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ESTUDOS DAS RELIGIÕES Professor Dr. José Adriano Filho Professor Dr. Sérgio Gini Professor Me. José Francisco de Souza GRADUAÇÃO Unicesumar C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; FILHO, José Adriano; SOUZA, José Francisco de; GINI, Sergio. Estudos das Religiões. José Adriano Filho; Sérgio Gini; José Francisco de Souza. Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. 201 p. “Graduação - EaD”. 1. Estudos. 2. Religiões . 3. Bíblia 4. EaD. I. Título. CDD - 22 ed. 200 CIP - NBR 12899 - AACR/2 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de EAD Willian Victor Kendrick de Matos Silva Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi NEAD - Núcleo de Educação a Distância Direção Operacional de Ensino Kátia Coelho Direção de Planejamento de Ensino Fabrício Lazilha Direção de Operações Chrystiano Mincoff Direção de Mercado Hilton Pereira Direção de Polos Próprios James Prestes Direção de Desenvolvimento Dayane Almeida Direção de Relacionamento Alessandra Baron Head de Produção de Conteúdos Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli Gerência de Produção de Conteúdos Gabriel Araújo Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila de Almeida Toledo Supervisão de Projetos Especiais Daniel F. Hey Coordenador de Conteúdo Roney de Carvalho Luiz Designer Educacional Agnaldo Lorca Ventura Iconografia Isabela Soares Silva Projeto Gráfico Jaime de Marchi Junior José Jhonny Coelho Arte Capa André Morais de Freitas Editoração Luís Ricardo P. Almeida Prado de Oliveira Qualidade Textual Cíntia Prezoto Ferreira Ilustração Bruno Cesar Pardinho Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de qualidade, novas habilidades para liderança e so- lução de problemas com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho. Cada um de nós tem uma grande responsabilida- de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos- sos farão grande diferença no futuro. Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume o compromisso de democratizar o conhe- cimento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos brasileiros. No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi- tário Cesumar busca a integração do ensino-pes- quisa-extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que contribua para o desenvolvimento da consci- ência social e política e, por fim, a democratização do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al- meja ser reconhecido como uma instituição uni- versitária de referência regional e nacional pela qualidade e compromisso do corpo docente; aquisição de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con- solidação da extensão universitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e administrati- va; compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do trabalho, como também pelo compromisso e relaciona- mento permanente com os egressos, incentivan- do a educação continuada. Diretoria Operacional de Ensino Diretoria de Planejamento de Ensino Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou profissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu- nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con- tribuindo no processo educacional, complementando sua formação profissional, desenvolvendo competên- cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessá- rios para a sua formação pessoal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cresci- mento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis- so, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza- gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória acadêmica. A U TO RE S Professor Dr. José Adriano Filho Doutorado em Teoria e História Literária (UNICAMP) e em Ciências da Religião (UMESP). Mestrado em Ciências da Religião (UMESP). Licenciatura em Letras (UEL). Graduação em Teologia (STJV/FLAM). Atualmente é professor da Faculdade Unida de Vitória (ES). Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em exegese bíblica, atuando principalmente nos seguintes temas: Judaísmo e Helenismo, Novo Testamento, Cristianismo dos primeiros séculos e Hermenêutica. Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/4072349375688174>. Professor Dr. Sérgio Gini Doutorado em Sociologia (UFPR). Mestrado em História (UEM). Graduado em Teologia (convalidado pela Unicesumar) e em Ciências Sociais (UEM). Foi professor assistente, com dedicação exclusiva, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (2009-2012). É ministro de confissão religiosa ordenado pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Pesquisa temas ligados à História Política e à Sociologia Política, entre eles elites empresariais, ação coletiva do empresariado, estratégias de desenvolvimento econômico e grupos de pressão e interesses. Também trabalha com temas ligados à Teologia e à Sociologia da Religião, especificamente elites religiosas, além de conflitos e interesses no campo protestante. Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/3666962169868857>. Professor Me. José Francisco de Souza Mestre em Ciências da Religião (UMESP). Especialista em História do Cristianismo (UMESP). Graduado em Teologia (FTBSP) e em Estudos Sociais (Universidade Cruzeiro do Sul). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Cristianismo. Atualmente é professor do Colégio Evangélico de Maringá. Para saber mais, acesse: <http://lattes.cnpq.br/6457410970479700>. SEJA BEM-VINDO(A)! Caro(a) aluno(a), este trabalho tem como objetivo principal oferecer alguns recursos em termos históricos e conceituais para uma abordagem interdisciplinar do fenômeno re- ligioso. Eles poderão contribuir para a reflexão e construção teológica que você desen- volverá ao longo de sua vida ministerial. Da mesma forma, tais recursos serão somados consideravelmente à sua tarefa de aben- çoar vidas, já que serão de suma importância para a construção do pensamento teoló- gico e científico. Isto porque este é o primeiro passo para um discurso religioso bem ela- borado e equilibrado,que alcance o coração e a mente do ouvinte com plausibilidade. Assim, é possível contribuir para o enriquecimento do homem e crescimento do Reino entre todos nós. Afinal, nossa tarefa é aproximar as pessoas de Deus para que se tornem seres humanos melhores, a fim de viver mais intensamente o presente da vida abundante disponibiliza- da a nós pela graça. Para isso, quanto mais aprimorado nosso autoconhecimento, mais eficaz será a nossa atuação. Portanto, conhecer o fenômeno religioso em suas diversas dimensões nos faz conhecedores de nós mesmos. O fato do ser humano crer, elaborar e organizar sistemas religiosos é algo que intriga o próprio ser humano. É um verdadeiro desafio para todo estudante investigar e chegar a conclusões razoáveis. A religião tem suas “delicadezas” por ser o espaço onde as pessoas encontram o sentido de sua existência. Onde há um grupo humano organizado em comunidade, há um sistema simbólico com sentido próprio, com seus mitos, seus rituais e sua provável crença em algo trans- cendente. Isso proporciona experiências pessoais e comunitárias que explicam e dão o sentido para existência e para toda movimentação social e pessoal no mundo. Esses sistemas são chamados “religião”. Sua diversidade é imensurável, a criatividade impressa neles é algo fantástico e, provavelmente, inexplicável na sua plenitude. Como compreender algo que não pode ser alcançado na sua totalidade? Algo que se distingue de tudo por suster em si uma esfera íntima e pessoal? Não seria melhor não discutir e simplesmente experimentar? Talvez essa característica tão intrínseca do fenô- meno religioso explique o jargão popular “religião não se discute”. Contudo, por mais obscuros que sejam os recônditos da experiência religiosa, não podemos perder a opor- tunidade de compreender mais amplamente a nós mesmos. Não podemos deixar de lado, sem qualquer consideração, a capacidade humana de produzir símbolos e construir mundos que só existem em nossa imaginação, que são transcendentes da experiência sensorial e empírica. Não podemos deixar de investigar algo que só o ser humano possui e experimenta, sendo isso um dos caracteres que nos diferenciam de todas as outras espécies de seres que existem. APRESENTAÇÃO ESTUDOS DAS RELIGIÕES Sistemas religiosos, em toda a sua complexidade, devem ser discutidos sim, em to- das as formas que o ser humano tem de raciocinar, seja pelas ciências hermenêu- ticas ou pelas empíricas descritivas, pois é certo que elas têm muito a nos ensinar sobre religião. Já há algum tempo, as ciências têm tratado do fenômeno religioso. Em certas oca- siões, esse tratamento teve a intenção de desmerecer a religiosidade, rotulando-a como algo infantil e fantasioso. Buscou-se, ainda, levantar a possibilidade de que a explicação científica racionalista do mundo, de seus fenômenos e de suas leis iriam “desmascarar” a religião, a ponto de torná-la algo obsoleto. Isso porque a explicação do mundo por meio de mitos e crendices infundadas acontecia simplesmente em função do desconhecimento da ciência. Esse desmerecimento, em certa medida, teve sua razão por internalizar a pretensão de livrar o pensamento das amarras de um mundo totalmente preso ao sistema teocêntrico. Isto porque ele limitava os espaços para investigações mais audaciosas que coubessem na mente humana e abrissem outros espaços de relações com o universo. A ciência tem explicado esse seu equívoco pela percepção da complexidade do fe- nômeno religioso, que vai se expondo a cada investida dos pesquisadores na busca de compreensão racional dos mistérios da fé. Neste livro, apresentamos uma introdução aos estudos das Ciências da Religião. Esta disciplina tem conquistado cada vez mais autonomia nos meios acadêmicos e vai se mostrando muito eficaz para a Teologia quando ambas se propõem ao diálo- go, visando à contribuição e troca mútua de conteúdos, ideias, valores, métodos etc. Bom estudo! Esperamos que o aprendizado contribua positivamente para sua for- mação de teólogo. APRESENTAÇÃO SUMÁRIO 09 UNIDADE I RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO 15 Introdução 16 O que é Religião? 20 A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas 24 A Religião e Sua Função Social 27 A Religião Como Objeto da Ciência 31 Por uma Nomenclatura Coerente 35 Considerações Finais 40 Referências 41 Gabarito UNIDADE II UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO 45 Introdução 46 O Contexto Histórico das Ciências da Religião 49 O Século das Luzes e a Religião Natural 51 Religião Pode ser Ciência? 56 Teorias da Origem da Religião 66 Teologia Versus Ciências da Religião 70 Considerações Finais 74 Referências 75 Gabarito SUMÁRIO 10 UNIDADE III A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO 79 Introdução 80 A Teoria Sociológica de Durkheim 83 As Contribuições da Psicanálise: Freud e Jung 88 A Alienação Marxista 90 A Reação Fenomenológica 107 As Críticas à Fenomenologia 115 Considerações Finais 120 Referências 122 Gabarito UNIDADE IV AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO 125 Introdução 126 Estudo da Religião ou das Religiões? 131 A Contribuição de Max Weber Para o Estudo da Religião 135 História da Religião 138 Sociologia da Religião 142 Ciências da Religião e Teologia 148 Considerações Finais SUMÁRIO 11 153 Referências 155 Gabarito UNIDADE V TEMAS EM ESTUDOS DAS RELIGIÕES 159 Introdução 160 A Etimologia da Religião 163 A Vivência Humana do Ato Religioso 167 A Atitude Mítica 177 Metáfora e Alegoria 187 A Vitalidade do Sagrado 193 Considerações Finais 198 Referências 200 Gabarito 201 CONCLUSÃO U N ID A D E I Professor Dr. Sérgio Gini Professor Me. José Francisco de Souza RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Objetivos de Aprendizagem ■ Conceituar criticamente o termo “religião”. ■ Verificar a apreensão do conceito de religião em outras culturas não cristãs e em épocas anteriores ao Cristianismo. ■ Conhecer como a religião ordena a vida social. ■ Estabelecer a religião como objeto válido de avaliação científica. ■ Entender as nomenclaturas que definem esse campo de estudo. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ O que é religião? ■ A religião em outras culturas e épocas históricas ■ A religião e sua função social ■ A religião como objeto da ciência ■ Por uma nomenclatura coerente INTRODUÇÃO Caro(a) aluno(a), iniciamos a nossa primeira unidade sobre Estudos da Religião com o objetivo de contribuir para as suas reflexões sobre o fenômeno religioso em face dos estudos em Teologia. Aliás, os estudiosos do campo religioso costu- mam afirmar que as Ciências da Religião são a “filha emancipada” da Teologia. Assim sendo, um bom curso de Teologia não deve prescindir de um amplo debate sobre os estudos em Ciências da Religião. Assim como as outras ciências possuem um objeto de estudo visível, as Ciências da Religião têm como objeto a religião na dimensão social, política, geográfica e histórica. Contudo, diferem-se de outras ciências de uma maneira bem específica, pois a religião possui uma dimensão que transcende à materia- lidade, ligada ao espiritual e ao divino. Por conta de sua emancipação, as Ciências da Religião diferem da Teologia, isso porque não há uma busca pela “verdade” ensinada por uma determinada religião. Os cientistas do fenômeno religioso são profissionais competentes para verificar se uma determinada religião é compreendida de forma correta ou não, entretanto não atestam sua veracidade ou falsidade. Com essas diferenciações preliminares e essenciais, iremos estudar, nesta unidade, como é conceituado criticamente o termo “religião”, verificando, ainda, como ele é apreendido em outras culturas, especialmente as não cristãs e as de épocas anteriores ao Cristianismo. Apresentaremos, também, o sentido funcionalista da religião, a qual atua como ordenadora da vida social, e o seu confronto com a perspectivade ser objeto de avaliação científica. Por fim, iremos justificar a nossa opção pelo uso da nomenclatura “Ciências da Religião”, sem detrimento dos autores e esco- las que preferem “Ciência da Religião” ou “Ciência das Religiões”. Bom estudo! Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 15 RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E16 O QUE É RELIGIÃO? Caro(a) aluno(a), responder a indagação que dá título a este tópico é um enorme desafio, pois o significado do termo “religião” não é exato, uma vez que está imbri- cado nos sentidos que os seres humanos dão a si mesmos e à história. O filósofo da religião Urbano Zilles (2004, p. 6) destaca que: O problema religioso toca o homem em sua raiz ontológica. Não se trata de fenômeno superficial, mas implica a pessoa como um todo. Pode caracte- rizar-se o religioso como zona de sentido da pessoa. Em outras palavras, a religião tem a ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo. O termo “religião” e sua conceituação têm provocado um debate intenso, uma vez que leva ao cerne dos estudos em Ciências da Religião. Já no início do século XX, o psicólogo da religião James Leuba (1909, p. 1) afirmou que “há centenas de definições diferentes de religião”. Embora existam muitas definições de religião e novas sejam lançadas per- manentemente, até hoje não se chegou ao resultado esperado, pois não há uma definição que não seja rejeitada por, pelo menos, uma pessoa. Quando deter- minado pensador afirma que a religião é caracterizada por seres espirituais, seu crítico responde que não, afirmando que é caracterizada pela promessa de reden- ção. Outro rebate dizendo que, se é assim, o marxismo teria que ser uma religião (e de fato não é), portanto a discussão se arrasta. O que é Religião? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 17 Procurando por definições, pensadores cristãos têm em mente categorias cristãs. Também se valem de suas categorias os cientistas adeptos ou não de outras religi- ões, mas que têm seu universo de pensamento enraizados nelas. Sabendo disso, será que chegaremos a um consenso? Será que veremos uma definição com a qual todos concordarão? Para Greschat (2005, p. 20) isso seria “muito improvável”. Contudo, segundo Klaus Hoch (2010), professor de História da Religião e Religião e Sociedade da Universidade de Rostock, na Alemanha, e autor do livro Introdução à Ciência da Religião, é importante abordar algumas questões fundamentais que compõem o trabalho de definição do termo “religião”, para que se tenha orientação no prosseguimento do estudo científico da(s) religião(ões). O trabalho de definição de termos pode ser perigoso, pois carrega o que compreendemos sobre a questão, estando certos ou errados. O antropólogo Clifford Geertz (1989, p. 104) já advertia: Embora seja notório que as definições em si nada estabelecem, se fo- rem cuidadosamente construídas elas podem, por elas mesmas, forne- cer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que desenrolá-las pode ser um caminho efetivo para resolver e controlar uma linha de pesquisa. Elas têm a virtude muito útil de serem explí- citas: elas se comprometem de uma forma que a prosa discursiva não assume, pois sempre está disposta a substituir o argumento por uma retórica, especialmente neste campo. Devidamente alertados, consideraremos, a seguir, algumas dessas questões. Primeiramente, é preciso admitir que o termo “religião” se originou num con- texto histórico específico, ou seja, pertence à história intelectual do Ocidente. Quando necessária sua aplicação a outros contextos históricos e culturais, algu- mas dificuldades se apresentam. Em várias línguas do Continente Europeu, a palavra “religião” está profun- damente enraizada, uma vez que a cultura europeia é marcada incisivamente pelo Cristianismo. Quando europeus a ouvem, a associação à fé cristã é imediata. O termo “religião” tem suas raízes na palavra latina religio, que descreve a atuação com consideração ou a observância cuidadosa no serviço cúltico. Para os romanos, significava a exatidão ritual, um desempenho exato no ato religioso. Cícero fez uso do termo se referindo à sequência correta nos atos do culto, no serviço de adoração a determinado deus ou aos deuses. Assim, religio, no contexto latino, está para a ortopraxia e não caracteriza a ortodoxia, RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E18 (HOCH, 2010). Essa delimitação do termo no ambiente romano não dá exa- tidão à sua interpretação. Agostinho (354-430) fez uso da definição de Lactâncio (240-320), que deri- vou o termo de religare (ligar, amarrar, ligar de novo, ligar de volta, levar de volta) para descrever a religio vera, a “verdadeira religião”, incumbida de reconciliar a alma que se desvencilhou de Deus. Esse é o sentido mais comum do termo nos ambientes cristãos. Contudo, há algumas demonstrações de religio sendo, ainda, aplicadas no sentido da “atuação correta”. Quando seu conteúdo se opõe à superstitio (superstição), não se refere a uma fé errada, mas à atuação errada, no sentido de um ato incorreto ou reali- zado de modo exagerado, sem legitimação ou autorização. Outro exemplo pode ser a referência que se faz ao monge, às freiras e aos outros membros de congre- gações ou ordens como “religiosos”. Esse status tem sua caracterização na atuação correta do serviço e no serviço de culto, e não naquilo que é “crido”. Nessa simples demonstração, percebemos que “o debate sobre a derivação certa do termo religio mostra que a sua defini- ção não é possível nos moldes de uma definição objetiva, ‘dada’, mas permanece vinculada a um contexto histórico-cultural específico” (HOCH, 2010, p. 18). Lucio Célio Firmiano Lactâncio foi um autor entre os primeiros cristãos que se tornou conselheiro do primeiro imperador romano cristão, Constantino I. Ele guiou sua política religiosa, que começava a se desenvolver, e foi o tutor de seu filho. Sua obra, Divinae Institutiones, marca uma etapa importante no emprego da palavra e na elaboração do conceito de religião. Partindo da ideia de que religião e sabedoria só podem ser verdadeiras na sua união, re- jeitava tanto os cultos pagãos quanto a Filosofia. Para ele, o Cristianismo é a verdadeira filosofia: a verdadeira sabedoria para os pensadores, a verdadeira religião para os ignorantes. Fonte: Azevedo (2010). O que é Religião? Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 19 No final do século XV e início do século XVI, os humanistas passam a se relacio- nar com o termo como sinônimo do que o senso comum tinha por “fé cristã” ou “confissão”. Com a Reforma Protestante, passa a ter uma função crítica em dois sentidos: contra superstição e magia e contra a atuação cúltica da Igreja Católica Romana em seus serviços divinos, que, aos olhos dos reformadores, era errada. Foi na Era das Luzes que o termo tomou para si uma forte tendência à gene- ralização. Assim, conceitualmente, “religião” passa a estar por trás da diversidade das religiões; terminologicamente, põe-se acima de toda a diversidade religiosa (HOCH, 2010). Nos séculos XIX e XX, por uma aliança entre o evolucionismo histórico e a conceituação de religião como termo geral no singular, o conceito “religião” foi profundamente relacionado à justificação da crítica ao Cristianismo em sua pre- tensão de superioridade. Criticava-se também a fundamentação da sua exigência de ser reconhecido como absoluto pela suposição de que a religião perpassaria um processo de desenvolvimentolinear e, desse modo, estaria se movendo em direção à sua realização no mundo. Nesse processo, o Cristianismo, como forma mais civilizada e mais altamente desenvolvida de religião, estaria mais perto desse ideal do que as outras religiões da humanidade. Assim, nesse tempo, segundo Hoch (2010), a “religião” aparece como um todo ideal, que está presente nas religiões somente de forma truncada e insuficiente, por essas não cumprirem, ainda, o seu processo evolutivo. Portanto desde a era do Iluminismo estamos lidando com o problema de que o termo religião, como um termo da história intelectual oci- dental, deve sua origem e a definição de seu conteúdo ao contexto his- tórico-cultural específico da Europa, por um lado, mas que ele, como conceito geral por outro, reivindica a possibilidade de nomear também em outros contextos histórico-culturais algo que corresponde àquilo que ele também descreve no Ocidente (“cristão”) (HOCH, 2010, p. 20). Caro(a) aluno(a), pense nas implicações de analisar a religião sob o ponto de vista histórico-cultural da Europa. RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E20 Dentro desse contexto, o termo “religião cristã” é outra noção vaga, pois o Cristianismo se apresenta como católico-romano, protestante, anglicano, evangé- lico, batista, metodista, pentecostal, ortodoxo-russo, entre várias outras formas de expressão. Assim, quando falamos em religião, do que mesmo estamos falando? É importante ter esse questionamento em mente para seguir nosso estudo. A RELIGIÃO EM OUTRAS CULTURAS E ÉPOCAS HISTÓRICAS Uma vez cientes de que o termo “religião” tem seu conteúdo enraizado num con- texto histórico-cultural, cabe-nos compreender que em outras culturas e épocas históricas não há um termo correspondente. Existem alguns que se aproximam, como: eusébeia, do período clássico da Grécia, que designa temor e respeito não apenas aos deuses, mas às pessoas importantes e aos objetos; latréia, que pode se referir a um serviço de culto, tendo um sentido genérico e designando um serviço prestado num sentido geral e profano; e threskéia, que descreve um ato concreto, o cumprimento de um mandamento. Há algo em comum entre esses termos e o nosso termo “religião”, contudo, eles vão além do que entendemos como religião, segundo Hoch (2010). A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 21 Nada é facilitado quando se avalia a correspondência do termo em contextos his- tórico-culturais distintos do universo ocidental cristão. No ambiente islâmico, a palavra árabe dîn deriva da raiz semítica dâna, que significa, aproximadamente, “acertar algo” (no sentido de pagar uma dívida, aquilo que se deve a Deus). Esse sentido é estranho ao que se atribui à religião, desse modo não é possível fazer uma associação desprovida de uma série de restrições e cuidados para uma cor- respondência. O termo também descreve formas de vida, costumes e hábitos ordenados conforme ordem e direito. Em âmbito índico, dharma, do sânscrito, significa carregar e segurar, no sentido de que os deuses seguram e mantêm unido o cosmo. Também tem sua abrangên- cia alcançando a “lei” e a ordem de castas em tradições hindus, o que colocam em evidência aspectos do sistema de ordenamento ritual e social. Nas tradições budis- tas, o termo é relacionado com o ensinamento do Buda e alcança uma abrangência como categoria ontológica, relacionada à existência (HOCH, 2010). Esse também é um termo que se distancia, em seu significado e abrangência, do termo “religião”, considerado no ambiente ocidental. A problemática da questão se acentua quando consideradas outras regiões e povos. Ainda segundo Klaus Hoch: Uma perda total de qualquer chão seguro há, por exemplo, no caso das religiões africanas ou oceânicas, onde geralmente não encontra- mos nada que se destaque como área parcial claramente distinguível de “religião” dentro do complexo geral da cultura. Não é de admirar que, antigamente, viajantes ou etnógrafos que se confrontaram com essas culturas julgaram ou que ali não haveria religião alguma ou concluíram que ali tudo era religião (HOCH, 2010, p. 22). Essa realidade justifica o porquê da busca por padrões e regularidades que gover- nam a vida religiosa da humanidade existir a séculos. Friedrich Max Müller, em 1870, quando sugeriu a criação de uma nova disciplina que chamou de “Ciência da Religião”, tinha como um de seus alvos encontrar elementos padrões e princípios que pudessem oferecer uniformidade a todas as religiões de todos os tempos e lugares. Ele entendia que muito poderia ser ganho se os fatos, os costumes, os ritu- ais e as crenças que compunham as diversas religiões “fossem investigados pelos métodos científicos para que houvesse desenvolvimento de teorias e comparações” (PALS, 2006, p. 4). Assim, seria possível compreender a complexidade, o cerne e a natureza do fenômeno religioso e “poder explicá-lo em termos estritamente RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E22 racionais, exatamente como os cientistas procedem nas áreas de biologia ou quí- mica para explicarem a natureza” (PALS, 2006, p. 4). O elemento comum, uma vez encontrado, imprimiria ao conceito de “religião” a exatidão que tanto se almeja entre os pesquisadores do fenômeno religioso. Assim, os esforços são constantes em duas vias: tenta-se encontrar esse elemento comum nos conteúdos, uma “substância”, com a pretensão de chegar a “natureza” e “essência” da religião, ou seja, aquilo que estaria na base de todas as religiões distintas; outra via consiste em perguntar por aquilo que as religiões realizam, ou seja, quais as funções que cumprem e a singularidade entre elas. Para a compreensão essencialista, muitas vezes, Deus é o elemento funda- mental constitutivo das definições que se caracterizam assim, seja de forma mais concreta ou mais abstrata (uma divindade ou deuses no plural). Essa compreensão segue a proposta de Edward Burnett Tylor (1832-1917), partindo do princípio de que não podemos seguir o impulso natural para descrever a religião como sim- plesmente a crença em Deus. Isso porque essa definição excluiria uma grande porção da raça humana, pessoas que são plenamente religiosas, mas creem em Friedrich Max Müller nasceu em Dessau (Alemanha) em 1823. Em seus estu- dos, concentrou-se na filologia comparada das grandes obras orientais, pelo que ficou conhecido como um grande defensor do orientalismo. Especiali- zou-se no estudo das civilizações e línguas antigas e da Filosofia e criou o ter- mo “henoteísmo” para definir uma forma de religião em que se cultua um só Deus, sem que se exclua a existência de outros. Da Alemanha, emigrou para Paris, França, onde em 1845 começou a pesquisar a ciência da religião compa- rativa e escreveu o Rig Veda, com base nos textos sagrados indianos. Em 1846, foi para a Inglaterra, onde foi recebido pela Rainha Vitória e pelo príncipe con- sorte, que o conduziram até a Universidade de Oxford, onde ele adquiriu fama e fortuna. Em 1868, foi nomeado professor de Filosofia Comparativa. Sua mais importante obra foi Sacred Books of the East (51 volumes publicados entre 1879 e 1910). Max Müller morreu em Oxford, na Inglaterra, em 1900. Fonte: Bosch (2002). A Religião em Outras Culturas e Épocas Históricas Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 23 mais de um ou em outros deuses diferentes de cristãos e judeus. Portanto, sua proposta, que procura por um lugar comum de onde se possa partir, é uma defi- nição mínima: religião é “a fé em seres espirituais” (PALS, 2006, p. 26). Contra essa definição essencialistae as demais que derivaram dela, impõe- -se a objeção de que nem todas as religiões conhecem deus, deuses, nem mesmo seres espirituais ou sobrenaturais, o exemplo mais incisivo é o Budismo, intitu- lado como uma religião não teísta. Para contornar essa dificuldade, outras definições essencialistas se apegam a fenômenos mais fundamentais como conteúdo ou objeto de religião. Na ver- tente fenomenológica da religião, esse lugar foi ocupado pelo “sagrado”, definido pelo teólogo protestante alemão Rudolf Otto (1869-1937) como categoria fun- damental pela qual se capta a religião. Outras definições essencialistas trabalham com outra abstração para definir a essência fundamental da religião, a “transcendência” ou “experiência da trans- cendência”. Por mais abrangente que seja a categoria transcendência, ainda resta dúvida se ela pode resolver o problema do que seria comum a todas as religiões, já que deixa dúvidas em que medida pode ser constitutiva para o Budismo pri- mitivo, para o Confucionismo e para o Taoísmo. O termo “não teísta” se refere à divergência entre o Budismo e as religiões que partem da ideia de um deus eterno que existe fora do cosmo criado por ele e, portanto, não é sujeito da impermanência que determina a vida relativa. É importante ressaltar isso, uma vez que, no decorrer da sua his- tória, o Budismo incluiu diversas divindades locais no seu panteão, porém “desvalorizou” as figuras celestiais incorporadas do Hinduísmo e do Xama- nismo tibetano, localizando esses seres supra-humanos dentro da roda de vida (samsara). Fonte: Usarski (2009). RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E24 Caro(a) aluno(a), sendo impossível determinar padrões de uniformidade sobre o que é a religião, especialmente em culturas não europeias ou influenciadas por esta e outras épocas históricas, resta-nos compreender que o objeto reli- gião, utilizando um termo científico, pode se apresentar de modo muito diverso dependendo do observador. Se a conceituação do termo não soa promissora, o desafio para compreendê-lo cientificamente é instigante, como veremos a seguir. A RELIGIÃO E SUA FUNÇÃO SOCIAL Definições que abrem mão da essência, que não perguntam o que a religião é, prefe- rem defini-la pelo que ela faz e o que causa, são funcionalistas, pois estão vinculadas à suposição de que a religião reage a problemas humanos comuns e fundamentais, que não podem ser solucionados tecnicamente (crises existenciais, dúvidas quanto ao sentido último da vida etc.). Essa caracterização humana — uma essência que não se acomoda, mas transpõe as respostas e soluções tecnicistas — descreve o ser humano como ser religioso, fazendo, portanto, a religião parte da condição humana. É discutível, porém, que as questões existenciais, as dúvidas quanto ao sen- tido da vida e outras inconformidades a que os seres humanos estão sujeitos ocorrem de forma independente, como simples produtos da natureza humana a despeito da cultura. Por outro lado, caso esse funcionalismo resolvesse a questão, as respostas pelo empenho da religião seriam muito diversificadas. Ficaríamos expostos a uma multiplicidade de definições funcionais, uma para cada um dos problemas humanos que não podem ser submetidos às soluções técnicas. O Deus dos filósofos seria um deus essencialista? O que é este ser? De que é feito? Quais as suas causas e para que fim tende? (Adaptado de Konings & Zilles, 1997). A Religião e Sua Função Social Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 25 Uma tentativa de solucionar o problema das definições múltiplas da funcio- nalidade é limitá-las ao âmbito social com a seguinte pergunta: o que se espera da religião em vista da cultura em seu conjunto? A resposta com maior plau- sibilidade é que, nessa perspectiva funcionalista, a função principal da religião consiste na integração da sociedade. Os principais representantes dessa corrente funcionalista da religião são o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) e o etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942). Um modelo harmonizador de cultura está vinculado a essas teo- rias e se fundamenta no funcionamento ideal da cultura em suas diferentes áreas (ciência, economia, direito, religião etc.), as quais se complementam mutuamente e estão em recíproca sintonia. Nesse conjunto, a função da religião seria integrar as pessoas à sociedade, acomodá-las ao seu meio social e torná-las agentes de harmonização. O equí- voco aqui é a falta de atenção nas evidências históricas de que a religião pode ser um fator de desintegração, tendo um efeito desestabilizador na harmonia social. As definições funcionalistas da religião têm seus limites. Segundo Hoch (2010), à semelhança das definições essencialistas, quanto mais genéricas se propõem, mais alto o nível de abstração do elemento funcional da religião. O seguinte exemplo evidencia sua tese: O polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) é considerado um dos funda- dores da Antropologia Social, destacando-se como o principal pensador da escola funcionalista. Sua principal obra é Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), na qual relata suas impressões como observador das práticas dos nativos das Ilhas Trobriand, onde permaneceu de 1915 a 1918. Entre os ritu- ais dos trobriandeses, Malinowski dá atenção especial ao kula, uma prática cultural e religiosa, cuja função é interpretada por ele como de preservação da vida social. Fonte: Malinowski (1976). RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E26 Um exemplo para um grau especialmente alto de abstração é a teoria de religião do sociólogo da religião (falecido em 1998) Niklas Luhmann, que define o empenho de religião aproximadamente assim: o mundo é contingente — isto é, ele é como é por acaso, e poderia muito bem ser diferente; diante dessa situação de insegurança e indefinição, a religião torna o indefinível definível, ao reduzir a complexidade: seleciona entre a infinidade de todas as possibilidades e, dessa maneira, produz “senti- do”. Portanto o empenho particular da religião consiste em sua função orientadora. Religião é a prática de como lidar com a contingência por meio da redução da complexidade. Devido a seu alto grau de abstração, a definição de Luhmann pode ser aplicada com relativa facilidade às formas concretas e diferentes de religião (HOCH, 2010, p. 26). A crítica a teses funcionalistas como essa é que elas ignoram os conteúdos espe- cíficos da religião e tornam esses elementos não religiosos para responderem à pergunta pelo empenho e função da religião. Vemos que tanto as definições essencialistas como as funcionalistas apresen- tam seus problemas e suas limitações. Essa constatação nos deixa longe de uma definição genérica e abrangente o suficiente para alcançar as singularidades das diversas expressões religiosas existentes, bem como o fenômeno religioso em seu possível elemento comum. As Ciências da Religião não questionam a “verdade” ou a “qualidade” de uma religião, porque os sistemas religiosos têm sentido formalmente idênticos. (Frank Usarski) A Religião Como Objeto da Ciência Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 27 A RELIGIÃO COMO OBJETO DA CIÊNCIA Diante da impossibilidade de fechar uma definição de religião num conteúdo inequívoco, propõe-se renunciar uma definição e deixar a questão em aberto. Porém, essa proposta também apresenta seus problemas. Uma vez que é impos- sível definir um objeto de pesquisa, como manter uma ciência para investigar esse objeto? Pode ser que essa renúncia à definição seja equivalente à renúncia à própria Ciência da Religião como uma disciplina independente. Propõe-se, então,uma caracterização aproximativa de “religião”, nomeando critérios que permitem definir mais concretamente o que se quer dizer, de modo a não se limitar a uma definição estreita. Uma vez que as definições costumeiras sejam caracterizadas por estabelecerem seu objeto de modo unidimensional, ou seja, entre a grande variedade de fatores, são selecionados determinados aspectos, como fé, experiência, ética, sistema de pensamento, ato (ritual), divindade etc., o que permite observar que a religião compreende um conjunto de componentes. RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E28 Portanto, a conceituação do termo “religião” precisa se referir a uma gama de diferentes elementos, critérios e dimensões que, em seu conjunto, apresentam um quadro em que a Ciência da Religião encontra seu objeto. Esses elementos rela- cionados entre si podem determinar o que é “religião”. Hans-Jürgem Greschat, professor emérito da Universidade de Marburgo, na Alemanha, defendendo a totalidade do objeto “religião” como um ideal para o cientista, afirma que: Diferentemente das definições de religião, o objeto “religião” não existe somente na cabeça dos pesquisadores. Ele está no mundo ex- terior, onde pesquisadores realmente o enxergam. O objeto “religião” é algo concreto, ou seja, é sempre uma determinada religião. Cada uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e estudadas é representada como uma totalidade passível de investigação de acordo com quatro perspectivas: como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedimentação de experiências (GRESCHAT, 2005, p. 24-25). Vale citar, também, as dimensões de religiosidade desenvolvidas por Charles Glock e Rodney Stark, que serviram a muitos estudos sobre a religião: a dimen- são ideológica, a dimensão ritualista, a dimensão da experiência, a dimensão intelectual e a dimensão pragmática (STARK; GLOCK, 1968). A partir delas, Ursula Boos-Nünning (1972) acrescenta a dimensão do vínculo com a comuni- dade, que incluiu uma nova perspectiva nessa relação. As dimensões da religiosidade apontadas por Glock e Stark são: dimensão ideológica, que se nota pela influência da Igreja nos conjuntos de ideias assumidos pelos indivíduos; a dimensão ritualista, que é parte da práxis da religião, estando associada ao seu próprio funcionamento; a dimensão pragmática, que atende aos requisitos de formação e estruturação dos ritu- ais e das influências dos povos ao redor; a dimensão da experiência, que é ligada às individualidades dos sujeitos religiosos; e a dimensão intelectual, que advém do estudo e das informações teológicas, ou seja, que superam a fé, tentando racionalizá-la. Fonte: adaptado de Stark e Glock (1968). A Religião Como Objeto da Ciência Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 29 O professor Frank Usarski, em resposta a uma entrevista de alunos mestrandos da PUC de São Paulo, em 2002, apresenta uma definição de religião que contem- pla a abertura do conceito, considerando as dimensões do fenômeno religioso: [...] não considero adequado pensar em uma definição fechada de reli- gião e opto por um conceito aberto capaz de superar um entendimento pré-teórico que generaliza fenômenos religiosos, [...]. A partir dessas considerações meu conceito de religião contém quatro elementos: primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilida- des próprias. Segundo, [...], a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva da proposta de que existe algo transcendental, [...]. Tercei- ro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos que pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética. Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sen- tido para a vida, elas alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso tem a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e es- tabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem va- lores comuns e praticam sua fé em grupos (USARSKI, 2006, p. 125). Temos, também, a definição científica de Klaus Hoch, que é um tanto mais minuciosa e tem uma complexidade que entendemos alcançar a completude do fenômeno religioso como objeto de pesquisa. Para ele, “religião” é: Um construto científico que abrange todo um feixe de definições de ca- ráter funcional de conteúdo, através do qual podem ser captados, como “religião”, num esquema, elementos relacionados entre si e formas de expressão, como objeto e área de pesquisa científico- religiosa (e outra). Pertencem a esses elementos e formas, entre outros, dimensões de éti- ca e da atuação social (normas e valores, padrões de comportamento, formas de vida), dimensões rituais (atos cúlticos e outros atos simbó- licos), dimensões cognitivas e intelectuais (sistemas de doutrina e de fé, mitologias, cosmologias etc., ou seja, todo o saber “religioso”), di- mensões sociopolíticas e institucionais (formas de organização, direito, perícia religiosa etc.), dimensões simbólico-sensuais (sinais e símbolos, arte religiosa, música etc.) e dimensões da experiência (experiências de vocação e de revelação, sentimentos de união mística, experiências de cura e de salvação, experiências de comunidade e de unificação...) (HOCH, 2010, p. 29). RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E30 Temos, então, um conceito aberto que deixa a questão da funcionalidade ou da essência para um segundo plano, tornando possível a articulação dos dois conceitos sem que o objeto seja comprometido em sua abrangência como fenômeno humano real e existente. Também deixa aberto o espaço para que o fenômeno seja avaliado cientificamente, com métodos e linguagem científicos, com conteúdo e resultado distintos do próprio discurso religioso. Mesmo assim, o conceito de religião está sob o escrutínio constante do movimento científico, por se tratar de um paradigma: um ou paradigma é uma entidade dinâmica que se desenvolve com o decorrer tempo. Kuhn propõe como uma regra que a disciplina passa por movimento cíclicos de três fases: a subida de um paradigma, a fase da ciência normal rotineira e o declínio de plausibilidade, ou seja, a validade de um paradigma até a revolução científica mediante a qual um novo paradigma se impõe como sujeito do mesmo processo histórico (USARSKI, 2001, p. 77). Este é o caso de Clifford Geertz, do ponto de vista da antropologia social, em sua proposta de religião como sistema cultural: Se o estudo antropológico das religiões está de fato num estado de es- tagnação geral, eu digo que ele se possa pôr em movimento novamente apresentando apenas pequenas variações sobre temas teóricos clássi- cos. [...] Para conseguir isso não precisamos abandonar as tradições estabelecidas da antropologia social nesse campo mas apenas ampli- á-las. Pelo menos quatro dentre as contribuições dos homens [...] que dominam nosso pensamento a ponto de paroquizá-lo — Durkheim [...], Weber, Freud e Malinowski [...] — parecem-me pontos de partida inevitáveis para que qualquer antropologia da religião seja útil. Mas elas são apenas pontos de partida (GEERTZ, 1989, p. 65-66). De forma mais sucinta, mas com profundidade e abrangência acentuadas, Geertz apresenta uma das mais aceitas conceituações abertas de religião atualmente: [...] um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, pene- trantes e duradouras disposições e motivaçõesnos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de factualidade que as disposições e mo- tivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 67). Por uma Nomenclatura Coerente Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 31 Prezado(a) aluno(a), o fenômeno religioso como objeto de pesquisa se situa em uma dimensão estritamente humana e como expressão social. As categorias teó- ricas pelas quais as Ciências da Religião estudam esse fenômeno não possuem a totalidade da verdade do fenômeno religioso e da religião enquanto instituição, mas contribuem com aspectos analíticos válidos e comprovadamente científicos. POR UMA NOMENCLATURA COERENTE Caro(a) aluno(a), no âmbito de seu desenvolvimento e de sua luta por vali- dade acadêmica, as Ciências da Religião têm sido designadas de formas diferentes de acordo com os pressupostos epis- temológicos das diferentes escolas que se apropriaram do termo. Temos três variações que desig- nam a mesma disciplina, porém com algumas diferenças de interpretação na defesa de uma nomenclatura em detrimento de outra: “Ciências da Religião”, como usamos neste livro; “Ciência da Religião”, como a pro- posta da escola alemã; e “Ciência das Religiões”, como proposta dos autores que se aproximam mais das inter- seções com a Etnologia e a Antropologia. “Qualquer tentativa de falar um idioma particular não tem maior fundamen- to que a tentativa de ter uma religião que não seja particular [...] Assim, cada religião viva e saudável tem uma idiossincrasia marcante.” (George Santayana) RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E32 Os estudiosos da religião na Alemanha preferem a designação “Ciência da Religião”, no singular, em contraposição a “Ciências da Religião”, que tem sido mais comumente utilizado. Usarski (2006, p. 73) esclarece que a opção por essa nomenclatura é “para salientar a integridade substancial de sua disciplina e o seu status particular no ambiente acadêmico”. Tais cientistas da religião entendem que “por concentrar-se em um conteúdo determinado de forma mais profunda e abrangente do que qualquer outra matéria” (USARSKI, 2006, p. 73), a nomen- clatura mais coerente seria mesmo Ciência da Religião. Em sua defesa pelo uso desse termo, Usarski (2006) relaciona a nomencla- tura acadêmica que se faz na Pedagogia, por exemplo. Segundo o autor: Embora essa disciplina também não possua uma metodologia e apare- ça como ponto de interseção de diversas matérias, como a psicologia da educação, a sociologia da educação, a filosofia da educação e assim por diante, não está em pauta designá-las pedagogias. Em outras palavras: não se questiona a mudança do nome pedagogia só porque concentra o tema educação em um quadro acadêmico que, ao mesmo tempo, serve como reservatório intelectual disposto a integrar qualquer resultado de pesqui- sa direta ou indiretamente vinculado à educação, independentemente da questão de um saber relevante ter sido produzido originalmente dentro da própria disciplina ou em qualquer outra (USARSKI, 2006, p. 73-74). Esse mesmo argumento, segundo Usarski (2006, p. 74), vale para a Ciência da Religião, que se aproveita dos “conhecimentos e métodos de suas subdisciplinas e disciplinas auxiliares mais importantes” (as filologias, a História, a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião), bem como de “outros conjuntos acadê- micos, por exemplo, da etnologia, da antropologia ou da geografia”. Por fim, Usarski sela seu argumento destacando que: Ante o fato de que se trata de uma ciência metodologicamente integrati- va, a caracterização da disciplina como campo disciplinar perde relevân- cia para a questão da nomenclatura adequada. Em outras palavras: a falta de uma metodologia própria não é razão suficiente para negar a legitimi- dade do singular no termo Ciência da Religião (USARSKI, 2006, p. 74). Por uma Nomenclatura Coerente Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 33 Os defensores do termo “Ciência das Religiões”, por sua vez, partem do mesmo pressuposto elencado por Usarski ao se referir à integração das várias ciências em uma única disciplina. Porém, enfatizam que “a razão para se usar o plural, religiões, é bastante aparente. Há de fato, muitas religiões” (PYE, 2011, p. 17). Nesse sentido, a “Ciência das Religiões” procura ampliar o seu campo disci- plinar para além do ponto de vista religioso de teólogos cristãos ou de motivações religiosas de outras tradições, como Hinduísmo ou Budismo. Essa ciência irá produzir o estudo não religioso das religiões, liberto das motivações religiosas e de manipulações políticas. Pye argumenta que: Tal entendimento do estudo não religioso das religiões é agora bastante difundido e tem uma tradição intelectual consistente. É nesse sentido que considero a Ciência das Religiões como uma disciplina “autônoma”. Esse termo não implica uma teoria em particular sobre a “realidade transcen- dente” ou algo assim, significa simplesmente que a Ciência das Religiões não deveria ser subordinada a alguma outra disciplina (PYE, 2011, p. 17). Como há uma mudança constante no campo religioso e no seu desenvolvimento enquanto disciplina acadêmica, os defensores dessa nomenclatura enfatizam que a função básica da Ciência das Religiões é prover análises confiáveis de sistemas religiosos com os quais possam trabalhar. Alguns exemplos dessa atividade seriam: verificar como religiões específicas con- tribuem, “através da formação de seus símbolos e padrões de comportamento, para a harmonia social e integração, ou, por outro lado, para legitimar a desigualdade social, instabilidade ou mesmo violência” (PYE, 2011, p. 22). Ancorando essas pesquisas, estariam o diálogo entre as religiões, as políticas públicas concernentes à religião (direitos humanos e harmonia civil) e o diálogo pela paz. Por fim, Pye esclarece que: Nos anos 1980 e início dos anos 1990, houve um debate sobre se o estudo das religiões deveria ser considerado uma disciplina “histórica” ou “científi- co-social”. A ala da história era defendida por aqueles que estavam engaja- dos em vários tipos de estudos sobre o Oriente, enquanto a ala científico-so- cial foi fortemente defendida por aqueles especializados em Antropologia (no senso de Etnologia). Embora sem consenso, prevaleceu o uso de ambas as abordagens de forma integrada nas Ciências da Religião. Fonte: Pye (2011). RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E34 [...] a ciência das religiões não serve a um programa missionário ou missiológico e que não intenciona servir à expansão de uma religião a expensas de outra [...]. A ciência das religiões também não é um mo- vimento pela unidade religiosa e não ensina nenhuma “unidade” das religiões [...] (PYE, 2011, p. 23). Neste livro, entretanto, preferimos utilizar a nomenclatura “Ciências da Religião”. Com isso, não estamos excluindo as ponderações dos que defendem as designações anterior- mente citadas, mas apenas nos adequando a uma preferência da academia no Brasil. Primeiro, a opção por “religião” e não “religiões” está fundamentada naquilo que Rudolf Otto (1985), em seu livro O Sagrado, deduziu: há uma universalidade do sagrado e uma relevância secundária nas expressões, que o encontro entre a alma humana e o ser transcendental produziu. Segundo, a preferência pelo termo “ciências” se refere a um campo disciplinar aberto, dinâmico, com um pluralismo de técnicas de pesquisa e aproximações empíri- cas, como defendem Filoramo e Prandi (1999). Fazem parte desse campo a Teologia, a Filosofia, as CiênciasSociais, entre outras ciências, como está sintetizado a seguir: As diversas ciências humanas (psicologia, sociologia, história, antropologia, filosofia, etc.), ao abordarem os dois objetos (religião enquanto instituição e experiência do Sagrado), constituem-se Ciências da Religião. Importa-lhes compreender tanto a religião como o Sagrado e suas ramificações. Trata-se de realidades e experiências que atravessam a história da humanidade até o dia de hoje. Quanto mais ciências se debruçarem sobre elas, mais o espectro das Ciências da Religião cresce (LIBÂNIO, 2011, p. 53). Caro(a) aluno(a), para concluir este tópico, vale salientar que as Ciências da Religião não são reféns da Teologia ou estão sob a tutela eclesiástica. Sua auto- nomia enquanto disciplina acadêmica e científica está confirmada desde as três últimas décadas do século XIX (USARSKI, 2006). A independência ou autonomia das Ciências da Religião como uma disci- plina deve ser mantida, pois de outra forma seu trabalho teria pouco valor. (Michael Pye) Considerações Finais Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 35 CONSIDERAÇÕES FINAIS Caro(a) aluno(a), concluímos esta primeira unidade seguindo até aqui a orien- tação de Klaus Hoch (2010). Abordamos algumas questões sobre as tentativas de desenvolvimento de um conceito de religião e concluímos que um conceito aberto, científico e que envolva a totalidade do objeto, como sugerem os pen- sadores citados nos referidos tópicos, é o mais coerente com o que se propõe às Ciências da Religião. É claro que esse não é o melhor conceito para a Teologia ou para as igrejas cristãs. Contudo, a proposta, que já está bem acentuada, é por uma conceitua- ção científica do termo, para que se tenha um objeto de pesquisa empírica sujeito à observação, experimentação, comparação e explicação concernentes com os métodos das ciências humanas e sociais e com os resultados racionais que se pretendem alcançar. Compreender a religião como totalidade, segundo Greschat (2005, p. 24), torna-se um divisor de águas entre cientistas da religião e outros cientistas que se ocupam apenas esporadicamente da religião. Segundo o autor, “diferentemente das definições de religião, o objeto ‘religião’ não existe apenas na cabeça dos pesqui- sadores. Ele está no mundo exterior, onde pesquisadores realmente o enxergam”. Dessa forma, qualquer religião que seja escolhida para estudo e análise será representada como uma totalidade de acordo com quatro perspectivas: “como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedi- mentação de experiências” (GRESCHAT, 2005, p. 24). Essa é a validade acadêmica das Ciências da Religião e seu contraponto à Teologia. Assim observado, podemos prosseguir agora para uma compreensão mais elaborada do que se trata Ciências da Religião. Para isso, será importante que se compreenda a trajetória histórica da disciplina. Dessa forma, é necessário verifi- car em que contexto religioso político e acadêmico surgiu, quais suas primeiras propostas e teorias e como se desenvolveram os métodos até que se chegasse aos dias atuais como uma disciplina autônoma no ambiente universitário. 36 DEFINIÇÕES SOCIOLÓGICAS DA RELIGIÃO Definições não podem ser por sua própria natureza, “verdadeiras” ou “falsas”; podem apenas ser mais ou menos úteis. Por essa razão, não tem muito sentido discutir em torno de definições. Porém, caso haja discrepâncias entre definições num dado campo, tem sentido discutir suas respectivas utilidades. É o que propomos fazer aqui, com a brevida- de apropriada a assuntos menores. Na verdade, pode-se alegar, pelo menos no campo da religião, que mesmo definições baseadas em pressupostos patentemente errôneos têm uma certa utilidade. Por exem- plo, a concepção de Max Mueller da religião como uma “doença da linguagem” (Essay on Comparative Mythology, 1856) está baseada em uma teoria racionalista da linguagem muito inadequada, mas ainda é útil ao apontar a linguagem como o grande instrumen- tal do homem para construir o mundo, que atinge seu máximo poder na construção de deuses. Não obstante o que a religião possa ser além disso, ela é um universo de signifi- cado construído pelo homem, e essa construção é feita por meios linguísticos. Um outro exemplo: a teoria de Edward Tylor sobre o animismo e sua concepção da re- ligião baseada nesta teoria (Primitive Culture, 1871) parte da noção inaceitável do ho- mem primitivo como um tipo de filósofo imperfeito e, além disso, tem uma ênfase muito estreita na alma como categoria religiosa básica. Todavia, ainda é útil relembrar que a religião implica a busca pelo homem de um mundo que esteja relacionado com ele, e que será “animado” neste sentido amplo. Em suma, a única atitude sensata com relação a definições é a de tolerância. [...] A tentativa mais convincente e ousada para definir a religião em termos de sua funciona- lidade social é a de Thomas Luckmann (em seu Das Problem der Religion in der modernen gesellschaft, 1963, versão inglesa, The Invisible Religion, 1967). Essa tentativa é claramen- te de tradição durkheimiana, embora ampliada por considerações antropológicas gerais que vão bem além de Durkheim. Além disso, Luckmann diferencia cuidadosamente sua concepção de funcionalidade daquela do funcionalismo estrutural contemporâneo. A funcionalidade se baseia em alguns pressupostos antropológicos fundamentais e não em constelações institucionais particulares, historicamente relativas e que não podem ser alçadas validamente a um status de universalidade (como fazem os sociólogos da religião peculiar à cultura ocidental). Sem descermos aos detalhes de uma discussão extremamente interessante, a essência da concepção luckmanniana da religião é a capacidade de o organismo humano trans- cender sua natureza biológica por meio da construção de universos de significados ob- jetivos, que obrigam moralmente e que tudo abarcam. Consequentemente, a religião se torna não apenas o fenômeno antropológico por excelência. Especificamente, a religião é equiparada com autotranscendência simbólica. 37 Assim, qualquer coisa genuinamente humana é ipso facto religiosa e os únicos fenôme- nos não religiosos na esfera humana são os baseados na natureza animal do homem ou, mais precisamente, aquela parte de sua constituição biológica que ele tem em comum com os outros animais. Eu compartilho inteiramente dos pressupostos antropológicos de Luckmann (vide nos- so esforço teórico conjunto em The Social Construction of Reality, 1966, no qual, logica- mente, nós contornamos nossa diferença com relação à definição de religião) e também concordo com sua crítica de uma sociologia da religião fixada na Igreja como institucio- nalização historicamente relativa da religião. Todavia, eu questiono a utilidade de uma definição que iguale religião e humano tout court. Uma coisa é apontar os fundamentos antropológicos da religião na capacidade humana de autotranscendência; outra, igualá-las. Afinal, existem formas de autotrans- cendência e concomitantes universos simbólicos muito diferentes uns dos outros, não obstante a identidade de suas origens antropológicas. Assim, pouco se ganha, em minha opinião, ao se chamar a ciência moderna, por exem- plo, de religião. Se se fizer isso, ter-se-á subsequentemente de definir de que forma a ciência moderna é diferente daquilo que todos chamam de religião, inclusive as pessoas engajadas na Religionswissenschaft, o que coloca de novo o mesmo problema de defi- nição. Acho muito mais útil tentar uma definição explícita de religião desde o começo e tratar as questões de suas raízes antropológicas e de sua funcionalidade social como assuntos separados. É por essa razão que, aqui, eu tentei operar com uma definição explícita de religião em termos de postulação de um cosmos sagrado. A diferença nessa definição, é claro, é a categoria do sagrado,que tomei essencialmente no sentido a que, desde Rudolf Otto, a Religionswissenschaft lhe dá (e que, aliás, Luckmann considera como virtualmente inter- cambiável com sua concepção do religioso, o que torna ainda mais difícil a diferenciação entre as várias formas históricas de simbolização). Isso não é apenas o caminho conceptualmente, mas, penso eu, permite distinções me- nos complicadas entre cosmos empiricamente observáveis. Deve-se enfatizar, porém, que a escolha de definições não implica diferenças na interpretação de desenvolvimen- tos sócio-históricos particulares. Afinal de contas, suponho, definições são questão de gosto e assim ficam sob a máxima de gustibus. Fonte: Berger (1985, p. 181-184). 38 1. Como visto no primeiro tópico desta unidade, quais as funções sociais que você poderia atribuir à religião? 2. A partir dos estudos sobre o termo “religião”, você concorda com o conceito aberto e universalista das Ciências da Religião que vimos no segundo tópico? Justifique sua resposta negativa ou afirmativa e faça comparações com o seu conceito cristão. 3. Qual a sua opinião sobre o que se espera da religião em vista da cultura em seu conjunto, de acordo com a visão funcionalista vista no terceiro tópico desta unidade? 4. Cite e discorra brevemente sobre as dimensões da religiosidade desenvolvidas por Charles Glock e Rodney Stark e apresentadas no quarto tópico desta unidade. 5. Conceitue e diferencie os termos “Ciência da Religião”, “Ciência das Religiões” e “Ciências da Religião”. Material Complementar MATERIAL COMPLEMENTAR Uma teoria da religião Rodney Stark e William Sims Bainbridge Editora: Paulinas Sinopse: o livro representa a formulação mais pormenorizada e consistente da teoria da escolha racional na área de Sociologia da Religião. Os autores oferecem uma contribuição inestimável no processo de demarcação epistemológica necessário para um estudo realmente cientí� co da religião, que não se confunde com esquemas de abordagem implicitamente teológicos. Teologia, Ciência da Religião e Filosofi a da Religião: defi nindo suas relações Nesse texto, traduzido em português e publicado na Revista Veritas, da PUCRS, o professor de Teologia Sistemática e Teologia Prática da Universidade de Hamburgo, Jörg Dierken, apresenta as divergências e os pontos de intersecção das três disciplinas. Confi ra o texto completo no link, disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index. php/veritas/article/viewFile/5071/3736>. A vida de Brian - 1979 Sinopse: o � lme de Terry Jones é uma sátira, com Graham Chapman, Terry Gilliam, John Cleese e Michael Palin, do famoso grupo de humor inglês Monty Python, à visão hollywoodiana do nascimento de Jesus. Brian Cohen é um judeu como outro qualquer, mas, em uma série de eventos ridículos, foi confundido com o Messias desde que nasceu, e, desde então, mantém essa fama e se torna líder de um movimento religioso. Um dia, ele é levado até Pôncio Pilatos e condenado à cruci� cação. Comentário: após a apresentação do � lme na Inglaterra, em um debate na TV, o ator John Cleese discutiu com representantes religiosos sobre o “teor de blasfêmia” que A vida de Brian tinha. Cleese, em uma só resposta, deixou os dois líderes religiosos que o sabatinavam sem reação. O ator questionou sobre a fé de ambos quando levantou a questão de que se um � lme abala a fé de alguém é porque tem alguma coisa errada com a fé desse alguém. REFERÊNCIASREFERÊNCIAS AZEVEDO, C. A. A procura do conceito de religio: entre o relegere e o religare. Reli- gare, João Pessoa, v. 7, n. 1, p. 90-96, mar. 2010. BERGER, P. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. BOOS-NÜNNING, U. Dimensionen der Religiosität. Zur Operationalisierung und Messung religiöser Einstellungen. München: Kaizer, 1972. BOSCH, L. Friedrich Max Müller: a life devoted to humanities. Leiden (Netherlands): Brill, 2002 (Studies in the history of religions, livro 94). FILORAMO, G.; PRANDI, C. As Ciências das Religiões. São Paulo: Paulus, 1999. GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1989 (1973). GRESCHAT, H. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005. HOCH, K. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010. KONINGS, J.; ZILLES, U. Religião e Cristianismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. LEUBA, J. H. Psychological origin and the nature of religion. London: Archibald Constable & Co Ltd, 1909. LIBÂNIO, J. B. A religião no início do milênio. In: CRUZ, E. R.; MORI, G. Teologia e Ciên- cias da Religião. A caminho da maioridade acadêmica no Brasil. São Paulo: Paulinas / Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2011. MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976. OTTO, R. O Sagrado: um estudo do elemento não racional na ideia do divino e a sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. PALS, D. L. Eight theories of religion. 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Nessa questão, o(a) aluno(a) deve abordar as funções sociais atribuídas à reli- gião, tais como: agregar os indivíduos à sociedade, servindo de instrumento de controle social, e manter a ordem, funcionando como um código moral, um mo- delo a ser seguido por seus adeptos, dando ênfase, enquanto valor agregado, à regularidade para a sociedade e possibilitando uma reflexão do ser humano para além de si mesmo. 2. Não será analisado se o(a) aluno(a) concorda ou não com o conceito proposto, e sim sua capacidade de justificar a resposta e agregar ao seu referencial cristão. 3. Na perspectiva funcionalista, já adiantada na primeira pergunta, a função prin- cipal da religião consiste na integração da sociedade. A resposta desta questão está contida na primeira, o que forçará o(a) aluno(a) a, obrigatoriamente, recor- rer àquela. 4. As dimensões da religiosidade são: a dimensão ideológica, a dimensão ritualista, a dimensão da experiência, a dimensão intelectual e a dimensão pragmática. O(a) aluno(a) deverá discorrer brevemente sobre cada uma delas. 5. Nesta questão, o(a) aluno(a) deverá ser capaz de identificar as três propostas distintas para o termo, enfatizando a questão multidisciplinar, a questão do sa- grado e as diversas variações do fenômeno religioso. 41 U N ID A D E II Professor Dr. Sérgio Gini Professor Me. José Francisco de Souza UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Objetivos de Aprendizagem ■ Compreender o contexto histórico em que há proposta de uma Ciência da Religião. ■ Apresentar como o Iluminismo influenciou positivamente o debate sobre religião. ■ Avaliar a validade das primeiras teorias da religião que deram início ao estudo científico do fenômeno. ■ Conhecer o desenvolvimento das primeiras teorias científicas da religião. ■ Organizar o debate que diferencia as Ciências da Religião da Teologia. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ O contexto histórico das Ciências da Religião ■ O século das luzes e a religiãonatural ■ Religião pode ser ciência? ■ Teorias da origem da religião ■ Teologia versus Ciências da Religião Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 45 INTRODUÇÃO Caro(a) aluno(a), nesta unidade, iremos estudar uma breve história das Ciências da Religião, com o objetivo de compreender o contexto em que surge a proposta de estudar a religião sob o prisma da ciência e com o auxílio de disciplinas cien- tíficas das ciências humanas, como a Filologia, no início, e depois a Etnografia, a Antropologia, entre outras. O nascimento de uma nova ciência é sempre marcado por um processo de ruptura; no caso das Ciências da Religião, a ruptura aconteceu com a Teologia. Entretanto, o processo de emancipação foi demorado e, até hoje, embora seja uma ciência autônoma, ainda paira sobre seus representantes o temor de que a Teologia possa fazer cativa as Ciências da Religião. Esse temor talvez possa ser justificado pelo fato de que o Iluminismo foi o grande influenciador para o surgimento de uma ciência que estudasse o fenô- meno religioso sem as pretensões de uma religião dominante ou totalitária. Pelo contrário, o projeto iluminista dotou os teóricos que iniciaram os primeiros estudos sobre as religiões de uma percepção holística, ou seja, de compreender a religião como uma totalidade. Assim, apresentaremos, também, quais foram as primeiras teorias da religião que deram início ao estudo científico desse fenômeno, todas elas desvincula- das das antigas tradições escolásticas e do movimento herdeiro da Reforma Protestante. Essa particularidade irá dotar as Ciências da Religião de um esta- tuto teórico próprio, diferente e separado da Teologia, embora muitos de seus primeiros estudiosos tenham sido teólogos de formação. Aliás, esse debate entre Teologia e Ciências da Religião ocupará o nosso último tópico, para que possamos verificar como a relação entre as duas disci- plinas acabou em tensões e conflitos na atualidade, muito mais em relação ao aspecto sociológico dos seus ambientes de estudo, e como as Ciências da Religião podem contribuir com a Teologia e vice-versa. Bom estudo! UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E46 O CONTEXTO HISTÓRICO DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Caro(a) aluno(a), as ciências que tratam da religião são fruto da modernidade. Antes do advento da era moderna, não se discutia o fenômeno religioso, seja por conta da hegemonia do Cristianismo ou por conta da não presença ou penetra- ção de outras religiões, com exceção do Islamismo, que sempre foi visto como opositor ao Cristianismo. Por volta do ano de 1500, época das grandes navegações e também da Reforma Protestante, uma nova visão de mundo começou a tomar forma. As viagens dos exploradores, comerciantes, missionários e aventureiros para o Novo Mundo e para o Oriente levaram cristãos a um contato direto com povos que não eram judeus nem muçulmanos, cujas religiões eram desprezadas (a primeira por ser somente um prefácio do Cristianismo, a segunda por ser uma perversão daquela). Missionários viajavam com os conquistadores e exploradores, sendo sua contribuição trazer as nações pagãs para Cristo e para a Igreja e, portanto, fize- ram muitos se converterem, mas esse processo apresentou muitas surpresas. Quando Matteo Ricci (1552-1610) mudou-se para a China, o missionário rapi- damente “se converteu”. Ele descobriu que os chineses tinham uma civilização real, com arte, ética e literatura. Seus métodos eram racionais e seguiam uma impres- sionante sabedoria moral de seu próprio “Moisés”, o antigo professor Confúcio. O Contexto Histórico das Ciências da Religião Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 47 Um outro jesuíta, Roberto de Nobili (1577-1656), teve uma experiência similar na Índia. A sabedoria espiritual da Índia capturou sua imaginação, e ele estu- dou os textos sagrados tão intensamente que ficou conhecido como o “Brâmane Branco”. Na América, missionários descobriram algo conhecido como o Supremo Bem. Quando essas informações foram levadas para a Europa, ocorreu no cír- culo de pensamento, a condenação dessas pessoas como discípulos do demônio parecia algo inapropriado e desviado. A China de Confúcio poderia não conhecer Cristo, mas, de alguma forma, sem a Bíblia para guiá-los, produziram uma civilização pacífica e de moralidade ele- vada. Se os apóstolos tivessem visitado a China ficariam admirados. Ao mesmo tempo em que esses contatos aconteciam, a civilização cristã encontrava-se envolvida numa sangrenta guerra. Liderados por Martinho Lutero (na Alemanha), por Ulrico Zuínglio (na Suíça) e por João Calvino (em Genebra e na França), os novos movimentos protestantes ao norte da Europa desafiavam o poder da Igreja Romana e rejeitavam sua interpretação bíblica e autoridade papal. Enquanto os exploradores viajavam, seus conterrâneos frequentemente se inflamavam com o fogo das perseguições e das guerras. Comunidades eram divi- didas pela ferocidade das querelas teológicas, primeiramente entre católicos e protestantes, depois entre as denominações e vários outros diferentes grupos que começaram a aparecer entre a cristandade. Entre os povos nativos da América do Norte, especialmente onde atualmente se situam os Estados Unidos, havia uma crença comum em um ser supremo, O Grande Criador, aquele que cuida de tudo na vida e controla o bem e o mal. Fonte: os autores. UMA BREVE HISTÓRIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IIU N I D A D E48 Em meio à tempestade do conflito eclesiástico e ao combate político que emperraram a Europa nos séculos XV e XVI, não surpreende que fiéis de todos os lados tinham cada vez menos certeza de que a verdade final de Deus estava em suas mãos somente. A mortal e destrutiva guerra religiosa, que persistiu por mais de cem anos em alguns lugares, levava pessoas a acreditarem que a verdade sobre a religião não poderia ser encontrada em vertentes preparadas para torturar e executar seus oponentes, atribuindo tais aberrações à vontade de Deus. Certamente, alguns entenderam que a verdade da religião deveria ser encon- trada além das querelas da Igreja, além das torturas da estaca e do fogo. Para estes, a fé da Europa encontraria uma forma pura e comum, uma estrutura mais universal de fé e de valores. Prezado(a) aluno(a), as navegações, os descobrimentos, o surgimento da imprensa, a Reforma e a Contrarreforma vão servir de base para novas interpretações sobre o ser humano e a sua relação com o divino. Esse pano de fundo fará emergir uma ciência que busca conhecer o fenômeno religioso. O reformador Zuínglio (1484-1531) foi um dos mais notáveis críticos e com- batentes do papado e das doutrinas católicas romanas. Liderou um exército contra as forças católicas em vários cantões da Suíça, além de lutar também contra os defensores da “reforma radical”, os anabatistas. Morreu em com- bate em 11 de outubro de 1531 e teve o corpo esquartejado e queimado. Fonte: os autores. Como povos que não conheciam a Bíblia e a Cristo podiam viver em uma sociedade ordenada, pacífica e em completa sintonia com a natureza? O Século das Luzes e a Religião Natural Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 49 O SÉCULO DAS LUZES E A RELIGIÃO NATURAL Diante do pano de fundo sangrento da era anterior, os pensadores do século XVIII, a Era do Iluminismo, propuseram a busca por uma religião antiga pura e natural, compartilhada pela humanidade inteira. A religião natural formou as bases do Deísmo, como veio a ser chamada. Na lista