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DEONTOLOGIA E ÉTICA PROFISSIONAL Débora Czarnabay Comitês de Ética em Pesquisa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer os Comitês de Ética em Pesquisa e suas funções. Identificar os processos do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Descrever os processos da Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). Introdução A partir da segunda metade do século XX, posteriormente aos diversos experimentos realizados em seres humanos e animais e conhecidos por sua condução em desacordo com os preceitos morais e éticos, a humanidade começava a se questionar sobre a validade e os valores morais de tais experimentos. A emergência de novos desafios, oriundos da razão instrumental e dos avanços biomédicos, produziram uma ruptura e a reorganização gradativa dos paradigmas tradicionais, levando a uma crescente oferta de novas tecnologias e biotecnologias. Com o notável aumento da atividade científica na área biomédica, tornou-se evidente a necessidade de elaborar uma regulamentação ética mais completa para toda e qualquer pesquisa científica realizada em seres humanos ou animais. Para tanto, o Relatório de Belmont (1978) e a Declaração de Helsinque (1964) foram documentos internacionais cruciais para o estabelecimento da necessidade de criação de Comitês de Ética em Pesquisa, os quais têm a finalidade de normatizar, orientar e avaliar os projetos de pesquisa, bem como defender os direitos dos participantes dos estudos. Da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais teve um importante papel na criação das Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs) ao redor do mundo. Neste capítulo, você vai aprender o que são os Comitês de Ética em Pesquisa, vai conhecer o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Huma- nos (CEP) e a CEUA. Além disso, entenderá o funcionamento dos comitês e os processos para se iniciar uma pesquisa científica. Os Comitês de Ética em Pesquisa É componente característico do ser humano, devido à sua racionalidade, a formulação de perguntas à natureza. Essa característica é o seu diferencial em relação aos seres não humanos. Ao formular perguntas, ele se angustia, buscando respostas que podem vir sob a forma de uma verdade científi ca, de teoria, hipótese, neologismo ou ainda sob a forma de mito. A eterna pesquisa e busca por conhecimento acabou se tornando o fadário do ser humano, fazendo com que a refl exão a respeito de valores éticos e morais fosse um elemento fundamental na obtenção de respostas. Ao longo da história, o anseio por respostas levou o ser humano a desco- bertas que resultaram em benefícios importantes para sua sobrevivência, como a construção de moradias e o uso de vestimentas para se proteger do frio e do calor intensos, a descoberta do fogo para cozinhar alimentos, a invenção do automóvel e a descoberta da energia elétrica e dos medicamentos. Entretanto, as descobertas também resultaram em malefícios, desde a luta corporal, a destruição da biosfera, a poluição e o aquecimento global, até a bomba atômica, apontando para a necessidade iminente de um controle social. Entre tamanhas descobertas, não foram poucos os pesquisadores, mesmo os mais renomados, que, apoiados por agências de fomento nacionais ou internacionais, cometeram abusos em suas pesquisas, desrespeitando a dignidade humana e a ética animal (KIPPER, 2010). A história das pesquisas com seres humanos é repleta de situações abusivas em relação aos participantes do estudo. Um dos exemplos mais conhecidos é o caso do médico inglês Edmund Jenner, que, em 1796, ao estudar uma vacina contra varíola, realizou seus experimentos em seus próprios filhos e nas crianças da sua vizinhança, não se preocupando com a proteção das crianças. Ele acabou publicando seus resultados somente 20 anos depois do experimento, talvez por entender os deslizes éticos e morais do estudo. No século XVII, no auge da experimentação em animais, surgiu uma reflexão ética entre os que defendiam (chamados vivisseccionistas) e os que não defendiam o uso de animais (os opositores). Somente no século XIX, as primeiras sociedades protetoras dos animais foram criadas. Somente após as Comitês de Ética em Pesquisa2 atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, com a publicação do Código de Nuremberg e da Declaração de Helsinque, além de diversos relatos e denúncias sobre experimentos científicos duvidosos, a visão sobre a ética na pesquisa científica enveredou para um caminho sem volta, felizmente. Em meio à fervorosa discussão sobre a validade do Código de Nuremberg (1947), ocorrida em 1965, especialmente quanto à utilidade do consentimento do paciente para as pesquisas chamadas de terapêuticas, e diante da divulgação pela imprensa de uma série de pesquisas na área biomédica realizadas em seres humanos, as quais incluíam práticas moralmente questionáveis (tanto nos Estados Unidos quanto na Europa), foram iniciados os debates a respeito da regulação e da fiscalização das pesquisas científicas. Diante de tantas denúncias, o governo dos Estados Unidos criou a Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos em Pesquisas Biomédicas e Comportamentais, a fim de nortear os princípios éticos nas pesquisas envol- vendo humanos, culminando com a publicação do Relatório de Belmont. Além disso, o Instituto Nacional de Saúde (NIH, do inglês National Institute of He- alth) dos Estados Unidos recomendou um sistema de supervisão das pesquisas por colegas, de caráter obrigatório, para toda investigação subsidiada pelo NIH ou pelo Serviço de Saúde Pública dos EUA, com o objetivo de assegurar o respeito aos sujeitos das pesquisas e a adequação do consentimento informado. Durante a Assembleia da Associação Médica Mundial, ocorreu a revisão da Declaração de Helsinque, em 1975, que, ao reforçar o caráter fundamental do consentimento livre e esclarecido por parte dos participantes, instituiu a necessidade de criar Comitês de Ética em Pesquisa, além de aconselhar a não publicação de trabalhos de proveniência eticamente objetável. Ficou estabelecido que: O desenho e o desenvolvimento de cada procedimento experimental envol- vendo o ser humano devem ser claramente formulados em um protocolo de pesquisa, o qual deverá ser submetido à consideração, discussão e orientação de um comitê especialmente designado, independente do investigador e do patrocinador. (FREITAS, 2009). No Brasil, o aumento da pesquisa biomédica contribuiu para a introdução de sete artigos relacionados à pesquisa médica no Código de Ética Médica de 1988, tendo como foco a proteção de valores humanitários nesse contexto. A partir disso, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou a Resolução CNS nº 1/1988, a qual propunha a criação de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) em todas as instituições/locais que realizassem pesquisas na área da saúde. 3Comitês de Ética em Pesquisa A Resolução 1/88 não teve a repercussão desejada, então o CNS designou um grupo de trabalho para reavaliar os critérios de pesquisa utilizados na Resolução citada, resultando na Resolução CNS nº 196/1996, denominada Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Hu- manos, posteriormente substituída pela Resolução 466/12. Os Comitês de Ética em Pesquisa foram desenvolvendo algumas características: diferem-se dos Comitês de Ética Hospitalar em sua composição, funções e normas; não são compostos somente por cientistas naturais, incluem represen- tantes da comunidade e das disciplinas sociais; a participação de outros membros da comunidade e de outros profissionais é regida pelo princípio da idoneidade, não por mera representatividade; funcionam de acordo com o modelo dos Comitês de Ética Institucionais, ou seja, cada instituição tem o seu comitê e se dá preferência para o Comitê de Ética local, que conhece sua própria instituição e seus pes- quisadores, tendo facilidade de contato comos membros da equipe de pesquisa quando necessário; a deliberação do Comitê de Ética em Pesquisa analisa cada protocolo individualmente, garantindo a conformidade com as normas; os CEPs asseguram o consentimento informado (livre e esclarecido), as chances dos riscos, os detalhes do método científico que podem incidir em riscos, bem como os aspectos econômicos que zelam pela probidade e pela utilização ética dos resultados; os CEPs devem funcionar de acordo com a regulamentação e a do- cumentação, podendo, então, fundamentar suas deliberações e criar jurisprudências. O enorme crescimento de estudos na área biomédica intensificou o gravame dos Comitês de Ética em Pesquisa, suscitando o despacho de relatórios de forma apressada e sem cuidado. Diante dessa situação, houve a necessidade de criar uma instância de controle dos trabalhos dos Comitês de Ética, representada no Brasil pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Comitês de Ética em Pesquisa4 Os assuntos Bioética e Ética em pesquisa são amplamente discutidos pelo mundo. Cada país constitui regras e normas cabíveis aos seus Comitês de Ética (ou Comissões de Ética), podendo haver alguma divergência dos critérios brasileiros em relação aos utilizados na avaliação de projetos e na deliberação de decisões pertinentes às pesquisas realizadas dentro do território do respectivo país. Nos Estados Unidos, esses comitês são denominados de IRB (Institutional Review Board). Muitos livros de autores americanos são traduzidos para o português, os quais abordam o tema da bioética e dos Comitês de Ética em Pesquisa. Porém, deve-se tomar cuidado, pois alguns autores discutem apenas os critérios e os processos utilizados pelos Comitês de Ética Americanos. Fonte: National Institute of Environmental Health Sciences (2018). Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) é um colegiado interdisciplinar e inde- pendente, com munus público, que deve existir nas instituições que realizam pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Esse comitê foi criado para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa, em sua integridade e dignidade, e para contribuir com o desenvolvimento da pesquisa dentro dos padrões éticos (Normas e Diretrizes Regulamentadoras da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos – Res. CNS 466/12, VII.2). O CEP faz parte do sistema CEP/CONEP/ CNS/MS – conjunto de órgãos que conduzem a análise ética dos projetos de pesquisa científi ca (BRASIL, [2018?]). Em 1984, foi incluído, no Código de Deontologia Médica, o capítulo II das Infrações: É vedado ao médico, no exercício de sua profissão, realizar pesquisa in anima nobili sem estar devidamente autorizado e sem o necessário acompanhamento de Comissão de Ética (KOTTOW, 2008). Em 1988, a partir de uma revisão do Código de Ética Médica, foi inserida, no Art. 127, a neces- sidade de “submeter o protocolo à aprovação e acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação ao pesquisador”. No mesmo ano, o CNS elaborou o primeiro documento para regulamentar as pesquisas em saúde – a então Resolução CNS nº 1/88 –, que, no seu Capítulo XIII, dizia: 5Comitês de Ética em Pesquisa Em toda instituição de saúde credenciada pelo Conselho Nacional de Saúde na qual se realize pesquisa deverá existir: I) Comitê de Ética, caso se realize pesquisas em seres humanos; [...] A pesquisa somente poderá ser iniciada após parecer favorável, por escrito, do Comitê de Ética e do Comitê de Segurança Biológica, conforme o caso [...] (BRASIL, 1988). Na Resolução citada, também consta que o Comitê de Ética deveria ser constituído por, no mínimo, seis membros, dos quais cinco deveriam ter experiência na área de saúde, sendo pessoas de ambos os sexos, tendo, pelo menos, um membro não pertencente ao quadro de investigadores da instituição. As atribuições dos comitês constituídos nas instituições de atenção à saúde eram: autorizar a realização de pesquisas em seres humanos; orientar os pes- quisadores quanto aos aspectos éticos e de segurança biológica; enviar para a Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Medicamentos o protocolo inicial e os resultados da pesquisa (quando envolver medicamento); emitir parecer sobre os aspectos éticos das pesquisas propostas mediante revisão dos riscos e dos benefícios, do Termo de Consentimento Pós-Informação (semelhante ao atual Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) e dos demais documentos presentes no protocolo da pesquisa pretendida, a fim de garantir o bem-estar e os direitos dos participantes voluntários da pesquisa. Alguns anos após a publicação da Resolução CNS nº 1/88, uma pesquisa de opinião foi aplicada em diversas universidades do país, tendo como objetivo averiguar a situação dos Comitês de Ética em Pesquisa dessas universidades. Do total de 26 universidades questionadas na pesquisa, apenas uma tinha comitê de ética organizado conforme as normas vigentes. Com essa pesquisa, veio à tona uma situação que já era esperada: não havia adesão às normas até aquele momento. Poderia ser por desconhecimento, por discordância, não existindo também nenhuma forma sistematizada de acompanhamento da organização e funcionamento dos comitês institucionais. Optou-se, então, pela revisão dessa Resolução, diante da fatal realidade e de outras dificuldades encontradas na aplicação da Resolução CNS nº 1/88, as quais são representadas pelo paradoxo entre a figura do credenciamento de instituições de pesquisa e a necessidade inferida na sua prática, caracterizada pela análise de cada projeto de pesquisa individualmente, além da necessidade de inovação e adaptabilidade exigidas pelo avanço tecnológico. Sendo assim, após cerca de um ano de trabalho de um grupo, nomeado pelo Conselho Nacional de Saúde por meio de um processo que era participativo e aberto às contribuições dos setores da sociedade relacionados ao tema, a Resolução CNS nº 196/96 foi aprovada e publicada no DOU de 16 de outubro de 1996, Comitês de Ética em Pesquisa6 a qual continha as Diretrizes e as Normas Regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. A Resolução CNS nº 196/96 reúne as principais diretrizes para a apreciação da ética dos projetos de pesquisa, servindo como marco histórico brasileiro ao criar um sistema nacional para o seu acompanhamento (BRASIL, 1996). O sistema era constituído por Comitês de Ética em Pesquisa presentes nas instituições que as realizam, coordenados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que é vinculada ao CNS. Segundo essa Resolução, os CEPs devem ser constituídos de forma multidisciplinar, incluindo a participação de profissionais da área de saúde, das ciências exatas, sociais e humanas – juristas, teólogos, sociólogos, filósofos, bioeticistas – e pelo menos um membro da sociedade representando os usuários da instituição – podendo ainda contar com consultores ad hoc (pessoas não pertencentes à instituição, mas que são capazes de fornecer subsídios técnicos). Os CEPs e o CONEP são responsáveis por revisar os projetos de pesquisa envolvendo seres humanos, principalmente para assegurar e preservar a inte- gridade e os direitos dos participantes (voluntários) nas pesquisas científicas, emitindo parecer consubstanciado sobre estes. Atualmente, a Resolução em vigor é a Resolução n° 466/2012, que revisou a antiga, mantendo os critérios estabelecidos, mas com algumas modificações. Ao abordar o tema do CEP, as atribuições incluem [...] avaliar protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, com prioridade nos temas de relevância pública e de interesse estratégico da agenda de priori- dades do SUS, com base nos indicadores epidemiológicos, emitindo parecer, devidamente justificado, sempre orientado, dentre outros, pelos princípios da impessoalidade, transparência, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, dentro dos prazos estabelecidos em norma operacional, evitando redundâncias que resultem em morosidade naanálise [...] (BRASIL, 2012). No momento da avaliação do projeto de pesquisa, compete ao CEP emitir parecer devidamente motivado, no qual seja apresentada, de forma clara, objetiva e detalhada, a decisão do colegiado no prazo estipulado em norma operacional. O CEP deve encaminhar, depois da análise fundamentada, os protocolos de competência da CONEP, contendo a decisão sobre o projeto. Como você deve realizar o processo de submissão de um projeto de pesquisa científica envolvendo seres humanos? O sistema CEP/CONEP foi instituído para proceder com a análise ética de projetos de pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil. Esse processo tem como base uma série de resoluções e normativas deliberadas pelo CNS – órgão vinculado ao Ministério da Saúde. 7Comitês de Ética em Pesquisa O atual sistema tem como fundamentos o controle social, exercido pela liga- ção com o CNS, a capilaridade, na qual mais de 98% das análises e decisões ocorrem em nível local pelo trabalho dos Comitês de Ética em Pesquisa, e o foco na segurança, na proteção e na garantia dos direitos dos participantes de pesquisa (SCHNAIDER, 2008; BRASIL, [2018?]). A maior parte dos processos relacionados à análise ética ocorre em ambiente eletrônico, por intermédio da ferramenta eletrônica chamada de Plataforma Brasil, embora ainda existam projetos em forma física (papel) devido ao antigo sistema. Para isso, o pesquisador responsável (e todos os membros da equipe) deve realizar um cadastro na Plataforma Brasil, preenchendo com seus dados e os dados complementares. O sistema solicitará documentos obrigatórios (currículo comum, documento digitalizado e foto de identificação) e vínculo com instituição (deve-se informar o nome da instituição à qual o pesquisador está vinculado). Sendo assim, a instituição também deve estar cadastrada no sistema da Plataforma Brasil e ter o seu CEP. O CNS define uma instituição proponente como: a instituição com a qual o pesquisador responsável tem vínculo e em nome da qual apresenta a pes- quisa; corresponsável pela pesquisa e pelas ações do pesquisador. Em projetos multicêntricos e unicêntricos, essa instituição será o centro coordenador do estudo. Depois de realizar o cadastro corretamente, o pesquisador pode efetuar a submissão de projeto de pesquisa, acessando a plataforma por intermédio do seu cadastro. Durante a submissão, o pesquisador preencherá todos os dados e todas as informações referentes ao projeto, incluindo os participantes do projeto, e irá anexar uma cópia do projeto de pesquisa completo e do vínculo da instituição para que encaminhado ao CEP da instituição. Caso o pesquisador não esteja vinculado a nenhuma instituição ou a instituição não tenha seu próprio CEP, o projeto será automaticamente encaminhado para a CONEP. Todos os experimentos só devem ser realizados após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa. O SISNEP (Sistema Nacional de Informações Sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos) é o antigo sistema de cadastramento de pesquisa científicas em seres humanos do CNS. Essa plataforma era utilizada pelos CEPs, pela CONEP e pelos pesquisadores. Comitês de Ética em Pesquisa8 Comissão de Ética no uso de animais Desde a antiguidade, grandes fi lósofos e pensadores discutiam a relação entre animais humanos e não humanos. Segundo Pitágoras (580-500 a.C.), a amabilidade para com todas as criaturas era um dever, por isso, seus pupilos não consumiam carne. Conforme a teoria da transmigração das almas, a alma passava sucessivamente de um corpo para outro, inclusive para o corpo de outros animais, por esse motivo o consumo de carne era comparável ao canibalismo. O anatomista Alcmaeon (500 a.C.) realizava vivissecção – ato de dissecar um animal vivo – com o objetivo de estudar a anatomia e a fisiologia desses animais. Já Hipócrates (460 a.C.) fazia uso de animais com a finalidade pu- ramente didática, relacionando o aspecto de órgãos humanos doentes com o de animais. As diferenças e as semelhanças de conformação e funcionamento dos órgãos de seres humanos e animais foram analisadas por Aristóteles (384-322 a.C.). Para René Descartes (1596-1660), os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da alma, ou seja, animais não tinham alma, logo, não havia possibilidade deles sentirem dor. Naquela época, presumia-se que objetos (coisas materiais) eram governados por princípios mecanicistas, então o filósofo rotulava os animais como má- quinas, pois estes, segundo ele, eram destituídos de sentimentos. Os gemidos de dor eram análogos aos sons de uma engrenagem de relógio comprometida. Porém, para evitar que o conceito fosse aplicado aos seres humanos, o que, segundo a Igreja Católica, seria heresia, Descartes alegou que somente os seres humanos eram dotados de alma. Infelizmente, o filósofo preferiu robotizar o movimento animal para não antropomorfizar (FRANCO et al., 2014). Os pesquisadores deveriam registrar suas pesquisas na página do SISNEP para gerar um formulário que deveria ser entregue pelo próprio pesquisador ao CEP de sua instituição. Cada pesquisa cadastrada gerava um número (CAAE – Certificado de Apresentação para Apreciação Ética), que era usado como identificador do projeto. Atualmente, o pesquisador deve cadastrar seu projeto de pesquisa na Plataforma Brasil. Conforme a Carta Circular nº 71/2018-CONEP/SECNS/MS, emitida em 02 de abril de 2018, a CONEP encerrará o processo dos protocolos de pesquisa que ainda tramitam fora do Sistema Plataforma Brasil (ou seja, aqueles que ainda estão em papel) a partir do dia 30 de abril de 2018. A CONEP tramitará via papel apenas os casos de solicitação de encerramento/cancelamento/suspensão do estudo. Fonte: Brasil (2018). 9Comitês de Ética em Pesquisa William Harvey foi o responsável pela primeira publicação de uma pesquisa científica, em 1638, que utilizou animais, a qual levou o título Exercitatio anatômica de motu cordis et sanguinis in animalibus. Harvey exibiu os re- sultados adquiridos em seus estudos experimentais, os quais tratavam sobre a fisiologia da circulação e foram realizados em cerca de 80 espécies diferentes de animais. Entretanto, Voltaire (1694-1778), outro grande pensador, considerava os animais como seres sencientes (que sofrem ou sentem prazer e felicidade) e discordava do paradigma mecanicista proposto por René Descartes. Immanuel Kant (1724-1804) era defensor do conceito de antropocentrismo vulnerável, no qual o homem tinha obrigações para com os animais. Por fim, Jeremy Bentham (1749-1832) foi um grande defensor da igualdade de condições a todos os seres sensíveis em virtude de sua capacidade de sofrimento. O seu livro, Introduction to the principles of morals and legislation, publicado em 1789, é usado como inspiração para os critérios usados nas diretrizes para proteção dos animais até os dias atuais. No livro, Bentham afirmava que “[...] o problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tam- pouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?” (BENTHAN, 1984). E não tinha retorno, o impacto estava realizado. No ano de 1845, foi criada, na França, a Sociedade para a Proteção dos Ani- mais. Claude Bernard publicou, em 1865, o livro An Introduction to the Study of Experimental Medicine, no qual apresentava a justificativa para a utilização de animais em pesquisas. Segundo Bernard, o mérito de experimentos com animais dependia da rígida adesão ao método científico, e a adesão correta determinaria a reprodutibilidade e a confiabilidade dos dados adquiridos no experimento. Em 1876, a primeira lei a regulamentar o uso de animais em pesquisas científicas foi proposta no Reino Unido, com a publicação do British Cruelty to Animals Act. Em 1927, Fritz Jarh idealizou que “todos os seres vivos teriam direito ao respeito”, usando o termo Bioética. Em 1948, o Có digo de Nuremberg enfatizou que os experimentos em seres humanos deveriam se basear nos resultadosde estudos previamente realizados em animais. Sendo assim, o uso de animais em pesquisas era justificável, mas ainda não havia norma ou diretriz legal para a sua regulamentação. Devido a isso, William Russel e o microbiologista Rex Burch publicaram a obra The Principles of Humam Experimental Tecnique, em 1959, e propu- seram o princípio orientador para o uso de animais na pesquisa, o qual foi denominado Princípio dos três Rs (Replacement, Reduction e Refi nement). De acordo com esse princípio, Reduction (Redução) significa que os pesqui- sadores devem utilizar o mínimo de animais em seu experimento. Para isso, Comitês de Ética em Pesquisa10 o pesquisador deve adotar um modelo estatístico adequado, utilizar animais de colônias geneticamente homogêneas, mantidas em biotérios climatizados e com pessoal treinado. O Refinement (refinamento) orienta para a escolha de métodos adequados de analgesia, sedação e de eutanásia, a fim de evitar qualquer sofrimento ou desconforto, preservando o animal de qualquer estresse e distresse durante a experimentação. O termo Replacement (substituição) orienta o pesquisador para o uso de métodos alternativos sempre que possível. Durante muito tempo, o bem-estar animal se res tringiu somente à redução do estresse, enquanto o sofrimento era negligenciado. Em 1978, foi procla- mada, pela UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization – Organizações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) a Declaração dos Direitos dos Animais, da qual muitos países são signatários, incluindo o Brasil. Essa Declaração propôs o reconhecimento do valor da vida dos animais e uma conduta dos seres humanos condizente com a dignidade e o respeito pelos animais. Apesar da aceitação pela comunidade científica dos países participantes, não havia sido estabelecido o mecanismo pelo qual a Declaração seria colocada em prática. A partir da década de 1980, as CEUAs foram surgindo como instrumentos de controle. Nos Estados Unidos, a atuação dos comitês foi estabelecida simultanea- mente com o surgimento da obrigatoriedade legal em 1985. A partir desse momento, instituições, universidades e centros de pesquisa estabeleceram o IACUC (Institutional Animal Care and Use Committee – Comitê Institucional de Cuidado e Uso de Animais), o qual passou a ter a função de adequar as propostas de experimentos em um protocolo experimental compatível com os princípios de respeito e dignidade animal, podendo aprovar ou não tal proposta. Na década de 1990, a comunidade científica iniciou uma abordagem diferente sobre as pesquisas em animais. Com isso, os sentimentos destes foram consi derados e as emoções positivas (prazer, conforto, contentamento, curiosidade e ludicidade) passa ram a ter um papel importante no conceito de bem-estar animal. Atualmente, ainda há limitações nos métodos de experimentação de acordo com evidências sem o uso de animais. No Brasil, foi decretada a Lei nº. 6.638/79, em 1979, a qual estabelecia normas para a vivissecção de animais em práticas didático-científicas, mas não apresentava penalidades a quem as infringia. O Projeto de Lei nº. 3964/97, além de adotar o princípio dos 3R, propôs a criação da CEUA e do CONCEA (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) – órgão normativo, credenciador, su pervisor e controlador das atividades de pesquisa em animais. Dez anos depois, em 2008, a Lei Fe deral nº. 11.794/08, conhecida como Lei Arouca (devido ao nome do 11Comitês de Ética em Pesquisa Deputado proponente – Sérgio Arouca), re gulamentou as CEUAs e criou o CONCEA. O Decreto nº. 6.899/2009 regulamentou a Lei Arouca e criou o Cadastro das Instituições de Uso Cientí fico de Animais (CIUCA). A CEUA é um elemento indispen sável para o cadastramento das instituições, sen do composta por cidadãos de notório saber que examinam os protocolos e buscam compatibilida de com a legislação. O CONCEA é composto pelo Plenário, pelas Câmaras e pela Secretaria Executiva, é presidido pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia e integrado por representantes de vários ministérios, sociedades de ciências e conselhos universitários. Ele determina as normas para o cuidado, as instalações dos centros de criação e o uso humanitário, além da busca de técnicas alternativas para a substituição do uso de animais. O não cumprimento dessas normas im plica em penalidades, as quais variam entre advertên cias, multas e interdições, dependendo da gravidade da infração. As instituições interessadas em realizar atividades ou projetos que envolvam a produção, a manutenção ou a utilização de animais pertencentes ao filo Chordata, subfilo Vertebrata, exceto os humanos, que englobam qualquer uso de animais para ensino ou pesquisa científica, deverão constituir sua própria CEUA e, em seguida, requerer o CIAEP (Credenciamento Institucional para Atividades com Animais para Ensino ou Pesquisa) junto ao CONCEA, por meio do CIUCA. Segundo a Lei Arouca, compete às CEUAs: [...] cumprir e fazer cumprir, no âmbito de suas atribuições, o disposto nesta Lei e nas demais normas aplicáveis à utilização de animais para ensino e pes- quisa, especialmente nas resoluções do CONCEA [...] examinar previamente os procedimentos de ensino e pesquisa a serem realizados na instituição à qual esteja vinculada, para determinar sua compatibilidade com a legislação aplicável (BRASIL, 2008). O pesquisador deve submeter o projeto de pesquisa junto à CEUA de sua instituição, cabendo a ela a avaliação do projeto e das condições de realização da pesquisa. Todos os projetos de pesquisa ou os planos de ensino (no caso do uso de animais em atividades de ensino) envolvendo o uso de animais deverão, obrigatoriamente, ser submetidos à apreciação de uma CEUA ligada à instituição de ensino/pesquisa. Após a deliberação do resultado, a CEUA envia as informações sobre cada projeto à CONCEA. Somente depois de receber a aprovação do projeto pela CEUA que o pesquisador poderá iniciar as suas atividades de pesquisa. A CEUA deve notificar, imediatamente, ao CONCEA e às autoridades sanitárias a ocorrência de qualquer acidente com os animais nas instituições credenciadas, fornecendo informações que permitam ações saneadoras. Comitês de Ética em Pesquisa12 Para consultar um Comitê de Ética em Pesquisa, você pode acessar a Plataforma Brasil e clicar em Consultar Comitê de Ética por meio do link ou código a seguir. https://goo.gl/4y96r7 Para ter um exemplo prático e real de como a visão sobre ética em pesquisa pode ser modificada, basta alterar a ótica de percepção dos envolvidos. Um importante episódio sobre o estabelecimento de limites na utilização de animais em atividades de ensino envolveu a esposa e a filha de Claude Bernard. O grande fisiologista utilizou, por volta de 1860, o cachorro de estimação de sua filha em uma demonstração em uma de suas aulas. Sua esposa até então era indiferente, mas, em resposta ao ato do marido, fundou a primeira associação de defesa dos animais de laboratório. Claude Bernard, que deixou inúmeros textos de excelente qualidade sobre a ética para com os pacientes, dizia ser parte da postura do cientista ser indiferente ao sofrimento dos animais de laboratório. Fonte: Baeder (2012). BAEDER, F. M. et al. Percepção histórica da Bioética na pesquisa com animais: possi- bilidades. Revista - Centro Universitário São Camilo, v. 6, n. 3, p. 313-320, 2012. BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 001, de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/ reso01.doc>. Acesso em: 04 maio 2018 13Comitês de Ética em Pesquisa https://goo.gl/4y96r7 http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/ BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 001, de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/reso01.doc>. Acesso em: 04 maio 2018. BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008. Regulamenta o inciso VII do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais; revoga a Lei no 6.638, de 8 de maio de 1979; e dá outras providências. Brasília, DF, 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11794.htm>. Acesso em: 04 maio 2018. BRASIL. Ministério da Saúde. Plataforma Brasil. [2018?]. Disponível em: <http://plata- formabrasil.saude.gov.br/login.jsf>. Acesso em: 04 maio 2018. FREITAS, C.B. Os comitês de ética em pesquisa: evolução e regulamentação. Revista Bioética, v. 6, n. 2, p. 1-6, 2009. FRANCO, A. L. et al. Pesquisas em animais: uma reflexão bioética. Acta Bioethica, v. 20, n. 2, p. 247-253, 2014. KIPPER, D. J. Breve história da ética em pesquisa. Revista da AMRIGS, v. 54, n. 2, p. 224- 228, abr./jun. 2010. KOTTOW, M. História da ética em pesquisa com seres humanos. Reciis, v. 2, supl. 1, p. sup.7-sup.18, dez. 2008. NATIONAL INSTITUTE OF ENVIRONMENTAL HEALTH SCIENCES. 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