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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA ÁFRICA AULA 3 Prof. Edmar Almeida de Macedo 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, veremos como as populações africanas são diversas e tiveram um desenvolvimento histórico também diverso. O foco na antiguidade do continente não nos impede de irmos e voltarmos no tempo para sedimentarmos conceitos importantes para esse período, que também serão úteis para o estudo do conjunto da história do continente. Como conhecer algo implica em fazer escolhas, também tivemos que recortar alguns povos e civilizações para abordarmos a antiguidade do continente. Então, nesta aula, veremos alguns dos povos que desenvolveram complexos arranjos estatais no continente, bem como discutiremos a importância das relações com a Europa para a história do norte do continente, afinal, conduzir o estudo de uma história vista por dentro do próprio continente não significa estudar uma história isolada. “A Antiguidade egípcia é, para a cultura africana, o que é a Antiguidade greco-romana para a cultura ocidental” (Silvério, 2013, p. 149), e só por este motivo estaria justificado o seu estudo. A egiptologia consagrou-se ao longo de anos como um campo próprio dentro da história, e é este, sem dúvida, o capítulo mais conhecido da história africana em todo o mundo. Essa rica história possui uma clássica periodização (Silvério, 2013). • I e II dinastia (Período Arcaico): aproximadamente 3200 a.C. a 2900 a.C. • III a VI dinastia (Antigo Império): aproximadamente 2750 a.C. a 2200 a.C. • VII a X dinastia (Primeiro Período Intermediário): 2200 a.C. a 2150 a.C. • XI a XII dinastia (Médio Império): 2150 a.C. a 1780 a.C. • XIII a XVII dinastia (Segundo Período Intermediário): 1780 a.C. a 1580 a.C. • XVIII a XX dinastia (Novo Império): 1580 a.C. a 1080 a.C. • XXI a XXIII dinastia (Terceiro Período Intermediário): 1080 a.C. a 730 a.C. • XIV a XXX dinastia (Baixa Época): 730 a.C. a 330 a.C. Mas essa história, que geralmente é ensinada como um capítulo da história dos povos do crescente fértil, possui também as lógicas típicas da história africana e é em contraste com a história do continente que devemos encará-la. 3 Por outro lado, “A fascinação pela história do Egito faraônico significou, contudo, o desconhecimento ou, pelo menos, a pouca divulgação da história de outros impérios africanos importantes da Antiguidade” (Silva, 2019, p. 44). Por isso, com o estudo dos povos núbios e etíopes, pretendemos afastar de vez a ideia de uma África antiga povoada apenas por povos coletores e caçadores. Existiam civilizações complexas e formações estatais robustas na África desse período para além do Egito Antigo. Por sua vez, no norte da África, uma antiga colônia fenícia, também na Antiguidade, controlou boa parte do comércio mediterrânico. Trata-se da cidade de Cartago, que fez da díade comércio e guerra o segredo de seu secular sucesso. Suplantada Cartago pelos romanos, vemos como a cultura romana e seu domínio político assentaram-se no norte do continente, produzindo transformações e ressignificando antigas tradições. TEMA 1 – POVOS DA ÁFRICA Ainda na Pré-História, apareceu o homo sapiens, no entorno dos lagos etíopes, há mais de 200 mil anos, como já vimos. Sua dispersão pelo continente africano foi um processo longo e que possibilitou a diferenciação étnica dos seres humanos. Já vimos que o conceito de etnia envolve, além dos aspectos fenotípicos, os aspectos culturais. Assim, a constante diferenciação cultural fez com que os seres humanos formassem grupos mais ou menos homogêneos vivendo em cada rincão do continente africano e do mundo. Essa diferenciação pode ser notada nos dias atuais, como nos mostra o mapa de grupos étnicos africanos. 4 Figura 1 – Grupos étnicos atualmente existentes na África Créditos: João Miguel A. Moreira. Essa diversidade expressa-se também em um dos marcadores mais significativos da identidade étnica, a linguagem. Figura 2 – Línguas faladas atualmente na África Créditos: João Miguel A. Moreira. 5 Essa diversidade de povos está na base de uma história africana múltipla e não linear, em que podemos encontrar diversos povos vivendo em diversas formas de organização societal e estatal. Só para termos um exemplo, veja o mapa com alguns dos povos e das civilizações que estudaremos nesta aula e futuramente: Figura 3 – Alguns povos, impérios e civilizações africanos Créditos: João Miguel A. Moreira. E, por fim, é essa diversidade, somada ao processo colonial vivido pelo continente africano, que resulta no atual mapa político continental. Figura 4 – Países da África atualmente 6 Créditos: Peter Hermes Furian/Shutterstock. Assim, o que queremos fazer perceptível é que, ao tratarmos da história da África e do povo africano, estamos tratando de uma diversidade de itinerários e povos que floresceram, desapareceram, misturaram-se, isolaram-se, deixaram rastros ou foram silenciados, mas nunca estamos falando de uma história única, no sentido de uma sucessão temporal linear. E se isso era verdadeiro na antiguidade africana, é também nos dias de hoje. TEMA 2 – EGITO ANTIGO A origem da ocupação humana no vale do Nilo remonta ao ano de 7000 a.C., vinda da região dos grandes lagos africanos – onde surgiu – e que é também o nascedouro do próprio rio Nilo. Assim, hoje não paira qualquer dúvida de que as populações que deram origem ao povo egípcio eram negras. O termo pelo qual os próprios egípcios se referiam a si era Kmt (Silvério, 2013), que significa negro. As representações pictóricas, os exames de osteometria, os exames químicos de melanina, os relatos de diversos autores da antiguidade grega e romana, entre outras fontes, não deixam qualquer dúvida em relação à predominância dos negros na população egípcia. As representações 7 cinematográficas de um Egito governado por faraós brancos não passa de uma invenção racista. Figura 5 – Deus Anúbis e Hórus em representação original do Antigo Egito Créditos: Lukiyanova Natalia frenta/Shutterstock. Se é verdade que o Egito é uma dádiva do Nilo, também é verdade que é uma criação humana, pois foi a engenhosidade do homem que conseguiu adaptar o regime de águas do vale por meio de um sistema de irrigação por bacias (hods), permitindo grande desenvolvimento da agricultura e produção de excedentes capazes de sustentar uma grande população. O trigo e a cevada eram os principais produtos, com os quais se faziam os principais alimentos, o pão e a cerveja. Mel, vinho, produtos de hortas e pomares, assim como bovinos, caprinos e suínos, também compunham a economia agrícola e a alimentação popular. O crescimento populacional e a complexificação societal também são as bases do surgimento da escrita, necessária para organizar a contabilidade e a distribuição dos excedentes pelas mãos do Estado. E mesmo o Estado faraônico, criado a partir da unificação política promovida por Menés em torno do ano 3000 a.C., é também fruto da necessidade de manejar os excedentes e organizar a hierarquia social dele decorrente. Mesmo antes da unificação política egípcia, os primeiros habitantes da região adotaram um modo de vida pastoril e agrícola. Passaram dos instrumentos de pedra para o uso do metal, aprendendo sobretudo a manipular o ouro e o cobre. O rio Nilo, além de essencial para a agricultura, era também a 8 grande “estrada” que permitia a comunicação entre todos os povoados ribeirinhos, forjando uma unidade cultural e linguística entre os habitantes das suas margens. Vejamos agora um pouco de cada um dos períodos da história do Egito faraônico: 2.1 Período Arcaico (3200 a.C. a -2900 a.C.) Quando Menés (também chamado de Narmer) opera a unificação entre o baixo Egito (a região do delta do rio) com o alto Egito (o longocurso do rio), está inaugurada o que chamamos de Egito faraônico e seu período arcaico, iniciado pela I dinastia. Este governo inicial ainda luta para consolidar a unidade política que só será conquistada de modo estável a partir do Antigo Império. Parte deste processo de fortalecimento do poder do faraó passou pela divinização do governante, que passa a ser considerado um deus. 2.2 Antigo Império (2900 a.C. a 2280 a.C.) Com o reino plenamente unificado sob o poder divino do faraó, é neste período que se realizam guerras contra os núbios ao sul, contra tribos líbias ao oeste e mesmo incursões militares à Palestina, no Oriente Médio. Fortaleceu-se o comércio com os vizinhos e abundaram as construções. Menfis é a capital. O período é encerrado com conflitos sociais e guerra civil que provocam um enfraquecimento do poder do faraó. Neste período final do Antigo Império, os governantes regionais (nomarcas) passam a organizar a cobrança de impostos e uma série de atividades estatais (João, 2015, p. 226). 2.3 Médio Império (2060 a.C. a 1785 a.C.) O período do Médio Império é de paulatino reestabelecimento da autoridade, até que a reunificação completa do reino – então dividido pela ação dos governadores de províncias – ocorre sob o comando da cidade de Tebas. 2.4 Segundo Período Intermediário (1780 a.C. a 1580 a.C.) Este período é marcado em sua quase totalidade pelo domínio estrangeiro sob o Egito. Os hicsos, procedentes do Oriente Médio, subjugam os governantes locais. De sua dominação resultou incorporado ao Egito o uso do cavalo, do carro 9 e da armadura. Amosis é o faraó que conclui a expulsão dos hicsos, chegando até a fenícia em sua vitoriosa guerra contra os invasores. 2.5 Novo Império (1580 a.C. a 1085 a.C.) O Novo Império é um período de retomada do esplendor egípcio e de sua centralização estatal. Ainda assim foi um período de relativa rivalidade entre os faraós e o clero. Um dos episódios deste conflito é a instituição do culto ao deus único Atón, durante o reinado de Amenófis IV (também chamado de Aquenaton), como forma de interditar o poder crescente do clero do deus Amon. Esta breve experiência monoteísta dura apenas o reinado do próprio Amenófis IV. É deste período também a tentativa de invasão dos Povos do Mar (não se sabe ao certo quem são, mas provavelmente europeus vindos da região do mar negro ou anatólia). Também combateram contra as cidades sírias e contra os hititas. As últimas dinastias deste período viram-se marcadas por disputas pelo poder, protestos e rebeliões de trabalhadores, inflação, em especial do preço do trigo e novo conflito com os sacerdotes. 2.6 Terceiro Período Intermediário (1080 a.C. a 730 a.C.) Este período é marcado pela instabilidade política e declínio da civilização. Sucedem-se dinastias em um território marcado pela fragmentação e pelas ameaças estrangeiras dos assírios e sudaneses. 2.7 Baixa Época (730 a.C. a 330 a.C.) É marcada por derrotas militares e o domínio dos sudaneses, assírios e persas sobre o território egípcio. Nos intervalos entre estas conquistas erguiam- se instáveis dinastias autóctones até que a macedônia, liderada por Alexandre, o Grande, coloca fim a história antiga do Egito com seu domínio sobre o território em 332 a.C. Do ponto de vista econômico e produtivo, além da agricultura, que era a principal atividade, também eram praticadas a vitrificação, a extração do ouro, a produção têxtil e de papel. A posse da terra podia ser estatal, religiosa, ou até mesmo de pequenos proprietários. Os empreendimentos econômicos como as 10 grandes construções em geral estavam nas mãos do Estado, que também monopolizada o comércio exterior, a mineração e as pedreiras. A religião predominante possuía uma unidade, mas era também composta por uma multiplicidade de mitos locais e regionais. No entanto, algumas divindades eram relativamente “universais”: “[...] um deus solar [...] Rá; uma deusa-consorte, que é o olho de Rá; o deus-filho guerreiro, como Hórus-Anhur; um deus morto como Osires” (Silvério, 2013, p. 165). Mas devemos acrescentar também o faraó, “Como herdeiro do demiurgo e também um deus (...) era o único intermediário por direito entre o mundo humano e o mundo divino” (Frizzo, 2015, p. 86). Do ponto de vista das relações do Egito com o restante da África, ainda há muito o que se pesquisar. Mas é certo que o Egito exportou sua cultura e religião para os reinos limítrofes, com os quais mantinha relações de dominação e comércio. Após a invasão Macedônia, uma dinastia chamada Ptolomaica (de macedônios) passou a governar o Egito, o que perdurou de 303 a.C. a 30 a.C. A integração do Egito, a chamada cultura helenística e a mudança da capital para a beira do Mediterrâneo (Alexandria), significou um incremento das trocas culturais em especial com os gregos. Com o domínio romano que se seguiu, o Egito viu-se na condição de celeiro de Roma, fornecendo grandes quantidades de trigo para a cidade eterna. No entanto, a desorganização do império também se refletirá no Egito, com seus camponeses cada vez mais espoliados pelos impostos. Outra novidade trazida pelo domínio romano foi a penetração cada vez maior do cristianismo no Egito, que se torna predominante na medida em que o próprio Império Romano adota esta como sua religião oficial. TEMA 3 – CARTAGO Na região norte-ocidental da África, às margens do Mediterrâneo, foi fundada por colonos fenícios, no ano de 814 a.C., a cidade de Cartago, na região conhecida como Magreb. A partir do séc. VI a.C., Cartago passou a ter autonomia, exercendo supremacia sobre outras povoações fenícias vizinhas, constituindo um império. Do ponto de vista militar, essa expansão sustentou-se inicialmente com tropas “cidadãs”, recrutadas entre os próprios habitantes da cidade, e depois 11 com mercenários recrutados em profusão (Silvério, 2013). Seu poder militar era sustentado também com uma importante frota de navios de guerra. A expansão de seus domínios se deu na África, mas chegou até mesmo às ilhas da Sicília e da Sardenha e à Península Ibérica. Cartago era uma cidade essencialmente comercial, e essa atividade econômica era controlada pelo Estado. Metais, têxteis, escravos e outros produtos compunham uma variada pauta comercial. Por volta do século V a.C., Cartago era a cidade mais rica da bacia do Mediterrâneo, e este mar era também sua grande via comercial. A organização política cartaginesa estava baseada em uma monarquia hereditária relativamente estável, que atingiu seu apogeu nos séculos VI e V a.C., quando começa a declinar seu poder diante da aristocracia comercial. Segundo Garraffoni (2006), também compunham a organização política o Senado, que controlava a justiça e o funcionamento da máquina administrativa, e uma assembleia de cidadãos, encarregada de eleger o Senado e os Sufetes, espécie de magistratura que convocava e dirigia as reuniões da assembleia popular e do Senado. A religião acabou reproduzindo as crenças fenícias, com a predominância do deus Baal-hamon, que posteriormente passou a dividir o cume do panteão cartaginês com a deusa Tanit, de origem nitidamente africana. Existe um vivo debate na historiografia sobre a prática de rituais de sacrifício humano infantil na religião cartaginesa (Moura, 2014). Usualmente, as guerras entre Cartago e Roma são chamadas de Guerras Púnicas. “A palavra púnico é derivada da expressão latina punicus, que significa “os habitantes de Cartago’” (Garraffoni, 2006, p. 56) em latim, sendo, portanto, o nome romano para essa guerra, e não o africano. De toda forma, foram três os conflitos entre as duas cidades, que acabaram resultando na destruição de Cartago: • primeira guerra – 264 até 241 a.C.; • segunda guerra – 218 até 201 a.C.; e • terceira guerra – 149 a 146 a.C. A primeira guerra tevelances espetaculares, como batalhas navais envolvendo mais de 600 embarcações e a derrota romana em solo africano fustigada por tropas que usavam elefantes como arma de guerra. Ao final da primeira guerra, Cartago perdeu o controle da Sicília e da Sardenha, mas 12 manteve-se firme no controle do norte da África e de vultuosos trechos da Península Ibérica. Figura 6 – Elefantes de guerra usados pelos cartagineses Créditos: Sammy33/Shutterstock. A segunda guerra teve início pela disputa do controle da Península Ibérica. Foi nesta guerra que os exércitos cartagineses de Aníbal derrotaram um exército romano muito mais numeroso na própria Península Itálica. No entanto, ao final da guerra, Cartago perdeu o controle da Península Ibérica e teve que firmar um tratado de paz muito oneroso com os romanos. A terceira guerra teve início pelo socorro romano aos númidas, que guerreavam contra a cidade de Cartago. Esta permaneceu cercada por dois anos, defendida por suas muralhas até o aniquilamento final. TEMA 4 – DOMÍNIO ROMANO Abatida a cidade de Cartago (146 a.C.), os romanos estabeleceram um domínio mais ou menos duradouro sobre o litoral norte do continente. Se é verdade que já estavam presentes antes disso, é também verdade que só o fim da concorrência cartaginesa possibilitou o real domínio sobre a região. Esse domínio durou até a invasão vândala, entre 429 e 474. Os romanos estabeleceram fortificações que distavam mais ou menos 700 km ao sul da antiga Cartago, passando a controlar as rotas transaarianas 13 que existiam pelas bordas do deserto, por onde passavam ouro, escravos, plumas, esmeraldas, animais e outras mercadorias vindas desde a Guiné, para onde iam vinho, têxteis, cerâmicas e objetos de vidro vindos dos domínios romanos. O norte africano passou a funcionar como um grande celeiro romano, que levava sua produção de trigo e outros cereais como impostos cobrados dos povos dominados. A principal atividade econômica da região seguia sendo a agricultura. A romanização das populações locais significou a influência de cultura, língua e religião latina junto aos povos da região. No entanto, o que se percebe é mistura, junção e adaptação entre a cultura local e romana. Na religião, por exemplo, passou a prosperar o culto de Saturno, na verdade uma continuação do culto ao deus Ball-Hamon cartaginês, assim como o culto a Cereres romana, a deusa da agricultura, era a continuação do culto a Tinit. Figura 7 – Teatro romano em Leptis Magna, atual Líbia Crédito: lapas77/Shutterstock A reforma e a construção de cidades no norte da África atestavam o lugar cada vez mais importante das províncias locais para Roma. Leptis Magna, por exemplo, foi se constituindo numa pequena Roma no norte da África, adaptando ao seu terreno e à destreza de seus artífices os cânones que chegavam da capital imperial, na busca de se fazer notar aos olhos dos poderosos (Gonçalves, 2010). A estrutura social viu-se modificada na região. Os decuriões, a classe média urbana que governava as cidades, passou a ser suplantada pelos 14 principales ou primates, donos de terras (Silvério, 2013). Com o enfraquecimento do poder estatal a partir do século IV, os dominus, cada vez mais independentes em suas terras, passaram a administrar a justiça em suas possessões. Com a dominação romana, veio também para o norte da África o cristianismo. TEMA 5 – NÚBIA E ETIÓPIA Tomamos como Núbia um território que se estende da atual Etiópia até o sul do atual Egito, majoritariamente no que hoje é o Sudão, cujo rasgo central é o curso do alto rio Nilo. Trata-se, portanto, de uma população nilótica, mas que por volta de 3000 a.C. apresentava características claramente diferentes das dos egípcios (Silvério, 2013). De pastores seminômades por volta de 3000 a.C., os núbios desenvolveram a cerâmica e a criação de gado, formando, a partir de 2300 a.C., reinos próprios, mas que mantinham entre si uma identidade cultural. A Núbia caracterizou-se também como elo entre o Egito e o centro africano, sendo o corredor por onde passavam incenso, madeira, marfim e outros produtos desejados pelo Norte. Desses reinos, merece destaque o de Kush, que chegou a dominar todo o curso do Nilo por volta de 713 a.C. Adotando a religião e os hábitos egípcios, seus governantes designavam-se sucessores dos faraós. Tendo tido início na cidade de Kerma, após ser expulso do Egito, o império Kush teve como capital a cidade de Napata e posteriormente Meroé, ainda mais ao sul. Figura 8 – Pirâmides de Meroé 15 Créditos: evenfh/Shutterstock. Manteve-se importante economicamente como produtora de madeira e ferro, bem como controlando as rotas comerciais entre o Mar Vermelho, o Vale do Nilo e a savana. Mesmo sofrendo uma profunda influência cultural egípcia, o império Kush desenvolveu traços característicos, a exemplo de uma escrita chamada meroítica. De difícil datação, é possível arriscar que os marcos inicial e final de Kush são 800 a.C. a 330 d.C., em que se possa falar em uma cultura de Kerma e seu correspondente domínio político sobre seu entorno desde 2000 a.C. Eram grandes as relações da cidade de Kerma com os governantes do Egito, em especial durante a ocupação dos hicsos sobre este. Com a expulsão dos hicsos do Egito, este reino voltou-se para o domínio da Núbia, o que foi completado por Amosis (XVIII dinastia) e posteriormente ampliado por Tutmósis I (1530 a.C. a 1520 a.C.), que conquistou o sul do atual Sudão, dando fim à independência de Kush naquele momento (Silvério, 2013). A estrutura social do império Kush, em especial em sua fase meroítica, comportava o rei e sua família no topo e uma larga franja de escravos na base, fruto de apreensões guerreiras. Do ponto de vista religioso, era muito clara a influência da religião egípcia, mesmo que houvesse alguns deuses locais no panteão das divindades. Após o colapso do império Kush, outros reinos se formaram na Núbia: Nobadia, ao norte, Makuria, no centro, e Alodia, ao sul. Buscando relações com o Egito, trouxeram deste reino a religião cristã, já instalada por lá, que converteu primeiro os governantes, que com isso esperavam melhores relações com o próprio Egito, mas também com Bizâncio, a potência mediterrânea da época. Com o passar dos anos, o cristianismo tornou-se a religião predominante na Núbia. As principais fontes para o estudo de sua história são estelas encontradas nas diversas capitais que possuiu, bem como relatos egípcios e gregos. Outra região de grande importância para a compreensão da história africana é a Etiópia, vizinha da Núbia e que se identifica, mais ou menos, com o país de mesmo nome atualmente, acrescida da Eritreia. Neste espaço, temos uma primeira época (séc. V e IV a.C.) de intercâmbio com a vizinha Península Arábica, em especial o Sul dela, onde ficava o Reino de Sabá. O porto de Adulis, fundado pelos Egípcios na costa do Mar Vermelho, é a grande ponte para os 16 intercâmbios da região. Já o segundo período é de maior autonomia cultural da região, que se mantém basicamente com a agricultura e o pastoreio, mas começa a praticar a produção metalúrgica, de vidro e de uma refinada cerâmica. Este é o caldo cultural que verá surgir, um pouco mais tarde, a civilização de Axum, que trataremos futuramente. NA PRÁTICA Para aprofundar seus conhecimentos sobre os conteúdos abordados nesta aula, sugerimos a leitura, mais uma vez, da obra História Geral da África (Silvério, 2013), em especial o primeiro volume, que aborda da Pré-História até o século XVI. O material está disponível em vários lugares da internet, inclusive na página da Unesco Brasil, responsável pela edição, junto com a Universidade Federal de São Carlos e o Ministério da Educação. Para o estudo geral do continente, inclusive da Antiguidade, uma excelentecoleção de mapas está disponível em um projeto da Universidade de Harvard, bastando digitar em um site de buscas “harvard world map”. É possível encontrar nesse repositório diversos mapas temáticos do continente. Para o estudo específico do Egito, no Brasil é possível consultar alguns acervos online no site do Museu Nacional e é possível realizar uma visita virtual e presencial ao Museu Egípcio Tutankhamon em Curitiba, que é uma das instalações mais interessantes em território nacional. Sobre Cartago, o filme italiano Cabiria (Pastrone, 1914) é uma mostra do orgulhoso e nacionalista cinema mudo italiano e pode ser visto tanto como uma fonte para o estudo deste período da história da Itália quanto como subsídio para uma crítica de como os italianos apresentavam o conflito com a cidade de Cartago na Antiguidade. O filme, de domínio público, pode ser encontrado nas maiores plataformas de compartilhamento de vídeos. Outro clássico do cinema, agora inglês, é César e Cleópatra (Pascal, 1945), que reproduz uma série de preconceitos e informações equivocadas sobre o domínio romano sobre o Egito, mas é um exercício interessante o seu uso para discutir justamente os estereótipos que apresenta, já que se trata de um filme clássico e ganhador de vários prêmios. A obra está disponível em vários endereços na internet, assim como nas maiores plataformas de compartilhamento de vídeos. 17 FINALIZANDO Para o professor de História que vai abordar a história do continente em sala de aula, com base em uma abordagem “interna” da história da África, uma primeira conclusão se impõe: é preciso abrir mão de tratar os povos da África como os africanos. É preciso ressaltar suas diferenças linguísticas, étnicas, culturais, de organização política e social. As trajetórias históricas dos diversos povos do continente são múltiplas, e reconhecer isso é reconhecer a própria existência de uma história africana. Reis, impérios, exércitos e religiões complexas conviveram com organizações nômades e pastoris, e o estudo da antiguidade do continente deixa isso claro. Em relação aos povos que estudamos nesta aula, que foram escolhidos por serem representativos de arranjos societais e estatais complexos da antiguidade africana, precisamos ter a dimensão da importância do Egito Antigo não só para a África como para a região vizinha, do Oriente Médio, e para largas porções do entorno do Mediterrâneo. Império criativo e original, gerador de uma religião complexa e estruturada, ao lado de uma arquitetura colossal e de uma escrita única, o Egito foi capaz de organizar sua sociedade e seu poder político para fazer frente aos desafios da natureza, apoiando-se no gigantesco rio Nilo para extrair uma significativa produção agrícola, que pôde inserir o reino também no mundo do comércio e das disputas militares com seus vizinhos e mesmo com povos mais distantes. Com trajetória parecida, ainda que menos duradouras no tempo, o império Kush transportou para o coração da África ricas organizações estatais, baseadas na hegemonia de uma cidade, que também foi capaz de organizar uma rica civilização agrícola e comercial, a qual deixou um legado arquitetônico também impressionante. Não existe motivo para que os currículos escolares não abordem essas civilizações e contemplem exclusivamente o Egito. A única explicação para a ausência desses povos dos currículos é que a civilização egípcia foi muito mais visível para os povos europeus, o que fez uma história eurocêntrica abrir brecha apenas para o ensino acerca do Egito, ignorando outros povos que para o contexto africano são tão relevantes quanto os egípcios, em vários aspectos. Não nos esqueçamos que os núbios chegaram a dominar o Egito. 18 Já no que se refere a Cartago, não é difícil encontrá-la nos livros de história, como a antagonista de uma Roma em processo de afirmação de sua hegemonia sobre o mediterrâneo. E temos assim mais uma abordagem eurocêntrica, que se recusa a enxergar a singularidade da história cartaginesa, possível de ser estudada independentemente de suas disputas com Roma, o que se constitui apenas no momento final de sua trajetória independente. Por fim, essa história da África vista por dentro do próprio continente não é uma história isolada, por isso é necessário reconhecer o lugar e a importância do período de dominação romana no norte do continente. Este é o cenário, ainda que parcial, do continente africano na Antiguidade. 19 REFERÊNCIAS FRIZZO, F. A religião e o todo: esboços para uma história social da religião egípcia. Hélade, v. 1, p. 84-105, 2015. GARRAFFONI, R. S. Guerras Púnicas. In: MAGNOLI, D. História das guerras. São Paulo: Contexto, 2006. GONÇALVES, A. T. Uma pequena Roma no norte da África: uma análise de Leptis Magna. In: CORNELLI, G. Representações da Cidade Antiga. Categorias Históricas e Discursos Filosóficos. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos & Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis, 2010. JOÃO, M. T. Estado e elites locais no Egito no final do III milênio A.C. 282 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. MOURA, F. N. Sacrifícios humanos em Cartago: um diálogo com a historiografia contemporânea. NEARCO – Revista Eletrônica de Antiguidade, ano VII, n. I, p. 143-159, 2014. Disponível em: <http://www.neauerj.com/nearco- antiga/arquivos/numero13/8.pdf>. Acesso em: 16 set. 2021. SILVA, É. C. Os impérios africanos do Mundo Antigo: Kush e Axum. In: CAMPOS, A. P. O espelho negro de uma nação: a África e sua importância na formação do Brasil. Vitória: EDUFES, 2019. SILVÉRIO, V. R. Síntese da Coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI. Brasília: Unesco, Ministério da Educação, UFSCAR, 2013.
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