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DEONTOLOGIA E ÉTICA PROFISSIONAL Débora Czarnabay Bioética e pesquisa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir os conceitos da Bioética. Aplicar a Bioética no desenvolvimento da pesquisa científica. Reconhecer a atuação do biomédico na pesquisa. Introdução A Bioética surgiu no século XX como uma proposta de integração entre o ser humano e a natureza. Devido ao aumento da complexidade das intervenções científicas, principalmente na área da saúde, houve a ne- cessidade de uma reflexão sobre tais questões. A Bioética é o estudo, sob uma ótica reflexiva, de questões éticas na assistência à saúde, na ciência da saúde, na política de saúde e na pesquisa científica. Neste texto, você vai conhecer a história da Bioética, quais são seus conceitos fundamentais e qual a sua relação com os aspectos práticos da profissão de biomédico na pesquisa científica. Breve história da Bioética O surgimento da ética na história da humanidade ocorreu como uma estratégia de organização do pensamento sobre a adequação do viver humano, já que os seres humanos são dotados de competência para questionar sua própria existência. A ética refl ete sobre intuições morais por meio da busca por fun- damentos que servem de base para as escolhas morais dos indivíduos. Essas refl exões possibilitaram ao homem a avaliação dos motivos da sua presença no mundo, do universo, da relação entre as pessoas, das suas preocupações e dos seus objetivos. Esses questionamentos estavam presentes desde o período da Filosofi a Clássica (séculos V e IV a.C.), no entanto, com o avanço da ciência e da tecnologia, novos desafi os foram introduzidos. Indagações sobre o que é estar vivo — sobre a vida em si — foram adicionadas nas discussões sobre o bem-viver. O ser humano passou a identifi car que é parte da natureza, interagindo ativamente com o seu meio e tendo a possibilidade (ou o poder) de alterá-lo. O início e o fi m da vida passaram a ser repensados, bem como a produção e o congela- mento de embriões, dando um novo signifi cado para os conceitos e critérios de vida e morte. Além disso, o reconhecimento dos limites da pesquisa e de sua compatibilidade ético-metodológica também foi um fator determinante para a proposição da ampliação da discussão ética, que acabou sendo denominada de bioética (GOLDIM, 2006). Ao procurarmos o verbete bioética no dicionário, iremos encontrar várias defi nições, como, por exemplo: Estudo sistemático da conduta humana na esfera das ciências da vida e da saúde, considerando-se tal conduta à luz de valores e princípios morais, ainda que os temas bioéticos sejam, por definição, irredutíveis a um consenso mo- ral, como o demonstram, por exemplo, as questões do aborto e da eutanásia” (BIOÉTICA, 2018, documento on-line). Ou ainda “[...] o estudo do que é certo ou errado em novas descobertas e técnicas em biologia, como a engenharia genética e o transplante de órgãos” (em inglês: the study of what is right and wrong in new discoveries and te- chniques in biology, such as genetic engineering and the transplantation of organs) (BIOETHICS, 2018, documento on-line). De certa maneira, o termo bioética é novo e seu conceito já foi modifi- cado diversas vezes desde o momento de sua primeira aparição. Em 1927, o pastor luterano Fritz Jahr utilizou pela primeira vez a palavra bioética (bio + ethik) em um artigo publicado no periódico alemão Kosmos. Para o autor, a Bioética era caracterizada como sendo o reconhecimento de obrigações éticas, não apenas para com os seres humanos, mas também para com todos os seres vivos (animais e plantas). O texto foi encontrado em Berlim, por Rolf Löther, da Universidade de Humboldt, e divulgado por Eve Marie Engel, da Universidade de Tübingen, da Alemanha, antecipando o surgimento do termo bioética em 47 anos. Para finalizar seu artigo, Fritz Jahr propôs um imperativo bioético, ou seja, um axioma ou princípio bioético: respeita-se todo ser vivo, essencialmente, como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal. Em 1964, a Associação Médica Mundial propôs a Declaração de Helsinque (última atualização realizada em 2013 e complementada com a publicação da Bioética e pesquisa 2 Declaração de Taipei, em 2016) com o intuito de provocar uma reflexão sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos. Tal Declaração reforçou o conteúdo do Código de Nuremberg, de 1947, e deu início à discussão mundial sobre o uso de seres humanos nas pesquisas. No ano de 1969, o filósofo Daniel Callahan e o psiquiatra Willard Gayling fundaram o primeiro centro de pesquisa sobre aspectos éticos e sociais rela- cionados com as ciências da vida, chamado de Institute of Society, Ethics and the Life Sciences, que mais tarde e com reconhecimento internacional passou a ser chamado de Hastings Center. O químico e farmacologista Van Rensse- laer Potter, no início da década de 1970, conjecturou sobre a abrangência das relações entre os seres vivos e sobre a necessidade de ampliar essa reflexão ao longo do tempo, o que o fez se questionar se a chance de sobrevivência da própria humanidade estaria relacionada com uma reflexão ética interdisciplinar, denominada por ele de bioética, a qual serviria de ponte para o futuro. Logo, para Potter, a Bioética seria uma ponte que estabelecia uma interface entre as ciências e as humanidades, garantindo assim a possibilidade do futuro. Juntamente com Potter, a Bioética teve outra origem paralela, quando o médico ginecologista André Hellegers utilizou o termo ao denominar os novos estudos propostos na área de reprodução humana. Hellegers propôs uma redis- cussão do foco da ética médica, que tradicionalmente se baseava na atuação do médico e, segundo ele, deveria incluir a reflexão sobre outros temas da área da saúde e sobre aspectos sociais. O responsável pela Fundação Kennedy (R. Sargent Shriver) — financiadora das pesquisas de Hellegers — sugeriu que a denominação bioética fosse incorporada ao nome da nova instituição Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics (Instituto Joseph e Rose Kennedy para o Estudo da Reprodução Humana e Bioética), por sumarizar a junção de temas biológicos e éticos. Anos mais tarde, o nome foi alterado para Kennedy Institute of Ethics (Instituto Kennedy de Ética), transmitindo sua posição de compreender a Bioética como uma ética aplicada. A publicação do Belmont Report (Relatório Belmont), em 1978, estabeleceu o alicerce da utilização de princípios na reflexão bioética. Esse documento consolidou a proposta teórica do Instituto Kennedy de Ética ao utilizar a beneficência e o respeito para com as pessoas e a justiça como parâmetros das diretrizes para as pesquisas em seres humanos. Os filósofos Tom L. Beauchamp e James F. Childress publicaram a obra clássica Princípios de ética biomédica, em 1979, lançando a estrutura básica para a Corrente Principialista de Bioética. Outros autores que publicaram nessa época também foram importantes para dar início às primeiras discussões e reflexões bioéticas na sociedade, abrindo as portas para a temática. 3Bioética e pesquisa Já na década de 1980, Van Potter salientou a característica ampla e interdis- ciplinar da Bioética, denominando-a de Bioética Global. Essa Bioética Global reestabelecia o foco original da Bioética, ampliando as discussões e reflexões sobre questões de medicina e saúde frente aos novos desafios ambientais. O pensamento de Potter teve como inspiração a obra de Aldo Leopold, que criou a ética da terra (land ethics), na década de 1930, ampliando a discussão feita por Jahr ao incluir o solo e outros recursos naturais na reflexão ética. Anos mais tarde, Potter redefiniu o termo bioética como Bioética profunda (Deep Bioethics) devido à influência da ecologia profunda de Ame Ness. Com uma combinação de humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar e interculturalque fortifica a percepção de humanidade, a Bioética profunda é chamada de nova ciência ética. No Brasil, o impacto da Bioética e a necessidade de normatizar as pesqui- sas envolvendo seres humanos só ganhou força no final da década de 1980, a partir da homologação, em julho de 1988, da Resolução 1/88 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Tal resolução teve pouco impacto e, somente após 7 anos, a resolução foi revisada, o que resultou na elaboração e na publicação da Resolução CNS nº. 196/96. Marcos históricos para a Bioética 19 de agosto de 1947: início dos julgamentos de Nuremberg de médicos nazistas que conduziram experimentos médicos hediondos durante a Segunda Guerra Mundial. 25 de abril de 1953: Watson e Crick publicaram um artigo de uma página sobre o DNA. 23 de dezembro de 1954: o primeiro transplante renal foi realizado. 9 de março de 1960: a hemodiálise crônica foi usada pela primeira vez. 3 de dezembro de 1967: o primeiro transplante de coração foi feito pelo Dr. Christiaan Barnard. 5 de agosto de 1968: a definição de morte cerebral foi desenvolvida por um Comitê Ad Hoc da Harvard Medical School. 26 de julho de 1972: o caso da sífilis não Tratada de Tuskegee veio à tona com revelações sobre pesquisas antiéticas realizadas com seres humanos. 22 de janeiro de 1973: o caso Roe versus Wade foi decidido. A Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao aborto ou à interrupção voluntária da gestação. 14 de abril de 1975: uma paciente em coma, Karen Ann Quinlan, foi levada ao hospital Newton Memorial. Ela se tornou a base de um caso histórico sobre o direito à eutanásia. 25 de julho de 1978: o bebê Louise Brown nasceu. Ela foi o primeiro bebê de proveta. Bioética e pesquisa 4 Conceitos fundamentais da Bioética Após o surgimento de informações chocantes sobre sérios deslizes éticos, como os hediondos experimentos médicos nazistas da Segunda Guerra Mundial, na Europa, e a pesquisa antiética de Tuskegee, nos Estados Unidos, sociedades em todo o mundo se tornaram particularmente conscientes sobre os dilemas éticos na condução de pesquisas biomédicas e comportamentais. Nos Estados Unidos, a Lei de Pesquisa Nacional entrou em vigor em 1974, e uma comissão foi criada para delinear os princípios que deveriam ser usados durante pesquisas que envolvessem seres humanos (NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH, 1979). Em 1976, para cumprir sua missão, a comissão realizou uma reunião intensiva de quatro dias no Centro de Confe- rências de Belmont, no Instituto Smithsonian. Posteriormente, as discussões continuaram até 1978, quando a comissão divulgou seu relatório, o qual foi chamado de Relatório Belmont. O relatório delineou três princípios básicos para todas as pesquisas com seres humanos: respeito às pessoas, beneficência e justiça (NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH, 1979). O princípio da beneficência, conforme estabelecido no Relatório Belmont, é a regra para fazer o bem. No entanto, a descrição da beneficência também incluía a regra agora comumente conhecida como princípio da não maleficência, isto é, não causar/provocar danos. O relatório continha diretrizes sobre como aplicar os princípios da pesquisa por meio do consentimento informado, a avaliação de riscos e benefícios para os participantes da pesquisa e a seleção dos participantes desta. Em 1979, como resultado do Relatório Belmont, Beauchamp e Childress publicaram a primeira edição de seu livro Principles of Biomedical Ethics (Princípios da ética biomédica), já comentado anteriormente, o qual apresen- tava quatro princípios bioéticos: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Fazer ética com base no uso de princípios — isto é, principialismo ético — não envolve o uso de uma teoria ou um modelo formal de tomada de Primavera de 1982: o bebê Doe se tornou a base de um caso histórico que resultou em diretrizes legais e éticas sobre o tratamento de recém-nascidos debilitados. Dezembro de 1982: o primeiro coração artificial foi implantado no corpo de Barney Clark, que viveu 112 dias após o implante. 11 de abril de 1983: a revista Newsweek publicou uma reportagem sobre uma doença misteriosa, chamada AIDS, que estava em níveis epidêmicos. Fonte: Jonsen (2000). 5Bioética e pesquisa decisão. Em vez disso, os princípios éticos fornecem diretrizes para tomar decisões morais justificadas e avaliar a moralidade das ações. Idealmente, ao usar a abordagem do principialismo, nenhum princípio deve ser automatica- mente considerado superior aos outros (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013). Cada princípio é considerado como sendo prima facie. Algumas pessoas criticaram o uso do principialismo ético porque acreditam ser uma abordagem de cima para baixo, ou seja, que não há subsídios para o contexto de casos e histórias individuais. Os críticos afirmam que simples- mente aplicar princípios, ao fazer determinações éticas, resulta em um modo linear de se fazer ética, ou seja, as sutis nuances presentes em situações que se baseiam em relacionamentos não são consideradas adequadamente. No entanto, a abordagem do principialismo ético, que usa os quatro princípios delineados por Beauchamp e Childress (2013), tornou-se uma das ferramentas mais populares usadas atualmente para analisar e resolver problemas bioéticos. A autonomia é a liberdade e a capacidade de agir de maneira autode- terminada. Representa o direito de uma pessoa racional expressar decisões pessoais, independentemente de interferências externas, e ter essas decisões honradas. Pode-se argumentar que a autonomia ocupa um lugar central na ética da saúde ocidental devido à popularidade da Filosofia da era iluminista de Immanuel Kant. Entretanto, vale ressaltar que a autonomia não é enfatizada em uma ética de cuidado e ética de virtude, e estas também são abordagens populares para a ética atual. O princípio da autonomia é, por vezes, descrito como o respeito pela autono- mia (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013). No domínio dos cuidados de saúde, respeitar a autonomia do paciente inclui obter o consentimento informado para o tratamento, facilitar e apoiar as escolhas dos pacientes em relação às opções de tratamento, permitir que os pacientes recusem tratamentos, divulgar informações abrangentes e verdadeiras, diagnósticos e opções de tratamento aos pacientes e manter a privacidade e a confidencialidade. Respeitar a auto- nomia também é importante em situações menos óbvias, como permitir que os pacientes que estiverem recebendo cuidados domiciliares escolham o banho de banheira em vez do de chuveiro, quando for seguro fazê-lo, e permitir que um idoso residente de cuidados prolongados escolha seus alimentos favoritos quando forem medicamente prescritos. As restrições à autonomia de um indivíduo podem ocorrer nos casos em que uma pessoa apresenta uma potencial ameaça para prejudicar outras pessoas, como expor outras a doenças transmissíveis ou cometer atos de violência. Em geral, as pessoas perdem o direito de exercer autonomia ou o direito à autodeterminação em tais instâncias. Bioética e pesquisa 6 Não maleficência é o princípio usado para comunicar a obrigação de não causar dano. Enfatizar a importância desse princípio é tão antigo quanto a prática médica organizada. Profissionais de saúde têm sido historicamente encorajados a fazer o bem (beneficência), mas, se por algum motivo, eles não podem fazer o bem, eles são obrigados a, pelo menos, não fazer o mal. Devido à equivalência complementar entre esses dois princípios (beneficência e não maleficência), algumas pessoas os consideram essencialmente a mesma coisa. No entanto, muitos eticistas, incluindo Beauchamp e Childress (2013), fazem uma distinção. A não maleficência é a máxima ou a norma de que “[...] não se deve infli- gir mal ou dano” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 152), enquanto a beneficência inclui as três normas seguintes: “deve-se prevenir o mal ou dano, deve-se remover o mal ou dano, [e] alguém deve fazer ou promover o bem”. Como evidenciadopor essas máximas, a beneficência envolve a ação para ajudar alguém e a não maleficência requer “evitar intencionalmente as ações que causam danos”. Além de não violar a máxima de não prejudicar inten- cionalmente outra pessoa, algumas questões são levantadas por Beauchamp e Childress (2013), como a ideia de negligência, que é a ausência do devido cuidado e, consequentemente, imposição de risco ao dano. A não maleficência tem um amplo escopo de implicações nos cuidados de saúde, incluindo a necessidade de evitar cuidados negligentes, a necessidade de evitar danos ao decidir se deve fornecer tratamento ou retirá-lo e as con- siderações sobre como prestar tratamento extraordinário. O princípio da beneficência consiste em realizar atos de “[...] misericórdia, bondade, amizade, caridade e afins” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 202). Beneficência significa que as pessoas realizam ações para beneficiar e promover o bem-estar de outras pessoas. Exemplos de regras morais e obrigações subjacentes ao princípio da beneficência incluem prevenir o dano às outras pessoas, proteger e defender os direitos de outros indivíduos, etc. Enquanto as pessoas são obrigadas a agir de maneira não maleável em relação a todas as pessoas — isto é, não prejudicar ninguém —, há limites para a beneficência ou para os benefícios que devem ser concedidos às outras pessoas. Em geral, age-se com mais beneficência em relação às pessoas que são conhecidas ou amadas em comparação com as desconhecidas, embora isso nem sempre seja o caso. Devido aos padrões profissionais e a contratos sociais, os biomédicos, bem como outros profissionais da saúde, têm a responsabilidade de ser beneficentes em seu trabalho, tal como consta no Código de Ética do profissional biomédico. Fazer o bem e facilitar o bem-estar de pacientes e clientes é parte integrante de ser um biomédico que age moral e eticamente. 7Bioética e pesquisa A justiça, como princípio na ética da saúde, refere-se à equidade, ou seja, tratar as pessoas com igualdade e sem preconceitos, bem como fazer a distri- buição equitativa de benefícios e encargos, incluindo a garantia de justiça na pesquisa biomédica. Na maioria das vezes, decisões difíceis sobre alocação de recursos de saúde se baseiam em tentativas de responder perguntas sobre quem tem direito aos cuidados de saúde, a que nível de saúde uma pessoa tem direito e quem pagará os custos de saúde. Lembre-se, no entanto, que a justiça é uma das virtudes cardeais de Platão. Isso significa que a justiça é um conceito amplo no campo da ética e esta é considerada um princípio e uma virtude. Elementos de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para pesquisa em seres humanos: I. Elementos limiares (pré-condições): ■ competência (para entender e decidir); ■ voluntariedade (na decisão). II. Elementos de informação: ■ divulgação (da informação do material); ■ recomendação (de um plano); ■ compreensão (dos números 3 e 4). III. Elementos de consentimento: ■ decisão (em favor do plano); ■ autorização (do plano escolhido). Fonte: Beauchamp e Childress (2013, p. 124). A Biomedicina e a pesquisa científica O campo da Biomedicina está repleto de oportunidades para os profi ssionais formados. Um biomédico pode atuar em laboratórios, hospitais, centros clíni- cos, clínicas particulares, indústrias, universidades e centros de pesquisa. Em meio a tantas opções, você se questiona sobre o quê, exatamente, você pode pesquisar. O profi ssional biomédico pode pesquisar a efi ciência de uma nova vacina, as consequências do uso crônico de algum medicamento, as novas terapias para o câncer (de pulmão, pele, rins, cérebro, estômago, mama, etc.), Bioética e pesquisa 8 uma nova composição para cremes anti-idade, as novas formas de liberação de fármacos no organismo, os efeitos do exercício físico em pacientes diabéticos, a análise da qualidade da água, as bactérias multirresistentes, a avaliação de risco de biossegurança em ambientes da saúde, etc. A pesquisa científi ca é um dos carros chefe da carreira biomédica, tendo em vista o grande crescimento de posições de trabalho em diferentes regiões do mundo. Para tanto, o biomédico que escolher seguir a carreira na pesquisa deve optar por dois principais caminhos: carreira acadêmica ou pesquisa em setores das grandes indústrias. Os principais objetivos da carreira acadêmica são formar pesquisadores e professores universitários. Você terminou a graduação e decidiu seguir a carreira acadêmica. O que deve fazer? Após finalizar a graduação, você deve ingressar em um curso de pós-graduação stricto sensu em uma instituição de ensino superior reconhecida pelo MEC (Ministério da Educação) e que tenha cursos de mestrado e doutorado. Ao iniciar o curso de mestrado ou doutorado, o aluno propõe uma questão relevante para o conhecimento e o avanço científico na sua área de estudo, ou seja, propõe uma pergunta que deve ser respondida ao longo do curso. No transcorrer desse curso, o aluno deve provar, ou não, sua hipótese. Para isso, desenvolve uma pesquisa apoiada na metodologia científica e orientada por um professor/pesquisador da universidade em que esteja vinculado. O curso de mestrado acadêmico é finalizado após a redação e a entrega de uma dissertação que contenha a hipótese e os resultados da pesquisa realizada. A dissertação será avaliada por uma banca julgadora, a qual delibera o conceito de aprovação para a obtenção do título de Mestre. O doutorado acadêmico funciona da mesma forma, porém, o aluno deve realizar redação e entregar uma tese e, depois desta ser julgada e aprovada, o aluno obtém então o título de Doutor (em inglês o título é chamado de Doctor of Philosophy, termo que é abreviado como PhD). Os títulos de Mestre e Doutor são específicos para a área em que o aluno desenvolveu a pesquisa científica, sendo assim, se você está cursando o mestrado em Anatomia Humana, irá obter o título de Mestre apenas em Anatomia Humana. No universo acadêmico, a pesquisa científica pode ser realizada por técnicos, alunos de graduação, mestrado ou doutorado e pelos professores vinculados a um centro de pesquisa ou a uma universidade, seja ela pública ou privada. Em relação ao biomédico que realiza pesquisas trabalhando em indústrias, as mais comuns são as indústrias farmacêuticas e as de cosméti- cos. Essas duas áreas, em particular, compreendem uma grande parcela do 9Bioética e pesquisa mercado de trabalho da pesquisa científica de ponta, na qual há um volumoso investimento financeiro. Algumas empresas exigem do profissional uma especialização na área de atuação, chamada de pós-graduação latu sensu, porém, na pesquisa cien- tífica, é mais comum a exigência de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado). A carreira acadêmica e a pesquisa científica requerem muita dedicação e estudo, geralmente tendo um perfil de profissionais de alto padrão que ingressam nesse caminho. O biomédico já vem de uma formação rigorosa durante a graduação, contendo uma grade curricular densa e uma intensa ex- periência em bancada. Dessa forma, investir na carreira da pesquisa científica acaba não sendo tarefa tão árdua para esses profissionais. A Bioética e a pesquisa estão diretamente relacionadas. Por esse motivo, o profissional que atuar na área deve estar ciente dos principais conceitos bioéticos. O biomédico deve ter total conhecimento sobre o sujeito de sua pesquisa, ou seja, ela será realizada em seres humanos, animais ou amostras ambientais (solo, plantas, água, ar). A ética em pesquisa com seres humanos é um campo amplo do conhecimento na interface de diferentes saberes, apro- ximando ética e ciência e permitindo que “velhos equívocos na pesquisa não se repitam”. Além de todo o repertório de investigações que, comumente, envolvem seres humanos — estudos epidemiológicos, ensaios clínicos, relatos de caso, entre outros —, temos o desenvolvimento da Biotecnologia e de áreas como a Engenharia Genética,as técnicas de clonagem, a reprodução humana assistida e a utilização de células-tronco, a nanotecnologia e neurociências, as quais interferem diretamente sobre os sistemas vivos e são componentes reforçadores da importância de uma visão crítica bioética sobre as práticas científicas. No Brasil, O Conselho Nacional de Saúde (CNS — órgão governamental responsável por deliberar, fiscalizar, acompanhar e monitorar políticas públi- cas de saúde) instituiu a Resolução CNS nº. 196/96, que serviu como marco transformador na ética em pesquisa, implicando seres humanos. Tal pesquisa foi definida como qualquer pesquisa que envolve, direta ou indiretamente, indivíduos ou grupos de indivíduos, podendo ser em sua totalidade ou em partes, incluindo o manejo de informações e materiais. A resolução retomou diretrizes, documentos e recomendações internacionais publicadas até a data da sua criação, estipulando a proteção dos sujeitos participantes de pesquisas (BRASIL, 1996). Essa resolução foi substituída pela Resolução CNS n°. 466, de 12 de de- zembro de 2012, a qual também propõe a garantia de sigilo, privacidade e confidencialidade de todos os dados obtidos ao longo da pesquisa, salientando Bioética e pesquisa 10 o princípio da dignidade humana e do respeito à autonomia da pessoa, ofi- cializados pela assinatura do TCLE — documento necessário para qualquer pesquisa envolvendo seres humanos, tendo por objetivo o esclarecimento e o consentimento por parte do indivíduo participante (BRASIL, 2012). A despeito do irrefutável progresso obtido a partir da publicação dos do- cumentos nacionais e internacionais que regulamentam a ética em pesquisa, há ainda aspectos importantes que precisam ser discutidos a seguir, como, por exemplo, as pesquisas realizadas com animais, devido ao seu grande impacto na pesquisa biomédica. Para saber mais sobre a Declaração de Helsinki, acesse o link a seguir. https://goo.gl/nRW5uk Durante muito tempo, o bem-estar animal era restringido à redução do estresse, enquanto o sofrimento era negligenciado. A utilização de modelos animais não humanos (ANH) em laboratórios e centros de pesquisa tem sido considerada um aspecto decisivo para o desenvolvimento da ciência. Entre- tanto, seu emprego tem despertado debates de diferentes naturezas. Após a década de 1990, a comunidade científica iniciou uma abordagem diferente em relação às pesquisas com animais. A ética envolvendo a experimentação animal (animal ethics) aborda a crítica ao antropocentrismo e a proposição dos limites para a utilização de animais em pesquisas. Algumas correntes de estudiosos e pesquisadores consideram as pesquisas com animais como práticas injustificáveis, principalmente aquelas que provocam sofrimento (FRANCO et al., 2014). No Brasil, a Lei nº. 11.794, aprovada em outubro de 2008, regulamenta que as pesquisas com animais não são proibidas no território brasileiro, desde que as condições éticas e legais sejam respeitadas para sua realização. Além disso, a referida lei permitiu a criação da Comissão de Ética para Uso de Animais (CEUA) nas instituições de pesquisa e do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) (BRASIL, 2008). O uso de animais em experimentos científicos e em atividades didáticas requer, dos profissionais 11Bioética e pesquisa https://goo.gl/nRW5uk envolvidos, a consciência de que esses animais são seres que apresentam sensibilidade à dor — e que têm instinto de sobrevivência. Sendo assim, os animais devem ser manejados com respeito e de forma adequada à espécie, tendo as suas necessidades de transporte, alojamento, condições ambientais, nutrição e cuidados veterinários preservadas. Temas para discussão na Bioética: uso de células-tronco embrionárias na pesquisa científica; eutanásia; aborto; uso de embriões para pesquisa científica; reprodução assistida e técnicas de seleção de embriões; clonagem humana; limite da edição genética; autonomia de pacientes terminais; autonomia da criança e do adolescente. BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios da ética biomédica. 7. ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 2013. BIOETHICS. In: CAMBRIDGE: Cambridge Advanced Learner’s Dictionary and Thesau- rus. 2018. Disponível em: <https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/ bioethics>. Acesso em: 25 abr. 2018. BIOÉTICA. In: MICHAELIS: Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa. 2018. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=bio%C3%A9tica>. Acesso em: 25 abr. 2018. BRASIL. Lei n° 11.794, de 8 outubro de 2008. Regulamenta o inciso VII do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais; revoga a Lei no 6.638, de 8 de maio de 1979; e dá outras providências. Brasília, DF, 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ lei/l11794.htm>. Acesso em: 25 abr. 2018. Bioética e pesquisa 12 https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/ http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=bio%C3%A9tica http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ BRASIL. Ministério da Saúde. 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Revista AMRIGS, v. 53, n. 1, p. 58-63, 2009. 13Bioética e pesquisa https://www.ufrgs.br/bioetica/res19696.htm http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ http://www.hhs.gov/ohrp/humansubjects/guidance/belmont.html Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.