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Autores: Prof. Giovanna Ayres Arantes de Paiva Profa. Luiza Elena Januário Prof. Pedro Henrique Mota de Carvalho Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Prof. Jefferson Lécio Leal Relações Internacionais Contemporâneas Professores conteudistas: Giovanna Ayres Arantes de Paiva / Luiza Elena Januário / Pedro Henrique Mota de Carvalho Giovanna Ayres Arantes de Paiva É professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra e doutora em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP) na área de concentração Paz, Defesa e Segurança Internacional. É membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Luiza Elena Januário É professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP). É graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra e doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP) na área de concentração Paz, Defesa e Segurança Internacional. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes). Pedro Henrique Mota de Carvalho É professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP). É graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP) na área de concentração Instituições, Processos e Atores. É pesquisador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P149r Paiva, Giovanna Ayres Arantes de. Relações Internacionais Contemporâneas / Giovanna Ayres Arantes de Paiva, Luiza Elena Januário, Pedro Henrique Mota de Carvalho. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 192 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Guerra Fria. 2. Europa. 3. Governo. I. Paiva, Giovanna Ayres Arantes de. II. Januário, Luiza Elena. III. Carvalho, Pedro Henrique Mota de. IV. Título. CDU 327 U512.68 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Auriana Malaquias Vera Saad Sumário Relações Internacionais Contemporâneas APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 UM PANORAMA SOBRE A GUERRA FRIA ................................................................................................9 1.1 Aportes iniciais .........................................................................................................................................9 1.2 O início da Guerra Fria ....................................................................................................................... 14 1.3 A coexistência pacífica ....................................................................................................................... 20 1.4 A détente ................................................................................................................................................. 24 1.5 A “nova” Guerra Fria e o desmonte do confronto ideológico ............................................ 27 2 O REORDENAMENTO INTERNACIONAL APÓS A GUERRA FRIA ................................................... 29 2.1 Transformações e incertezas ............................................................................................................ 29 2.2 Otimismo e fim da história ............................................................................................................... 33 2.3 Complexidade e insegurança ........................................................................................................... 34 2.4 Choque de civilizações ....................................................................................................................... 37 2.5 Globalização e regionalização ......................................................................................................... 41 3 EUA E RÚSSIA NO PÓS-GUERRA FRIA .................................................................................................... 43 3.1 Os EUA no pós-Guerra Fria ............................................................................................................... 43 3.1.1 Governo Bush (1989-1993) ................................................................................................................ 43 3.1.2 Governo Clinton (1993-2000) ........................................................................................................... 47 3.1.3 Governo Bush (2001-2009) ................................................................................................................ 51 3.1.4 Governo Obama (2009-2017) ............................................................................................................ 55 3.1.5 Governo Trump (2017-2020) ............................................................................................................. 58 3.2 Rússia ........................................................................................................................................................ 59 3.2.1 Rússia, a herdeira política da URSS ................................................................................................. 59 3.2.2 O governo Iéltsin ..................................................................................................................................... 62 3.2.3 A Rússia na era Putin ............................................................................................................................ 65 4 ÁSIA ..................................................................................................................................................................... 76 4.1 A Ásia nos séculos XX e XXI: descolonização, desenvolvimento e disputas regionais .................................................................................................................................... 76 4.2 Regionalismo e processos de integração da Ásia .................................................................... 84 4.3 Japão e os tigres asiáticos ................................................................................................................87 4.4 A ascensão da China ........................................................................................................................... 91 Unidade II 5 EUROPA .............................................................................................................................................................105 5.1 Criação da União Europeia e aprofundamento da integração ........................................105 5.2 Estrutura da UE ...................................................................................................................................110 5.3 Pontos de tensão e crise ................................................................................................................114 5.4 Brexit .......................................................................................................................................................118 6 INTEGRAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA .........................................................120 6.1 América Latina: entre a diversidade e a desigualdade ........................................................120 6.2 Iniciativas de integração na América Latina ...........................................................................125 6.3 Dinâmicas da América Latina no século XXI: do boom das commodities à onda rosa ...............................................................................................................132 Unidade III 7 ÁFRICA ...............................................................................................................................................................143 7.1 A construção da África: aspectos geográficos e históricos ..............................................143 7.2 O processo de descolonização africana ....................................................................................146 7.3 Conflitos e tensões ............................................................................................................................148 7.4 Organização política na África contemporânea ....................................................................152 8 ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA ...................................................................................................157 8.1 Oriente Médio e Norte da África: características e áreas estratégicas .........................157 8.2 Conflito Israel-Palestina ..................................................................................................................159 8.3 Impactos da Guerra Fria ..................................................................................................................162 8.4 Primavera Árabe ..................................................................................................................................165 8.5 Guerra na Síria .....................................................................................................................................167 7 APRESENTAÇÃO Neste livro-texto objetiva-se pensar e discutir a ordem internacional e as possibilidades de inserção internacional de diversos atores e regiões atualmente. Espera-se que ao final da disciplina os discentes tenham condições de: conhecer as principais características do sistema internacional no período da Guerra Fria; compreender as transformações sofridas pela ordem internacional ao fim da Guerra Fria; analisar as recorrentes transformações e as tendências da política internacional contemporânea; avaliar os debates sobre hegemonia estadunidense e ascensão de novos centros de poder; compreender o papel dos Estados Unidos para a ordem internacional estruturada desde o século XX; analisar os dilemas da inserção internacional russa; compreender o destaque da Ásia nas relações internacionais atualmente; conhecer o projeto de integração regional europeu, seus fundamentos, suas instituições e suas dificuldades atuais; identificar as tendências, as possibilidades e as dificuldades encontradas pelos países da América Latina no cenário internacional; compreender a inserção internacional dos países africanos e seus desafios; e analisar as dinâmicas de tensão e interesses relativas ao Oriente Médio. O presente livro-texto não se esgota em si mesmo. Pelo contrário, representa mais um passo em uma trajetória acadêmica, profissional e pessoal que requer dedicação, disciplina e empenho. É necessário fazer a conexão com os conhecimentos já desenvolvidos e entender este conteúdo como uma base para discussões futuras, e, especialmente, estar atento ao que acontece no mundo. Afinal, as relações internacionais contemporâneas estão em construção. INTRODUÇÃO O século XX foi uma época de grandes transformações e eventos marcantes em termos de política internacional, como a ocorrência de duas guerras mundiais, a criação de organizações internacionais universais com aspiração de tratar de questões de paz e da cooperação internacional e os movimentos de descolonização. Uma parte significativa desse período foi marcada pela chamada Guerra Fria, um confronto ideológico entre duas superpotências, em um sistema internacional bipolar. Porém, o mundo no século XXI apresenta características distintas, com altos níveis de incerteza em diversas temáticas e mudanças aceleradas. Assim, trata-se de um cenário complexo e em constante movimento. A partir da compreensão sobre o que foi a Guerra Fria e as implicações de seu fim para a ordem internacional, nesta disciplina, busca-se apresentar um panorama atual das relações internacionais, com foco na inserção internacional de atores e regiões. O conteúdo está dividido em três unidades. Na primeira unidade, apresenta-se um quadro sobre o que foi o período da Guerra Fria, suas principais dinâmicas e características, encaminhando a discussão para as perspectivas da ordem internacional após o fim do confronto bipolar. Tratou-se de um cenário de redefinições e incertezas, que constituiu o pano de fundo para compreender temas, tendências e possibilidades hodiernas. Na sequência, são apresentadas as inserções internacionais após o fim da Guerra Fria entre as duas superpotências do confronto bipolar, ou seja, o debate sobre o papel internacional de Estados Unidos e Rússia, esta herdeira política da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, nos dias atuais. Por fim, dando continuidade à 8 reflexão sobre novas e velhas potências, discute-se a inserção internacional asiática, com a trajetória ascendente de diversos países, particularmente da China. Na segunda unidade, prossegue-se o debate sobre a inserção internacional e as dinâmicas de algumas regiões, no caso, Europa e América Latina. A temática da integração regional ganha destaque, sendo acompanhada da discussão sobre desenvolvimento quando se trata da segunda região. Já na última unidade, são discutidas as situações da África e do Oriente Médio, apresentando possibilidades, tensões e conflitos que marcam essas duas regiões do mundo. 9 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Unidade I 1 UM PANORAMA SOBRE A GUERRA FRIA 1.1 Aportes iniciais O século XX pode ser caracterizado como um período turbulento e de grandes transformações, sendo sua primeira metade marcada pela devastação das duas guerras mundiais. Por sua vez, a maior parte da segunda metade do século XX teve na chamada Guerra Fria sua tônica central. Trata-se da divisão do mundo em dois blocos antagônicos, cada um com um modelo político-econômico. De um lado, sob a liderança dos Estados Unidos da América (EUA), havia o bloco capitalista, e do outro lado, o bloco socialista, capitaneado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A Guerra Fria foi, em sua essência, uma disputa ideológica. Assim, EUA e URRS eram “portadores de uma mensagem universal, que se exprime por uma determinada visão de como deveriam organizar-se o mundo e os regimes políticos e econômicos das nações” (FONSECA JR., 1995, p. 131, grifo do autor). Não se chegou a umasituação de combate militar direto entre as duas superpotências que lideravam os blocos, mas foi um período de tensões e disputas em termos de política internacional. O sistema internacional era caracterizado como bipolar, ou seja, existiam dois centros de poder, e o restante do mundo era impactado pelas relações entre as superpotências. A Guerra Fria compreende o período entre 1947 e 1989, representando a deterioração do relacionamento entre dois aliados da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cujas origens podem ser traçadas nos anos finais desse conflito (SARAIVA, 2007c). Para analisar o período, é necessário considerar que os EUA se consolidaram como um relevante ator internacional na primeira metade do século XX, perdendo o Reino Unido sua primazia anterior. Já a URSS foi constituída em 1922, fruto de um processo revolucionário de caráter socialista iniciado em 1917. Apesar de terem lutado juntos durante a segunda grande guerra, desenhou-se uma disputa entre os dois países. A Europa, destruída pela guerra, estava extremamente vulnerável à competição ideológica, com sua economia abalada e sofrendo um grave desequilíbrio comercial, e ainda existia o perigo de que tal quadro resultasse em uma escalada de violência e extremismo (LOHBAUER, 2005). Observação A polaridade refere-se à estrutura do sistema internacional e aos atores que dominam a política mundial em tal estrutura. Um sistema bipolar é marcado por uma estrutura em que dois Estados ou alianças de Estados dominam a política mundial. No sistema multipolar, tal domínio é exercido por três ou mais Estados ou alianças. Por sua vez, no sistema unipolar apenas um Estado apresenta poder preponderante (NYE JR., 2007). 10 Unidade I A Revolução Russa constituiu um importante acontecimento da primeira metade do século XX. O processo revolucionário teve início em 1917, no contexto em que o país se inseria na Primeira Guerra Mundial, e culminou na derrubada da monarquia e na constituição de um modelo alternativo ao capitalismo. No começo do século XX, o cenário russo era marcado por graves problemas sociais, com uma economia fraca de base agrícola e um regime czarista que contava com uma estreita base de apoio (LOHBAUER, 2005). O envolvimento russo na guerra exacerbou as dificuldades, o que fez que em 1917 a economia entrasse em colapso. A fome era um problema comum nas cidades e nos campos e os distúrbios da ordem pública, recorrentes. O czar Nicolau II mostrou-se um chefe militar incapaz e a atuação política da imperatriz Alexandra, que era próxima da figura mística de Grigori Rasputin, configurou-se como inepta, desacreditando o governo perante a sociedade (SEGRILLO, 2012). Em tal contexto de desorganização governamental, os ramos do legislativo passaram a atuar de modo mais autônomo. Ocorreu, então, a Revolução de Fevereiro, desencadeada por protestos contra o regime. Em 1º de março, a duma, o parlamento russo, constituiu um governo provisório para o país, e, no dia seguinte, o czar abdicou (SEGRILLO, 2012). As origens do acontecimento podem ser traçadas a partir da iniciativa de membros progressistas da duma (“de cima”) como ao movimento de greves (“de baixo”), o que geraria uma dualidade de poder, em que conviviam um governo provisório, que representava os interesses da burguesia politicamente liberal de modo geral, e as assembleias de trabalhadores (sovietes) (SEGRILLO, 2012). Tal dualidade continuou nos meses seguintes; o governo provisório não contava com uma base ampla de apoio e seu poder era minado pela atuação de líderes bolcheviques que retornavam do exílio. As propostas dos bolcheviques tinham inspiração marxista e defendiam uma completa reforma da sociedade russa. Entre os líderes dos bolcheviques, tiveram destaque Vladimir Lênin e Leon Trotsky, que perceberam o momento como adequado para a realização de uma revolução, especialmente quando o partido passou a obter a maioria nas votações dos principais sovietes. Começou assim a articulação para a tomada do poder, resultando na chamada Revolução de Outubro. Em 25 de outubro, os guardas vermelhos (formações paramilitares bolcheviques) ocuparam pontos estratégicos de São Petersburgo e tomaram a sede do governo provisório, o Palácio de Inverno. Na mesma noite, reuniu-se o II Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, em que os bolcheviques eram maioria. Foi aprovado, então, um governo revolucionário, com a criação do Conselho dos Comissários do Povo, e suas primeiras medidas garantiram apoio popular: as propostas de realização imediata de acordos de paz para a retirada do país da Segunda Guerra Mundial e da reforma agrária (SEGRILLO, 2012). Representava, assim, o rompimento com o capitalismo e a instituição de um novo modelo. Nos três anos seguintes, o país ficaria mergulhado em uma guerra civil a qual opunha o exército vermelho (bolcheviques e aliados) ao exército branco (seus opositores, muitos deles apoiadores da monarquia). No contexto da Guerra Fria, ressalta-se que não foi somente a Europa que ficou submetida a tal lógica da disputa entre os dois polos de poder. Houve a divisão do mundo em áreas de influência, em que cada superpotência buscava consolidar seu modelo e conter os avanços do seu rival, em uma 11 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS dinâmica marcada por elementos tanto ideológicos como estratégico-militares. Desse modo, “ocorreu a formação de alianças ou blocos. Nascem, assim, zonas de influência em que a presença do adversário deve ser evitada terminantemente” (FONSECA JR., 1995, p. 131, grifos do autor). No que diz respeito às negociações entre os aliados sobre as redefinições do pós-Segunda Guerra Mundial, na Conferência de Yalta (1945), foi consagrada a divisão entre os aliados ocidentais e a URSS com a política das áreas de influência. Na ocasião, era patente a desconfiança acerca da possibilidade de cooperação entre as superpotências (SARAIVA, 2007a). As redefinições do pós-guerra continuaram na Conferência de Potsdam, no mesmo ano, marcada pela mesma oposição do encontro anterior. Foi estabelecido o objetivo de desmilitarizar completamente a Alemanha, derrotada no conflito. A figura a seguir apresenta a divisão político-econômica do mundo entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim da URSS, destacando em verde os países que ainda hoje são considerados socialistas. Circulo Polar Ártico Groenlândia AMÉRICA DO NORTE OCEANIA EUROPA ÁSIA ÁFRICA AMÉRICA DO SUL AMÉRICA CENTRAL Trópico de Câncer Trópico de Capricórnio Circulo Polar Antártico Equador Países capitalistas desenvolvidos Países socialistas 1945-1991 Países capitalistas subdesenvolvidos Países socialistas Figura 1 – Divisão político-econômica do mundo (1945-1991) Disponível em: https://bit.ly/2UiWhnh. Acesso em: 16 jul. 2021. A Alemanha foi dividida pelos Aliados em quatro zonas de ocupação: uma soviética, uma francesa, uma estadunidense e outra britânica. As três últimas conformavam a Alemanha Ocidental, enquanto a parte soviética era a Alemanha Oriental. A cidade de Berlim estava localizada na zona soviética, mas também foi partilhada em quatro zonas de ocupação, seguindo a mesma lógica. Também é possível se referir a Berlim Ocidental e Berlim Oriental. A próxima figura retrata a divisão da Alemanha. 12 Unidade I Zonas da ocupação aliadas na Alemanha e em Berlim Depois de 1949, os dois estados alemães e a cidade de Berlim desenvolveram-se através da Zona da ocupação aliadas. A Alemanha Ocidental era formada pelas zonas estadunidense, britânica e francesa e a Alemanha Oriental era formada pela Zona Soviética. França Inglaterra Estados Unidos União Soviética Figura 2 – Divisão da Alemanha Disponível em: https://bit.ly/3gawQfH. Acesso em: 16 jul. 2021. Observação Ao pensar a política internacional no fim da Segunda Guerra Mundial, também deve-se destacar a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 24 de outubro de 1945. Os objetivos centrais da ONU alinham-se à promoçãoda cooperação, da paz e da segurança internacional. Seu documento fundador, a Carta de São Francisco, constitui um dos mais importantes documentos jurídicos das relações internacionais contemporâneas. 13 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Um aspecto central para a compreensão da Guerra Fria é a questão nuclear. Em agosto de 1945, os EUA realizaram bombardeios atômicos nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Tal evento demonstrou o potencial militar da energia produzida pela fissão do núcleo do átomo, constituindo uma mudança qualitativa nos meios de guerra, especialmente no que se refere à velocidade de ação (GONTIJO; JANUÁRIO, 2018). Pode-se considerar que o Japão já se encontrava à beira da rendição quando as bombas foram lançadas, de modo que a ação estadunidense foi entendida como uma demonstração de força (VISENTINI, 2000). As armas nucleares passaram então a constituir um elemento fundamental da política internacional, produzindo receios e tensões devido à sua capacidade de destruição. Nesse contexto, outros países buscaram dominar a tecnologia nuclear com fins militares. Em 1949, a URSS realizou seu primeiro teste nuclear. Foi gerada uma dinâmica conhecida como corrida nuclear, uma espécie de competição armamentista, em que os Estados buscam constantemente aumentar a sofisticação tecnológica e a quantidade de suas armas. Saiba mais Para conhecer mais sobre a questão nuclear, recomenda-se assistir os seguintes filmes/documentários: CAFÉ atômico. Dir. Jayne Loadre; Kevin Rafferty; Pierce Rafferty. EUA: The Archives Project, 1982. 86 min. DOUTOR Fantástico. Dir. Stanley Kubrick. EUA; Reino Unido: Hawk Films Polaris Productions, 1964. 93 min. O DIA seguinte. Dir. Nicholas Meyer. EUA: ABC Circle Films, 1983. 126 min. TREZE dias que abalaram o mundo. Dir. Roger Donaldson. EUA: New Line Cinema, 2000. 145 min. A dissuasão nuclear estava em pauta em termos estratégicos. Ela consiste em uma dinâmica de enfraquecer a vontade do adversário de iniciar um confronto, seja no sentido de impedir que ele tome uma ação ou de que ele se oponha a uma iniciativa a ser promovida, mediante a ameaça de represália (BEAUFRE, 2002). Por sua vez, a dissuasão nuclear diz respeito a tal estratégia em um contexto em que as partes envolvidas contam com capacidade bélica nuclear. Devido ao potencial e aos efeitos desse tipo de armamento, o cálculo do risco e o temor do risco de se realizar um ataque nuclear são alterados. Isso porque se a outra parte conseguir executar um contra-ataque, há a potencialidade de uma destruição tão grande que chega a ser caracterizada como inaceitável, ou seja, o custo e o risco de se engajar em uma ação desse tipo aparece como demasiadamente elevado (ARON, 2002). 14 Unidade I Observação Dissuadir significa fazer alguém mudar de ideia, abandonar uma decisão. Figura 3 – Cogumelo atômico após o bombardeio de Nagasaki Disponível em: https://bit.ly/3ig2k4e. Acesso em: 16 jul. 2021. 1.2 O início da Guerra Fria Não há um consenso sobre quem ou o que exatamente causou a Guerra Fria. Nye Jr. (2007) afirma que existem três vertentes para responder tal questão: tradicionalistas, revisionistas e pós-revisionistas. Os primeiros defendem que a União Soviética seria responsável pela dinâmica de tensões devido a sua postura agressiva e expansionista, enquanto os EUA apenas perceberam progressivamente a ameaça representada pelo país liderado por Stálin. Por sua vez, os revisionistas argumentam que foi o expansionismo estadunidense que gerou a Guerra Fria, sendo que o país americano saiu da Segunda Guerra Mundial em uma condição muito mais favorável que seu rival. Já os pós-revisionistas afirmam que ninguém seria culpado pelo início do confronto, pois ele era praticamente inevitável devido à estrutura bipolar da balança de poder no pós-Segunda Guerra. Assim, a questão da culpa da guerra não tem uma resposta clara e não é muito frutífera, sendo possível fornecer argumentos que corroboram cada uma das visões, tratando-se de uma interpretação que depende das lentes adotadas. 15 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS George Frost Kennan, conselheiro da embaixada estadunidense em Moscou, pode ser considerado o pai do conceito de Guerra Fria e o responsável por chamar a atenção do governo Truman para a inserção internacional da URSS após a Segunda Guerra Mundial. A visão de Kennan, baseada na oposição entre capitalismo e socialismo e no expansionismo soviético, ganhou destaque ainda em 1945. Porém, foi a partir de janeiro de 1947 que suas diretrizes se refletiram diretamente na formulação da política externa e na diplomacia dos EUA, que passou a ser pautada pela perspectiva de uma ação firme de longo prazo para conter as tendências expansionistas da URSS (SARAIVA, 2007c). Assim, O diplomata falava de sua crença no antagonismo nato entre o capitalismo e o socialismo e na percepção de que jamais a União Soviética admitiria uma comunidade de propósitos com Estados capitalistas. As ideias de Kennan expressavam, no fundo, uma percepção que se ampliava, cada vez mais, entre os gestores do Estado norte-americano. Para eles, seu país deveria desenvolver uma vigilância ativa e uma política de contenção das ambições expansionistas soviéticas (SARAIVA, 2007c, p. 198-199). Desenhou-se, assim, um início “quente” da Guerra Fria. Nesse contexto, os EUA apresentavam vontade de construção de grande área de influência com valores capitalistas, que era marcada não somente pelo elemento ideológico, mas contava também com uma fusão entre os interesses de sua indústria e seu comércio com a busca de liderança e exercício de poder no cenário internacional (SARAIVA, 2007c). A inflexão da política externa estadunidense foi representada pela Doutrina Truman, de caráter universalista, que pautava uma cruzada internacional contra o socialismo. O pretexto para seu nascimento foi a guerra civil na Grécia, identificada como a necessidade de conter o avanço socialista. A Doutrina Truman contava com um tom messiânico, impondo a escolha entre dois modos de vida em que se opunha a liberdade ao terror e opressão, cabendo à superpotência capitalista apoiar os outros países para que estes não fossem subjugados (SARAIVA, 2007c). Tais ideias foram expressadas no discurso de Truman de 12 de março de 1947, em que o presidente estadunidense afirmou: No atual momento da história mundial cada nação deve escolher entre os modos de vida opostos. A escolha não é frequentemente livre. Um modo de vida baseia-se na vontade da maioria e se caracteriza por instituições livres, governo representativo com eleições livres, garantias de liberdade individual, liberdade de expressão e de religião, e pela supressão das formas de opressão política. Uma outra forma de vida baseia-se na vontade de uma minoria imposta à força à maioria. Ela se apoia no terror e na opressão, no controle da imprensa e do rádio, em eleições manipuladas e na supressão das liberdades individuais. 16 Unidade I Acredito que a política dos Estados Unidos deve ser de apoiar os povos livres que estão resistindo a subjugação por minorias armadas ou por pressões exteriores. Acredito que nossa ajuda deve ser primeiramente através da estabilidade econômica e da ordenação do processo político. Acredito que devemos apoiar os povos livres a alcançarem seus próprios destinos por suas próprias maneiras (TRUMAN, 1947, tradução nossa). A Doutrina Truman ajudou a justificar a destinação de um grande volume de recursos estadunidenses para a reconstrução da Europa, justamente com o entendimento de que a economia abalada da região e a destruição ocasionada pela Segunda Guerra Mundial poderiam dar espaço para a expansão soviética, de modo que era necessário conter a instabilidade política e social (LOHBAUER, 2005). Assim, a partir dessa perspectiva e com o aumento de votos em partidos comunistas no imediato pós-Guerra na Europa, foi lançado em junho de 1947 o Plano Marshall, que podeser considerado a tradução econômica da Doutrina Truman. Tratava-se de um plano de financiamento para a recuperação dos países europeus muito ambicioso, formulado pelo secretário de Estado, o ex-general George Marshall, que enquadrava um conjunto de ações para orientar a presença estadunidense na reconstrução europeia. O desenvolvimento econômico da região também atendia aos interesses de empresas estadunidenses, pois criava mercado para seus produtos de consumo (LOHBAUER, 2005). De fato, os empréstimos eram vinculados à compra de produtos estadunidenses, o que caracterizou a Europa como a fronteira de defesa do capitalismo (SARAIVA, 2007c). Ainda com a perspectiva de fortalecer a influência estadunidense em um mundo bipolar, em 1949, foi proposto o programa de cooperação técnica internacional conhecido como Ponto IV, que visava promover a cooperação dos EUA com países subdesenvolvidos para conter a ameaça comunista. O esquema recebeu esse nome por ser o quarto ponto do discurso presidencial de posse de Truman de sua reeleição e buscava abranger áreas como economia, administração pública, agricultura, recursos minerais, saúde, educação, transporte, entre outros (ABREU, 2020). Outro marco desse período inicial da Guerra Fria foi a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 1949. Seu intuito era agrupar um conjunto de países em um pacto de defesa contra possíveis agressões por parte da URSS (SARAIVA, 2007c). Assim, foi criada para evitar a expansão do poder soviético, e era sustentada pelo poder nuclear e pelas forças convencionais dos EUA (LOHBAUER, 2005). Seus membros iniciais eram Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Holanda, Itália, Irlanda, EUA, Luxemburgo, Noruega, Portugal e Reino Unido. As primeiras expansões referiram-se à inclusão de Grécia e Turquia, em 1952, e da Alemanha Ocidental, em 1955. A Otan pode ser caracterizada como um arranjo de defesa coletiva, que são organizações regionais com o objetivo de atuar diante de Estados agressores, ou seja, lidar com ameaças provenientes de Estados que não são membros da organização, com a constituição de um pacto de assistência militar 17 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS mútua (WEIFFEN, 2012). Desse modo, o ataque a um membro resultaria em uma resposta de todos os países pertencentes ao pacto. Por sua vez, no início da Guerra Fria, a URSS ainda enfrentava as consequências das significativas perdas humanas da Segunda Guerra Mundial, tendo consciência da superioridade dos EUA na área nuclear e das fragilidades de seus projetos em tal campo, além de ter certa dificuldade para apoiar regimes socialistas em outros países e encontrar problemas em sua produção industrial e agrícola (SARAIVA, 2007c). Diante dessas limitações, as iniciativas estadunidenses não foram imediatamente acompanhadas pelos soviéticos. A URSS percebia a presença massiva de capital estadunidense no Leste Europeu como uma ameaça, pois se tratava de uma forma de impulsionar o poder estratégico dos EUA e articular forças contrárias aos interesses da superpotência socialista (SARAIVA, 2007c). Nesse contexto, reiniciou-se o processo de militarização das fronteiras, intensificou-se a produção de armas convencionais, ampliando o recrutamento militar, a partir de 1948, e acelerando os planos para desenvolvimento da bomba atômica, o qual obteve sucesso em 1949. O termo “armas convencionais” é usualmente empregado para se referir às armas que não são de destruição em massa. As “armas convencionais são engenhos capazes de provocar a morte ou a incapacitação física por meio de explosivos não nucleares (pólvora, dinamite, TNT), energia cinética (projéteis), ou substâncias incendiárias” (DUARTE, 2014, p. 96). Observação As armas de destruição são divididas em três categorias: armas nucleares, armas químicas e armas biológicas. São capazes de produzir a morte ou a incapacitação de grande número de pessoas, de maneira indiscriminada e dificilmente controlável, mediante o uso de quantidades relativamente pequenas de agentes químicos, biológicos ou explosivos nucleares, causando ao mesmo tempo graves danos materiais e/ou a contaminação de várias áreas, além de outros efeitos nocivos (DUARTE, 2014, p. 33). Os soviéticos rejeitaram a ajuda oferecida pelos EUA que se estendia à URSS e a seus países satélites e criaram, em 1949, o seu Conselho de Ajuda Econômica Mútua, o Comecom. Além disso, em 1955 foi criado o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar que colocava a Europa Oriental sob o guarda-chuva nuclear da URSS. Assim como a Otan, o Pacto de Varsóvia pode ser caracterizado como um arranjo de defesa coletiva. A próxima figura apresenta os membros da Otan e do Pacto de Varsóvia. No contexto de tensões entre as superpotências, o Leste Europeu tornou-se um palco de demonstração da capacidade de intervenção e exercício de influência da URSS, ocorrendo forte controle político, monitoramento e planificação econômica (SARAIVA, 2007c). 18 Unidade I Lembrete A defesa coletiva diz respeito à constituição de um pacto de assistência militar mútua. Espanha África Po rtu ga l Bulgária Turquia Grécia Itália Al bâ ni a Países europeus membros da Otan Países europeus membros do Pacto de Varsóvia Países europeus neutros Canadá Islândia URSS E.U.A. Irlanda Inglaterra Dinamarca Holanda Bélgica Ale ma nh a (O cid en ta l) Ale ma nh a (O rie nt al) França Suiça Áustria Checoslováquia Polônia Hungria Romênia Iugoslávia No ru eg a Su éc ia Fin lân dia N 0 630 km Figura 4 – Alianças militares da Guerra Fria Disponível em: https://bit.ly/36DqNuD. Acesso em: 16 jul. 2021. Um episódio relevante desse período foi o Bloqueio de Berlim, em 1948, que representou um aumento dos níveis de confronto e endurecimento de posições das duas superpotências (LOHBAUER, 2005). Em junho de 1948, a URSS cortou o tráfego terrestre, ferroviário e hidroviário com destino a Berlim Ocidental, buscando isolar a cidade em resposta à tentativa de britânicos, franceses e estadunidenses de introduzir uma nova moeda nas zonas ocidentais de Berlim. Os aliados ocidentais reagiram ao bloqueio com uma grande operação de ponte área, o conflito foi lentamente dissipado e o bloqueio teve fim em maio de 1949. Nesse período, os efeitos da Guerra Fria na América Latina não eram sentidos de forma tão dura, sendo a região considerada uma área de influência natural dos EUA, que não estava sujeita às dificuldades da reconstrução pós-conflito e não sofria uma ameaça soviética iminente (SARAIVA, 2007c). Ainda assim, 19 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS partidos e movimentos de orientação comunista foram fortemente reprimidos. Por sua vez, na África alguns agrupamentos nacionalistas e pan-africanos foram influenciados pela URSS, mas não houve um processo de formação de grandes líderes africanos vinculados aos interesses soviéticos, e toda a movimentação foi acompanhada pelos EUA (SARAIVA, 2007c). A China passou por uma guerra civil que opunha nacionalistas e comunistas. Os primeiros eram apoiados pelos EUA e tinham em Chang-Kai-Chek, líder do partido político Kuomintang, sua figura central. Os comunistas contavam com discreto apoio soviético e eram liderados por Mao Tsé-Tung. O Kuomintang foi vencido na guerra civil e seus membros buscaram refúgio na ilha de Formosa (Taiwan). Em 1949, foi proclamada a República Popular da China, fundando um novo modelo de comunismo. Outro acontecimento importante foi a Guerra da Coreia (1950-1953). A Coreia havia sido dividida em duas partes. Ao sul do paralelo 38, foi estabelecida uma república com apoio estadunidense, ao passo que ao norte foi delimitada uma república popular com apoio de soviéticos e comunistas chineses. Em 1950, o exército norte-coreano executou um ataque surpresa e invadiu a Coreia do Sul. CHINA COREIA DO NORTE 38˚ N COREIA DO SUL Pyongyang Seul N 0 160 km Armistício de Pan Munjon (27 de julho de 1953) Figura 5 – Guerrada Coreia Disponível em: https://bit.ly/3B7Qdi9. Acesso em: 16 jul. 2021. Aproveitando a ausência temporária do representante da URSS na ONU, foi solicitado aos membros da organização apoio aos sul-coreanos. Assim, em setembro de 1950, forças da ONU sob comando do general estadunidense Douglas MacArthur lançaram uma contraofensiva. Tropas chinesas entraram então 20 Unidade I na guerra ao lado da Coreia do Norte. Após meses de luta, o conflito foi estabilizado nas proximidades da fronteira original entre os dois países, no Paralelo 38. Um armistício foi concluído em julho de 1953, mas um acordo de paz nunca foi assinado. Observação Armistício é uma suspensão temporária das hostilidades por meio de um acordo, uma trégua. 1.3 A coexistência pacífica O período compreendido entre os anos de 1955 e 1968 é conhecido como a fase da coexistência pacífica da Guerra Fria, que pode ser entendida como certa flexibilização da ordem bipolar, sendo que a corrida atômica do fim da década de 1940 e início dos anos 1950 abriu espaço para negociações com vistas a um sistema de segurança mundial, sustentado no equilíbrio de armas nucleares, devido à percepção da capacidade destrutiva de tais armas. Porém, a atribuição da denominação de coexistência pacífica não implica a inexistência de crises. Pelo contrário, nesse período ocorreram sérias crises, e o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. Ainda assim, houve alguma flexibilização. Saraiva (2007c) identifica os seguintes fatores que explicam tal situação: • Renascimento econômico e político da Europa Ocidental. • Flexibilização intraimperial. • Início da desintegração do bloco comunista. • Descolonização. • Articulação própria de alguns países da América Latina. • Declínio gradual das armas nucleares nas contendas. O primeiro ponto diz respeito à recuperação da Europa ocidental, beneficiada pela proteção econômica e militar dos EUA e recipiente dos recursos do Plano Marshall. A região contou assim com bom crescimento econômico, havendo dinamização econômica de forma distinta em cada Estado. Além disso, na década de 1950, começou a se desenhar um movimento de integração europeia, baseado na aproximação franco-alemã. Desse modo, em 1951, foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca). A partir de então, foram promovidas ideias de construção de uma comunidade política na Europa. Porém, as iniciativas avançaram com prudência no campo político, sendo pautadas pela perspectiva de criação de um mercado comum a partir da assinatura dos Tratados de Roma de 1957. O segundo ponto refere-se a mudanças políticas nos EUA e na URSS que contribuíram para a flexibilização da ordem bipolar. No caso da superpotência capitalista, o fim do mandato de Truman, 21 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS em 1953, gerou oportunidade para um novo perfil político. Na URSS, foi importante a morte de Stálin também em 1953, o que gerou uma luta política interna entre Malenkov e Kurschev, com vitória do segundo. Tal mudança permitiu maior flexibilidade no jogo político com os Estados Unidos. Assim, foi possível iniciar uma nova fase nas relações, com a realização de debates e acordos internacionais. Observação Josef Stálin foi secretário-geral do Partido Comunista de 1922 a 1952 e primeiro-ministro da URSS de 1941 a 1953. O terceiro fator é o início da desintegração do bloco comunista. Após a morte de Stálin, foi deflagrada uma crise de lealdade dos partidos comunistas no Leste Europeu. Em alguns países – como Albânia, Romênia, Bulgária e Tchecoslováquia –, foram promovidos novos modelos de inspiração comunista. Além disso, aconteceu a ruptura sino-soviética, fruto do declínio das relações entre China e URSS, que se desenhava desde meados da década de 1950 e ficou claro na década de 1960. Assim, houve uma divisão no bloco socialista, e a China despontou como um centro autônomo de poder nas relações internacionais. A China entrou para o clube dos países nuclearmente armados em 1964. Em quarto lugar, o período foi marcado pelo processo de descolonização, ainda que tal movimento não tenha ficado restrito a ele. O processo de descolonização da Ásia teve início no fim da década de 1940; na África negra o movimento ficou concentrado no fim da década de 1950 e início da década de 1960; enquanto a descolonização da África portuguesa se deu nos anos 1970. Deu-se uma multiplicação rápida de Estados com soberania formal reconhecida e possibilidade de participação nas organizações internacionais. Ressalta-se a realização, em 1955, da Conferência de Bandung, em que países africanos e asiáticos buscavam uma terceira posição na ordem internacional, com desejo de manter equidistância dos dois centros de poder e promover uma nova alternativa de inserção internacional, voltada aos seus interesses de desenvolvimento. A Conferência foi organizada pelos líderes do Movimento dos Não Alinhados, que tinha uma agenda de oposição ao colonialismo e ao imperialismo e promovia princípios de soberania, não intervenção em assuntos internos e não agressão (LOHBAUER, 2005). O quinto ponto é a articulação própria de países da América Latina em busca de uma inserção internacional mais favorável. No caso brasileiro, destaca-se a Política Externa Independente (PEI). Formulada no governo Jânio Quadros (1961) e levada adiante no governo João Goulart (1961-1964), a PEI estimulava uma atitude mais autônoma e um maior protagonismo do Brasil no cenário internacional, visando contribuir com a busca de desenvolvimento econômico e social, diversificar os relacionamentos internacionais do país e contribuir para a paz mundial (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014). Finalmente, há a questão das armas nucleares, ou melhor, o crescimento da compreensão de que as potências estavam reféns das armas nucleares. Esteve em pauta tratar de armas com alto potencial de destruição e, devido ao receio das consequências de seu emprego, qual poder o uso tinha para evitar a resolução de contendas. 22 Unidade I Como citado, a fase da coexistência pacífica não foi isenta de crises. A primeira a ser destacada é a Crise do Muro de Berlim, em 1961. Como já exposto anteriormente, a cidade de Berlim encontrava-se dividida. O número de refugiados que se dirigiam à parte oeste provenientes do leste da cidade estava alcançando números alarmantes, o que despertava temores referentes às possíveis consequências econômicas e psicológicas desse movimento (LOHBAUER, 2005). Diante desse quadro, a Alemanha Oriental começou a construir um muro físico para cercar Berlim Ocidental e conter a saída das pessoas da parte oriental. Evitou-se uma reação ocidental que desencadearia em um conflito aberto, e o Muro de Berlim se tornou símbolo da Guerra Fria. Figura 6 – O Muro de Berlim Disponível em: https://bit.ly/3hLAFsV. Acesso em: 16 jul. 2021. Entretanto, mais grave foi a Crise dos Mísseis de Cuba, que durou 13 dias, em outubro de 1962, e foi marcada pela possibilidade de conflito nuclear iminente entre as superpotências. A ilha no Caribe representava um ponto sensível para os EUA desde 1959, ano em que ocorreu a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro. Cuba passou a representar uma ameaça estratégica à superpotência capitalista devido à sua proximidade do território norte-americano e à adoção de um alinhamento ao socialismo pelos novos governantes. Assim, foi estabelecido um regime de orientação socialista no que era considerada uma área natural de influência estadunidense. Em abril de 1961, forças da CIA haviam arquitetado uma tentativa de derrubar o governo recém-instaurado, o que culminou na invasão da Baía dos Porcos, uma operação desastrosa que gerou desgaste para o governo estadunidense e resultou no aumento do fornecimento de armamentos a Cuba por parte da URSS. 23 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS MÉXICO BAHAMAS REPÚBLICA DOMINICANA AMÉRICA DO SUL PORTO RICO GUATEMALA HONDURAS EL SALVADOR NICARÁGUA COSTA RICA PANAMÁ Manágua Pequenas AntilhasCUBA JAMAICA GUADALUPE MARTINICA DOMINICA SANTA LÚCIA BARBADOS GRANADA TRINIDAD TOBAGO HAITI BELIZE Havana N 0 500 km Figura 7 – Cuba Disponível em: https://bit.ly/3kqWqzW. Acesso em: 16 jul. 2021. De qualquer forma, em outubro de 1962, os estadunidenses identificaram, em fotos de satélites, que a URSS estava instalando mísseis em território cubano que tinham capacidade de transportar armas nucleares e atingir o território dos EUA. A partir de então, instalou-se um contexto de crise, em que o início de um conflito nuclear parecia iminente. Por fim, a URSS aceitou retirar os mísseis de Cuba em troca da garantia de que os EUA não atacariam Cuba e retirariam mísseis da Otan que estavam na Turquia. O episódio foi de extrema importância e serviu para indicar que todo o mundo estava submetido à lógica da competição bipolar, além de trazer à tona a necessidade de tentar conter a corrida armamentista. De fato: Em primeiro lugar, ficou evidente para o mundo todo que o futuro da segurança mundial não dependia mais dos europeus, mas exclusivamente das duas grandes potências, que estavam aptas a tomar decisões mesmo sem consultar seus aliados. O mais importante, contudo, foi a constatação de que a possibilidade de uma catástrofe sem precedentes, que poderia ter destruído o mundo, só poderia ser confrontada através de discussões que pudesse conter a corrida armamentista e iniciar processos de desarmamento sistemáticos. O cenário estava apto à emergência da détente (LOHBAUER, 2005, p. 146-147). 24 Unidade I 1.4 A détente Entre 1969 e 1979, a Guerra Fria foi caracterizada pela détente. Essa palavra francesa significa distensão ou relaxamento e passou a ser empregada em discussões de política internacional para se referir a um período de certa distensão no relacionamento entre as superpotências, ainda que a configuração da ordem internacional permanecesse a mesma. A década de 1970 foi marcada por incertezas e indefinições, sendo possível identificar quatro fenômenos centrais (SARAIVA, 2007b): • détente; • diversidade de interesses; • agenda dos países subdesenvolvidos; • intranquilidade econômica. Como citado, a détente diz respeito à distensão das relações entre as superpotências, cujas crises do Muro de Berlim e de Cuba haviam evidenciado um limite para a coexistência pacífica. Não significa que enfrentamentos e desconfianças tenham sido superados, mas houve um esforço de concertação entre EUA e URSS, de modo que o ineditismo da década de 1970 foi que as duas superpotências se tornaram parceiras, além de rivais (SARAIVA, 2007b). Foram promovidas negociações para limitar as armas nucleares, realizados encontros presidenciais e reestabelecidos fluxos comerciais e financeiros que se encontravam estagnados. Assim, entre 1970 e 1975, as exportações ocidentais para a URSS quadruplicaram (SARAIVA, 2007b). Em 1968, foi aberto para assinaturas o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que entrou em vigor em 1970. O TNP é a peça-chave do chamado regime de não proliferação nuclear e trata-se de um esforço para conter a difusão das aplicações da tecnologia nuclear com fins militares, particularmente, a construção de dispositivos explosivos, tendo em vista o potencial de destruição associado a essa categoria de armas. O tratado foi promovido de forma conjunta por EUA e URSS, com apoio do Reino Unido, representando uma convergência de interesses entre as superpotências. O TNP criou duas categorias de países: os que dominaram a tecnologia das explosões nucleares antes de 1967 e o restante dos países. Os primeiros eram os países nucleares, ou o que se pode considerar potências nucleares legítimas, e mantinham seus arsenais, assumindo compromissos de não facilitar ou colaborar para que outros países dominassem ou comprassem a tecnologia em pauta. Somente cinco países estavam nessa condição: EUA, URSS, China, Reino Unido e França. Por sua vez, o restante dos países assumia o compromisso de não desenvolver, testar ou adquirir armas nucleares. A verificação do cumprimento do compromisso ficou a cargo da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), criada em 1957, responsável por mecanismos de salvaguarda para assegurar que os materiais e as instalações nucleares dos signatários do TNP estejam sendo utilizados apenas para os fins declarados. O tratado resguardava o direito de todos a desenvolverem e utilizarem a energia nuclear para fins pacíficos. Devido a tal caráter discriminatório, de estabelecimento de duas categorias de países, o Brasil foi por décadas um grande crítico do compromisso, sendo famosa a expressão “congelamento de poder mundial” para se referir ao espírito do tratado (CASTRO, 1971). 25 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Observação O Brasil aderiu ao TNP apenas em 1998, em um contexto político muito distinto. De maneira geral, o TNP foi baseado em um tripé: não proliferação, desarmamento e uso pacífico da energia nuclear. O primeiro ponto era, de fato, central, dizendo respeito justamente à tentativa de conter a difusão da tecnologia para fins explosivos. O segundo era o compromisso dos países nucleares de desarmamento. Porém, não foram estabelecidos cronograma ou orientações específicas. Por fim, havia a previsão de que os países signatários não nucleares contariam com cooperação para a utilização pacífica da energia nuclear. Além disso, em novembro de 1969, foram iniciadas as Conversações para Limitação de Armas Estratégicas (Salt, do inglês Strategic Arms Limitation Talks) entre EUA e URSS. O objetivo era discutir limitações para os sistemas de lançamento de mísseis balísticos estratégicos, os mísseis intercontinentais. Até maio de 1972, foram produzidos dois resultados importantes: o Tratado sobre Mísseis Balísticos (ABM Treaty, do inglês Anti-Ballistic Missile Treaty) e o acordo interino entre os EUA e a URSS de certas medidas com respeito à limitação de armas estratégicas ofensivas (conhecido como Salt I) (ARMS CONTROL ASSOCIATION, 2020). Por sua vez, a diversidade de interesses diz respeito à reivindicação, por parte de outros atores, de espaço de atuação próprios, negados pelo jogo das superpotências (SARAIVA, 2007b). Particularmente, os países da Europa Ocidental demandavam que seus interesses também deveriam ser levados em consideração na aliança ocidental, de modo a fortalecê-la. Tal reivindicação por uma postura mais aberta, e também por mais segurança, levou à realização da Conferência para Segurança e Cooperação Europeia, ou Conferência de Helsinki, realizada entre 1972 e 1975. Ao final, foi assinado um conjunto de acordos abordando contratos sociais, econômicos e de cooperação técnica, além de reconhecimento de fronteiras, e incluíam princípios de direitos humanos (LOHBAUER, 2005). Já a América Latina oscilava entre tônicas de autonomia e dependência, buscando construir um lugar próprio no sistema internacional, havendo um esforço de apresentar a região como voltada à solução pacífica de controvérsias (SARAIVA, 2007b). Ressalta-se que a China superou o isolacionismo que enfrentava e normalizou suas relações com os EUA. A partir de 1971, a China continental passou a ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, antes utilizada por Taiwan. Nessa década, foi expressivo o crescimento econômico do Japão. O próximo ponto refere-se aos países subdesenvolvidos, que buscavam projetar seus próprios interesses e reivindicavam maior diálogo norte-sul, postura baseada a partir da percepção de existência de uma condição de dependência estrutural dos países do sul com relação aos países desenvolvidos, do norte. Assim, havia um intuito de formulação de uma agenda própria pelos países subdesenvolvidos, com interesses concretos no tema do desenvolvimento e defendendo a necessidade de construção de uma nova ordem internacional (SARAIVA, 2007b). 26 Unidade I Em 1964, havia sido estabelecida a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad,na sigla em inglês). O objetivo da organização intergovernamental é dar suporte para que os países subdesenvolvimentos possam desenvolver uma inserção, de modo mais justo e eficiente, na economia global (UNCTAD, 2020). Porém, na década de 1970 havia uma frustração dos países subdesenvolvidos com dificuldades de diálogo no seio da Unctad, que buscaram pautar com destaque o tema do desenvolvimento. Em 1974, no seio da Assembleia Geral da ONU, foram promovidas iniciativas para a fundação de uma nova ordem econômica mundial, com destaque para a Declaração sobre o Estabelecimento de Nova Ordem Econômica Internacional e o Programa de Ação sobre o Estabelecimento de Nova Ordem Econômica Internacional. O intuito era reduzir as disparidades econômicas entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Pode-se afirmar que tais movimentos representaram ganhos jurídicos e fomentaram os debates sobre a justiça no cenário internacional, mas tiveram poucos resultados práticos (SARAIVA, 2007b). Por fim, outro fator relevante dessa década pode ser resumido como intranquilidade econômica. Na verdade, esse ponto diz respeito às incertezas do sistema capitalista, particularmente à crise do sistema financeiro e aos choques do petróleo de 1973 e 1979. As crises que se sucederam nesse período abalaram a produção, o comércio e as finanças internacionais. Cabe destacar a crise do Sistema Financeiro Internacional, pautada pela dificuldade de sustentação do padrão monetário do dólar (SARAIVA, 2007b). Os choques do petróleo referem-se ao aumento de seu preço pelos países produtores em bloco, evidenciando a dependência com relação à matéria-prima, especialmente dos países industrializados. De fato: No início dos anos 1970, os royalties gerados pelo petróleo começaram a gerar capital e recursos próprios para que os Estados do Oriente Médio e norte da África, como Argélia, Líbia, Irã, Iraque, Arábia Saudita, além de outros estados do Golfo, pudessem usar o petróleo como arma política. [...] A crescente dependência de petróleo dos países industrializados encorajou a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) a aumentar os preços e subordinar as companhias ocidentais ao controle das nações produtoras (LOHBAUER, 2005, p. 139-140). Observação A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) foi fundada em 1960, por Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela, com o objetivo de fortalecer os países produtores de petróleo diante do mercado global em um contexto em que tal matéria-prima se tornava cada vez mais importante. Outros países associaram-se ao longo dos anos: Líbia (1962), Emirados Árabes (1967), Argélia (1969), Nigéria (1971), Gabão (1975), Angola (2007), Guiné Equatorial (2017) e Congo (2018). 27 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS 1.5 A “nova” Guerra Fria e o desmonte do confronto ideológico A partir de 1979, a Guerra Fria entrou em uma nova fase, sendo a détente substituída por um novo período de tensão, em que foi retomada a rigidez característica do início do embate ideológico. O marco dessa transformação das relações entre as superpotências foi o envio de tropas soviéticas para o Afeganistão em dezembro de 1979 com o objetivo de sustentar um regime comunista que estava enfraquecido (LOHBAUER, 2005). Fomentou-se um quadro de desconfiança e receio no cenário internacional, pois o mundo ocidental temia a adoção de uma política expansionista pela URSS. O então presidente estadunidense, Jimmy Carter, declarou que os EUA utilizariam a força militar para defender seus interesses após a invasão do Afeganistão, realizando um boicote às olimpíadas de Moscou de 1980. A renovação das tensões foi estimulada com a eleição de Margareth Thatcher como primeira-ministra no Reino Unido, em 1979, pois defendia um tratamento mais duro com relação aos soviéticos (LOHBAUER, 2005). Em 1981, Ronald Reagan assumiu a presidência dos EUA e promoveu mudanças na política externa do país, consolidando o Reino Unido como aliado ideal. Os dois governantes aproximavam-se no que se referia à necessidade de um posicionamento mais firme perante a URSS. Reagan identificava na URSS um império do mal, decidindo aumentar as despesas estadunidenses em equipamentos militares a partir do entendimento de que era preciso reafirmar a liderança dos EUA em matéria de dissuasão e capacidade ofensiva (ALMEIDA, 2007). O presidente também disponibilizou apoio a movimentos anticomunistas pelo mundo que buscassem derrubar governos aliados à URSS. Em 1983, foi lançada por Reagan a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI), mais conhecida como Projeto Guerra nas Estrelas. Fazendo parte da concepção acerca da necessidade de aumento de gastos na área da Defesa para diminuição da vulnerabilidade estadunidense, tratava-se de um projeto de defesa contra mísseis balísticos. Em resumo, Essa nova Guerra Fria consistiu esquematicamente no seguinte: os Estados Unidos moveram uma rigorosa corrida armamentista convencional e estratégica – cujo ponto máximo era a militarização do espaço pela Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), ou projeto “Guerra nas Estrelas”, que os colocam em superioridade estratégica sobre a URSS, abalando paralelamente a economia deste país, já enfraquecida pelo embargo comercial dos EUA e aliados (VISENTINI, 2000, p. 222). De fato, a economia soviética estava abalada e não tinha condições de acompanhar o ritmo de competição imposto pelos EUA. Enquanto na superpotência capitalista os déficits orçamentários e a aceleração da dívida pública resultantes do aumento de despesas com equipamentos bélicos puderam ser financiados, o mesmo não se aplicava à URSS, que não podia mais competir militarmente com os EUA (ALMEIDA, 2007). Apesar da sua posição de superpotência, a URSS enfrentava uma situação delicada, em que se pode apontar que a economia doméstica não estava atendendo às necessidades básicas da população – o que 28 Unidade I ocorria também em países satélites na Europa – e identificava-se a ocorrência de corrupção e economia informal devido ao sistema político tradicional. Nesse quadro de fragilidades e dificuldades, a partir de 1985, foi iniciada pela superpotência socialista uma liberalização progressiva do regime sob o comando de Mikhail Gorbatchov. A primeira política a ser destacada é a perestroika (reestruturação). Lançada em 1985, era baseada em uma política econômica que visava impulsionar o crescimento econômico com o aumento dos investimentos de capital. Seus pontos centrais incluíram uma nova legislatura em que dois terços dos representantes eram eleitos com base em escolha popular, o fim do papel de liderança do Partido Comunista, a criação de uma presidência executiva, uma lei de empreendimentos que permitia que empresas estatais vendessem parte de sua produção no mercado e uma lei de joint ventures que possibilitava que empresas estrangeiras possuíssem empreendimento soviéticos (CROCKATT, 2001). Contudo, não foram obtidos os resultados esperados e ganhou espaço no governo uma visão de que eram necessárias mudanças mais profundas. Assim, foi lançada uma nova política, a glasnost (transparência). Tratava-se de uma iniciativa de abertura do sistema político, no sentido de democratização, para vencer a inércia existente no aparato político e burocrático. Foi promovida com a política maior liberdade de expressão. Desse modo, seus principais pontos foram a promoção do princípio de liberdade de criticar, afrouxamento do controle da mídia e liberdade de culto (CROCKATT, 2001). Contudo, os efeitos das políticas adotadas não foram os desejados e consolidou-se um processo de deterioração econômica e política, com perda de popularidade e autoridade por Gorbatchov. Esteve em pauta, então, um processo de derrocada do socialismo, em que este, como polo articulador de um sistema socioeconômico concorrente ao capitalismo, chegou ao fim (ALMEIDA, 2007). Em 1989, deu-se a queda do Muro de Berlim, um dos grandes símbolosda Guerra Fria. Porém, isso não significou o fim da URSS e do socialismo real. O desaparecimento da URSS ocorreu em 1991, em um contexto marcado por incertezas. Figura 8 – Queda do Muro de Berlim Disponível em: https://bit.ly/3esVV4r. Acesso em: 16 jul. 2021. 29 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Não há uma única explicação bem aceita para o fim da URSS. Tratou-se de um evento imprevisto por especialistas e autoridades políticas. Em geral, pode-se afirmar que foi um processo de desmantelamento ideológico e de perda de legitimidade política, mas com causas econômicas estruturais (ALMEIDA, 2007). A ordem internacional passaria então por redefinições, com os EUA como a superpotência restante e o capitalismo como o modelo vitorioso. Assim: Esse sucesso do capitalismo foi, portanto, de um tipo ao qual a sociedade comunista estava especialmente vulnerável. Ela não pode competir economicamente, em termos de produto e mudança tecnológica. Pode competir menos ainda nos novos domínios do consumismo e da cultura popular. A maior preocupação dos líderes soviéticos foi com a área mais vital de competição, a competição militar. Igualar-se ao ocidente na quantidade, deixando de lado a qualidade técnica, foi cada vez mais difícil. O comunismo não pode competir politicamente, uma vez que seu sucesso revolucionário inicial falhou no desenvolvimento de sistemas funcionais e alternativas de democracia. [...] Pode competir menos ainda nos novos campos pioneiros do capitalismo avançado: a cultura de consumo, por um lado, a terceira revolução industrial e a expansão da tecnologia de informação, por outro. As sociedades comunistas, tampouco, puderam constituir um bloco internacional alternativo e esse foi o ponto crucial. Em termos de atividade econômica, o bloco soviético nunca constituiu um bloco comercial dinâmico, capaz de rivalizar com o ocidente. Ele sempre ocupou um espaço defensivo, subalterno na economia internacional (HALLIDAY, 2007, p. 285). 2 O REORDENAMENTO INTERNACIONAL APÓS A GUERRA FRIA 2.1 Transformações e incertezas O fim da Guerra Fria constituiu um evento não previsto, deixando perplexos os observadores e fomentando um conjunto de hipóteses sobre como seria configurada a ordem internacional nesse novo cenário. O desmantelamento do confronto entre EUA e URSS foi um evento praticamente inédito, em que uma superpotência voluntariamente abdicou de sua posição, sem a deflagração de um conflito armado direto entre os centros de poder (LIMA, 1996). São necessárias então algumas considerações sobre o conceito de ordem internacional. A ordem refere-se ao padrão estável de relações entre um conjunto de atores internacionais que têm alguns objetivos em comum (GRIFFITHS; O’CALLAGHAN; ROACH, 2008). Pode-se propor duas condições para considerar a existência de uma ordem internacional. Em primeiro lugar, há certas práticas informais que preservam o sistema internacional e contam com a concordância tácita dos atores internacionais. Em segundo lugar, a eventual ocorrência de um conflito armado não deve comprometer a integridade do sistema (GRIFFITHS; O’CALLAGHAN; ROACH, 2008). Ressalta-se que o termo “ordem” não deve ser confundido com paz ou justiça e que as formas consideradas mais adequadas para manutenção da ordem dependem da visão teórica adotada. De qualquer forma, a ideia de ordem internacional relaciona-se à existência de certos padrões de relacionamento entre os atores no sistema internacional anárquico. Highlight 30 Unidade I Com o fim do sistema bipolar, houve dificuldade em caracterizar a ordem internacional. Desenhava-se um mundo complexo e incerto, em que a política internacional não mudou de natureza, mas ocorreu a busca de novos princípios e regras de conduta para as relações internacionais (CERVO, 2007). Diante de tal quadro complexo, foram levantados diversos cenários acerca do sistema internacional pós-Guerra Fria. As explicações e hipóteses tinham muitas vezes um caráter normativo, do dever-ser, refletindo assim as preferências dos analistas que as formulavam (LIMA, 1996). Inicialmente, foi uma preponderância de argumentos liberais no que se refere ao papel da superpotência restante, os EUA, e das características das interações no cenário internacional. Muitas das perspectivas propostas, marcadas por uma aura inicial de otimismo, mostraram-se frágeis. Lima (1996) identifica cinco teses equivocadas sobre o pós-Guerra Fria: a) utilidade decrescente da força militar; b) ampliação dos espaços comunitários e de cooperação; c) sistema unipolar; d) concerto global; e) revigoramento e transformação da ONU. A primeira tese referia-se ao entendimento de que as armas nucleares seriam o principal parâmetro em termos bélicos e que os gastos militares das principais potências diminuiriam após alcançar certa capacidade de resposta. Porém, o armamento convencional continuou a ser o principal parâmetro e não perdeu significativamente sua importância. O segundo ponto era a visão de que a maior complexidade das relações políticas e econômicas e a maior interdependência ampliaria os espaços comunitários a partir de uma perspectiva de destino comum entre conjuntos de países. Contudo, continuaram existindo dificuldades para a ação em conjunto dentro de bloco de países e não desapareceram dilemas de cooperação entre distintas comunidades. A terceira tese é de um mundo unipolar, em que os EUA apresentavam a capacidade estratégica de projetar forças e interesses em todo o mundo, constituindo um único centro de poder. Apesar da preponderância militar estadunidense, o cenário internacional foi se revelando mais complexo e foram lançadas dúvidas sobre a real capacidade do país em moldar todo o cenário internacional de acordo com as suas preferências, como será discutido adiante. O quarto ponto seria a formação de um concerto global entre os países mais poderosos, baseado na interdependência, na coordenação política e no consenso ideológico. Porém, uma dinâmica desse tipo dependeria de restrições a comportamentos unilaterais dos atores, o que não foi encontrado. Além disso, uma dinâmica de uma clara ameaça comum, que poderia facilitar uma dinâmica em tal sentido, também estava ausente. Por fim, a tese do revigoramento da ONU diz respeito à perspectiva de se colocar em prática a segurança coletiva de fato, superando uma paralisia que se observava na Guerra Fria devido à competição entre as superpotências. Ainda que tenha ocorrido maior dinamização das relações no seio da ONU, continuaram existindo dificuldades e ganharam espaço perspectivas sobre a necessidade de reforma da organização, especialmente de seu Conselho de Segurança. A segurança coletiva nunca foi plenamente aplicada, o que não significa desconsiderar a importância da ONU para a política internacional contemporânea. Lembrete A segurança coletiva baseia-se na ideia de solidariedade e responsabilidade conjunta dos Estados pela preservação da paz e da segurança internacional e diz respeito à formação de um arranjo institucional para promoção de ações coordenadas entre os membros com o intuito de barrar a guerra de conquista e agressão. 31 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Cada uma das teses citadas apresentava perspectivas sobre como seria a ordem internacional. Ainda que se possa afirmar que as proposições se veriam frustradas, é importante considerar tais formulações para compreender as incertezas e o tipo de pensamento que teve espaço em um mundo em transição. Um dos principais tópicos de discussão refere-se ao papel dos EUA na ordem internacional ao fim da Guerra Fria e no século XXI. O conceito de hegemonia é muito utilizado nesses debates. As conotações e o significado da hegemonia dependem da lente teórica adotada na análise, mas, em geral, pode-se entender que há uma ideia de liderança, de um líder entre os Estados (GRIFFITHS; O’CALLAGHAN; ROACH, 2008). A condição de hegemonia de um Estado não é uma constante, mas sim fruto de circunstânciashistóricas e políticas e perpassa a posse e a mobilização de um conjunto multifacetado de recursos de poder (GRIFFITHS; O’CALLAGHAN; ROACH, 2008). Nesse sentido, é importante a capacidade de moldar interesses e preferências de outros atores, de modo a refletir ou ser condizente com os próprios interesses do Estado hegemônico. Pode-se considerar que a hegemonia seja sustentada por um poder material (militar e econômico), mas a legitimidade também é importante, no sentido de reconhecimento da hegemonia e capacidade do Estado hegemônico de convencimento de outros atores, de uma influência cultural e de difusão de suas normas e valores no cenário internacional. Como citado, o entendimento acerca da hegemonia depende das perspectivas teóricas adotadas. Assim, visões realistas enfatizam a primazia e o domínio militar do Estado hegemônico, enquanto interpretações liberais tendem a destacar um caráter benigno da hegemonia com o fornecimento de bens públicos globais. O fim da Guerra Fria levou a diversas indagações sobre o ocaso de uma era, havendo grandes discussões sobre o que, de fato, terminava. Pode-se propor que o evento constituiu uma mudança sistêmica nas relações internacionais. Nota-se que isso não significa uma mudança de sistema, com a estruturação de algo totalmente novo e com natureza distinta do que se entendia como política internacional até então. O que ocorreu foi uma alteração da configuração dentro do sistema existente, especialmente ao se pensar as relações de poder. Destaca-se então que houve o fim da condição de superpotência da URSS, o fim de sua integridade territorial e o fim do socialismo real como um sistema alternativo ao capitalismo (LIMA, 1996). Para compreender melhor as transformações sofridas pela ordem internacional, é pertinente refletir sobre as características centrais de tal ordem durante a Guerra Fria. Lima (1996) identifica quatro aspectos fundamentais: i) bipolaridade estratégica-militar; ii) primazia econômica dos EUA; iii) compromisso liberal; iv) importância do terceiro mundo como ator político. O primeiro ponto diz respeito à competição entre EUA e URSS, que promoveu certa estabilidade no sistema internacional, congelando conflitos regionais e locais anteriores à Segunda Guerra Mundial e subordinando-os à lógica do confronto entre as superpotências. As armas nucleares asseguravam o status quo, independentemente de mudanças em termos de capacidades econômicas dos atores e a dinâmica da dissuasão nuclear controlava a possibilidade de conflito direto entre as superpotências. Cabe ainda lembrar que, sob a égide da aliança com os EUA, países como Alemanha Ocidental e Japão puderam se recuperar da Segunda Guerra, tornando-se potências econômicas sem serem potências militares. Além disso, a lógica do conflito ideológico permitiu a EUA e URSS justificarem intervenções em países do terceiro mundo e a conterem posições de aliados europeus (LIMA, 1996). 32 Unidade I Os demais aspectos estão focados no mundo capitalista. A primazia econômica dos EUA era incontestável nos primeiros 20 anos da Guerra Fria, e a superpotência ocidental mostrava-se disposta a investir na reconstrução europeia e a dar suporte a um arcabouço internacional multilateral. Por sua vez, o compromisso liberal refere-se ao esforço de liberalização econômica multilateral que se constituía. Já a questão da importância política do terceiro mundo está relacionada a espaços de atuação desses países em organizações multilaterais, que permitiam o direito de voz e voto e foram relevantes para a promoção da agenda do desenvolvimento. Como cada superpotência buscava conter os avanços em termos de área de influência de seu rival, os países do terceiro mundo acabavam com certa margem de manobra em negociações internacionais, buscando concessões que atendessem aos seus interesses. Com o fim da Guerra Fria, a bipolaridade estratégica-militar desapareceu. A primazia econômica dos EUA já não era tão evidente, com uma diminuição da participação relativa do país na economia global. O compromisso liberal foi fragilizado por um cenário de crises, incluindo o declínio do estado de bem-estar social. Por fim, o terceiro mundo teve sua capacidade de atuação reduzida drasticamente, e muitos países enfrentavam um cenário de crise da dívida externa e de seus modelos de desenvolvimento econômico (LIMA, 1996). Assim, o fim da Guerra Fria significou a extinção do diálogo Norte-Sul que estava em curso desde os anos 1960, em que o tema do desenvolvimento passou a receber atenção apenas de modo atrelado à necessidade de se evitarem problemas ecológicos e migrações indesejadas (CERVO, 2007). Os países da América Latina buscaram abrir suas economias e reforçar seus laços com o Ocidente. No que tange às superpotências da Guerra Fria, os EUA emergiram como o único país com tal status, contando com uma variedade de meios para operar na política internacional (CERVO, 2007). Configurada uma vitória do capitalismo e a emergência do país norte-americano como única superpotência, seus modelos e valores passaram a ser ainda mais difundidos e copiados. Com o esfacelamento do modelo rival, os princípios de economia de mercado difundiram-se por todo o mundo. Assim, “configurada a vitória, a caracterização dos lineamentos fundamentais do modo de vida vencedor passa a assumir maior destaque, transformando-se em modelo de emulação” (AYERBE, 2006, p. 24). Tais lineamentos também dizem respeito ao modelo capitalista, à democracia representativa como forma de governo e à acentuada importância concedida ao mercado. Ainda que tal difusão do modo de vida tenha ocorrido, muitos analistas apontam que os EUA não apresentavam condições de estruturarem sozinhos essa nova ordem, apontando que um mundo mais complexo se desenhava (CERVO, 2007). Por sua vez, a Rússia, herdeira política da URSS, apresentou a necessidade de repensar sua identidade e seu papel no mundo, tendo que lidar também com uma série de problemas internos para além da reestruturação da sua inserção internacional. Como sintetiza Vidigal (2006), os elementos de mudança do fim da Guerra Fria são essencialmente o fim da ordem polarizada, a emergência de uma única superpotência, a ascensão de novos polos de poder, o enfraquecimento das ideologias e a difusão de uma sensação de um mundo “sem sentido”, com a perda das grandes referências. Por outro lado, há continuidades, como a permanência do Estado como ator central das relações internacionais, a continuidade de um número relativamente pequeno de países altamente industrializados, a permanência de instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial, a existência das armas atômicas e da lógica da dissuasão e uma forte atuação internacional dos EUA. 33 RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS 2.2 Otimismo e fim da história Como mostrado anteriormente, diversas interpretações otimistas ganharam forma para caracterizar as relações internacionais após o fim do confronto bipolar. Visões que enfatizam a inauguração de uma era de paz e prosperidade no cenário internacional, em que as hipóteses de grandes conflitos entre superpotências pareciam encerradas. Isso porque o modelo capitalista saíra vitorioso e, junto à agenda de liberalização econômica promovida pelos países centrais, era difundido por todo o mundo, com um avanço que parecia irresistível. Além do capitalismo, os valores liberais estavam em voga e eram propagados. Democracia e direitos humanos encontravam-se no cerne da agenda e parecia se desenhar um futuro promissor, baseado no modelo e na visão de mundo ocidental. Como aponta Cruz sobre o fim da Guerra Fria: O processo de todo imprevisto e sem igual na história que leva a esse resultado subverte as coordenadas políticas do mundo e torna subitamente obsoleta boa parte da agenda que havia muito vinha concentrando os esforços desprendidos pelos especialistas da área da segurança internacional. Com o fim do conflito entre blocos, o espectro
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