenvolvem complexos sistemas metafísicos para explicar o conjunto da realidade. Nos textos de Platão, o problema do conhecimento é tratado na elaboração de sua Teoria das Ideias, com sua concepção ontológica articulada em dois níveis, o plano sensível e o plano inteligível. Sob o prisma platônico, o conhecimento pleno requer a superação dos sentidos em direção à contemplação racional dos seres em si, das ideias. A filosofia de Aristóteles, com suas proble- matizações sobre o conhecimento, efetua a análise metódica das formas de raciocínio existentes, iniciando os estudos de lógica, e classifica o conhecimento em ciências teoréticas (fí- sica e metafísica), ciências práticas (ética e política) e ciên- cias produtivas (técnicas). As questões sobre o conhecimento persistem nas escolas filosóficas da época helenística e recebem nova orientação na filosofia medieval, sob a ascendência da cultura cristã. O pri- mado cultural do cristianismo impõe a filósofos como Agosti- nho de Hipona (354-430) e Tomás de Aquino (1225-1274), a necessidade de se examinarem as relações entre saber reve- lado e saber racional. As teorias filosóficas medievais procu- ram conciliar o saber revelado com o conhecimento racional, ou seja, as verdades da teologia com as verdades atingidas por intermédio da atividade filosófica. No contexto da filosofia moderna, as interrogações filo- sóficas em torno do conhecimento são situadas no diálogo com as práticas científicas dedicadas a identificar experi- mentalmente as leis da natureza. O britânico Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes (1696-1650) lan- çam-se à busca de fundamentos sólidos para o desenvolvi- mento de conhecimentos seguros da realidade e, para tanto, investigam as causas dos enganos, dos apenas aparentes saberes humanos. Descartes, embora reconheça o rebuscamento intelec- tual legado pela cultura filosófica precedente, rejeita seu valor de verdade, diagnosticando que as diferentes filoso- fias não produziram conhecimentos sólidos e efetivamente úteis para a humanidade. Segundo esse filósofo, a verdade não reside também nas diferentes tradições culturais das sociedades humanas, sendo necessário, isto sim, conduzir corretamente o pensamento para a obtenção de ideias cla- ras, de conhecimentos fundamentados em certezas sobre o mundo. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 2 PV 2D -1 7- 10 Bacon, por seu turno, explica os erros humanos no tocan- te ao conhecimento em sua teoria dos ídolos, falsas noções sobre a realidade, discriminadas em ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro. Os ídolos da tribo procedem da natureza humana, com sua inclinação a reduzir a complexidade à simplicidade, na suposição de que o inte- lecto é capaz de identificar regularidades na natureza com base no que é imediatamente percebido pelos sentidos. Essa postura constitui a fonte de superstições como a astrologia, que submete a observação dos fenômenos da natureza à confirmação de suas previsões. Os ídolos da caverna reme- tem à compreensão das coisas de forma muito particular pelos seres humanos individuais, com sua propensão a inter- pretar a realidade com base em suas crenças, suas preferên- cias, suas pré-noções e seus preconceitos, a saber, confor- mam os objetos investigados às suas expectativas pessoais. Os ídolos do foro são provenientes das relações interpessoais e da ambiguidade imanente à linguagem: a mesma palavra pode ter significados distintos para sujeitos diferentes e, além disso, frequentemente se confunde o que se diz com o que existe. Quanto a esse último aspecto, o intelecto elabora termos abstratos que se referem a elementos inexistentes, imergindo em investigações que o afastam da realidade. Por fim, os ídolos do teatro compreendem os sistemas filosóficos, que, para Bacon, são abstrações conceituais sem relações genuínas com a realidade do mundo: são ficções intelectuais, assim como o são os textos teatrais. Francis Bacon propõe, então, a substituição dos ídolos por uma experiência escritu- rada e metodicamente conduzida para a formação de conhe- cimentos verdadeiros acerca da natureza. Como destacado anteriormente, na filosofia moderna a teoria do conhecimento se estabelece como área própria de pesquisas filosóficas, à medida que, nas reflexões de muitos dos filósofos desse período, concede-se prioridade ao pro- blema do conhecimento. Dito de outra forma, considera-se o tema do conhecimento como prioritário em relação às de- mais questões pertencentes ao repertório investigativo da filosofia. De maneira geral, os filósofos especializados em gnosiologia afirmam que o inglês John Locke é o verdadeiro fundador da teoria do conhecimento porque, em seu estudo intitulado Ensaio acerca do entendimento humano, examina detalhadamente a capacidade humana de conhecimento, questionando seus limites e os aspectos relativos à origem, à essência e à certeza do conhecimento. A. A caracterização filosófica do conhecimento A teoria do conhecimento versa sobre o conhecimento propositivo, o conhecimento de algo, capaz de relatar como algo é, exprimindo-se, assim, em uma declaração a respeito do objeto do seu conhecimento. O conhecimento propositivo distingue-se do conhecimento referente a como fazer algo, que se relaciona com uma habilidade procedimental perti- nente à realização de determinada tarefa. No âmbitoda gnosiologia, predomina a compreensão do conhecimento propositivo como uma relação entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível, isto é, entre sujeito capaz de conhecer e objeto passível de ser conhecido. O sujeito, pensado não sob o ponto de vista do sujeito individual, mas sim da consciência humana em sua capacidade de conheci- mento, relaciona-se com objetos reais que se apresentam à sua experiência a partir de sua existência efetiva e exterior – como os seres e acontecimentos da natureza – e com ob- jetos ideais, exclusivamente pensados como as estruturas matemáticas e as figuras geométricas. Em uma relação de conhecimento, o sujeito apreende conceitualmente o objeto, representa-o em seu pensamento tal como ele é. Em uma ver- dadeira relação de conhecimento, com seus diferentes graus de profundidade e de extensão, o objeto é pensado pelo sujei- to como ele efetivamente é. Sendo assim, o conhecimento realiza-se na correspon- dência do sujeito com o objeto, ou melhor, na concordância do conteúdo do pensamento com a realidade do objeto. Sob essa ótica, somente há conhecimento perfeito ou completo quando o sujeito assimila a realidade de seu objeto em sua máxima extensão e profundidade. Pode-se dizer que quem explica de maneira apropriada as razões das diferentes es- tações climáticas tem um conhecimento parcial da natureza. Um conhecimento completo ou perfeito da natureza exige que o sujeito conheça o conjunto dos fenômenos naturais, a multiplicidade de seres vivos e suas relações, as supostas causas fundamentais de toda a dinâmica natural, a essência da natureza, enfim, exige a apreensão conceitual da natureza em sua extensão e profundidade máximas. Afirmar, portanto, que a humanidade conhece plenamente a natureza não é algo plausível, apesar da longa tradição filosófica e dos mo- dernos conhecimentos científicos. A concepção filosófica tradicional de conhecimento, amparada pelos textos de Platão sobre o tema, entende que crença, justificação e verdade são elementos impres- cindíveis do conhecimento ou, em outras palavras, define o conhecimento como a crença justificada e verdadeira. Uma crença consiste em uma espécie de representação mental da realidade, a convicção a respeito de algo. A crença é aspec- to indispensável do conhecimento – seria uma contradição afirmar, por exemplo, saber da existência da lei da gravidade e, no entanto, não acreditar que a lei da gravidade realmente exista. A crença isolada, entretanto, não proporciona garantia de conhecimento. Para ser conhecimento, uma crença deve ser justificada e verdadeira. A justificação de uma crença con- siste em um conjunto suficiente de indícios racionais e empí- ricos, de evidências fornecidas pela razão e pela experiência, que sustentem a sua validade. Uma crença justificada será verdadeira se o pensamento do sujeito representar correta- mente a realidade do objeto do seu conhecimento. A análise tradicional do conhecimento também admite a existência de uma crença falsa, mas justi- ficada. Com efeito, esse tipo de crença parece mui- to comum. No passado, era justificável que muitos cressem que a Terra é plana. A crença deles era errada, como sabemos, mas, dadas as melhores informações de que então dispunham, tinham ra- zões justificadas para sustentar essa crença. [...] Muito embora eles atendessem à condição de crença e à condição de justificação, não atendiam à condição de verdade para terem conhecimento. MOSER, Paul K.; MULDER, Dwayne H.; TROUT, J. D. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 19. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 3 PV 2D -1 7- 10 A definição do conhecimento como crença justificada e verdadeira, embora bastante difundida nos círculos filosófi- cos, não é unânime entre os estudiosos, inexistindo sequer o consenso sobre a noção de verdade. Afinal, o que é a ver- dade? Esse problema filosófico, fundamental na gnosiologia, mobiliza reflexões e interpretações muito divergentes entre si. Correspondência, relativismo e pragmatismo são algumas das teses filosóficas sobre a verdade. B. Diferentes concepções filosóficas da verdade Na caracterização tradicional de conhecimento, a tese da verdade foi mencionada como correspondência entre su- jeito e objeto. É a concepção de que a verdade se realiza na confluência entre o pensamento e as características reais do mundo, da adequação entre o intelecto e a realidade. De acordo com essa noção, uma proposição é verdadeira se ex- prime uma representação mental exata do objeto, isto é, se retrata conceitualmente o objeto como ele é de fato. Em sen- tido contrário, uma proposição é falsa se atribui ao objeto do conhecimento características que não são suas, quer dizer, se não apresenta de forma discursiva o objeto como ele efe- tivamente é. Diversa é a concepção relativista de verdade. O relativis- mo posiciona a verdade nos sujeitos humanos individuais e nos grupos humanos, recusando o caráter de universalidade da verdade. Em termos mais claros, recusa a ideia de que as verdades se estabeleçam em uma dimensão universal, exi- gindo sua aceitação por todos os seres humanos que utilizam apropriadamente sua capacidade de conhecimento. Sob o ponto de vista relativista, diferentes sujeitos, pautando-se pelos mesmos critérios para conhecer o mundo, podem atin- gir diferentes conclusões sobre a realidade. Precursor do relativismo é o sofista Protágoras, com sua observação de que o ser humano individual é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são. Assim, uma única proposição é verdadeira para alguns, enquanto é falsa para outros. Expandida para o plano cultural, as verdades de uma sociedade humana podem ser falsidades para outras culturas. Na perspectiva relativista, portanto, não há nenhum elemento exterior aos seres humanos que se constitua como critério de verdade, ou seja, não há verdades universais e ab- solutas, mas sim verdades relativas. Entre filósofos contemporâneos como William James (1842-1910), John Dewey (1859-1952) e Richard Rorty (1931-2007), desenvolve-se a filosofia pragmatista, que desloca a verdade para a dimensão de suas consequências práticas na vida social. Considerando o ser humano como ser cuja vontade é orientada para a prática e, assim sendo, no qual o intelecto está subordinado à ação, o pragmatismo compreende a verdade na convergência do pensamento com o que é vantajoso, benéfico e útil à sociedade. Nesse sentido, algo é verdadeiro quando torna melhor a vida huma- na, articulando os múltiplos interesses que se manifestam na sociedade – a verdade não tem um conteúdo eterno e imutável; ao contrário, é produzida e modificada na dinâmica social da humanidade. C. Dogmatismo e ceticismo As discussões filosóficas em torno da verdade relacio- nam-se com o problema das possibilidades e dos limites do conhecimento humano. Pode-se conhecer efetivamente a realidade? Os indivíduos são capazes de conhecer total ou apenas parcialmente a realidade? As respostas a essas per- guntas são diversas, compondo um arco que se estende do pressuposto de que a humanidade pode conhecer perfeita- mente o conjunto do real até a concepção de que os seres humanos jamais atingem um conhecimento verdadeiro de qualquer aspecto do mundo. Entre essas posturas extre- mas, elaboram-se perspectivas intermediárias, conforme as quais o conhecimento contempla alguns fenômenos do mundo, ao mesmo tempo que não se aplica a outros níveis da realidade. Por exemplo, seria possível conhecer determi- nadas leis naturais, mas não seria possível explicar a essên- cia da natureza. Em seu início pré-socrático, a filosofia não conside- ra possíveis limites para o conhecimento, depositando absoluta confiança na capacidade humana de conhecer a physis. Pode-se afirmar que os primeiros momentos da filosofia, em que pese sua naturezacrítica e dialógica, são marcados pelo dogmatismo. A atitude dogmática, no senti- do mais usual da expressão, define-se pela noção de que há verdades indiscutíveis, que não se prestam ao exame racional – exemplares, a esse respeito, são os dogmas re- ligiosos, pontos doutrinários de uma religião, que devem ser simplesmente acatados na pressuposição de sua ver- dade. No vocabulário filosófico, o dogma consiste na pré- via convicção de que não existem limites cognitivos para a humanidade. Dito de outra forma, o dogma consiste na ausência de problematização do conhecimento. No século XVIII, o filósofo alemão Immanuel Kant utiliza a expressão dogmatismo em referência a todas as filosofias que não examinam a própria razão e seus limites, muitas vezes ex- trapolando para temáticas metafísicas que não se situam ao verdadeiro alcance do conhecimento. Muito diferente do dogmatismo é o ceticismo, que nega a capacidade humana de conhecimento. Em sua versão abso- luta, o ceticismo declara que os seres humanos jamais atin- gem uma verdade sobre o mundo. A manifestação primor- dial do ceticismo está nas declarações do sofista Górgias: o ser não existe; se existisse, não poderia ser conhecido; se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado. É na época helenística da filosofia grega que o ceticismo se pronuncia mais claramente como pensamento de uma escola filosófica, destacando-se a atuação de Pirro de Élis (360-270 a.C.). Para o ceticismo pirrônico, as opiniões dos seres humanos jamais são falsas ou verdadeiras, não se pode atestar a verdade ou a falsidade das diferentes propo- sições sobre o mundo. Com essa tese, a escola cética não apenas recusa a condição de possibilidade do conhecimen- to, o critério de distinção entre o falso e o verdadeiro, como pretende, ainda, evitar a objeção apresentada ao ceticismo: a contestação de que a afirmação da não existência da ver- dade implica, contraditoriamente, uma verdade: a verdade não existe. Na história da filosofia, o ceticismo assume formas mo- deradas ou parciais, como é o caso de muitos filósofos mo- dernos que asseguram a possibilidade de conhecimento de determinadas dimensões da realidade – os fenômenos da natureza, por exemplo – e negam o conhecimento de temas metafísicos, situados além de nossa experiência observá- vel, tais como as hipóteses acerca de uma causa primeira do mundo e de imortalidade da alma humana. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 4 PV 2D -1 7- 10 É imprescindível notar que, independentemente de se concordar ou não com a postura cética, o ceticismo contribui para a atividade filosófica ao exigir dos filósofos que procuram a verdade um exame mais atento de seus métodos e o desenvolvimento de sólidas justificativas para suas teorias. Emblemático quanto a esse aspecto é o ceticismo metódico utilizado pelo filóso- fo René Descartes em sua busca por verdades seguras. Com o propósito de encontrar ideias comprovadamente verdadeiras, Descartes exercita de forma radical a dúvida, considerando de início falso tudo aquilo que é minimamente sujeito à dúvida. A proposta desse filósofo, então, diferencia-se bastante do ceticismo, porque tem como fim a elucidação de conhecimentos autênticos e inquestionáveis. Para encontrar essas verdades, ele se apropria do ceticismo como ponto de partida, convertendo- -o na aplicação sistemática da dúvida, procedimento este que aceita como verdade evidente aquilo que se revela indubitável. Com esse ceticismo metódico, Descartes observa que, inegavelmente, existe um ser que duvida de tudo, ou seja, atinge sua primeira verdade, expressa nos seguintes termos: penso, logo existo. 01. UEL-PR Leia o texto a seguir. Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os funda- mentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 93. (Os pensadores) O desejo de evitar o erro, o caos e buscar a certeza, a ordem, por meio de um método de conhecimento, são marcas distintivas da modernidade. A respeito do problema do conhecimento e do método em René Descartes, assinale a alter- nativa correta. a. A decisão de tentar desfazer-se das opiniões duvidosas e incertas ampara-se em uma revelação divina, pois, ao pen- sar, o homem encontra Deus na origem do próprio pensamento, sendo Ele a primeira certeza fundadora da ciência. b. A dúvida é uma espécie de afecção episódica que toma conta dos que pensam demasiadamente no problema dos fundamentos do conhecimento, mas cuja concepção e prática possuem uma importância limitada. c. A dúvida metódica pretendia inviabilizar a metafísica, uma vez que certezas científicas e verdades metafísicas, além de possuírem âmbitos de vigência distintos, também dizem respeito a domínios excludentes do conhecimento. d. O método é um procedimento por meio do qual os dados da experiência são acolhidos, tratados cientificamente e, após o processo de depuração e de crítica, são recolocados em sua relação com o mundo, transformando nossos juízos. e. A decisão inaugural a ser radicalizada pela dúvida, tornada metódica, por meio da qual surgirá a certeza, é o ponto de partida da crítica à tradição, seja na figura dos conhecimentos incertos ou das falsas opiniões. Resolução Desapontado com os supostos saberes tradicionais, René Descartes se dedica a identificar a condução adequada do pensamento em direção à verdade. Em sua busca por ideias claras e distintas, ou seja, por conhecimentos verdadeiros, uti- liza a dúvida de forma extensa e radical, aplicando-a sobre o conjunto da realidade e seus elementos. Trata-se do ceticismo metódico, a saber, o ceticismo que tem por finalidade encontrar algo cuja verdade seja evidente, resistente ao exercício da dúvida ou, em outros termos, aquilo sobre o que não se pode realmente duvidar. Alternativa correta: E. APRENDER SEMPRE 26 D. A discussão sobre a fonte do conhecimento Aspecto central nas reflexões gnosiológicas, a questão sobre a verdadeira fonte do conhecimento humano consiste em tema controverso na história da filosofia. Afinal, qual a origem do conhecimento? O conhecimento é proveniente da razão? É apriorísti- co, anterior às experiências formadas pelos sentidos? O conhecimento procede dos sentidos? É a posteriori, necessariamente an- tecedido pela experiência? Em torno desses problemas, desenvolveram-se concepções contrárias, o racionalismo e o empirismo. Para o racionalismo, tese defendida por filósofos como Platão e Descartes, o conhecimento reside em princípios apriorís- ticos da razão, ou seja, na intelecção logicamente anterior a qualquer experiência produzida pelos sentidos. Sob a ótica racio- nalista, as ideias que contêm a realidade dos seres são inatas, estão originariamente presentes nos seres humanos e, dessa forma, não são aquisições da vida social ou derivações daquilo que recepcionamos com os nossos sentidos, das experiências proporcionadas pela visão ou pelo tato, por exemplo. Os sentidos são compreendidos, isto sim, como fonte de enganos, de falsas interpretações da realidade. Isso não significa que o racionalismo despreze completamente os sentidos; aliás, é muito comum entre os filósofos racionalistas a admissão de que os fenômenos sensoriais contribuem, de forma complementar, para a efetivação do saber previamente contido nos seres humanos, na mente humana. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 5 PV 2D -1 7- 10BO ZZ AC | DR EA M ST IM E Para o racionalismo, os sentidos não são confiáveis, não são o ponto de partida do conhecimento. Em perspectiva oposta, o empirismo rejeita a existência de princípios de conhecimento apriorísticos e desvinculados do campo sensorial, declarando que o verdadeiro conheci- mento é necessariamente a posteriori, a saber, fundamenta- do na experiência sensitiva. Para os empiristas, os elementos recolhidos do mundo pelos nossos sentidos são a base das ideias desenvolvidas pelo intelecto humano. Em outras pala- vras, o empirismo reconhece nos seres humanos a capacida- de racional de elaborar os dados provenientes dos sentidos em pensamentos referentes à realidade do mundo. Com sua origem na filosofia antiga, a tese gnosiológica empirista difun- de-se e desenvolve-se consideravelmente na filosofia moder- na, sendo Francis Bacon, John Locke e David Hume alguns de seus principais representantes. A oposição entre racionalismo e empirismo não esgota o debate em torno da origem do conhecimento – o criticismo de Immanuel Kant (1724-1804) consiste em profundo em- preendimento filosófico disposto a superá-la. Tampouco é certo dizer que essa disputa teórica esteja filosoficamente decidida na atualidade. Prosseguem as investigações e as discussões na filosofia contemporânea, não apenas a respei- to dessa questão, mas de todos os problemas contemplados pela teoria do conhecimento. 4. Temas de filosofia: ética e política Na antiga filosofia grega, em meados do século V a.C., a transferência dos seres humanos para o primeiro plano do pensamento especulativo anuncia a ética e a política como campos temáticos nucleares da atividade filosófica. Ética e fi- losofia política são áreas de pesquisa diretamente vinculadas ao mundo da prática, à realidade dos seres humanos em so- ciedade, com seu universo de valores, suas relações de poder, suas noções de justiça e suas formas de organização social. A ética é o estudo filosófico da moral, dos seres humanos como seres morais. A moral é imanente à vida humana em sociedade, regida por valores que orientam as ações indivi- duais e instituem normas de conduta no âmbito das relações sociais. Compreende valores como bem e mal, certo e errado, justo e injusto, valores estes que concernem aos comporta- mentos humanos, em suas intenções e em seus desdobra- mentos sociais. Esses princípios valorativos manifestam-se em juízos de valor, positivos ou negativos, acerca das práticas individuais em suas implicações sociais e fornecem os con- teúdos das regras de convivência, normas que prescrevem as formas supostamente apropriadas de comportamento huma- no em sociedade. Muitas vezes utilizado como sinônimo de moral, o ter- mo ética, em sua acepção filosófica predominante, nomeia a reflexão teórica sobre os problemas morais. A ética con- siste no estudo filosófico dos fundamentos da moral, exa- minando racionalmente as questões que lhe são pertinen- tes. Qual a origem dos valores morais? O que é o bem? Os valores morais possuem existência objetiva ou são apenas convenções da vida em sociedade? O que caracteriza o ato moral? O que caracteriza a articulação entre individual e coletivo nos domínios da moralidade? O que é virtude? In- dagações dessa natureza formam o repertório especulativo da ética. A política, em sua definição geral, refere-se ao exercício do governo em uma sociedade ou, em linguagem contem- porânea, às relações entre Estado – o poder político insti- tucionalizado – e a sociedade. A filosofia teoriza a política com base no questionamento dos seus fundamentos. Os humanos são seres naturalmente políticos ou as sociedades políticas são construções artificiais de um contrato social? O poder político é sempre legítimo? Há formas justas e formas injustas de organização política? Qual a relação entre poder político e desigualdades sociais? A política visa ao bem co- mum ou trata-se de atividade essencialmente regulada pelo domínio de determinado grupo sobre o conjunto da socieda- de? Os conflitos sociais são inerentes à dinâmica política ou o poder político autêntico realiza a harmonia social? Em torno desses problemas, desenvolvem-se diferentes teorias no ho- rizonte da filosofia política. Ética e filosofia política são áreas distintas do saber filosófico. A filosofia moral versa sobre motivações indivi- duais e relações pessoais, a esfera privada da vida, que não são, pelo menos diretamente, envolvidas pela política. A filosofia política, por sua vez, investiga relações de poder vigentes em um uma dimensão pública que não se restrin- ge aos fenômenos da moralidade. Apesar dessas diferen- ças, são notáveis os pontos de confluência entre esses campos de reflexão filosófica, a intersecção entre ética e filosofia política. Ambas incidem na antropologia filosófi- ca, à medida que localizam as bases da moral e da política em digressões sobre a natureza humana e as possibilida- des de realização do ser humano. Com igual intensidade, especulam acerca de conceitos como bem e justiça, assim como as recíprocas interferências entre relações pessoais e os círculos públicos da vida em sociedade. Em certo sen- tido, uma concepção ética deriva em proposições acerca da forma justa de organização política da sociedade e, da mesma forma, uma teoria política implica determinadas noções éticas. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 6 PV 2D -1 7- 10 FF AN G | D RE AM ST IM E Ética e filosofia política são áreas da pesquisa filosófica diretamente articuladas à vida dos seres humanos em sociedade. A. A filosofia e as questões morais Os fenômenos morais realizam-se na articulação entre o social e o individual, a sociedade e os indivíduos. O que confere teor moral à ação de um indivíduo é sua repercussão social, o modo como sua prática afeta, de forma positiva ou negativa, a vida de outras pessoas, e os comportamentos dos seres humanos são moralmente avaliados segundo os parâmetros dominantes em um grupo social ou sociedade. Para que uma conduta possa receber uma valoração moral, é necessário existir uma margem, ainda que mínima, de ini- ciativa individual. É preciso que o sujeito que realiza um ato específico tenha estado, antes da efetivação de sua conduta, diante de alternativas, isto é, que sua ação seja resultado de uma escolha individual. A liberdade, portanto, é precondição da moralidade. Na sua ausência, torna-se inconcebível a existência de sujeitos moralmente autônomos e responsáveis por si mesmos e por suas ações. Recusando a noção de liberdade, encontra-se o determinismo absoluto, teoria defendida por alguns filóso- fos materialistas franceses do século XVIII, como D’Holbach (1723-1789) e La Mettrie (1709-1751). Essa versão do ma- terialismo identifica o conjunto da realidade natural e huma- na com uma completa e complexa conexão de causalidades, sucessivas relações de causa e efeito que explicam a tota- lidade dos acontecimentos da natureza e da humanidade, acontecimentos, portanto, necessários, que em nada pode- riam ser diferentes do que são. Sob essa ótica determinista, uma ação humana não decorre exatamente de uma decisão individual, sendo, ao contrário, um efeito necessário de uma longa série causal. Para o determinismo absoluto, então, não há sujeitos definidos por sua livre vontade, capazes de efe- tuar escolhas. A ideia de liberdade é indispensável para as teorias éti- cas. O filósofo grego Aristóteles, em seu livro Ética a Nicôma- co, discrimina as ações humanas em involuntárias e voluntá- rias. Involuntárias são as ações que não têm sua causa como seu protagonista, ou seja, sua origem é externa ao agente – por exemplo, em situações em que alguém é completamente coagido por outras pessoas, sendo obrigado a fazer algo que não é consoante à sua vontade. Ações voluntárias são as que realmente procedem do seu agente, originam-se do sujeito queas pratica. Para esse filósofo, porém, nem todas as ações voluntárias expressam escolhas. São voluntárias as condutas que procedem predominantemente das paixões e dos afetos de um ser humano individual – por exemplo, uma conduta agressiva, proveniente de sua ira –, mas não são escolhas. Escolha, no vocabulário filosófico aristotélico, corresponde ao plano da racionalidade. É a ação voluntária procedida pela deliberação, pelo exame racional das possibilidades apresen- tadas por uma situação particular. Dessa forma, apenas os se- res humanos são, de fato, livres; apenas a humanidade existe na esfera da moralidade. Na filosofia moderna, a teoria ética do alemão Immanuel Kant (1724-1804) procura conciliar determinismo e liberda- de. Para Kant, os seres humanos, em sua condição de seres naturais, são parcialmente submetidos às leis da natureza. Com sua inteligência, porém, projetam-se além da natureza, afirmam sua liberdade em relação às determinações naturais. De forma diversa dos seres irracionais, que existem sob a he- teronomia das leis naturais e cujos comportamentos, con- sequentemente, são absolutamente regidos por causas que lhes são exteriores, os seres humanos compõem um reino dos fins, instituído por regras ditadas pela razão. Como seres racionais, os seres humanos são capazes de identificar leis morais de alcance universal – denominadas pelo filósofo de imperativos categóricos –, leis que devem prevalecer sobre as inclinações sensíveis do indivíduo. No sistema filosófico de Friedrich Hegel (1770-1831), a liberdade não é pensada sob o ponto de vista estrito dos indivíduos ou da humanidade, mas sim na dimensão da tota- lidade realizada pelo espírito, a razão. De acordo com Hegel, a história humana exprime o movimento dialético da razão, marcado por contradições e superações, em direção à sua forma absoluta. O Estado contemporâneo é a finalidade para a qual tende o espírito universal: é a explicitação da razão no mundo. Conjugando interesses particulares e interesses ge- rais, a moderna forma de organização sociopolítica suprime a oposição entre liberdade e necessidade, estabelecendo uma eticidade que assegura a confluência entre vontade objetiva e vontade subjetiva. A liberdade efetiva-se plenamente na identidade entre a vontade dos seres racionais e as leis fixa- das pelo Estado. No século XX, a liberdade recebe um conteúdo acen- tuadamente existencialista com o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980). Em sua obra O existencialismo é um huma- nismo, Sartre sentencia que o ser humano é condenado à liberdade. Rejeitando a concepção criacionista, segundo a qual o ser humano é uma criação divina, esse filósofo des- carta também a ideia de uma natureza humana universal, quer dizer, uma essência ou substância previamente pre- sente em todos os seres humanos. Em sentido inverso às antropologias filosóficas tradicionais, centradas na noção de uma essência de humanidade que se realizaria em todos os seres humanos individuais, Sartre declara que a existência precede a essência: cada ser humano é inteiramente respon- sável por construir a si mesmo, elaborar o seu ser, em suas escolhas. Em relação às escolhas morais, não compete aos indivíduos recorrer a parâmetros exteriores, critérios exter- nos que justifiquem suas decisões: trata-se de uma escolha exclusivamente sua e com a qual, porém, ele escolhe toda a humanidade, considerando seu projeto existencial pertinen- te a todos os seres humanos. LI VR O DO P RO FE SS OR MA TE RI AL D E U SO EX CL US IVO SIS TE MA D E E NS IN O CO C CA P. 1 FI LO SO FI A 18 1 26 7 PV 2D -1 7- 10 01. UPE Leia o texto a seguir, referente à liberdade: Afinal, “o homem é livre ou determinado?” A questão assim colocada gera um falso pro- blema. Na verdade, o homem é determinado e livre. É preciso considerar os dois polos contra- ditórios, superando o materialismo mecanicista, bem como a tese da liberdade incondicional. ARANHA, Maria Lúcia. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1996. p. 299. Adaptado. Com relação a esse assunto, é correto afirmar que: a. ser livre é agir da forma que se quer, desconside- rando qualquer determinação causal. O homem é detentor do livre-arbítrio. b. o conceito de liberdade é simples: podemos fazer tudo o que queremos, somos artífices de nossa vontade. c. a liberdade é condicionada, é infinita ou absolu- tamente determinada por uma série de valores preestabelecidos. d. o fator preponderante que restringe a liberdade é ser o indivíduo criado no seu isolamento. e. a liberdade não é gratuita. A liberdade resulta de uma árdua tarefa que o homem deve conquistar. Resolução A solução da questão deve se basear no conteúdo de seu texto de referência, que considera a articulação entre o ser humano como ser, sob certos aspectos, de- terminado e simultaneamente capaz de projetar-se livre- mente, acima de suas determinações específicas. Nesse sentido, a liberdade é pensada como permanente con- quista humana. Alternativa correta: E APRENDER SEMPRE 27 Essa posição de Sartre, que se diferencia sutilmente do relativismo moral, remete a um debate presente na ética des- de suas origens gregas: os valores morais existem objetiva- mente ou são simples convenções da vida em sociedade? A postura sofística inicia o relativismo moral ou o subjeti- vismo axiológico – axiologia é sinônimo de teoria dos valores –, conforme o qual o bom, o justo e o moralmente certo, assim como seus correlatos negativos, o mal, o injusto e o moral- mente errado, são pura e simplesmente criações dos seres humanos em sociedade, ou seja, não existem independente- mente dessas convenções. Em termos morais, bem e mal se resumem ao que é definido de forma consensual no interior de um grupo social e de uma sociedade e que, no curso do tempo, pode ser modificado pelos seres humanos em suas relações sociais. Práticas moralmente condenáveis em uma sociedade são consideradas moralmente positivas em ou- tros povos, da mesma forma que, em uma mesma sociedade, condutas que recebem valor moral negativo em uma época determinada tornam-se moralmente positivas em um perío- do histórico posterior. Para os sofistas, não se trata apenas de constatar a diversidade moral vigente nas sociedades humanas, mas de compreender que não há um critério exte- rior pelo qual esses diferentes conjuntos morais possam ser avaliados, isto é, não se aspira a uma moral universal, única para toda a humanidade. Sendo assim, os sofistas entendem que a areté – palavra grega traduzida como virtude, excelên- cia humana – consiste no desenvolvimento das habilidades argumentativas dos cidadãos e em sua atuação em um corpo cívico no qual se elaboram as decisões mais pertinentes às circunstâncias históricas da sociedade. Afirmar filosoficamente a existência objetiva de valores morais significa acreditar que, apesar da diversidade que se constata nas sociedades humanas, nas quais historicamente as noções valorativas de bem e mal comportam diferentes conteúdos, a inteligência humana tem condições de identifi- car princípios de moralidade imutáveis e universalmente váli- dos, concernentes a todos os seres humanos. Segundo essa postura filosófica, o objetivismo axiológico, os conceitos de bom, de justo e de moralmente certo existem em si mesmos. É tarefa dos seres humanos encontrá-los de modo racional e, consequentemente, aplicá-los às suas condutas na vida em sociedade. Sócrates, com seu projeto filosófico de eliminação dos saberes aparentes e de persistente construção da verda- deira sabedoria, inaugura a tradição filosófica que intenciona alcançar o conhecimento pleno do bem. A filosofia socrática, caracterizada pela proposta de identificação da finalidade da vida humana, atribui o erro à ignorância e situa o conhecimen- to como condição necessária e suficiente para o ser humano conduzir-se de forma moralmente autônoma, em conformida- de com sua natureza e com valores morais absolutos.
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