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Ana Maria Soek A n a M aria So ek Ed u c a ç ã o d e Jo v en s e A d u lto s Com a leitura desta obra, você vai compreender o contexto histórico, social, político e cultural do surgimento da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, bem como os movimentos de alfabetização de base popular até se tornar modalidade da Educação Básica, além de conhecer o perfil sociocultural desse alunado, as principais legislações e os documentos oficiais que regem a EJA no Brasil, suas especificidades e sua organização. Vai entender os conceitos referentes a analfabetismo, analfabetismo funcional, letramento e índices estatísticos e, também, refletir sobre as formas de mediação e organização curricular nas propostas pedagógicas para EJA, a formação do professor, as adequações necessárias no uso de materiais didáticos e alternativas metodológicas. Código Logístico 59467 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6652-0 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 5 2 0 Educação de Jovens e Adultos Ana Maria Soek IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Have a nice day Photo/Fresnel/Ivan Kruk/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S664e Soek, Ana Maria Educação de jovens e adultos / Ana Maria Soek. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 100 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6652-0 1. Educação de jovens e adultos. 2. Alfabetização de jovens e adultos. I. Título. 20-64251 CDD: 374 CDU: 374.7 Ana Maria Soek Doutoranda e mestra em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Organização do Trabalho Pedagógico pela UFPR, em Neuropsicologia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão (IBPEX) e em Educação a distância pela Faculdade Internacional (Facinter). Graduada em Pedagogia pela UFPR. Atua na orientação de carreiras e nos cursos de pós-graduação em Educação, com temáticas da área de Educação de Jovens e Adultos, Educação de Adultos ao longo da vida, Coaching e Desenvolvimento Pessoal e Profissional. Foi professora temporária do Setor de Educação da UFPR, no Departamento de Teoria e Prática de Ensino, trabalhando com estágios supervisionados. Desenvolve pesquisas na área de Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. É autora e editora de livros didáticos e paradidáticos e materiais para educação a distância (EaD). Tem participação ativa em congressos e simpósios nacionais e internacionais, com trabalhos apresentados em Paris, Amsterdã e Portugal. Autora organizadora da coletânea Mediação Pedagógica na Educação de Jovens e Adultos, com quatro títulos aprovados pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola – Formação de Professores – PNBE/FNDE do Ministério da Educação do Brasil. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 9 1.1 Histórico e contexto da EJA 10 1.2 As principais campanhas de alfabetização de adultos 14 1.3 EJA na atualidade: legado e direitos 22 2 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 27 2.1 Fundamentos e funções da EJA 28 2.2 Formas de oferta e organização da EJA 32 2.3 Especificidades da EJA 36 2.4 Cognição e aprendizagem na EJA 38 3 Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 46 3.1 O analfabetismo no Brasil 47 3.2 Quem são os educandos da EJA? 52 3.3 Alfabetização e letramento na EJA 57 3.4 Exclusão e inclusão na EJA 61 4 Singularidades da mediação pedagógica 67 4.1 O currículo na EJA 68 4.2 A formação do professor de EJA 74 4.3 Materiais didáticos, avaliação e mediação pedagógica 76 5 Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 85 5.1 O conhecimento prévio dos educandos 86 5.2 A relação dialógica 89 5.3 Palavras ou temas geradores 93 Nesta obra, direcionada aos estudos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), você irá adentrar no universo particular e diversificado da EJA como uma modalidade da Educação Básica. Você já se perguntou o que caracteriza o perfil de alunos como pertencentes a um mesmo grupo de estilos de aprendizagem? O que caracteriza toda a diversidade dentro da própria EJA? E de qual perfil de adultos estamos falando, quando nos referimos aos alunos dessa modalidade? Já parou para pensar como os alunos da EJA, que não tiveram acesso à escolarização formal, se desenvolvem e atuam cognitivamente em seus contextos, a depender de suas necessidades e condições de escolaridade? Quais objetivos guiam as aprendizagens dos diferentes perfis de alunos da EJA, nas diferentes fases e etapas de escolarização básica? E, por fim, como dar conta de toda essa diversidade nessa realidade adversa? Essas são algumas das questões que buscamos esclarecer ao longo deste livro. Assim, são objetivos desta obra compreender o contexto histórico, social, político e cultural do surgimento da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, bem como os movimentos de alfabetização de base popular até se tornar modalidade da Educação Básica, além de conhecer o perfil sociocultural desse alunado, as principais legislações e os documentos oficiais que regem a EJA no Brasil, suas especificidades e sua organização. Ainda, buscamos entender os conceitos referentes a analfabetismo, analfabetismo funcional, letramento e índices estatísticos e, também, discutir as formas de mediação e organização curricular nas propostas pedagógicas para EJA, a formação do professor para atuar na EJA e as adequações necessárias no uso de materiais didáticos. Além disso, apresentamos as alternativas metodológicas no encaminhamento de práticas pedagógicas que levem em conta os saberes dos educandos, os princípios de uma relação dialógica e os fundamentos e as concepções que regem todo esse ato educativo. Bom estudo! APRESENTAÇÃO Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 9 1 Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil Você já parou para pensar sobre o porquê da necessidade de se ter uma educação voltada para jovens e adultos? Sabia que, tradicionalmente, a escola foi pensada para crianças e que mui- tas pessoas ainda mantêm essa ideia? Pense comigo: se todas as crianças fossem para escola, por que haveria a necessidade de existir uma escola para adultos? Porém, como vamos estudar neste capítulo, no decorrer da história do nosso país, a escola nem sempre foi da forma como conhecemos hoje e nem sempre foi “para todos”. Aqui, você irá compreender um pouco melhor sobre os contextos histórico, eco- nômico, político, social e cultural do surgimento da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, desde os primeiros movimentos e campanhas de alfabetização de adultos até como é caracterizada na atualidade, com seus legados como campo de direitos. Você vai perceber o quanto o desenvolvimento da EJA está atre- lado à história do nosso país, e, por isso, em alguns momentos, estabelecemos paralelos com ela. Assim, vamos rememorar e con- textualizar os principais marcos históricos aqui apresentados com o que você já sabe dessa história, pois, dessa forma, será mais fácil relacionar a aprendizagem sobre a EJA com o que você já conhece. Antes de tudo, você já deve ter percebido que utilizamos a EJA, e não, o EJA. Vamos explicar essa primeira diferenciação, poisusamos a sigla EJA, que se refere à Educação de Jovens e Adultos, uma modalidade de Educação Básica. Portanto, toda vez que ou- vir falar o EJA, saiba que não está correto, e logo mais você vai descobrir por quê. 10 Educação de Jovens e Adultos 1.1 Histórico e contexto da EJA Vídeo Começando pela história do Brasil, você já ouviu falar da chegada dos jesuítas com a missão de catequizar os povos que aqui habita- vam, certo? Isso ocorreu por volta do ano de 1550. Com esse objetivo, os jesuítas foram considerados os primeiros educadores, que, ten- do como base regras e princípios religiosos, transmitiam normas de comportamento e ofícios necessários ao funcionamento da economia colonial da época. Com uma educação voltada aos colonizadores e a seus filhos, os jesuítas fundaram as primeiras escolas em terras bra- sileiras, sendo considerados, também, os primeiros educadores de adultos ao transmitirem esses ensinamentos. Agora tente imaginar como era a população brasileira dessa época. Você acha que ela já era alfabetizada? Ou havia a necessidade de ser alfabetizada? Devido ao fato de a população ser, em grande parte, anal- fabeta, o ensino das regras e de preceitos religiosos era transmitido e passado adiante pela oralidade. Por mais de 200 anos, os jesuítas foram praticamente os únicos educadores no Brasil, até que, em 1759, eles foram expulsos de Por- tugal e de suas colônias em razão de conflitos políticos, deixando um enorme espaço que demorou a ser preenchido no Brasil. A educação só foi voltando a ser prioridade, aos poucos, com a vinda da família Real para o Brasil Colônia em 1808, pois trouxe consigo, além dos nobres, uma biblioteca com mais de 60 mil livros. Porém, a educação obvia- mente girou em torno das demandas da Corte, nos moldes de uma Educação Colonial. Com a independência do Brasil em 1822, algumas mudanças no contexto sociopolítico e econômico começaram a aparecer, inclusive em termos de política educacional, resultando na Constituição de 1824, a primeira Constituição Federal do Brasil, que, em relação à educa- ção, registra o compromisso em assegurar uma instrução gratuita e básica a todos os cidadãos. No entanto, durante um longo momento da história, a titularidade de cidadão – e, com isso, a educação – era restrita a uma pequena par- cela da população: aqueles que eram livres e libertos. O efeito desse modelo de educação, evidenciando que o nível de escolarização e o tipo de educação oferecido à população está fortemente atrelado ao “O período de Educação Colo- nial abarca, de forma articulada mas não homogênea ou harmô- nica, antes dialeticamente, esses três movimentos representados pela colonização propriamente dita, ou seja, a posse e exploração da terra subjugando os seus ha- bitantes (os íncolas); a educação enquanto aculturação, isto é, a inculcação nos colonizadores das práticas, técnicas, símbolos e valores próprios dos coloniza- dores; e a catequese entendida como a difusão e conversão dos colonizados à religião dos colonizadores” (SAVIANI, 2011, p. 29, grifos nossos). Saiba mais A Constituição Brasileira é o documento que rege a nação. A primeira e também a que teve a maior vigência na história do país foi a de 1824, tendo sido revogada com a Proclamação da República do Brasil, em 15 de novembro de 1889. Saiba mais Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 11 contexto econômico e ao momento histórico vivenciado pelo país, ficou evidente no primeiro censo de que se tem registro. Com a realização do primeiro Censo Nacional, ocorrido em 1872 e denominado Recenseamento da População do Império do Brasil, consta- tou-se que a taxa de analfabetismo era de 82,3% da população total (livre e escrava) (IBGE, 2020). Desse modo, a Constituição Brasileira, até então, fazia sentido para menos de 20% da população. Consegue perceber o porquê de, em uma abordagem sobre a Edu- cação de Jovens e Adultos, ainda estarmos falando tanto da história do Brasil? Com a Lei Saraiva, de 1882, a escolarização passa a se tornar critério para a participação da vida pública e eleitoral, impulsionando a busca pela alfabetização. Já a Constituição de 1891 associa a ideia de alfabe- tização ao voto, ou seja, essa constituição estabeleceu o sufrágio uni- versal masculino para todos os brasileiros alfabetizados maiores de 21 anos de idade, com voto a descoberto. A associação, no entanto, teve efeito reverso: em vez de investir na instrução do povo ampliando o conceito de alfabetização, muitos polí- ticos insistiam em dizer que as pessoas deveriam apenas desenhar o próprio nome para poder votar. Disso nasceu um dos primeiros con- ceitos de alfabetizado, reduzindo a característica à ideia de que, para sê-lo, bastaria saber escrever ou assinar o próprio nome ao votar. Nas décadas seguintes, muitos movimentos se empenharam na luta contra o analfabetismo. A pressão trazida pela crescente urbani- zação e a necessidade de formação mínima da mão de obra para os primórdios da indústria impulsionaram as grandes reformas educa- cionais do período. Com a Revolução de 1930, a sociedade brasileira passa por grandes transformações decorrentes do processo de industrialização, iniciando um processo de reformulação da função do setor público no país e mo- dificando, assim, alguns regimentos no que se refere ao ensino, o que gerou a necessidade de se pensar em um ensino também para adultos. Com a promulgação da Constituição de 1934, foi previsto o ensino obrigatório tanto para crianças quanto para adultos. Nessa promulga- ção, foi mencionado igualmente o direito do estudante ao livro didático e ao dicionário de Língua Portuguesa. Sufrágio universal masculino é o direito – destinado somente aos homens livres ou libertos alfa- betizados e maiores de 21 anos de idade – de votar e de exercer opinião na vida pública do país. Saiba mais 12 Educação de Jovens e Adultos Em 1934, a Constituição reconheceu, pela primeira vez em caráter nacional, a educação como direito de todos (artigo149), surgindo a ideia de se oferecer educação básica também para jovens e adultos que não eram alfabetizados ou que não haviam frequentado a escola anteriormente. O Plano Nacional de Educação formulado entre os anos de 1936 e 1937 já previa o ensino supletivo, mas não chegou a ser votado de- vido à instituição do Estado Novo, com a promulgação da Constitui- ção de 1937, também conhecida como Constituição do Estado Novo, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas e que implanta o regime militar no Brasil. A divulgação de que 55% dos brasileiros com mais de 18 anos (ou seja, mais da metade) ainda não tinham sido alfabetizados – dados obtidos do Recenseamento geral de 1940 – despertou o país para a necessidade de se ofertar escolarização para população adulta. Im- pulsionado igualmente por campanhas de alfabetização propostas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aos países com grandes desigualdades sociais, o projeto de implantação de uma rede de ensino primário supletivo para adultos não alfabetizados ganhou força. A ideia de ensino supletivo foi fortalecida ao se relacionar a ideia de recuperar o tempo perdido com um ensino aligeirado, sem, no entanto, haver uma preocupação com a qualidade. Durante muitos anos, o en- sino supletivo foi associado à ideia de educação de adultos, e, por isso, muitas pessoas se referem à EJA como o EJA – o ensino supletivo, ou o Ensino para Jovens e Adultos. Hoje, educadores e pesquisadores fazem um esforço para consolidar a EJA como modalidade educativa, com es- pecificidades reconhecidas que buscam uma educação para adultos de qualidade, sugerindo que o termo educação é muito maior que ensino e desvinculando a ideia de ensino supletivo da EJA. Com o fim da Era Vargas – período compreendido entre os anos de 1930 e 1945 – e a partir do ano de 1945, o país vivia a efervescência política da redemocratização e, com isso, a urgência de proporcionar instruçãomínima à população. Mas não se engane, pois o principal ob- jetivo não era oferecer uma educação sólida. O que se precisava era aumentar as bases eleitorais para a sustentação do governo central e, sobretudo, incrementar a produção. Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 13 Para isso, em 1947 foi lançada a primeira grande Campanha de Edu- cação de Adultos, idealizada por Lourenço Filho e inspirada no método de Laubach (s.d.), que se fundamentava nos estudos de psicologia ex- perimental realizados nos Estados Unidos em décadas anteriores. Na fase que precedeu a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4.024/1961), ocorreu um grande movimento em torno de campanhas de alfabetização em massa e em defesa da es- cola pública, universal e gratuita, o que fora interrompido com o regime militar de 1964. Foi a Constituição de 1988 que deu ao poder público a forma como o conhecemos até hoje, criando os estados e possibilitando a descen- tralização política. Com a Constituição de 1988, o dever do Estado com a EJA é ampliado ao determinar, conforme redação do artigo 208, uma das principais diretrizes para a EJA, que: “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria” (BRASIL, 1988). A partir de 1988, com as políticas de descentralização, viabilizam-se parcerias entre organizações da sociedade civil e o Estado nos mais diversos níveis, com o objetivo de definir e executar as políticas sociais e municipalizar as ações da União nas diversas áreas, como saúde, edu- cação e assistência social. Em outras palavras, não se teve um projeto educacional unificado, ficando a cargo de cada estado e de cada mu- nicípio a criação e a oferta de seus sistemas de educação. Como a EJA não entrava nos orçamentos públicos, pouco se efetivou em termos de políticas públicas voltadas a ela. Isso perdurou até que, no ano de 1996, é aprovada a Lei de Diretri- zes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.694), que reconhece a EJA como modalidade educativa da Educação Básica, trazendo avanços em relação à sua oferta. No início dos anos 2000 são lançadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Parecer CNE/CEB n. 11/2000 e Resolução CNE/CEB n. 1/2000), que, junto com outros documentos oficiais, rege a oferta dessa modalidade de educa- ção, garantida por lei como um direito de todos, independentemente de idade. 14 Educação de Jovens e Adultos A mudança do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) – que abarcava somente o Ensino Fundamental – para a criação do Fundo de Manu- tenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) – que passa a ampliar o conceito de Educação Básica. Essa mudança não foi somente de sigla, pois, com a EJA sendo incorporada à LDB como uma etapa da Educação Básica, as matrículas e os recursos destinados a ela passam a contabilizar nesse fundo, ampliando, dessa forma, a oferta para essa modalidade que vai se consolidando em especificidades e como campo de estudos. 1.2 As principais campanhas de alfabetização de adultosVídeo Anteriormente, vimos que a ideia de alfabetização ficou durante muito tempo atrelada à ideia de escrever ou desenhar o próprio nome. Com a necessidade crescente de alfabetização, as campanhas de alfa- betização de adultos ganharam impulso. Umas das primeiras grandes campanhas de educação de adultos de que se tem registros no país foi lançada em 1947 e inspirada nos princí- pios do educador missionário protestante norte-americano Frank Char- les Laubach, que, a convite de Lourenço Filho, esteve no Brasil. Laublach proferiu palestras e inspirou o movimento de alfabetização de adultos, que contemplava desde a alfabetização intensiva, com duração de três meses, passando pelo curso primário, que era dividido em dois perío- dos de sete meses, e culminando na etapa final, denominada ação em profundidade, voltada à capacitação profissional e ao desenvolvimento comunitário. Essa metodologia ficou conhecida como Método Laubach de alfabetização, a qual apresentava os seguintes princípios: Construir a educação de jovens e adultos a partir dos conhecimentos já existentes, cabendo ao educador a tarefa de ajudá-los a compor novos conhecimentos. Oferecer oportunidades e incentivos aos alfabetizandos porque todos são capazes de aprender. Como percebemos ao longo desta seção, durante um extenso período, a educação no país foi destinada a uma pequena parcela da popula- ção. Por que isso aconteceu e qual relação podemos estabelecer com a questão do desenvolvimento da ideia de uma educação voltada a atender aos jovens e adultos? De quais jovens e adultos estamos falando nesse contexto? Atividade 1 Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 15 Despertar no alfabetizando o interesse por assuntos que fazem parte do cotidiano dele para que possa estabelecer relações entre o conhecido e o novo. Incentivar o alfabetizando sempre, mesmo que ele erre, observando que as correções devem ser feitas de modo a motivá-lo a novas tentativas. Elogiar com palavras de ânimo e conscientização são pontos relevantes da proposta laubachiana. Manter entre o educador e o alfabetizando, antes de tudo, uma relação de amizade, na qual a confiança e o preparo fazem a grande diferença. Utilizar material de apoio com as necessárias adaptações às atividades que estão sendo propostas em sala de aula. Propor um caminho direcionado à escrita e à leitura sem grandes dificuldades e abstrações para que o alfabetizando sinta-se capaz quanto aos desafios, já que ele conseguirá ler palavras e até um pequeno texto na primeira aula. Orientar o processo de construção e compreensão da linguagem oral e escrita, veiculando o significado e a representação do objeto, acompanhado pelo domínio dos mecanismos do ler e do escrever, evidenciando, dessa forma, que se deve trabalhar, primeiramente, o significado do conhecimento. Criar condições para o reconhecimento do caminho mais lógico da leitura, para, a partir desse estágio, elaborar outros caminhos. Partir sempre do conhecido para o desconhecido, do geral para o particular. 16 Educação de Jovens e Adultos Respeitar as diferenças individuais e o ritmo próprio de aprendizagem de cada alfabetizando. Ensinar os alfabetizandos em diferentes estágios é um ganho, não um problema. Oferecer o melhor para os alfabetizandos em todos os aspectos; porém, se não houver material didático ou instalações disponíveis, deve-se alfabetizar com os recursos que possui e em qualquer lugar ou circunstância. Lembrar que não importa a idade, pois todos os alfabetizandos podem aprender. Fonte: Soek, 2009. Conforme o exposto por Laubach, o adulto não alfabetizado não deixa de ser uma pessoa instruída pelo fato de não saber ler e escrever; ele apenas não teve acesso ao conhecimento formal. Para o autor, “pro- mover a alfabetização é mudar a consciência da pessoa, reintegrando-a ao meio em que vive e colocando-a no mesmo plano de conhecimento de direitos humanos fundamentais” (LAUBACH, s.d.). Nesse período, para impulsionar a Campanha de Educação de Adul- tos, foram rapidamente criadas várias escolas supletivas, mobilizadas pelos esforços das esferas administrativas e de diversos profissionais e voluntários. Nessa época, também foi criado, pela primeira vez no Brasil, um material didático específico para o ensino da leitura e da escrita voltado aos alunos adultos. O Primeiro guia de leitura, distribuído pelo Ministério da Educação em larga escala para as escolas supletivas do país, orientava o ensino pelo método silábico. Consistia no uso de uma cartilha padronizada, com lições de ênfase na organização fonética das palavras. As lições partiam de palavras-chave selecionadas eorganizadas segundo as características fonéticas. A função dessas palavras era remeter aos padrões silábicos, como foco de estudo. As sílabas deveriam ser memorizadas e remontadas para formar Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 17 outras palavras. As primeiras lições também continham pequenas frases montadas com as mesmas sílabas. Nas lições finais, as frases compunham pequenos textos contendo orientações sobre preservação da saúde, técnicas simples de trabalho e mensagens de moral e civismo. (RIBEIRO, 2001, p. 29) De acordo com Soek (2009), a avaliação da Campanha de Educação de Adultos mostrou-se vitoriosa em sua primeira década, pois, além da ampliação das classes e escolas, possibilitou a elevação da taxa de alfabetização. Porém, com a descentralização crescente, as verbas das campanhas foram se extinguindo, ficando cada vez mais dependentes de doações e do trabalho de voluntários da base popular. Nesse contexto, os trabalhos de alfabetização de adultos liderados por Paulo Freire, que na época era diretor do Sesi em Pernambuco, ganham notoriedade. Grande parte dos métodos de Paulo Freire e de Laubach se assemelha, além de terem tido origem no mesmo estado e em um mesmo período. A partir dos anos 1960, os movimentos pela educação popular, que envolviam igreja, partidos políticos de esquerda, estudantes e outros setores, inspirados pela proposta de alfabetização de adultos de Freire – que passa a incorporar essa perspectiva político-cultural e um outro entendimento da relação entre a problemática educacional e a problemática social –, ganham impulso e notoriedade até serem interrompidos com o Golpe Militar de 1964. Os programas de educa- ção popular dessa época tinham forte conotação política e, em certo ponto, até revolucionária. Paulo Freire partia de uma ideia problematizadora da condição de oprimido – ideia divulgada em vários de seus livros e que explicitava a concepção marxista de educação na relação oprimido x opressor – e da chamada educação bancária, evidenciada por ele como um sistema de ensino que considerava o analfabeto alguém que não possui cultura ou conhecimento, uma espécie de banco no qual o educador deveria de- positar o conhecimento. Nesse sentido, o proposto por Freire pratica- mente invertia os métodos de ensino praticados até então, tornando-se uma proposta altamente relevante ao dar voz e vez aos educandos e possibilitando novas relações dialógicas na aprendizagem, que conti- nuam influenciando as propostas pedagógicas até os dias atuais. Paulo Reglus Neves Freire nasceu em setembro de 1921, em Recife, Pernambuco. Foi inspiração da educação popular e tornou-se referência para gerações de educadores. Sofreu a perseguição do regime militar no Brasil, sendo preso e forçado ao exílio. Sua mais famosa ex- periência de alfabetização é a de Angicos (Rio Grande do Norte), que, em 45 dias, alfabetizou cerca de 300 trabalhadores, com uma perspectiva de educação questionadora/liber- tadora que mais tarde veio a se chamar Metodologia de Palavras Geradoras. Biografia Para saber mais sobre os efeitos da experiência de Paulo Freire em Angicos, vale a pena conhecer o livro Ensinar e Aprender com Paulo Freire: 40 horas 40 anos depois, em que a pesquisadora Nilcéia Lemos Pelandré volta a Angicos para investigar os efeitos dessa alfabeti- zação/letramento com o grupo alfabetizado na experiência, contando como foi esse curso de 40 horas e o que signi- ficou, para os alfabeti- zandos, participar desse processo de alfabetização de adultos. PELANDRÉ, N. L. São Paulo: Cortez, 2009. Livro 18 Educação de Jovens e Adultos O método de alfabetização que antes tinha ênfase na palavra escrita passa, então, a buscar seus significados nos saberes orais e locais dos alfabetizandos, dos quais se originavam os conteúdos de ensino. Daí ganha sentido a celebre frase de Freire: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 2011, p. 16). A crítica às propostas anterio- res dizia respeito ao fato de que o método praticado com as cartilhas era uma forma de alienar a população, não permitindo aos alfabetizan- dos dizerem suas palavras, e não valorizava esses saberes locais, sendo a grande maioria uma cartilha única para todas as regiões do país. Nesse período, foram produzidos diversos materiais para a alfabeti- zação de adultos orientada pelos princípios que Paulo Freire, que pro- curava expressar o universo vivencial dos alfabetizandos de cada região ou contexto com base em seus problemas reais e até existenciais. Em janeiro de 1964, orientado pela proposta de Paulo Freire, foi aprovado o Plano Nacional de Alfabetização. O plano previa a amplia- ção de programas de educação de adultos por todo o Brasil, contando, em grande parte, com educadores populares e forte engajamento de estudantes, sindicatos, movimento rural e diversos grupos estimulados pela efervescência política da época. A preparação do plano foi inter- rompida alguns meses depois pela instituição do regime militar. A partir do ano de 1964, com a repressão direta sobre os educado- res envolvidos com a educação popular proposta por Paulo Freire, a educação básica para jovens e adultos volta para as mãos do governo. Nesse momento, houve várias mudanças no campo das políticas so- ciais e, em especial, na educação de adultos. Com o reordenamento político, os movimentos de alfabetização de base popular foram proibidos e alguns livros utilizados nos programas de alfabetização foram confiscados por serem considerados de teor comunista e uma ameaça à ordem instalada pelo poder militar. Paulo Freire fora exilado em outros países, o que contribuiu para a dissemi- nação de suas ideias em outros contextos. Em 1967, o governo militar assumiu o controle da atividade de al- fabetização, lançando o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). No modelo de alfabetização proposto pelo MOBRAL, as técnicas utilizadas no processo de alfabetização consistiam em codificações de palavras preestabelecidas, escritas em cartazes com as famílias foné- MOBRAL é um programa de alfabetização de adultos criado durante o regime militar, tendo como objetivo geral erradicar o analfabetismo e possibilitar a educação continuada de jovens e adultos. Importante Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 19 ticas, quadros ou fichas de descoberta, muito próximas às metodo- logias anteriormente utilizadas no modelo de Paulo Freire, mas com uma diferença primordial: tanto as palavras quanto as fichas de codi- ficações eram elaboradas da mesma forma para todo o Brasil e com base em problemáticas sociais particulares do povo. Conforme explica Soek (2009), tratava-se fundamentalmente de ensinar a ler, a escrever e a contar, deixando de lado a autonomia e a conscientização crítica e transformadora da linha iniciada por Paulo Freire. Segundo a autora, para que os objetivos do programa fossem atin- gidos, foram criados materiais didáticos constituídos de livro-texto, livro-glossário, livro para exercitar o cálculo, livro do educador e um conjunto de cartazes. Este material foi modificado em 1977 e passou a ser chamado Conjunto Didático Básico. A capacitação dos educadores (também chamados de monitores ou educadores não profissionais) pautava-se na ideia de que o recurso da utilização de pessoas pertencentes à comunidade geral para ensinar aos que sabiam menos era válido, legítimo, natural, além de grande opção para países ou regiões com escassez de recursos humanos qua- lificados. O que se faz, então, para eliminar os problemas decorrentes dessa decisão? Entendia-se que um bom material didático, acompanha- do de um manual-guia para o educador que tivesse um “treinamento” e seguisse as recomendações didáticas, bastaria para a qualidade do trabalho pedagógico vinculado ao processo de alfabetização. Essa concepção deriva do modelo tecnicista, influência recebida dos EUA e das pesquisas behavioristas baseadas nos mecanismos de estímulo-respostapropostos por Skinner. O MOBRAL teve pouco mais de uma década de duração e, com o passar dos anos, ficou desacreditado nos meios políticos e educacio- nais. Com a recessão dos anos 1980, foi perdendo financiamento e es- paço para ser realizado. Em um certo momento, dizer para uma pessoa “fazer MOBRAL” se tornou motivo de chacota, e a fala era carregada de preconceitos em relação às pessoas que passaram pelo processo, tal era a marca de alienação deixada. Em 1985 foi criada a Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos, denominada Fundação EDUCAR, que basicamente substituiu o MOBRAL. No modelo tecnicista, o ensino é representado por padrões de comportamento, que podem ser mudadas através de treinamentos. A aprendiza- gem consiste num arranjo e planejamento de continências de reforços (elogios, graus, notas, prêmios, reconhecimento do mestre e dos colegas, prestígios). Saiba mais 20 Educação de Jovens e Adultos A Fundação EDUCAR dava apoio técnico e financeiro a empresas e ONGs para ações de educação de adultos, não havendo, nesse período, uma unidade de esforços do governo para a alfabetização de jovens e adultos. Havia, portanto, uma retirada das ações do Estado tanto em relação à alfabetização quanto à continuidade de estudos relativos à Educação de Jovens e Adultos. A Fundação EDUCAR já não conseguia executar diretamente os pro- gramas educacionais e, por isso, passou a apoiar financeira e tecnica- mente as iniciativas de organizações não governamentais, entidades civis e empresas conveniadas, incentivando, dessa forma, o surgimento de muitas ONGs. No início da década de 1990, o Programa Alfabetização Solidária (PAS), baseado nos mesmos moldes da Fundação EDUCAR, passa a contar com recursos do governo e ganha visibilidade como Programa de Alfabetização. O programa tinha como proposta inicial atuar na al- fabetização de jovens e adultos nas regiões Norte e Nordeste do país, mas conseguiu abranger quase todas as regiões, chegando a atuar, in- clusive, em alguns países da África. Uma das publicações oficiais resume o modelo de parceria adotado pelo PAS: Um modelo simples de atuação, desenvolvido a partir do Conse- lho da Comunidade Solidária, permite que o custo mensal para a manutenção de um aluno do Programa Alfabetização Solidá- ria seja de somente R$ 34,00, ao longo de um semestre. Esse valor é dividido entre os parceiros, empresas ou pessoas físicas, e o MEC. Cada parte contribui com apenas R$ 17,00 por mês, o equivalente a cerca de dois ingressos em cinemas das grandes capitais brasileiras. (BRASIL, 2003, p. 4) Apesar dos esforços, as ações do PAS não passaram de programas ou projetos de curta duração e sem continuidade. Boa parte, com a mudan- ça de governo, foi extinta, modificada ou simplesmente deixou de existir. Ao perder força, o PAS passou a se chamar somente Alfabetização Solidária (AlfaSol), transformando-se em uma ONG que continuou a atender os alfabetizandos por meio de recursos provindos de parceiros, principalmente de programas como o Programa Brasil Alfabetizado, criado no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desenvolvido por iniciativa do Governo Federal quando deu continuidade, novamen- te, às ações e ao financiamento contra o analfabetismo. Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 21 No Programa Brasil Alfabetizado, são retomadas as ações contra analfabetismo. Além de estímulos aos programas de alfabetização, há um grande esforço para dar seguimento à escolarização para além da alfabetização, forçando municípios e estados a ampliarem a oferta da EJA. Nesse período, são retomados os investimentos em livros didáti- cos destinados especificamente para a alfabetização de jovens e adul- tos, sendo a primeira vez que a EJA passa a fazer parte do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) do Ministério da Educação, que, no ano de 2010, por meio do Programa Nacional de Livros Didáticos para Alfabetização de Adultos (PNLA), avaliou e posteriormente distribuiu os livros destinados à alfabetização de adultos. Em âmbito geral, após o reconhecimento da EJA como modalidade da Educação Básica pela LDB (Lei n. 9.694/1996) e os investimentos do Programa Brasil Alfabetizado – que gerava demanda de oferta da EJA na Educação Básica e prosseguimento nos estudos –, o que vimos acontecer foi uma ampliação para oferta da EJA não só como alfabetização ou escola- rização básica, mas também estendida aos níveis fundamental e de ensino médio, nos exames de suplência e, mais tarde, na oferta de ensino profis- sionalizante e de estímulo ao acesso ao ensino superior, por intermédio de programas de cotas e de financiamento estudantil. Nesse período, passam a articular-se movimentos que dão origem aos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos, organizados regionalmen- te ou por estados, culminando na criação dos Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (Enejas), que visavam pressionar o go- verno a retomar as discussões sobre a EJA na qualidade de políticas pú- blicas, e não somente enquanto programas assistenciais de educação pontual, como até então vinham sendo tratados. A partir desses marcos, outras iniciativas ocorridas no Brasil mere- cem destaque, como: o Projeto Escola de Fábrica, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem) e o Programa de Integração da Educa- ção Profissional ao Ensino Médio para Jovens e Adultos (Proeja). Além desses, o Programa Fazendo Escola e a ampliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), voltados inclusive à EJA, também merecem des- taque. Assim, temos momentos de intensiva expansão, apoio e recursos específicos aos programas destinados à EJA. Nesta seção, é possível esta- belecer algumas relações com as políticas de alfabetização de adultos implementadas antes, durante e após o Plano Nacional de Alfabetização proposto por Paulo Freire. Desse contexto, vimos nascer e florescer as concepções pedagógicas do pensamento freiriano. Relacione os fatos históricos ocorridos nesse momento à importância nacional de Paulo Freire. Atividade 2 22 Educação de Jovens e Adultos 1.3 EJA na atualidade: legado e direitos Vídeo A partir da promulgação da Constituição Brasileira do ano de 1988, o dever do Estado em relação à Educação de Jovens e Adultos é amplia- do com a conquista da garantia do direito público subjetivo à educação expressa neste documento. No ano de 1990, é realizada a Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia. Essa conferência foi mais um marco histórico para a EJA, pois explicitou a dramática realidade mundial de pessoas jovens e adultas em situação de analfabetismo, bem como propôs maior equidade social nos países mais pobres e populosos do mundo na tentativa de garantir maiores direitos a essa população. Esse mesmo ano é considerado pela Unesco como Ano In- ternacional da Alfabetização, repercutindo a necessidade de amplia- ção das políticas em torno da alfabetização. Impulsionada por essas recomendações internacionais que reitera- ram a educação como um bem coletivo e ao qual todas as pessoas de- veriam ter acesso, a V Conferência Internacional de Educação de Adultos ( Confintea), realizada em 1997, em Hamburgo, Alemanha, comprometeu os países que fizeram parte do documento que ficou conhecido como Declaração de Hamburgo. Assim, as políticas de EJA se voltaram para além da alfabetização, passando a fazer sentido falar de aprendizagem ao longo da vida, pois já não bastava saber ler e escrever, era preciso continuar a aprender. É dessa conferência que sai a ideia de que o de- senvolvimento deve ser centrado no ser humano e na existência de uma sociedade participativa, baseada no respeito integral aos direitos huma- nos, e de que só assim teremos um desenvolvimento justo e sustentável. O envolvimento do Brasil com a V Confintea foi tanto que a sexta edição dessa Conferência foi realizada aqui, no ano de 2009, na cidade de Belém. A VI Conferência tinha por objetivo reavaliaros principais pontos e reafirmar os compromissos assumidos desde o último evento. A partir de então, foram intensificadas em todo o mundo as discussões sobre a alfabetização e a necessidade da progressiva escolarização de pessoas adultas, da mesma forma como uma série de ações têm cha- mado a atenção do mundo sobre problemas internacionais cruciais nas áreas de alimentação, saúde e educação. O renomado professor Miguel Arroyo, em seu livro Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa, expõe os principais legados da EJA ao analisar como ela foi constituída historica- mente. ARROYO, M. Petrópolis: Vozes, 2017. Livro Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 23 Para Arroyo (2001; 2017), tanto a constituição histórica das lutas de- marcadas pela EJA, na condição de educação popular, quanto todas as especificidades que ela carrega trazem em si alguns traços e legados que continuam muito atuais para os debates educacionais não só em torno da EJA, mas em relação a todas as formas de educação no país. Segundo o autor, A educação popular, a EJA e os princípios e as concepções que as inspiraram na década de sessenta continuam tão atuais em tem- pos de exclusão, miséria, desemprego, luta pela terra, pelo teto, pelo trabalho, pela vida. Tão atuais que não perderam sua radi- calidade, porque a realidade vivida pelos jovens e adultos popu- lares continua radicalmente excludente. (ARROYO, 2001, p. 223) Mais um legado que a EJA traz é a marca de sua condição humana ao olhar primeiro para os educandos. Arroyo (2017) afirma que podemos mudar os nomes pelos quais chamamos esses indivíduos. No entanto, a condição humana desses sujeitos e suas possibilidades de desenvolvi- mento continuaram as mesmas ou piores. Para ele, “não aumentou ape- nas o número de analfabetos, mas de excluídos. E não apenas dos jovens e adultos, mas de infantes e adolescentes analfabetos também” (ARROYO, 2017, p. 20). Outro aspecto trazido pela EJA é o reencontro com as concepções humanistas de educação. Para Arroyo (2001), a EJA popular traz esse legado ao recuperar a concepção moderna de educação como direito humano e aproximar-se do campo dos direitos, que seria outro traço da herança da EJA, culminando, finalmente, no último aspecto: a edu- cação como direito humano. Temos de reconhecer que muitas experiências de EJA acumula- ram uma herança riquíssima na compreensão dessa pluralidade de processos, tempos e espaços formadores. Aprenderam me- todologias que dialogam com esses outros tempos. Incorporam nos currículos dimensões humanas, saberes e conhecimentos que forçaram a estreiteza e rigidez das grades curriculares esco- lares. (ARROYO, 2001, p. 228) Por um lado, temos os avanços mais relevantes como legislação para EJA, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394, em 1996, que reconhece a EJA como uma modali- dade educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio, e a incorporação da EJA no Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que garante recursos próprios para oferta de EJA, criando um estímulo à expansão da oferta e de matrículas. O filme Central do Brasil, de Walter Salles, retrata a questão do analfabetismo no Brasil e de como as pessoas adultas não es- colarizadas “se viram” em contextos que as obrigam recorrer à escrita. Essa obra é um dos filmes bra- sileiros que mais recebeu premiações, incluindo duas indicações ao Oscar, como melhor filme es- trangeiro e melhor atriz, sendo essa a primeira vez que uma atriz brasileira recebeu indicação. SALLES, W. Brasil: Bretz Filmes, 1998. Filme 24 Educação de Jovens e Adultos E, por outro lado, como explicado por Arroyo (2001; 2017), temos um legado muito maior em termos de ideário educacional, que vai além das legislações e normativas técnicas da EJA. Esse legado diz respeito aos avanços da EJA em termos de busca por direitos huma- nos básicos. No âmbito internacional, os resultados dos debates em torno da EJA para além de uma modalidade de Educação Básica ganham refor- ços no sentido de se ampliar o conceito de educação de adultos para uma educação que abarca o mundo profissional e para um conceito de educação realizada ao longo da vida, incorporando debates forma- tivos, profissionalizantes e de educação, com problemáticas voltadas, inclusive, à terceira idade. Em alguns contextos, é comum e até usual ver a sigla EJAI, que contempla educação voltada para jovens, adultos e idosos. Por isso, como mencionado por Arroyo (2001; 2017), para além dos aspectos e avanços formais nas políticas públicas para EJA, seu legado histórico estende-se ao se consolidar como um campo de lutas por di- reitos fundamentais, vinculados aos processos de humanização, liber- tação e emancipação humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, por meio do contexto histórico da EJA no Brasil, foi pos- sível perceber como as histórias individuais marcadas pelas dificuldades de acesso à escolarização estão relacionadas à história do país quanto à oferta de educação como política pública de amplo acesso e de condições de permanência e de qualidade de ensino. Essas marcas históricas nos ajudam a compreender que, para além do seu legado de lutas pelo direito humano à educação, muitas outras problemáticas perpassam a questão da Educação de Jovens e Adultos. É importante que você compreenda que a EJA não é constituída ape- nas das campanhas ou dos métodos de alfabetização de adultos ofere- cidas ao longo da história, mas, como pudemos perceber, ela engloba outros legados e temas igual e socialmente relevantes. Ao longo deste capítulo, você percebeu a ênfase em diferenciar a Educação de Jovens e Adultos, uma modalidade de educação básica, do ensino supletivo para jovens e edultos. Por que essa diferenciação é tão importante nos meios educacionais? Atividade 3 Origem da Educação de Jovens e Adultos no Brasil 25 REFERÊNCIAS ARROYO, M. G. Educação de Jovens e Adultos em tempos de exclusão: alfabetização e cidadania. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, São Paulo: RAAAB, n. 11, p. 9-20, 2001. ARROYO, M. G. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: [s.n.], 1988. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF: 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394. htm. Acesso em: 11 maio 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF: MEC/SEF, 2000. BRASIL. Programa Alfabetização Solidária. Trajetória seis anos. Brasília, DF: Conselho da Comunidade Solidária, 2003. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sínteses Históricas. Rede de Memória do IBGE, 2020. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/sinteses-historicas/historicos- dos-censos/censos-demograficos.html. Acesso em: 11 maio 2020. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. LAUBACH, F. C. Os milhões silenciosos falam. s. l., s.e., s.d. RIBEIRO, V. M. (org.). Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado das letras; São Paulo: Ação Educativa, 2001. SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2011. SOEK, A. M. Aspectos contributivos do manual do livro didático do PNLA/2008 na formação do alfabetizador do programa Brasil alfabetizado. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. GABARITO 1. Para responder esta questão, você deve refletir sobre o paralelo estabelecido entre a história do país e o desenvolvimento da história da EJA, que procura atender aos anseios sociais de demanda de mão de obra na proporção com que o paísvai se desenvolvendo. É necessário entender que, no Brasil, a demanda por escolarização de jovens e adultos sempre esteve atrelada à necessidade de formação de mão de obra a depender de cada contexto. Isso levou a uma escola seletiva e excludente, pois mesmo as demandas da EJA eram direcionadas a determinados grupos sociais que participavam da vida política e econômica do Brasil, excluindo, em alguns momentos, as mulheres (no caso do sufrágio universal). O fato de grande parte de essa seletivi- dade ter ocorrido em nosso país deve-se a um modelo de educação colonial, cujos interesses giravam em torno dos interesses da corte portuguesa e das suas deman- das. Nesse sentido, participavam da vida do país, em grande parte, adultos livres ou libertos e que exerciam o direito ao voto, logo as demandas por educação alcançavam basicamente essa população. 2. Para responder esta questão, é preciso relacionar o surgimento das ideias de Paulo Freire em um momento de efervescência política que precede a ditadura militar e o fato de ele ter sido exilado em outros países, o que contribuiu para disseminar suas ideias. A experiência de Angicos também é tida como referência desse momento. 26 Educação de Jovens e Adultos 3. A EJA tem expressivos avanços conceituais ao se tornar parte da educação básica, e que não é mais válido falar em Ensino Supletivo, ideia carregada dos estigmas de um ensino aligeirado e sem qualidade e que traz, também, as marcas históricas de ser oferecido de maneira ampla à população brasileira como forma de diminuir as taxas de analfabetismo e aumentar os índices de escolarização da população brasileira. Por isso, é importante também diferenciar a sigla a EJA, que pressupõe que a pessoa que a usa entende essa diferenciação, de o EJA, que traz traços de senso comum, como se o ensino de EJA, aligeirado, fosse só para resolver um problema de certificação e não de acesso à educação. A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 27 2 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa Você provavelmente já se deparou com aqueles anúncios que prometem conclusão dos estudos em seis meses ou certificação de ensino médio fácil e rapidamente. Em toda família deve haver alguém que busca esse tipo de atalho e sempre tem dúvidas so- bre como funcionam essas certificações via Educação de Jovens e Adultos (EJA). A primeira questão que precisa ficar bem clara é que não existe atalho, o que existe são formas de direito assegu- rado para se completar a escolarização básica a qualquer tempo, como vamos ver neste estudo. Essa história de concluir os estudos de maneira rápida quase sempre esconde armadilhas. Note que, no senso comum, todo mundo tem uma opinião do tipo “ouvi dizer”, mas os profissionais da área precisam saber exatamente como funcionam e por que as coisas são como são na oferta e nas formas de organização dessa modalidade de educação. Neste capítulo, vamos entender o que faz da EJA uma moda- lidade específica dentro do sistema de organização da educação básica brasileira. Vamos conhecer seus fundamentos e suas fun- ções e como está organizada, na atualidade, a oferta dela no Brasil. Também vamos entender um pouco melhor as especificidades, os modos de funcionamento psicológico, cognitivo e de aprendiza- gem de jovens, adultos e idosos, pois a EJA é pensada para essas pessoas e precisamos entender as diferenças fundamentais em relação à educação pensada para as crianças. 28 Educação de Jovens e Adultos 2.1 Fundamentos e funções da EJA Vídeo A legislação atualmente em vigor no Brasil, que rege tanto a EJA quanto outros aspectos gerais da Educação Nacional e representa a maior e mais expressiva lei da educação, é a Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional (LDB), Lei n. 9.394 de dezembro de 1996. De acordo com essa lei, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade da educação básica nas etapas do ensino fundamental e médio e deve usufruir de uma especificidade própria que, como tal, precisa receber um tratamento consequente. Dito de outra maneira, além das adequações nas questões curriculares e de práticas pedagó- gicas, na organização e oferta dos cursos e certificações destinados à EJA, deve-se levar em conta as características, as aspirações e os inte- resses dos seus alunados. Também deve ser considerado o perfil de atendimento, visto que, em sua maioria, trata-se de alunos trabalha- dores ou que precisam adequar as demandas educacionais a outros compromissos da vida adulta, e essa é a principal diferença entre uma escola pensada para crianças e uma escola pensada para a EJA. Partimos dela para entender tanto o conceito como a organização e os níveis de ensino da EJA na atualidade. No título V da LDB é explicitada a organização por níveis e moda- lidades de educação e ensino. Em seu Capítulo II discorre-se sobre a educação básica, e, na seção V, diferencia-se o que é a Educação de Jovens e Adultos: Art. 37 – A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida. § 1° Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade re- gular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e trabalho, mediante cursos e exames. § 2° O poder público viabilizará e estimulará o acesso à perma- nência do trabalhador na escola, mediante ações integrada e complementares entre si. [...] Art. 38 – Os sistemas de ensino manterão cursos e exames suple- tivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 29 habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. § 1° Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão: I. No nível de inclusão do ensino fundamental, para os níveis de quinze anos; II. No nível de conclusão do ensino médio, para os maiores de dezoito anos. § 2° Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educan- dos por meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante exames. (BRASIL, 1996) Note que somente essa parte da LDB já geraria muito assunto e com certeza várias inquietações sobre como isso funciona na prática. Vamos entender cada detalhe. O artigo 37 da LDB (BRASIL, 1996) faz referência a todos aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na “idade própria”, caracterizando, assim, todo o universo da EJA com um público plural e heterogêneo. É considerada “idade própria” como idade escolar, ou seja, a idade de até 15 anos para concluir o en- sino fundamental e de 18 anos para a conclusão do ensino médio. No entanto, as Diretrizes Operacionais para EJA ( BRASIL, 2010) vão retomar essa discussão explicando que não há “idade própria” nem “idade esco- lar”, visto que podemos aprender em “qualquer idade” e frequentar es- colas em qualquer tempo e idade. No entanto, essa discussão, por mais que amplie o conceito de inclusão de todos na escola, não altera a ques- tão da idade de ingresso e para a realização dos exames na EJA. Já o artigo 38 diz respeito aos cursos e exames supletivos da EJA, que podem ser organizados no modo de educação regular, educação à distância ou para realização de exames supletivos. As Diretrizes Curri- culares Nacionais (BRASIL, 2000) orientam que os cursos e exames da EJA devem atender à base comum nacional e possibilitar o prossegui- mento de estudos devendo, inclusive, reconhecer as práticas de vida, bem como os conhecimentos e as habilidades dos educandos da EJA. Você conhece ou sabe como é a oferta da EJA e desses exames em seu estado ou município? Note que, além das legislações de caráter nacional, compreendem-se as legislações de caráter estadual e as leis orgânicas de cada município, pois eles gozam de autonomiae descen- tralização, podendo, assim, estabelecer uma normatividade própria e diferenciada para a educação, desde que não desrespeitem a legisla- ção maior – no caso, a Constituição Brasileira e as definições da Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional. 30 Educação de Jovens e Adultos As recomendações em termos de legislação, normativas e regula- mentações são amplas e direcionam para a necessidade de se bus- carem condições, alternativas, currículos e propostas pedagógicas adequadas à realidade das pessoas que buscam na EJA a retomada e a conclusão dos estudos. Um dos princípios fundamentais que rege a EJA está na Resolução CNE/CEB n. 1, de 5 de julho de 2000, que estabelece as Diretrizes Cur- riculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos e as normas a serem obrigatoriamente observadas na oferta e na estrutura dos com- ponentes curriculares de ensino fundamental e médio dos cursos de EJA. O documento conta também com orientações sobre as questões de idade mínima, certificação, avaliação e funções da EJA na tentativa de salvaguardar a questão de qualidade ao mesmo tempo em que ga- rante o acesso equitativo, a diferença e a proporcionalidade que lhes são características, como vemos a seguir: Parágrafo único. Como modalidade destas etapas da Educação Básica, a identidade própria da Educação de Jovens e Adultos considerará as situações, os perfis dos estudantes, as faixas etá- rias e se pautará pelos princípios de equidade, diferença e pro- porcionalidade na apropriação e contextualização das Diretrizes Curriculares Nacionais e na proposição de um modelo pedagógi- co próprio, de modo a assegurar: I – quanto à equidade, a distribuição específica dos componentes curriculares a fim de propiciar um patamar igualitário de forma- ção e restabelecer a igualdade de direitos e de oportunidades face ao direito à educação; II – quanto à diferença, a identificação e o reconhecimento da alteridade própria e inseparável dos jovens e dos adultos em seu processo formativo, da valorização do mérito de cada qual e do desenvolvimento de seus conhecimentos e valores; III – quanto à proporcionalidade, a disposição e alocação adequa- das dos componentes curriculares face às necessidades próprias da Educação de Jovens e Adultos com espaços e tempos nos quais as práticas pedagógicas assegurem aos seus estudantes identidade formativa comum aos demais participantes da esco- larização básica. (BRASIL, 2000) Já o Parecer CNE/CEB n. 11/2000 é o documento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA. Um dos aspectos mais importantes a ser abordado por essas diretrizes diz respeito aos fundamentos e às funções da EJA. No documento são explicitados os principais fun- Para conhecer a Reso- lução na íntegra e saber mais sobre as questões que abarcam as Diretri- zes Curriculares Nacio- nais para a Educação de Jovens e Adultos, você pode acessá-lo por meio do portal do MEC. Disponível em: http://portal. mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ CEB012000.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020. Documento Para conhecer na íntegra o documento do Parecer CNE/CEB 11/2000, você pode acessá-lo no portal do MEC. Disponível em: http://portal.mec. gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/ legislacao/parecer_11_2000.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020. Documento http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB012000.pdf http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB012000.pdf http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB012000.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/legislacao/parecer_11_2000.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/legislacao/parecer_11_2000.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/legislacao/parecer_11_2000.pdf A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 31 damentos e justifica-se que, ao considerar o perfil dos alunos e a sua faixa etária educacional, a EJA deve desempenhar as seguintes funções: reparadora, equalizadora e qualificadora. De acordo com as DCN (BRASIL, 2000), a função reparadora da EJA se articula com o pleito postulado por inúmeras pessoas que não ti- veram uma adequada correlação idade/ano escolar em seu percurso educacional, nem a possibilidade de prosseguimento de estudos. Nes- se momento, a igualdade perante a lei – objetivo da função reparadora – torna-se um novo ponto de partida para a igualdade de oportuni- dades. A função reparadora da EJA tem como propósito reparar esse direito negado anteriormente. Porém, não basta somente reparar, é preciso dar condições de equi- dade. Assim, a função equalizadora da EJA vai dar condições a trabalha- dores e a tantos outros segmentos sociais que fazem parte desse perfil de alunado. Para além do acesso, a reentrada desses alunos no sistema educacional traz junto a garantia de condições de permanência, possi- bilitando aos estudantes da EJA conciliar o estudo com seus outros afa- zeres, suas inserções no mundo do trabalho, bem como proporcionar condições de participação em vários aspectos da vida social. Para Soek (2009), a equidade, na EJA, é a forma pela qual os bens sociais são distribuídos visando maior igualdade dentro de situações específicas. Dessa forma, a EJA representa não só uma possibilidade de retomar os estudos, mas também oportunidades de desenvolvi- mento, independentemente da idade ou de questões de outra natu- reza. Essa é a ideia de equidade: dar condições mais justas a todas as pessoas, de modo que elas tenham acesso a novas formas de traba- lho e aos bens culturais. Para completar o rol das funções da EJA, a função qualificadora, de acordo com as DCN (BRASIL, 2000), é mais do que uma função, é o próprio sentido da EJA. A função qualificadora visa propiciar a todos a atualização de conhecimentos constantes, tendo, assim, um cará- ter permanente. Essa função contempla o caráter incompleto do ser humano, cujo potencial de desenvolvimento deve ser perseguido por toda a vida, e não somente nos anos escolares. Por isso, além dessas funções, é premissa da EJA considerar os sabe- res que os educandos já trazem consigo no momento em que retornam 32 Educação de Jovens e Adultos aos bancos escolares, potencializando, dessa forma, suas aprendiza- gens e otimizando o tempo escolar. Em síntese, as DCN da EJA apontam para a necessidade de que, ao se oferecer uma escola para jovens e adultos, ela deve assumir a função de reparar o dano histórico da falta de acesso ao direito à educação, permitindo a esse jovem/adulto o retorno à sala de aula. Igualmente, a escola deve contemplar o aspecto equalizador, possibilitando aos seus estudantes que eles voltem ao ponto em que pararam, sem qualquer prejuízo, potencializando, assim, a função precípua a ser desempenha- da pela escola de jovens e adultos, a responsabilidade de ser qualifica- dora. Dessa maneira, deve-se oferecer suporte e condições à formação permanente, ampliando as possibilidades de uma vida mais digna por meio da educação ao propiciar a atualização do conhecimento, aquele que vai acompanhar os alunos pelo resto de suas vidas. 2.2 Formas de oferta e organização da EJA Vídeo Cada sistema de ensino, seja ele municipal, estadual, federal ou particular, pode oferecer EJA e usar diferentes nomenclaturas para sua organização, mas todos devem observar e cumprir a carga horária mí- nima prevista em lei e seguir os fundamentos e princípios da EJA des- critos nos documentos legais e oficiais. Sendo modalidade de educação, a EJA vai, aos poucos, perdendo seu histórico de ensino supletivo aligeirado para consolidar-se como uma oferta de educação de qualidade, comprometida com seus propó- sitos e perfis de alunos a atender. De modo geral, podemos subdividir e organizar a oferta de EJA na educação básica nas seguintes fases ou etapas: alfabetização, ensino fundamental e ensino médio. A alfabetização de jovens e adultos geralmente é dirigida às pes- soas com 15 anos ou mais que nunca frequentaram a escola ou que não sejam alfabetizadas. Não existe uma idade limite para ingressar em programas de alfabetizaçãode jovens e adultos, o que demonstra o público plural e diversificado da EJA. Usualmente, os programas de alfabetização de jovens e adultos não certificam, eles são pensados como forma de acesso e de dar prosse- guimento a outras etapas de estudos. Esses programas são geralmen- As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos abordam, em seus aspectos mais essenciais, os fundamentos e as funções da EJA. Explique quais são essas funções e em que consistem. Atividade 1 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 33 te vinculados a outros projetos ou a algum programa nacional para a alfabetização de jovens e adultos que forneça os recursos necessários à sua execução. Já que não é necessário certificação, não é preciso credenciamen- to para oferecer alfabetização de adultos. Assim, muitos programas são pensados considerando-se universidades, igrejas, ONGs, Sistema S (que abrange Sesc, Senai, entre outros), etc. Entre os programas de alfabetização de adultos mais relevantes, tivemos o Programa Brasil Alfabetizado, Alfabetização Solidária e, anteriormente, o MOBRAL. A oferta de ensino fundamental na modalidade da EJA, por sua vez, é destinado a todas as pessoas com 15 anos ou mais que não o tenham concluído. É dividido em 1º e 2º segmento, que podem ser subdivididos em etapas ou em disciplinas a partir do segundo segmento. Para ingressar em um desses sistemas educativos do ensino fun- damental, o aluno normalmente não precisa comprovar escolaridade anterior. Pode ser realizada uma entrevista e, em alguns casos, um exame avaliativo para identificar o nível de aprendizagem em que ele pode dar continuidade aos seus estudos. De acordo com as Diretrizes Operacionais para EJA, independentemente da forma de organização curricular, a duração deve ficar a critério dos sistemas de ensino para os anos iniciais do ensino fundamental, ou seja, pode ser organizado de acordo com o tempo que o aluno precisar para obter o domínio suficiente para dar continuidade ao segundo segmento ou anos finais dessa etapa de ensino. A etapa de alfabetização de jovens e adultos também pode ocorrer dentro da oferta dos anos iniciais do ensino fundamental como uma parte da educação básica, e não somente como um programa de alfa- betização, como apresentado anteriormente. Para os anos finais do ensino fundamental, a duração mínima deve ser de 1600 horas e a organização fica a critério dos sistemas de ensino, podendo ser ofertados por disciplinas ou por semestres, em que cada semestre equivale a um ano letivo do sistema regular, por exemplo. Já na oferta por disciplinas, o estudante se matricula e cumpre a carga horária de toda uma disciplina em todos os níveis, é mais uma forma de organização da EJA. Quanto à certificação, ela só pode ser realizada por instituição cre- denciada nas secretarias de educação. Em geral, os programas de alfa- 34 Educação de Jovens e Adultos betização geram demandas para a continuidade dos estudos nos anos iniciais do ensino fundamental, normalmente ofertado localmente por sistemas municipais de ensino. Os anos finais do ensino fundamental podem ser oferecidos tanto por sistemas municipais quanto sistemas estaduais e também visam atender todos os estudantes advindos dos anos iniciais ou aqueles que tenham interrompido os estudos, poden- do retomá-los em qualquer momento de vida. Na EJA, o ensino médio é destinado a pessoas que tenham 18 anos completos ou mais e que não o tenham concluído. As Diretrizes Opera- cionais determinam que a duração mínima do ensino médio na modali- dade EJA deve ser de 1200 horas. Grande parte dessa oferta é realizada por instituições estaduais e, em alguns casos, pelos Institutos Federais de Educação. Há também alguma oferta na forma de educação a dis- tância (EaD), realizada, nesse caso, por iniciativas privadas. Tanto o ensino fundamental de segundo segmento ou dos anos fi- nais, quanto o ensino médio, podem ser concluídos com a oferta de exames como o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) – que substitui os antigos exames de suplên- cia –, pois a ideia não é mais suprir uma carência ou apenas a neces- sidade de um certificado, mas criar condições de aprendizagem e de que o estudante continue a estudar, independentemente da fase em que parou. Provavelmente você já teve algum contato ou pelo menos já ouviu falar de algum tipo de exame, certificação ou até mesmo que é possí- vel completar o Ensino Médio prestando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Vamos entender detalhadamente como isso funciona. Acontece que, mesmo havendo legislações e normatizações para a oferta de cursos e certificações para a EJA, na tentativa de aligeirar esse processo, infelizmente existem empresas que acabam oferecendo cur- sos não reconhecidos ou somente destinados à certificação, que aca- bam por não seguir essas orientações e normativas e, por isso, geram algumas confusões nesse entendimento. Até o ano de 2016, era possível conseguir certificação de Ensino Mé- dio pelo Enem. Isso impulsionou a oferta de cursos preparatórios para tal finalidade, no entanto o aluno só conseguia obter o certificado de conclusão de ensino médio se realmente atingisse os critérios defini- dos pelo Ministério da Educação, que consistia em obter 450 pontos A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 35 em cada uma das áreas de conhecimento e 500 pontos na redação. Entretanto, o Enem não é um exame especifico para o público da EJA, é um exame geral de ensino médio, o que, na avaliação de diversos especialistas, mais excluía os estudantes da EJA do que os certificava, baseando-se em um critério meritocrático para o aluno, não na oferta de uma educação compensatória para a EJA. A partir do ano de 2017, o Ministério da Educação concluiu que a melhor estratégia de certificação seria a retomada do Encceja, que são exames destinados ao público da EJA e pretende levar em conta as ca- racterísticas e especificidades da modalidade. Desde então, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio- nais Anísio Teixeira (Inep) realiza esses exames em parcerias com secre- tarias municipais e estaduais de educação. Para participar do Encceja, é necessário ter 15 anos completos para concluir o ensino fundamental e 18 anos completos para os exames de nível de conclusão do ensino médio na modalidade EJA. A questão da idade para realização dos exames ou para ingresso na EJA ficou polêmica no que diz respeito à entrada cada vez mais precoce de um grande número de adolescentes que, abandonando a escola por diversos motivos, vão acessar a EJA na tentativa de concluir sua forma- ção escolar por meio de exames ou usá-los como forma acelerada de completar os estudos – o que não era o objetivo inicial da EJA, pensada, na realidade, para um perfil de adultos trabalhadores, e não para ado- lescentes –, perdendo, aos poucos, sua identidade característica. O mesmo aconteceu com os exames, que atraiu um grande público do ensino médio regular, que, não completando a escolarização básica, presta esses exames na tentativa de concluir esse etapa mais rapida- mente e sem frequentar a escola. Em junho de 2010, o Conselho Nacional de Educação, na tentativa de regulamentar a questão da idade de ingresso na EJA, após muitos debates, reviu sua posição e, por intermédio das Diretrizes Operacio- nais para a EJA, entre outras definições, tratou das idades mínimas de ingresso e realização dos exames nas etapas do ensino fundamental e médio da EJA. Elas foram fixadas, respectivamente, em 15 e 18 anos, ou seja, mantendo o que estava descrito na LDB, pois alegou-se que não se poderia excluir novamente da EJA esse grande contingente de adolescentes da escola regular. 36 Educação de Jovens e Adultos Di Pierro (2010) esclarece que existe uma corrente em defesa da ele- vação da idade mínima de ingresso na EJA para 18 anos alegando, para isso, que o ensino regular deve sero espaço preferencial de formação de crianças e adolescentes, e a EJA, conforme sua constituição históri- ca, um espaço de formação para jovens e adultos. Segundo a autora, os defensores desse posicionamento argumentam que a EJA não pode continuar a acolher toda diversidade social e cultural rejeitada pela es- cola comum, que seria necessário, então, rever os processos de exclu- são dos adolescentes com defasagem na relação idade/ano escolar da escola regular, e não deliberar essa problemática para a EJA. Esse é um debate ainda em vigor nas políticas e tratativas atuais da EJA. 2.3 Especificidades da EJA Vídeo No final do século XX, entre os anos de 1993 e 1996, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), desenvol- veu um estudo que culminou na produção do Relatório Jacques Delors. Esse documento foi editado em forma de livro com o título Educação: um tesouro a descobrir, de Jacques Delors, com várias edições e distri- buição em domínio público. Essa publicação trouxe importantes contribuições para a Educação de Jovens e Adultos ao reafirmar que a produção de conhecimento e a aprendizagem permanente ao longo da vida constituem fatores essen- ciais na mudança educacional, fixando a premissa de que nunca é tarde para aprender e sempre é tempo de aprender mais. Nesse relatório, entre outros assuntos, é abordado que a educação, ao longo da vida, deve se basear em quatro pilares: aprender a conhe- cer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, os quais são descritos a seguir: • Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral, suficiente- mente ampla, com a possibilidade de estudar, em profundidade, um número reduzido de assuntos, ou seja: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida. • Aprender a fazer, a fim de adquirir não só uma qualificação pro- fissional, mas, de uma maneira mais abrangente, a competên- cia que torna a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Além disso, aprender a fazer no âmbito Descreva como podem ser caracterizadas as formas de oferta e a organização da EJA na atualidade. Atividade 2 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 37 das diversas experiências sociais ou de trabalho, oferecidas aos jovens e adolescentes, seja espontaneamente na sequência do contexto local ou nacional, seja formalmente, graças ao desen- volvimento do ensino alternado com o trabalho. • Aprender a conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerenciar conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz. • Aprender a ser, para desenvolver, o melhor possível, a personali- dade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa finalidade, a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se. (DELORS, 2012, p. 31, grifos do original) Esse relatório concebe a educação como um todo. Os pilares do conhecimento não são válidos somente na EJA, eles são aplicáveis a qualquer concepção de educação. De acordo com esse documento, para dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve se organizar em torno dessas quatro aprendizagens fundamentais, que, ao longo de toda a vida, serão, de algum modo, os pilares do conheci- mento para cada indivíduo: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da com- preensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envol- vente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes. (DELORS, 2012, p. 45, grifos do original) De acordo com Soek (2009), desses quatro pilares para a edu- cação ao longo da vida, facilmente verificamos a presença dos pressupostos andragógicos e como eles determinam as relações de ensino e aprendizagem na EJA, pois, ao trabalhar com o aprender a aprender, trabalha-se com a ideia de se ensinar a buscar conhecimen- tos nas mais diversas fontes, inclusive nas próprias experiências. Ao trabalhar pressupostos de aprender a fazer, aproxima-se, de algum modo, das experiências e dos saberes necessários para colocar em prática o que se aprende. Aprender a conviver pressupõe o respeito aos outros, caracteriza-se pela flexibilidade, pela procura de adaptação aos indivíduos. E, finalmente, o aprender a ser carrega a ênfase em todas as potencialidades que cada indivíduo carrega consigo, a busca pressupostos andragógicos: todo processo é pensado para a educação de adultos, pois, na origem da palavra andragogia, andra significa adulto. Glossário 38 Educação de Jovens e Adultos por autoconhecimento, a responsabilidade que se atribui tanto àquele que aprende quanto ao que ensina na busca cada vez maior pela tão sonhada autonomia. O relatório recebeu críticas por parecer pragmático demais e por exaltar as individualidades em detrimento da coletividade. No entan- to, continua sendo um documento apreciado internacionalmente, ser- vindo de direcionamento para várias políticas educativas, e seu valor como teoria do conhecimento é inquestionável. 2.4 Cognição e aprendizagem na EJA Vídeo Você já parou para pensar sobre as semelhanças e as diferenças entre a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo dos adultos e das crianças? Procure recordar como você aprendia quando ia à esco- la ainda criança e quais são as características mais marcantes na sua aprendizagem hoje, como adulto. Agora tente imaginar como será a aprendizagem de jovens e adultos que não frequentaram a escola, que não têm os mesmos parâmetros para aprender daqueles que são guia- dos pela aprendizagem escolar. Como será que adultos que não fre- quentaram a escola ou que não são alfabetizados aprendem? Você já deve ter percebido o quanto a psicologia infantil se desen- volveu e explicou várias etapas do desenvolvimento das crianças. Mas como é explicado o desenvolvimento dos jovens e dos adultos? Notoriamente, ao longo do tempo, a noção sobre o desenvolvimen- to, a cognição e a aprendizagem de adultos ocorreu de maneira não sistemática, diferentemente de como esses aspectos foram entendidos quando relacionados às crianças, até devido às fases de desenvolvi- mento biológico, que tradicionalmente são explicadas como se esse desenvolvimento parasse ao se atingir a idade adulta. O conceito de desenvolvimento tem as origens ligadas ao conceito de desenvolvimento psicológico, que, por sua vez está, relacionado aos estudos de base biológica evolutiva, isto é, de como os sujeitos crescem e se desenvolvem no ambiente em que vivem, ligando, assim, a ideia de desenvolvimento biológico progressivo a etapas sucessivas. O fato é que grande parte dessas teorizações vão ter o terreno fértil de suas explicações na infância, deixando a questão da maturidade ou Teça uma narrativa argumen- tativa sobre os prós e contras dos pilares do conhecimen- to – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser –, relacionando-as à EJA. Atividade 3 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 39 de uma psicologia de desenvolvimento do adulto em segundo plano. Foi somente com o advento da Revolução Industrial e com a necessidade cada vez maior de qualificação para o mundo do trabalho que o adulto e o idoso foram verdadeiramente assumidos como objeto de estudo, tendo surgido uma nova área de investigação de teor mais abrangente: a andragogia, ciência pouco conhecida e explorada aqui no Brasil. Apesar de a aprendizagem dos adultos ser bem mais complexa do que a das crianças e de não haver uma abordagem única sobre essas singularidades emcada etapa e contexto de vida, pesquisadores como Pavlov, Skinner, Piaget, Vygotsky, Maslow, Rogers e outros buscaram investigar, com as ferramentas de que dispunham e que servem de base para o desenvolvimento das teorias contemporâneas, o estabe- lecimento dos fundamentos para uma psicologia sobre a cognição, a aprendizagem e o desenvolvimento dos adultos. Para Martins (2018), ao sintetizar as abordagens clássicas, pode-se resumir a aprendizagem de adultos como sendo, no behaviorismo, a mudança de comportamentos; no humanismo, o desenvolvimento das pessoas; no cognitivismo, um processo mental; no construtivismo, dar sentido ao que é vivido; e, no sociocognitivismo, como ser social. Segundo Osório (2005), sobre os enfoques da aprendizagem do adul- to, podem-se distinguir as que diminuem a importância da pessoa e as que diminuem a importância do meio social. No primeiro grupo, pela perspectiva pessoal, destacam-se dois enfoques diferentes: trabalhos de C. Rogers e A. Maslow e a teoria de Freud, que explicam como os adultos apreendem em diversas etapas de sua vida, bem como os trabalhos de Piaget e Kolberg, que descrevem a sequência de etapas que determinam a compreensão progressiva dos conceitos e das regras morais. Na perspectiva do meio social, temos uma visão mecanicista entre as pessoas e as forças que atuam sobre elas, conforme Skinner, e ou- tra visão que outorga um papel muito ativo da pessoa na dialética so- cial, ressaltando a importância dos processos sociais na formação da identidade individual, na qual se destacam os trabalhos de Knowles sobre a andragogia e de Freire na alfabetização de adultos. Ainda as- sim, não podemos dizer que temos uma teoria do desenvolvimento adulto suficientemente elaborada para abarcar todo um ciclo de vida ou sobre os processos e variáveis complexas que envolvem o desen- volvimento de jovens, adultos e idosos. 40 Educação de Jovens e Adultos De modo geral, foram a pedagogia e as pesquisas cognitivas que mais se empenharam na tarefa de explicar como as pessoas aprendem, com um foco maior na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças, como se a idade adulta fosse um período de estabilidades e aprendiza- gens consolidadas. No entanto, hoje sabemos que tanto aprendizagem quanto desenvolvimento ocorrem ao longo de toda a vida e possuem especificidades em cada fase ou ciclo da vida humana. Já a andragogia é a ciência que trata da questão sobre como os adultos aprendem. Lindeman (1926), um dos precursores da andragogia, propunha que a educação de adultos deveria se basear nas necessidades e nos interesses, isto é, englobar o trabalho, o lazer, a família, a comunidade etc.; é a partir desses interesses, então, que a educação de adultos deveria ocorrer. O autor percebe o descompasso das metodologias empregadas pela pedagogia e busca novas formas para a educação de adultos. De acordo com Lindeman (1926), a educação de adultos gira em torno de quatro gran- des princípios: 1. A educação é vida, e não preparação para a vida. 2. A educação de adultos gira em torno de ideias não exclusivamente profissionais. 3. O enfoque da educação de adultos será colocado no caminho das situações da vida, e não em temas ou conteúdos. 4. O recurso mais importante da educação de adultos são as experiências de vida. Knowles (1973), como seguidor de Lindeman, aprofundou a ideia da experiência vivida como fonte de aprendizagem dos adultos, utilizando o termo androgogia. Para ele, os motivos, as razões e as necessidades dos adultos eram completamente diferentes daqueles das primeiras etapas de vida, por isso, fez a diferenciação: “a partir da etimologia da palavra de origem grega temos: andros (adulto) e gogos (educar), em contraposição à pedagogia que vem do grego paidós (criança) e gogos (educar), educar crianças” (KNOWLES, 1973, p. 42-43, tradução nossa, grifos do original). Inicialmente, Knowles construiu o modelo andragógico de educação como a antítese do modelo pedagógico. Com o passar do tempo, per- cebendo que os princípios poderiam ser aplicados independentemen- A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 41 te da idade, o próprio autor defendeu que esses princípios poderiam ser utilizados em qualquer situação de aprendizagem e idade. Em vista disso, reforça que tudo depende das circunstâncias na qual a aprendi- zagem ocorrerá. O modelo andragógico proposto por Knowles (1973) , ampliado do modelo de Lindeman (1926), de maneira geral, é amplamente divulgado e baseia-se nos seguin- tes princípios: 1. Necessidade de aprender: adultos precisam saber por que necessitam aprender algo antes de começar a fazê-lo e qual será o ganho que terão no processo. 2. Autoconceito do aprendiz: adultos são responsáveis por suas decisões e por suas próprias vidas, portanto querem ser vistos e tratados pelos outros como capazes de fazer suas próprias escolhas. 3. Papel das experiências: para o adulto, suas vivências são a base do seu aprendizado. Por terem vivido mais, eles acumularam mais experiência, o que acarreta conse- quências para a educação de adultos. As técnicas que aproveitam essa amplitude de diferenças individuais serão mais eficazes. 4. Prontidão para aprender: o adulto fica disposto a aprender quando a ocasião exige algum tipo de aprendizagem relacionado a situações reais do seu dia a dia. Eles têm predisposição para aprender quando o conhecimento tem a finalidade de ajudá-los a enfrentar os desafios cotidianos. Assim, quando a ocasião exige algum tipo de aprendizagem relacionado ao que deve ser executado, o adulto adquire prontidão para aprender 5. Orientação para aprendizagem: os adultos aprendem melhor quando a aprendi- zagem é orientada para fatos, aplicabilidade, utilidade e resultados. Os adultos são motivados a aprender conforme percebem que a aprendizagem os ajudará a execu- tar tarefas ou lidar com problemas que vivenciam em sua vida. 6. Motivação: adultos são mais motivados a aprender por valores intrínsecos – autoestima, qualidade de vida, desenvolvimento. Os adultos respondem a fatores motivacionais externos (melhores empregos, promoções, salários mais altos), mas os fatores motivacionais mais poderosos são as pressões internas (o desejo de ter maior satisfação no trabalho, autoestima, qualidade de vida). Devido aos percursos de vida e aos interesses dos contextos viven- ciais, a experiência é característica da fase adulta e, por isso, a máxima de aprendizagem ao longo da vida é uma das premissas da EJA. Logo, os conhecimentos prévios já adquiridos por muitos em outras instâncias da vida facilitam o processo de aprendizagem e devem ser considerados nas metodologias de ensino. Existe quase um consenso quanto a se con- siderar a andragogia como uma teoria geral da educação de adultos e 42 Educação de Jovens e Adultos de que a aprendizagem adquire uma particularidade mais localizada no aluno, na independência e na autogestão da aprendizagem, para a apli- cação prática na vida diária, com base nas experiências prévias na área. Knowles (1973) cunhou, ainda, a ideia de que pessoas adultas aprendem mais facilmente em ambientes confortáveis, flexíveis, in- formais e livres de ameaças. Como aprendizes adultos, isso facilmente percebido, pois, quando o lugar e o clima são agradáveis e propícios à aprendizagem, os resultados são efetivos. E quanto à questão do desenvolvimento cognitivo em pessoas não escolarizadas? Uma das pesquisas mais interessantes nessa área são os estudos do psicólogo soviético, pouco debatido no Brasil, Alexander Luria. Ele e seus colaboradores conduziram um estudo sobre as rápidas transfor- mações sociais pelas quais passaram jovens e adultos que precisaram ser alfabetizados rapidamente no contexto da antiga União Soviética. Segundo Oliveira e Rego (2010), os resultados obtidos das pesquisas de Luria foram bastante consistentes e demonstraram haver alterações na forma de funcionamento psicológico das pessoas conforme se dava o processode alfabetização e escolarização e de mudanças nas formas la- borais. Segundo as autoras, com base na análise das pesquisas de Lúria: Os sujeitos mais escolarizados e envolvidos em situações de tra- balho coletivizado e modernizado tenderam a lidar melhor com os atributos genéricos e abstratos dos objetos, enquanto que aqueles analfabetos ou pouco escolarizados e vinculados aos modos de trabalho tradicional reportavam-se a contextos con- cretos e a experiências particulares para balizar seu processo de raciocínio. (OLIVEIRA; REGO, 2010, p. 113) No Brasil, estudos parecidos foram conduzidos pela pesquisadora Marta Khol de Oliveira e chegaram a conclusões parecidas, reafirman- do que o desenvolvimento cognitivo e de aprendizagem do adulto está, em grande parte, atrelado ao contexto social e às demandas exigidas desse contexto. Para saber sobre as pesquisas de Marta Khol de Oliveira, vale a pena conhe- cer o artigo Escolarização e desenvolvimento do pensamento: a contribuição da psicologia histórico-cultural, publicado pela revista Diálogo Educacional. Acesso em: 29 jun. 2020. https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/6407 Artigo Caracterize cada um dos prin- cípios do modelo andragógico proposto por Knowles (1973) como indispensáveis para a aprendizagem de jovens e adultos: 1. Necessidade de aprender. 2. Autoconceito do aprendiz. 3. Papel das experiências. 4. Prontidão para aprender. 5. Orientação para aprendizagem. 6. Motivação. Atividade 4 https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/6407 A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, foi possível notar o quanto a EJA tem características distintas da escola pensada para as crianças. Espera-se que você tenha ampliado a compreensão de que esse universo envolve muito mais do que apenas a alfabetização de jovens e adultos, que abrange, sim, des- de a alfabetização até o ensino médio como etapas da educação básica, mas que também pode ser pensada em termos do que significa aprender na idade adulta, ampliando-se a toda diversidade de aprendizagem que acontece ao longo da vida, sendo esse um dos fundamentos da EJA. Percebemos o quanto a EJA é potencialmente diferente de uma escola pensada para crianças – tanto em questões de desenvolvimento quanto em funções básicas – e até como se chegou a modelos diferentes pensa- dos como pedagogia (para crianças) e andragogia (para adultos). Porém, hoje sabemos que essas ciências já comportam outros modelos de apren- dizagem que nos permitem dizer que os princípios andragógicos não são voltados apenas para adultos, assim como se pode afirmar que é possível falar em uma pedagogia para adultos, e não que a pedagogia é voltada só para as crianças. Outra questão desmistificada foi a ideia de concluir os estudos rapidamente. Não existe mais ensino supletivo, e os exames não têm a finalidade de acelerar ou abreviar etapas que devem ser cumpridas “na idade certa” em se tratando de escola básica, pois a EJA deve ser preferen- cialmente pensada para um público característico que depende dela para concluir os estudos, independentemente da idade. Assim, ressalta-se a importância de os profissionais da educação te- rem claros os fundamentos e as funções da EJA, a quem de fato ela se destina e quais são as diferenças fundamentais em relação à educação ofertada na escola convencional, para crianças em idade escolar, visto que os estudantes da EJA não se tornam alunos dela por vontade própria e possuem características e interesses bem distintos daqueles das crianças em idade escolar. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF: 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 11 maio 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF: MEC/SEF, 2000. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm 44 Educação de Jovens e Adultos BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Operacionais Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF: MEC/SEF, 2010. DI PIERRO, M. C. Balanço e desafios das políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil. In: SOARES, L. et al. (org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. DELORS, J. (coord.). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 7. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2012. LINDEMAN, E. The meaning of adult education. Nova Iorque, NY: New Republic, 1926. KNOWLES, M. S. Informal adult education. Nova Iorque, NY: Association Press, 1973. MARTINS, A M. O ensino da leitura do ritmo musical em adultos: uma visão piagetiana. 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/55296/R%20-%20T%20-%20 ALEXANDRE%20MEIRELLES%20MARTINS.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 13 ago. 2020. OLIVEIRA, M. K.; REGO, T. C. Contribuições da perspectiva histórico-cultural de Luria para a pesquisa contemporânea. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 107-121, abr. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ep/v36nspe/v36nspea09.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020. OSÓRIO, A. R. Educação permanente na sociedade do conhecimento. In: OSÓRIO, A. R. Educação Permanente e Educação de Adultos. Lisboa: Editorial Ariel, S. A. Horizontes Pedagógicos, 2005. SOEK, A. M. Aspectos contributivos do manual do livro didático do PNLA/2008 na formação do alfabetizador do programa Brasil alfabetizado. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. Disponível em: https://acervodigital. ufpr.br/bitstream/handle/1884/18613/Dissertacao%20Ana.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 13 ago. 2020. GABARITO 1. No documento das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adul- tos são explicitadas as seguintes funções: reparadora, equalizadora e qualificadora. A função reparadora diz respeito a reparar o dano histórico de não acesso ao direito à educação. A função equalizadora, por sua vez, além de dar possibilidades de acesso aos seus estudantes, deve dar condições de prosseguimento, potencializando a fun- ção qualificadora, que oferece suporte e condições à formação permanente. 2. De modo geral, podemos subdividir e organizar a oferta de EJA na educação básica nas seguintes fases ou etapas: alfabetização, ensino fundamental e ensino médio. Pode ser ofertada de maneira presencial, semipresencial ou à distância e, ainda, sob formas de exames para certificação. 3. Para responder esta questão, é importante compreender a relevância dos pilares de conhecimento para a EJA no sentido que se traduziu em uma especificidade de se aprender ao longo da vida e dar continuidade à aprendizagem, ou seja, o caráter permanente desse processo. E, mesmo que se acredite que os conteúdos escolares independem desses pilares, eles são considerados pelos Organismos Internacionais essenciais no âmbito da educação. 4. Para responder esta questão é importante retomar e estabelecer paralelos com a EJA para fixar a aprendizagem com base nos itens exposto no capítulo sobre o modelo andragógico proposto por Knowles (1973), que se baseia nos seguintes princípios: A Educação de Jovens e Adultos como modalidade educativa 45 • Necessidade de aprender: adultos precisam saber por que necessitam aprender algo antes de começar a fazê-lo e qual será o ganho que terão no processo. • Autoconceito do aprendiz: adultos são responsáveis por suas decisões e por suas próprias vidas, portanto querem ser vistos e tratados pelos outros como capazes de fazer suaspróprias escolhas. • Papel das experiências: para o adulto, suas vivências são a base do seu aprendizado. Por terem vivido mais, eles acumularam mais experiência, o que acarreta conse- quências para a educação de adultos. As técnicas que aproveitam essa amplitude de diferenças individuais serão mais eficazes. • Prontidão para aprender: o adulto fica disposto a aprender quando a ocasião exige algum tipo de aprendizagem relacionado a situações reais do seu dia a dia. Eles têm predisposição para aprender quando o conhecimento tem a finalidade de ajudá-los a enfrentar os desafios cotidianos. Assim, quando a ocasião exige algum tipo de aprendizagem relacionado ao que deve ser executado, o adulto adquire prontidão para aprender. • Orientação para aprendizagem: os adultos aprendem melhor quando a aprendiza- gem é orientada para fatos, aplicabilidade, utilidade e resultados. Os adultos são motivados a aprender conforme percebem que a aprendizagem os ajudará a execu- tar tarefas ou lidar com problemas que vivenciam em sua vida. • Motivação: adultos são mais motivados a aprender por valores intrínsecos – autoes- tima, qualidade de vida, desenvolvimento. Os adultos respondem a fatores motiva- cionais externos (melhores empregos, promoções, salários mais altos), mas os fato- res motivacionais mais poderosos são as pressões internas (o desejo de ter maior satisfação no trabalho, autoestima, qualidade de vida). 46 Educação de Jovens e Adultos 3 Diversidade sociocultural dos educandos da EJA A Educação de Jovens e Adultos (EJA) emerge de um movimento de desafios e conquistas desde a base da educação popular, até se tornar uma modalidade da educação básica reconhecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBD), com características que lhes são próprias. Ao refazer uma contextualização histórica, social e cultural, é possível caracterizar quem foram e quem são os educandos da EJA e quais seus traços sociais, identificando como esse perfil se constituiu historicamente e como se apresenta em sua diversidade na atualidade. Para além de falar sobre dados estatísticos, o mais importante será entender que esses dados se referem a pessoas, para saber, assim, quem são os educandos da EJA. Conhecer e analisar o perfil desses educandos torna-se importante, uma vez que permite com- preender, também, as dificuldades que enfrentaram e enfrentam até hoje. Entender essas configurações para além das taxas de anal- fabetismo ou analfabetismo funcional são questões indispensáveis que serão abordadas neste capítulo. Essa reflexão nos leva a questionar sobre a exclusão social na atualidade. Quem são as pessoas que não tiveram acesso à escola- rização? Qual o perfil socioeconômico e cultural desses estudantes? Como se constituiu essa identidade de pertencentes a determina- dos grupos sociais? Quais os motivos que levaram a não escolari- zação? Como vivem, pensam e agem na sociedade atual? Qual são suas visões pessoais e de mundo? Para melhor compreensão dessa situação, fazemos uma análise dos dados do analfabetismo no Brasil, além de caracterizar o perfil apresentado por esses dados, contextualizando a constituição his- tórica do analfabetismo e a necessidade de escolarização e o como as pessoas não escolarizadas se veem e são vistas em sociedades letradas, considerando os paradigmas de exclusão e inclusão. Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 47 3.1 O analfabetismo no Brasil Vídeo Em 2000, no limiar do século XXI, o Brasil apresentava um quadro ainda bastante preocupante com relação ao analfabetismo de pessoas adultas. De acordo com os dados do Instituto Brasi- leiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos anos 2000, 13,6% da população total, com 15 anos ou mais, se encontrava em estado de analfabetismo, isso corres- pondia à cerca de 33 milhões de brasileiros analfa- betos. Esse quadro revelava-se ainda mais severo, pois se considerarmos o contingente de analfabe- tismo funcional, esse índice pode chegar aproxima- damente 30% da população brasileira. Os dados do censo demográfico do IBGE são pro- duzidos a cada década, sendo a última grande con- tagem realizada no ano de 2010. No gráfico a seguir é possível identificar as taxas de analfabetismo ao longo das últimas décadas, bem como sua evolução histórica desde a década de 1940 até a última contagem, sendo que, em 2010, a taxa de analfabetismo era de 9,6% da população brasileira. Gráfico 1 Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade no Brasil (1940-2010) 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010 56% 50,5% 39,6% 33,6% 25,5% 20,1% 13,6% 9,6% Fonte: IBGE, 2010. Analfabeto ou analfabe- tismo remonta a condição da pessoa que não é alfabetizada, ou não conhece ou não sabe usar o código alfabético, ou seja, a pessoa que não sabe ler ou escrever. Analfabetismo funcional re- mete à pessoa que pode até ser escolarizada, mas é incapaz de fazer uso com eficiência dessas habilidades em atividades cotidianas, por exemplo. Saiba mais 48 Educação de Jovens e Adultos Quando se analisa as taxas de analfabetismo da população com 15 anos ou mais (população que não está em idade escolar), por décadas, como apresentado no gráfico, é possível verificar uma progressiva di- minuição. A taxa que era de 13,63%, em 2000, caiu para 9,6%, em 2010. No entanto, é preciso tomar cuidado ao olhar somente para índices estatísticos, pois essas taxas representam pessoas, e quando a analisa- mos em números absolutos, verificamos que é um contingente ainda bastante alto. Por exemplo, se contabilizarmos em números absolutos, no ano de 2010, a taxa de população analfabeta era de 9,6%, o que representava, segundo contagem do IBGE (2010), cerca de 14 milhões de pessoas. A taxa de analfabetismo da última pesquisa por amostra de domi- cílios contínua de 2019 (IBGE, 2020) indica que o Brasil tem pelo me- nos 11,3 milhões de pessoas com mais de 15 anos analfabetas (6,8% de analfabetismo). Veja que, para além de falar em números e estatísticas, precisamos pensar o que significa em termos de Brasil, em dimensões territoriais, subdivisão entre grandes centros urbanos e suas periferias, regiões rurais, populações indígenas, ribeirinhas, entre outros grupos distintos pensar que ainda existem mais de 10 milhões de pessoas em estado de analfabetismo absoluto. Além dessa questão do analfabetismo absoluto, existe outro dado preocupante, que são os números dos indicadores de alfabetismo fun- cional designado a pessoas que mesmo tendo frequentado a escola não conseguem interpretar um texto simples. Para efeitos de comparação, o indicador de alfabetismo funcio- nal (Inaf) categoriza os níveis de alfabetismo conforme escala a seguir, modificando os níveis utilizados nas pesquisas até o ano de 2011 para cinco níveis desde 2015, observe no Quadro 1. Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 49 Quadro 1 Níveis de alfabetismo segundo escala Inaf: comparativo antes e depois de revisão em 2015 Níveis de alfabetismo Utilizados até 2011 (4 níveis) GRUPOS Utilizados a partir de 2015 (5 níveis) Analfabeto ANALFABETOS FUNCIONAIS Analfabeto Rudimentar Rudimentar Básico FUNCIONALMENTE ALFABETIZADOS Elementar Pleno Intermediário Proficiente Fonte: Inaf, 2018. Considerando essa nova categorização, o indicador de alfabetismo funcional passou a subdividir a contagem em grupos de analfabetos funcionais e, dentro dessa categoria, o que se enquadra em níveis de analfabeto considerado como analfabeto absoluto e rudimentar; e os funcionalmente alfabetizados, que são os alfabetizados elementar, in- termediário e proficiente. Note que, nessa categorização, a pesquisa não é feita como nos censos demográficos, em que a pessoa autoin- titula-se analfabeto, a amostragem é feita de acordo com os anos de estudos informados. A intenção do indicador de alfabetismo funcional é ter um perfil mais realístico no nível de alfabetizaçãoda população brasileira, inde- pendentemente dos anos de estudos. Podemos pensar, como parênte- ses, o que isso significa sobre um assunto bastante comentado, que é o combate às fake news. Como você imagina que cada grupo desses in- terpreta as notícias a que tem acesso? Interessante pensar nisso, não? Repare em como a realidade é diretamente influenciada pelos níveis de alfabetização de sua população. A Tabela 1 a seguir mostra os níveis de alfabetismo no Brasil e sua evolução no período de 2001-2002 a 2018, de acordo com a nova classi- ficação estabelecida pelo Inaf (2018). Se até então a preocupação era com os dados de analfabetismo absoluto e funcional, quando o Inaf passou a usar essa nova classificação, igualmente preocupante passou a ser o número de proficientes, que significa que mesmo atingindo a escolarização plena, em alguns casos, inclusive, com o ensino superior, 50 Educação de Jovens e Adultos o índice de proficiência ainda é baixo, com pouco mais de 10% da popu- lação. Isso significa dizer que, se por um lado temos aproximadamente 10% da população brasileira analfabeta, por outro, temos pouco mais disso plenamente alfabetizado. Inexoravelmente o grande problema estaria ao meio desses dois extremos. Nível 2001 2002 2002 2003 2003 2004 2004 2005 2007 2009 2011 2015 2018 BASE 2000 2000 2001 2002 2002 2002 2002 2002 2002 Analfabeto 12% 13% 12% 11% 9% 7% 6% 4% 8% Rudimentar 27% 26% 26% 26% 25% 20% 21% 23% 22% Elementar 28% 29% 30% 31% 32% 35% 37% 42% 34% Intermediário 20% 21% 21% 21% 21% 27% 25% 23% 25% Proficiente 12% 12% 12% 12% 13% 11% 11% 8% 12% Total 1 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Analfabeto Funcional* 39% 39% 37% 37% 34% 27% 27% 27% 29% Funcionalmente Alfabetizados* 61% 61% 63% 63% 66% 73% 73% 73% 71% Tabela1 Níveis de alfabetismo no Brasil conforme o Inaf (2001-2018) Fonte: Inaf, 2018. Veja, se até aqui podíamos falar de analfabetismo ou analfabetis- mo funcional como grupos potenciais das demandas da EJA – aqueles que precisavam de alfabetização ou de escolarização para completar seus estudos –, esse novo panorama pretende demonstrar o aprovei- tamento escolar, que mesmo entre aqueles que frequentaram a escola não atingem níveis satisfatórios de alfabetismo. Dessa forma, o termo alfabetização ganha outro significado não necessariamente atrelado aos anos de escolarização, mas como uma habilidade a ser desenvolvida ao longo da vida, e esse é o conceito utilizado nas classificações do Inaf. A preocupação com a escolarização, nesse sentido, não fica mais atrelada somente à oferta da escolarização básica, mas à garantia da alfabetização plena, seja na idade escolar, seja na EJA. Também nesse sentido, a preocupação da EJA poderia passar a subentender-se na- quela perspectiva de alfabetização, no sentido amplo, ao longo da vida, de modo que adultos estão sempre abertos a novas aprendi- zagens independentemente das formas escolares. Contudo, acredita- O critério de arredondamento das frações dos resultados permite percentuais totais diferentes da soma dos números arredondados. 1 Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 51 mos que essa perspectiva esteja um pouco distante dos debates das políticas públicas da EJA na atualidade. Continuando essa reflexão, para além de se pensar somente como políticas para a EJA, o Inaf (2018) aponta dados que devem ser repensa- dos enquanto funções da escola básica, pois se de um lado, de acordo com esse índice, cerca de 30% dos brasileiros são analfabetos funcio- nais, que poderiam ser pessoas que não tenham tido a oportunidade de frequentar a escola; de outro, temos, também de acordo com esse índice, 34% da população alfabetizada e que possivelmente passou pela escola, em um nível de alfabetização elementar. Na Tabela 2, desenvolvida pelo Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, parceiros na criação e implementação do indicador de alfabetismo funcional, é possível analisar os dados referentes à escola- rização da população brasileira de acordo com o Inaf (2018), demons- trando os déficits da escola básica. Tabela 2 Tabela de escolaridade da população de 15 a 64 anos no Brasil Escolaridade Censo PNAD Sem escolaridade 10% 10.866.552 9% 11.766.782 Ensino Fundamental I 30% 32.599.656 18% 23.533.564 Ensino Fundamental II 28% 30.426.345 24% 31.378.086 Ensino Médio 24% 26.079.725 35% 45.759708 Ensino Superior 8% 8.693.242 14% 18.303.883 Total 100% 108.665.519 100% 130.742.024 Fonte: Inaf, 2018. Esses números refletem o pouco avanço que temos em termos de escolarização básica obrigatória, mesmo diante das legislações postu- larem a universalização da escola básica, dessa forma, gerando novas Ao analisar as taxas de escola- rização da população brasileira, podemos comparar os dados nacionais com dados locais por meio de nosso contexto familiar. Com os dados da sua família, categorize entre o número de pessoas próximas que tem os ensinos superior, médio completo e médio incompleto, fundamental completo e fundamental incompleto, e o número de analfabetos que porventura possa ter em sua família, ou em sua proximidade. Procure relacionar por níveis de alfabetização, conforme apresentado na metodologia do Inaf, independentemente dos anos de estudos. Atividade 1 52 Educação de Jovens e Adultos demandas para a EJA, pois de todo contingente não atendido dentro do nível de escolaridade esperado, desmistificando, assim, a ideia de que EJA é somente alfabetização de jovens e adultos. Por meio dessa tabela, é possível verificar a defasagem escolar e a quantidade em potencial de alunos que poderiam retomar seus estudos na modali- dade da EJA em todas as etapas, isto é, da alfabetização, dos ensinos fundamental e médio. 3.2 Quem são os educandos da EJA? Vídeo Para entender como se consolidou o perfil de estudantes que bus- cam na EJA a oportunidade de ingressar no sistema de educação bra- sileira, seja de acesso pela alfabetização, seja para dar continuidade às etapas da educação básica que por diversos motivos foi interrompida em algum momento, precisamos lançar um olhar tanto para o contexto histórico recente quanto para a escolarização básica tradicional. Até a legislação do ano de 1961, a escolarização obrigatória era bastante restritiva a depender de cada momento histórico. Com a Lei n. 4.024 (BRASIL, 1961), a escolarização obrigatória passou a ser os quatro anos do antigo ensino primário. Isso explica por que grande número da população brasileira desse período só completou três anos de estudos, pois o quarto ano era considerado o admissional para as etapas seguintes; então, quem fazia os quatro anos tinha mais chance de dar continuidade à escolarização. Você consegue perceber a vertente de potenciais alunos para a EJA que veio das décadas de 1960? Se tivermos acesso a algumas classes de alfabetização ou do ensino fundamental da modalidade EJA, e se pergun- tarmos por que não estudaram antes, muitas pessoas podem dar essa explicação, de que estudaram somente até o antigo terceiro ou quarto ano primário, pois era o que fora ofertado naquele momento histórico. Aqui soma-se a característica de que nesse momento a educação era uma demanda predominantemente masculina. Logo, nas turmas de EJA encontramos um número potencial maior de mulheres des- sa faixa etária, pois a educação por tradição nesse período era pre- ferencialmente para os homens. Consequentemente, encontramos depoimentos de mulheres, como “eu tinha que ajudar nos afazeres domésticos e cuidar dos meus irmãos, escola era para os homens, pois Educando é sinônimo de aluno, estudante ou aprendiz. Na EJA, educando e educador são termos utilizados, em substituição a professor e aluno, principal- mente com a vertente de educação popular de Paulo Freire como forma de dar voz e vez a sujeitos ativos na construção do conhecimento, modificando a ideia a que Paulo Freire chamou de educação bancária, em que o professor depositava seus conhecimentossobre o aluno, que tinha um papel passivo na aprendizagem. Saiba mais Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 53 mulher não precisava frequentá-la”. Infelizmente, depoimentos como esse ainda são uma realidade, basta conversar com as mulheres que frequentam as turmas de alfabetização ou dos anos iniciais da EJA. O ensino obrigatório de primeiro grau só foi estabelecido pela Lei n. 5.692 (BRASIL, 1971); ainda assim, somente dos 7 aos 14 anos. Em outras palavras, “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusi- ve para os que a ele não tiveram acesso na idade própria” instituído apenas pela Constituição Federal (BRASIL 1988) quase 20 anos depois. Imagine como esses filtros de obrigatoriedade da escolarização foram gerando as demandas para as escolas de EJA na atualidade. Em 1996, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 14 (BRASIL, 1996), que tratou da expansão do ensino obrigatório; ao fim desse ano, esse reforço foi dado pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei n. 9.394 de 1996. De acordo com a LDB, o “ensino fundamental, obrigatório e gratuito assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria [...] com progressiva universalização do ensino médio” (BRASIL, 1996). Note que o texto aborda a progressiva universalização para o ensino médio, que até essa divulgação não era obrigatório. Se pegarmos as taxas de escolarização da população brasileira, fa- cilmente vemos esses dados estampados estatisticamente, pois até a virada do século, o número de concluintes do ensino médio era bas- tante baixo. Somente com a Emenda Constitucional n. 59 é que passou a vigo- rar as seguintes alterações: “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (BRASIL, 2009). Em outras palavras, somente com essa legislação que a educação passou a ser assegurada direito público subjetivo para todas as etapas da educação básica e para toda a população, incluindo aqueles que não completaram a escolarização. Porém, a matrícula compulsória só ocor- reu no corte etário de 4 a 17 anos, que foi implementado progressiva- mente até o ano de 2016, nos termos do Plano Nacional de Educação (PNE), como diz a lei (BRASIL, 2009). Ou seja, mesmo garantindo a ofer- ta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria, a matrícula só era obrigatória até os 17 anos. 54 Educação de Jovens e Adultos Fato é que desse contexto que tem uma história, que é social, políti- co, econômico e cultural por excelência é que derivam e evidenciam-se muitos questionamentos ao analisar as questões referentes ao alfa- betismo e à escolarização brasileira, bem como os problemas sociais graves, como desigualdades sociais, taxas de desemprego, acesso a bens e serviços e perfil das pessoas analfabetas, pouco escolarizadas ou subescolarizadas. Seria senso comum, ou uma visão bastante ingênua de educação, achar que as pessoas são como são por pura e simples vontade. Não é raro encontrar discursos na atualidade do tipo: “não estudou antes porque não quis”; “preferia a rua do que a escola, por isso, não foi para frente”; “veja lá, agora vem procurar a EJA, mas tinha preguiça de es- tudar”. Parece pejorativo, mas devemos ficar atentos, pois até nessas questões escondem-se outros meandros sociais das dificuldades e da falta de acesso e de oportunidades a bens primários, como alimenta- ção, trabalho, saúde, educação e cultura. Primeiramente, é preciso esclarecer que ninguém quer ser identifi- cado ou reconhecido como analfabeto. É o próprio contexto histórico que determinou ou caracterizará as pessoas como pertencentes a de- terminados grupos sociais, no caso específico, grupo de pessoas que não tiveram acesso à escolarização, ou não tiveram condições sociais de dar continuidade a essa escolarização. Quando falamos em caracterizar um perfil de estudantes da EJA, ou separá-los em alfabetizados e não alfabetizados, escolarizados e não escolarizados, já se esconde nessa manobra tipos de classificação, que notadamente só tem sentido para efeitos didáticos. Precisamos reconhecidamente olhar para além da condição de falta de escolarização, olhar pelo viés das condições adversas que essa falta de oportunidade ocasionou na vida dessas pessoas. Por exemplo, nun- ca devemos tratar essas pessoas como seres humanos desprovidos de alguma habilidade ou de cultura, em virtude da pouca escolariza- ção, pois o fato de não ter tido oportunidades educacionais não faz da pessoa humana, menos humana; ao contrário, há casos de muita sabe- doria e de uma cultura popular riquíssima nessas pessoas que, mesmo não sabendo ler e escrever, demonstram respeito, saberes populares e solidariedade incomparáveis. Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 55 Para compreender a questão do analfabetismo e da escolarização ou não no Brasil, é necessário entender que a demanda por práticas de escolarização é característica de sociedades que demandam esse tipo de conhecimento. Logo, contextualizar que o país teve uma industria- lização tardia, sendo simples perceber o porquê muitas pessoas não tiveram acesso à escolarização. Requer também, como afirma Soek (2009), conhecer a história de vida e sua cultura, entendendo-os como sujeitos com diferentes experiências de vida e que não tiveram acesso à escola devido a diversos fatores de ordem econômica, social, política, geográfica e cultural. Para Arroyo (2001, p. 15), falar dos educandos da EJA é “falar, sobre- tudo do jovem, adulto, trabalhador, pobre, negro, oprimido e excluído”. Identificamos, assim, a estreita relação estabelecida entre a incidência da exclusão às restrições ao acesso à educação. A própria caracterização do Parecer CNE/CEB n. 29/2006 identifica os adultos ou jovens da EJA, como, geralmente, mais pobres e com vida escolar mais acidentada. Estudantes que aspiram a trabalhar, trabalhadores que precisam estudar, o alunado da EJA tende a tornar-se mais heterogênea, tanto etária quanto socioeconomicamente, pela incorporação crescente de jovens adultos originários de grupos sociais, até o presente, sub representados nessa etapa da escolaridade. Jovens esses oriun- dos da sub escolarização brasileira, jovens esses que o sistema regular não consegue dar conta de completar a formação e aca- bam por engendrar as salas de aulas da EJA. (BRASIL, 2006) Essa caracterização fica evidente quando se analisa as estatísticas, pois abrangem determinadas características no que se refere a gênero e raça, evidenciando as marcas sociais da discriminação do preconceito para com os pretos e as mulheres historicamente no Brasil. A gerente de pesquisas do IBGE, Maria Lucia França Pontes Vieira, afirmou que “o analfabetismo tem endereço certo no Brasil: está na po- pulação mais velha, e boa parte está no Nordeste” (IBGE, 2016), caracte- rizando, com base nos dados estatísticos observados por região e idade. Para essa análise, partimos dos dados do último censo demográfi- co, ocorrido no ano de 2010. De acordo com os dados do censo de 2010 (IBGE, 2016), a região Nordeste chega a concentrar quase a metade dos analfabetos brasileiros, a maior proporção de analfabetos está nos municípios com até 50 mil habitantes, ou seja, municípios com baixo Os termos negro e preto são ter- mos polêmicos do debate social atual. Para fins de distinção, usamos o termo preto, como é definido e utilizado pelo IBGE. Atenção 56 Educação de Jovens e Adultos índice populacional, onde a taxa de analfabetismo pode chegar a 28% da população dessas cidades, já a proporção de idosos que não sabiam ler e escrever chega, em alguns casos, até 60% da população. Além da localização geográfica do país, outro fator importante re- lacionado ao analfabetismo está na distinção entre regiões rurais e ur- banas. No meio rural brasileiro, a taxa de analfabetismochega a ser três vezes superior do que as taxas da população urbana. No entanto, devido a densidade populacional, apesar das taxas rurais serem altas, quando comparamos em números absolutos o da população urbana ainda é bem maior. Outra questão analisada é quanto à faixa etária. Até porque essa é outra problemática bastante discutida na EJA. Se por um lado temos o desafio de alfabetizar em uma mesma sala um jovem de 15 a 20 anos; por outro, podemos ter no mesmo espaço um idoso de 70 ou 80 anos, com diferentes interesses. Ao observar estatisticamente essa realidade, é evidente a herança cultural quando ainda temos 39,2% das pessoas ido- sas não são alfabetizadas. Outro fator é explicitado referente às políticas públicas recentes, visto que aproximadamente 2% dos jovens brasileiros analfabetos têm entre 15 e 24 anos, ou seja, apesar da configuração de educação básica obrigatória, ainda temos jovens analfabetos. Na relação com o analfabetismo é evidente também a questão de renda. Infelizmente, em um país como o nosso, em que a desigualdade social é tamanha, os anos de estudo estão diretamente relacionados à renda familiar. Na análise dessas estatísticas, há de se considerar, por exemplo, as marcas sociais da discriminação, do preconceito para com os pretos e mulheres, visto que as estatísticas apontam que a maioria da popula- ção brasileira não alfabetizada está entre os pretos (14,4%) e mulheres (56%), proporcionalmente maior, se comparados a bancos e homens, respectivamente. Na questão de gênero, Soek (2009) evidencia que as mulheres em grande parte da história foram discriminadas e tradicionalmente eram entendidas como pessoas que não necessitavam de escolarização, pois a preparação delas deveria ser para casamento e para cuidar dos fi- lhos. Percebemos essa situação também nas classes de alfabetização, sendo a maior parte delas formada por mulheres, e quando se per- gunta a razão de não terem estudado na infância, respondem que os Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 57 pais entendiam que as mulheres não precisavam estudar. Muitas delas veem na educação um sonho que só depois de criar os filhos é possível realizar, não entendendo que a alfabetização é um direito, portanto, deveria ser garantida a todos. A discriminação também é encontrada ao analisar o percentual de analfabetos entre pretos (14,4%) e pardos (13,0%), que em 2010 foi su- perior aos que se declararam brancos (5,9%). Esses dados são preocupantes, principalmente se levarmos em consideração, como já dito anteriormente, que por trás de taxas e percentuais existem histórias de vida, sonhos e expectativas com um futuro melhor. O mais triste é constatar que apesar do relativo desen- volvimento da economia brasileira e do país, esse crescimento não vem acompanhado pelo desenvolvimento social. Para se deparar com essa realidade, basta conhecer uma escola destinada a jovens e adul- tos, conversar com as pessoas que nela buscam resgatar seus sonhos, ouvir suas histórias de vida, de lutas e sacríficos, de trabalho duro e de muita esperança. Estabelecendo paralelos entre a legislação educacional e os dados estatísticos sobre a escolarização do povo brasileiro, podemos perceber que, ao longo do tempo, a educação em nosso país nem sempre foi destinada a todos. Como você avalia que esses fatos influenciam nas demandas da EJA? Atividade 2 3.3 Alfabetização e letramento na EJA Vídeo Ao longo dos anos, muito se discutiu sobre a alfabetização de jovens e adultos a ponto de se imaginar que a EJA era só a alfabetização de adultos. Com o passar do tempo, até o conceito de alfabetização mudou, e com essa evolução, um novo conceito se estabeleceu, o de letramento. De modo geral, quando se falava em alfabetização, a pergunta re- corrente era sobre o melhor método de alfabetização. Sobre os mé- todos de alfabetização, Soek (2009) esclarece que o método em si não alfabetiza ninguém. Para a autora, não é o método que garante a aprendizagem da leitura e da escrita, visto que não basta aplicar o me- lhor método para que o alfabetizando aprenda, é necessário garantir a perfeita interação entre os diversos componentes desse processo. Além de questões em torno dos métodos de alfabetização, muito se tem discutido sobre os conceitos de alfabetização em contraponto ao analfabetismo, à alfabetização e ao letramento, ao alfabetismo digital e a alfabetização ao longo da vida, e índices de alfabetismo, em vez do simples analfabetismo, como vem estabelecendo o Inaf (2018) ao aferir graus diferentes de alfabetismo, mesmo entre pessoas escolarizadas. 58 Educação de Jovens e Adultos Logo, precisamos entender como o conceito de alfabetização mu- dou, não só em termos dos conceitos adotados nos censos demográfi- cos, mas compreendendo que alfabetização não se reduz somente ao domínio do sistema gráfico, mas em uma prática social resultante do trabalho coletivo e historicamente situado. De acordo com Soek (2009), até a década de 1950 era considerada alfabetizada a pessoa que tivesse a habilidade de ler e escrever um tex- to simples e que dominasse o código alfabético. A partir da década de 1970, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) passou a utilizar o termo analfabetismo funcional, que corresponde ao fenômeno no qual a pessoa sabe ler e escrever, mas não alcança o domínio social da leitura e da escrita, alertando para a necessi- dade de se estender a todos o acesso à escolarização básica, a fim de se garantir esse domínio. Desde então vêm sendo adotados diversos acor- dos e planos internacionais que aprofundaram esse entendimento rela- cionando-o à diversidade cultural e à educação ao longo de toda a vida. Contudo, Soares (2003, p. 9) destaca que até meados dos anos 1980, mesmo havendo tendências diferentes, as palavras alfabetizado e alfabetização tinham um significado relativamente consensual entre profissionais da educação e até mesmo entre a população leiga: “alfa- betizado era aquele que sabia ler e escrever; alfabetização, definia-se como o processo de ensinar e/ou aprender a ler e a escrever”. Para a autora, a ampliação do conceito revela-se mais claramente nos censos desenvolvidos a partir dos anos 2000, em que são defini- dos índices de alfabetizados funcionais (a adoção dessa terminologia já indica um novo conceito que se acrescenta ao de alfabetizado, sim- plesmente), tomando como critério o nível de escolaridade atingido ou a conclusão de determinado número de anos de estudo. A ressignificação do conceito de alfabetização trouxe também a pa- lavra letramento, usada basicamente com o mesmo sentido de alfabe- tismo funcional. A palavra letramento vem do termo da língua inglesa literacy, que designa a pessoa que sabe ler e escrever e fazer uso com- petente da leitura e da escrita. Para Soek (2009), o letramento não se restringe ao aprendizado au- tomático e repetitivo dos códigos convencionais da leitura e da escrita ensinados tradicionalmente nas escolas, mas denota trabalhar com os seus diferentes usos na sociedade e na vida cotidiana. Assim, letramen- Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 59 to é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na so- ciedade em que vive. Todavia, como se dá a construção do letramento? Que práticas de letramento podemos destacar na EJA? Precisamos entender as concepções de alfabetização como pro- cesso educativo com diferentes sentidos e significados a depender de cada momento histórico. Dito de outra forma, a alfabetização é uma necessidade das sociedades letradas, produto das relações entre os homens e, por isso mesmo, está sujeita às mudanças. Das necessida- des sociais é que deriva também a necessidade de escolarização. Com o desenvolver dos sistemas de escolarização é que surge toda a proble- mática sobre as concepções e os métodos educativos, bem como dis- cussões em torno dosconceitos e práticas de alfabetização, e pode-se dizer de letramento. Na alfabetização de jovens e adultos, as discussões envolvem, ainda, outras variáveis, visto que, historicamente, a escola e a alfabetização foram pensadas inicialmente para crianças. E aquela história comum de encontrar na alfabetização de jovens e adultos, daquela pessoa alta- mente engajada socialmente, porém sem o domínio do código escrito? Soares (2003, p. 10) assegura que “um indivíduo pode não saber ler e escrever, mas ser, de certa forma, letrado”. Para Paulo Freire, mais do que ensinar a ler e a escrever, o alfabetizador deve ensinar seus alfabetizandos a “leitura de mundo” e talvez essa seja tão importante quanto a leitura da palavra, pois como ele bem fez a crítica ao modelo de alfabetização, “não basta saber ler que EVA VIU A UVA. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (FREIRE, 2011, p. 12). Segundo Soek (2010), na concepção Freiriana, a alfabetização tem um significado mais abrangente, conforme vai além do domínio do có- digo escrito, pois, como prática discursiva possibilita uma leitura crítica da realidade, constitui-se como “um importante instrumento de resga- te da cidadania e reforça o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da qualidade de vida e pela transfor- mação social” (FREIRE, 2015, p. 68). 60 Educação de Jovens e Adultos No senso comum, para ser considerada letrada, uma pessoa não precisa necessariamente ser alfabetizada, mas, de modo geral, para ser considerada alfabetizada, ela deve possuir minimamente noção do le- tramento – entender para que serve a leitura e escrita. Sem isso, estaria em um conceito que define o analfabeto funcional, ou seja, a pessoa tem vivências escolares, conhece o alfabeto e recursos da leitura e da escrita, mas não consegue fazer uso competente desses códigos nos contextos sociais exigidos. Dessa forma, é possível afirmar que a pessoa só estará de fato al- fabetizada se entender o uso social da leitura e da escrita, fora disso saberá só reconhecer os fonemas/grafemas e decodificar palavras sem sentido, logo não é possível falar que a pessoa é alfabetizada sem ser letrada. O letramento, assim, seria o requisito da alfabetização. Para Soares (2003), alfabetização e letramento não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto e por meio de práticas sociais de leitura e escrita, isto é, mediante atividades de letramento, que por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema – em dependência da alfabetização. Para a construção do letramento entre os alfabetizandos da EJA, é importante tomar como referência o próprio espaço de vivencias desses alunos, e assim aproximar a realidade vivenciada por eles dos objetos cognoscíveis do cotidiano pedagógico escolar, para que assim, seja construído e assimilado novos saberes, procurando elucidar a rea- lidade social, econômica, política, científica e educacional. Desse modo, como propunha Freire (2011, p.16), “é preciso que o educando vá assu- mindo o papel de sujeito da produção de sua inteligência do mundo, e reconheça-se como arquiteto de sua própria prática cognoscitiva”. Em nosso estudo até aqui, vimos como a ideia do que é ser alfabe- tizado mudou ao longo das últimas décadas, e continua em evolução a depender das demandas sociais. A partir do ano de 2015, o Inaf passou a adotar nova categoriza- ção subdividindo a contagem do indicar em dois grupos: analfabetos funcionais e funcionalmente alfabetizados. Dentro desses grupos, a subdivisão ainda de nível analfabeto e rudimentar, para analfabetos funcionais e alfabetizados elementar, intermediário e proficiente os Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 61 dentro do nível de funcionalmente alfabetizados. Essa nova categori- zação lança mão de novos conceitos de alfabetização e passa a ter um perfil mais realístico no nível de alfabetização da população brasileira, independentemente dos anos de estudos. Nessa categorização, não importa os anos de estudos, mas o nível de alfabetização, tornando o conceito mais abrangente e incorporando a ideia de letramento. Para Soek (2009), o letramento não se restringe ao aprendizado au- tomático e repetitivo dos códigos convencionais da leitura e da escrita ensinados tradicionalmente nas escolas, mas denota o trabalho com os seus diferentes usos na sociedade e na vida cotidiana. Logo, podemos entender que as práticas de letramento não aconte- cem apenas dentro das classes de alfabetização, mas antes e durante a alfabetização e continuam para o resto da vida, e com o desenvolvimen- to das sociedades letradas vão se intensificando as necessidades de do- mínio dos códigos que expressassem as relações sociais. Dessa forma, o letramento passa cada vez mais ser um requisito de inclusão social. Procure relembrar como você foi alfabetizado. Ao fazer isso, escreva o que entende por alfabetização. Agora, retorne ao texto e diferencie: • Alfabetização. • Letramento. • Analfabetismo. • Analfabetismo funcional. • Funcionalmente alfabetizados. Atividade 3 3.4 Exclusão e inclusão na EJA Vídeo Com o desenvolvimento econômico da sociedade, os requisitos de alfabetização plena vão se intensificando e se tornando requisito de inclusão nessas sociedades. No Brasil, podemos identificar a evolução do conceito e a necessidade de alfabetização da população nos mo- mentos históricos e de acordo com o desenvolvimento social, político e econômico do país, pois conforme afirma Haddad e Di Pierrô (2000), a história brasileira nos oferece claras evidências de que as margens da inclusão e da exclusão educacional foram sendo construídas simétrica e proporcionalmente à extensão da cidadania política e social, em íntima relação com a participação na renda e o acesso aos bens econômicos. Como estudamos, o perfil da população analfabeta está diretamen- te relacionado a outros problemas sociais graves que o nosso país historicamente enfrenta. Um dos maiores desafios continua sendo a inclusão via alfabetização, agora em diferentes níveis, inclusive para a inclusão nas chamadas sociedades tecnológicas, pois como antevia a Unesco (2003, p. 11): 62 Educação de Jovens e Adultos a alfabetização é uma ferramenta de desenvolvimento social e humano, oportunidades educacionais dependem da alfabetização. A alfabetização está no cerne da educação básica para todos, e essencial para erradicar a pobreza, reduzir a mortalidade infantil, a igualdade dos gêneros e assegurar um desenvolvimento sustentável, a paz e a democracia. Além das marcas da exclusão social oriundas da própria constituição do povo brasileiro, os problemas decorrentes da não alfabetização con- tinuam a assombrar o desenvolvimento do país. Até um tempo atrás, acreditava-se que o problema do analfabetismo no país era uma ques- tão de acesso ao sistema educacional e que ao universalizar esse acesso em pouco tempo o problema estaria resolvido. Já que, historicamente, as taxas de analfabetismo se concentravam entre as pessoas mais idosas. No entanto, o que vemos nos dados mais recentes é que apesar das taxas de analfabetismo terem uma baixa relativa, o analfabetismo entre as pessoas mais idosas continua em um patamar bastante alto, e ainda temos um percentual significativo de jovens analfabetos. Se analisarmos as estatísticas de analfabetismo funcional, é ainda mais preocupante, pois apesar de o jovem ter acesso à escolarização, ele persiste em um nível de compreensão da leitura e da escrita bastante rudimentar. Dito de outra forma, continuamos a produzir novos anal- fabetos no Brasil, e ainda é grande o número de jovens que continuam excluídos da escola ou subescolarizados. Aos desafios próprios da inclusão via alfabetização de jovens e adultos, que já consta comoum direito negado, somam-se a pluralidade existente nesse universo da alfabetização de jovens e adultos quanto as diferenças de: faixa etária, perfil socioeconômico, diversidade regional/cultural e de interesses. Em outras palavras, se a alfabetização por si só já é um gran- de desafio, imagina se levarmos em conta outras variáveis socioculturais desse processo educativo que envolve pessoas jovens, adultas e idosas e outros elementos que caracterizam a exclusão social nesse perfil. Para Paiva (1987, p. 58), ao analisar os registros históricos da Educa- ção de Jovens e Adultos no Brasil, podemos perceber que “durante quase quatro séculos prevaleceu o domínio da cultura branca, cristã, masculina e alfabetizada sobre a cultura dos índios, negros, mulheres e não alfabe- tizados, que gerou o desenrolar de uma educação seletiva, discriminató- ria e excludente, que mantém similaridades até os dias atuais”. Em outras palavras, das condições histórico sociais do país é que derivam problemas sociais graves, dificuldades e marcas dessa exclusão até os dias atuais. Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 63 Aos futuros profissionais da educação resta o desafio de saber como diminuir as disparidades educacionais na chamada educação para to- dos e reparar esse dano histórico relativo a precariedade na história da escolarização do povo brasileiro. Se por um lado temos essa constituição histórica excludente, mas que agora, na EJA, passa a ser interpretada como inclusão, na tentati- va de tornar evidente seu papel inclusivo no atendimento àqueles que não tiveram acesso à formação escolar na infância ou “idade certa” garantida conforme legislação, o que nada mais é do que um direito negado; por outro, vemos a EJA abraçando demandas da exclusão dos sistemas educacionais vigentes. Como exemplo, podemos ver nos adolescentes evadidos ou não acolhidos na escola “regular” que em não atingindo o sucesso escolar, ou por não estarem na adequação idade/ano letivo, acabam por retor- nar nas turmas de EJA ao completarem seus 14 ou 15 anos. Outro exemplo está no número expressivo das demandas da Edu- cação Especial, a Lei n. 13.146, de julho de 2015, chamada de Lei Bra- sileira de Inclusão, conhecida também como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Se, por um lado, diz que consagra a política de educação inclusiva no Brasil; por outro, gerou precarização nesse atendimento inclusivo ao colocar nas mesmas salas de aula e em mesma condições adolescentes, jovens, adultos e idosos, com as mais variadas caracterís- ticas de educação especial. O problema não é a educação inclusiva em si, a questão levanta- da é esse remanejamento automático ao se completar a idade de fre- quentar as turmas da EJA, como se as dificuldades de aprendizagem e de inclusão enfrentadas nas escolas regulares e nos atendimentos especializados sumissem ao passar para a EJA. Desse modo, sem a pre- paração necessária para oferecer esse atendimento adequado, sem a formação especializada dos professores, o que era para ser uma po- lítica de inclusão, acaba por dar prosseguimento na segregação e na constituição histórica de exclusões. Veja, no paradigma de educação para todos, sempre questionamos quem cabe nesse todo. Só vemos sentido em falar de educação se for para todos. A educação é um direito universal e todos são todos mes- mo, salvaguardando as especificidades de cada modalidade. Para saber mais sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência, recomen- damos a leitura do documento oficial da Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em 26 ago. 2020. Leitura Ainda sobre os históricos da escolarização do povo brasileiro, diante das legislações educacionais, que relações podemos estabelecer com a questão da inclusão x exclusão no desenvolvimento da EJA? De que jovens e adultos estamos falando nesse contexto? Atividade 4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm 64 Educação de Jovens e Adultos CONSIDERAÇÕES FINAIS Educação é um direito universal. Na garantia de educação para todos, no desenvolvimento da escolarização em massa, outros desafios perpas- saram para além da obrigatoriedade, do acesso, da permanência e da inclusão no sistema educacional. Desafios relacionados à questão das di- ficuldades de aprendizagem, desafios próprios das políticas de inclusão que não conseguem atingir o ideal planejado, e acabaram por remanejar alunos da educação especial para as classes de EJA. Como pudemos analisar, dos contextos da educação inclusiva, além dos jovens e adultos subescolarizados que apresentavam dificuldades na escola comum/regular, vieram ainda jovens e adultos da educação especial, que ao atingirem a idade são automaticamente matriculados na EJA sem se preo- cupar com dificuldades e deficiências que a EJA não tem como dar conta de toda a diversidade, ou pelo menos não tem como assumir sozinha, diante da complexidade dos sistemas educativos. Por outro lado, é premissa não só da EJA, como da educação, a inclusão, o acolhimento, o ato educativo. Estudamos que a EJA emergiu desses movimentos de lutas e desa- fios até se tornar uma modalidade da educação básica reconhecida pela LBD, com características que lhes são próprias. Agora, somam-se esses novos desafios não apenas questões de acesso a alfabetização, ou a obrigatoriedade de acesso a escolarização, mas as garantias de aprendi- zagem, para só assim reverter as tristes estatísticas aqui mencionadas. Esse não é um desafio somente da EJA, que já incorpora demandas da educação especial, profissional, entre outras demandas do mundo adul- to. Por esse motivo, como vimos, é que os novos requisitos da alfabeti- zação ao longo da vida ganham sentido. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal (1988). Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Emenda Constitucional n. 14, de 12 de setembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 13 set. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc14.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Emenda Constitucional n. 59, de 11 novembro de 2009. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 12 nov. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc59.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, DF, 1996, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. Diversidade sociocultural dos educandos da EJA 65 BRASIL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 dez. 1961. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4024. htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 ago. 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692. htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 jul. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/CEB 20/2009. Brasília, DF: Ministério da Educação, 11 nov. 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Secretária de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionaispara a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF: MEC/SEF, 2000. IBGE. Sínteses Históricas. 2020. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/sinteses- historicas. Acesso em: 10 jul. 2020. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. HADDAD, S.; DI PIERRO, M. C. Escolarização de Jovens e Adultos. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 14, maio/ jun./ jul./ago. 2000. PAIVA, V. P. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1987. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2016/IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. SOEK, A. M. Aspectos contributivos do manual do livro didático do PNLA/2008 na formação do alfabetizador do programa Brasil alfabetizado. Dissertação (Mestrado) – Curitiba, UFPR. 2009. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/18613/ Dissertacao%20Ana.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 14 ago. 2020. SOEK. Fundamentos e metodologia da Educação de Jovens e Adultos. Curitiba: Fael, 2010. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Alfabetização como liberdade. Brasília: Unesco; MEC, 2003. GABARITO 1. O objetivo da atividade, além de levar o aluno a refletir sobre as taxas de analfabetis- mo e alfabetismo, é possibilitar um exercício comparativo e verificar a veracidade das taxas muito próximas à realidade que conhecemos. Não existe uma única resposta, no entanto, independentemente dos dados levantados, por se tratar de dados estatísti- cos, existem semelhanças com qualquer amostragem realizada, além de ser um exer- cício de percepção com base na realidade. Dito de outra forma, é bem possível que a pessoa que esteja realizando a atividade seja uma das única a ingressar no ensino su- perior, essa pessoa tem alguns poucos primos que concluíram o ensino médio e, claro, a maioria não concluiu. O mesmo vale para os parentes mais velhos, fazendo mais uma peneira entre os que concluíram e não concluíram o ensino fundamental, e se in- vestigar bem vai encontrar a avó, ou algum parente próximo que por diversos motivos não é alfabetizado ainda. O mesmo exercício é interessante, se independentemente dos anos de estudo observar nessas pessoas os níveis de envolvimento com práticas 66 Educação de Jovens e Adultos de proficiência de alfabetismo. Esse exercício pode ter pequenas variações conforme região do país, mas, de modo geral, é bem possível estabelecer paralelos entre esses dados estatísticos gerais e que temos localmente próximos a nós, pois grande parte das pesquisas são feitas por amostragens, logo, refletem nossa realidade. 2. O fato de a legislação não ser obrigatória no atendimento a toda criança e jovem em idade escolar, ao longo dos anos, continuou a gerar demandas para a EJA. E mesmo em casos em que houve universalização de atendimento, esse não veio acompanhado da garantia da alfabetização plena, fazendo que mesmo jovens que tenham frequen- tado a escola, acabem por desistir e retomar seus estudos posteriormente na EJA. 3. Ao possibilitar essa reflexão o estudante é convocado a diferenciar e saber o que sig- nifica cada um dos termos. • Alfabetização: não se reduz somente ao domínio do sistema gráfico, mas consiste em uma prática social, resultante do trabalho coletivo e historicamente situado. • Letramento: é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive. • Analfabeto ou analfabetismo: remonta a condição da pessoa que não é alfabetizada, ou não conhece ou não sabe usar o código alfabeto, ou seja, a pessoa que não sabe ler ou escrever; analfabetismo seria o fenômeno ou o conjunto de pessoas que não alfabetizadas. • Analfabetismo funcional: refere-se ao tipo de instrução em que a pessoa pode até sa- ber ler e escrever, mas é incapaz de interpretar o que lê e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas. • Funcionalmente alfabetizados: diz respeito às pessoas que são alfabetizadas, e mes- mo dentro desse conceito poder ter um nível de alfabetização elementar, intermediá- rio e proficiente. 4. No desenvolvimento da escolarização em massa, outros desafios perpassaram para além da inclusão no sistema educacional. Desafios relacionados à questão das difi- culdades de aprendizagem, desafios próprios às políticas de inclusão que não conse- guem atingir o ideal planejado e acabaram por remanejar alunos da educação espe- cial para classe de EJA. Além dos jovens e adultos subescolarizados, que apresentavam dificuldades na escola comum/regular, vieram ainda jovens e adultos com dificulda- des e deficiências que a EJA não tem como dar conta de toda a diversidade. Singularidades da mediação pedagógica 67 4 Singularidades da mediação pedagógica Quando se trata de Educação de Jovens e Adultos como moda- lidade da educação básica, muitos dos questionamentos e deba- tes atuais, incluindo questões referentes à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), giram em torno da comparação com a educa- ção escolar de crianças no que tange ao currículo e à formação do professor e das adequações necessárias de materiais didáticos, práticas pedagógicas e de avaliação. Assim como em outras modalidades da educação, há singu- laridades características ao público a que se destina, porém, os conteúdos e os objetivos de conhecimento e aprendizagem são os mesmos garantidos por lei a todos, independentemente das formas como se organizam, seja nos tempos escolares, nas prá- ticas pedagógicas, nas questões curriculares, entre outros. Isto é, há um rol de conhecimentos básicos que deve ser trabalhado em todas as modalidades de ensino nas disciplinas de origem como conhecimento escolar por níveis. Cada modalidade apresenta problemáticas distintas, bem como modos de superar os dile- mas educacionais. Assim, neste capítulo analisamos as questões curriculares e de- bateremos sobre os princípios norteadores de um currículo para a EJA. Compreendemos a necessidade de formação de professores e fazemos considerações sobre a mediação pedagógica para a atua- ção nessa modalidade de ensino. Também discutimos os materiais didáticos, seus usos e suas adequações, e a questão da transposi- ção didática dos materiais do ensino regular para a EJA. 68 Educação de Jovens e Adultos 4.1 O currículo na EJA Vídeo Para começar, podemos pensar, como currículo, nas competências e habilidades necessárias e garantidas por lei com a implementação da BNCC, entendendo o que muda para as adequações na EJA. A BNCC é um documento de organização curricular nacional que tem caráter curricular normativo. Ela busca garantir a integralização do conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem de- senvolver ao longo das etapas e das modalidades da educação básica para que tenham assegurados seus direitos educacionais. Muitas pessoas, não só os profissionais da área de educação, mas todos os interessados nessa nova fase de implementação da Base, têm se perguntado como a EJA está sendo tratada no documento. A resposta mais óbvia é: da mesma maneira que as outras moda- lidades da educação básica. Os mais críticos dirão que a Base não faz menção à EJA, assim como não se refere às outras modalidades, por exemplo, a educação especial, a educação a distância etc. Mas não é função da BNCC tratar dessas adequações. A Base visa garantir que os currículos se identifiquem na união de prin- cípios e valores já abordados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) específicas de cada modalidade ou etapa educativa. Dessa maneira, épremissa da BNCC “reconhecer que a educação tem um compromisso com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, físi- ca, afetiva, social, ética, moral e simbólica” (BRASIL, 2017, p. 10). A BNCC e o desenvolvimento de propostas curriculares para a edu- cação básica nos devidos sistemas de ensino têm papéis complemen- tares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas por lei. De acordo com a BNCC, essas decisões resultam de um processo de en- volvimento e participação das famílias e da comunidade, e se referem, entre outras ações, a: Singularidades da mediação pedagógica 69 • contextualizar os conteúdos dos componentes curriculares, identificando estratégias para apresentá-los, representá-los, exemplificá-los, conectá-los e torná-los significa- tivos, com base na realidade do lugar e do tempo nos quais as aprendizagens estão situadas; • decidir sobre formas de organização interdisciplinar dos componentes curricu- lares e fortalecer a competência pedagógica das equipes escolares para adotar estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas em relação à gestão do ensino e da aprendizagem; • selecionar e aplicar metodologias e estratégias didático-pedagógicas diversificadas, recorrendo a ritmos diferenciados e a conteúdos complementares, se necessário, para trabalhar com as necessidades de diferentes grupos de alunos, suas famílias e cultura de origem, suas comunidades, seus grupos de socialização etc.; • conceber e pôr em prática situações e procedimentos para motivar e engajar os alunos nas aprendizagens; • construir e aplicar procedimentos de avaliação formativa de processo ou de resulta- do que levem em conta os contextos e as condições de aprendizagem, tomando tais registros como referência para melhorar o desempenho da escola, dos professores e dos alunos; • selecionar, produzir, aplicar e avaliar recursos didáticos e tecnológicos para apoiar o processo de ensinar e aprender; • criar e disponibilizar materiais de orientação para os professores, bem como manter processos permanentes de formação docente que possibilitem contínuo aperfeiçoa- mento dos processos de ensino e aprendizagem; • manter processos contínuos de aprendizagem sobre gestão pedagógica e curricular para os demais educadores, no âmbito das escolas e sistemas de ensino. (BRASIL, 2017, p. 16-17) A questão curricular na EJA, por exemplo, não pode ser diferente do que se verifica na educação básica como um todo. Ou seja, precisa ter a garantia dos objetivos de aprendizagem independentemente das formas de se organizar os conteúdos e os tempos escolares. O que vai diferir é que no currículo há um misto de conteúdos especificamente científicos e outros que fazem parte da própria cultura escolar. Conforme afirma Soek (2009), na organização dos conteúdos e das metodologias de EJA, temos um forte apelo aos conteúdos cotidianos, relacionados, sobretu- do, com as experiências de vida que os alunos trazem à escola. 70 Educação de Jovens e Adultos Outra questão que podemos lançar um olhar é a constituição his- tórica da EJA, que sempre teve um caráter compensatório quando a abordagem se refere aos conteúdos curriculares, ideia advinda principalmente do ensino supletivo, aligeirado e abreviado. Nesse sentido, há de se considerar inúmeros fatores, dentre eles a não existência de um currículo definido para essa modalidade de ensino; o que temos, em âmbito nacional, são diretrizes apontando eixos ar- ticuladores que se aproximam, ou não, da realidade dos estudantes. Nos programas de alfabetização de jovens e adultos, por exemplo, não há normatização curricular, ocorrendo conforme as diretrizes de cada governo. Na ausência desses mecanismos, a alfabetização tem sido integrada ao primeiro segmento de escolarização básica na moda- lidade EJA, em geral ofertada pelos governos municipais, os quais irão propor e conduzir as diretrizes curriculares. Já para o primeiro segmento da educação básica da EJA existe um documento norteador que oferece importante subsídio à ela- boração de projetos e propostas curriculares a serem desenvolvi- dos, que é a Proposta Curricular para o 1º segmento, lançada pelo Ministério da Educação em 2001. Esse documento condensa orienta- ções e questões curriculares para os anos inicias, ou seja, o primeiro segmento da EJA, voltadas ao ensino de Língua Portuguesa, Matemá- tica, Estudos da Sociedade e da Natureza, Planejamento e avaliação. Porém, cada sistema de ensino ou unidade de oferta irá redigir suas propostas pedagógicas de acordo com a oferta, a organização e as características de seus alunos, e cada professor poderá adaptar à sua realidade. Assim como as propostas do primeiro segmento, a oferta e a orga- nização curricular do segundo segmento da EJA também estão a cargo dos sistemas de educação – seja municipal, estadual ou particular – que têm autonomia para realizarem suas propostas curriculares. As orientações nacionais na Proposta Curricular para o 2º segmento da EJA estão divididas em três volumes. O primeiro é um documento intro- dutório que traz algumas características e trajetórias históricas da EJA e de seus sujeitos, bem como a apresentação de como se chegou a essa organização curricular e os fundamentos comuns às diversas áreas para a reflexão curricular; o segundo volume aborda as áreas de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, História e Geografia; e o terceiro volu- me aborda Matemática, Ciências Naturais, Arte e Educação Física. Essas A Proposta Curricular para o 1º segmento congrega importantes conceitos, servindo de excelente ponto de partida para quem está iniciando seus estudos pedagógicos na EJA, ou para quem precisa conhecer pressupostos básicos dela nos anos iniciais do ensino funda- mental. Disponível em: http://portal. mec.gov.br/secad/arquivos/ pdf/eja/propostacurricular/ primeirosegmento/ propostacurricular.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020. Documento http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular/primeirosegmento/propostacurricular.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular/primeirosegmento/propostacurricular.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular/primeirosegmento/propostacurricular.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular/primeirosegmento/propostacurricular.pdf http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja/propostacurricular/primeirosegmento/propostacurricular.pdf Singularidades da mediação pedagógica 71 orientações servem de base para que outros sistemas organizem seus documentos normativos e norteadores. De acordo com a Proposta (BRASIL, 2002), os conteúdos de natureza conceitual envolvem a abordagem de conceitos, fatos e princípios. Para concretizar a aprendizagem conceitual, o educando precisa ad- quirir informações e vivenciar situações e generalizações que, mesmo sendo análises e sínteses parciais, permitem verificar se o conceito está sendo aprendido. A formulação dessas generalizações possibilitará ao estudante atingir conceitualizações cada vez mais abrangentes, que o levarão à compreensão de conceitos no plano da abstração e da apren- dizagem significativa. A abordagem dessas relações está diretamente relacionada com o conteúdo procedimental. Os conteúdos de natureza procedimental expressam um saber fazer que envolve tomar decisões e realizar ações. Eles estão presentes nos projetos de ensino que revelam procedimentos, como realizar uma pesquisa, desenvolver um experimento, fazer um resumo, construir uma maquete (BRASIL, 2002). No desenvolvimento de uma pesquisa, por exemplo, é necessário planejar os procedimentos, ou seja, pesquisar em mais de uma fonte, fazer entrevistas, comparar os dados obtidos, registrar o que for rele- vante, organizar as informações para produzir um texto de pesquisa, apresentá-lo à classe e elaborar a síntese do tema pesquisado. Durante o planejamento e a realização desses procedimentos, o educando necessitada mediação do educador, pois a aprendizagem de um conteúdo procedimental não é espontânea, nem depende somente das habilidades individuais. Analisar, compreender e criar estratégias para comprovar hipóteses e “saber fazer” são conteúdos procedimentais que devem ser mobilizados em sala de aula pela me- diação do professor. Segundo a Proposta (BRASIL, 2002), no processo educativo de- vem ser incluídos também os conteúdos de natureza atitudinal, os quais compreendem normas, valores e atitudes que permeiem o conhecimento escolar. Na abordagem didática dos conteúdos atitudinais, é necessário que a equipe escolar vivencie essas práticas por meio de condutas cotidia- nas, para que o educando possa observá-las e incorporá-las em seu Para conhecer mais e acessar os documentos na íntegra, procure pela Proposta Curricular para o 2º segmento da EJA. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/pet/194- secretarias-112877938/ secad-educacao-continuada- 223369541/13534-material- da-proposta-curricular-do-2o- segmento. Acesso em: 11 ago. 2020. Documento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento http://portal.mec.gov.br/pet/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/13534-material-da-proposta-curricular-do-2o-segmento 72 Educação de Jovens e Adultos convívio social, não somente em atividades específicas, mas integradas no jeito de ser da escola. Já para o ensino médio na modalidade EJA não há diretrizes nacio- nais, o que acontece é que cada sistema de ensino, geralmente esta- dual, organiza seus conteúdos de modo a atender às especificidades da EJA e adequar-se aos tempos escolares, ora organizando por disci- plinas, ora por semestres. Também procura levar em conta as expe- riências e os saberes advindos de outras instâncias, por exemplo do mundo do trabalho, como forma de validação curricular. Para Santomé (1998, p. 25), “o problema das escolas tradicionais, nas quais se dá uma forte ênfase aos conteúdos apresentados em pa- cotes disciplinares, é que não conseguem que os alunos e alunas sejam capazes de ver esses conteúdos como parte de seu próprio mundo”. Ou seja, os conteúdos são fragmentados e sem contextualização, de modo que os alunos não percebem os significados, dificultando a aprendiza- gem, pois só se aprende o que tem sentido e significado. Isso implica o educando saber o que está aprendendo e por que está aprendendo. Na análise de Arroyo (2001), a aproximação com os saberes da vida cotidiana é um dos legados importantes da EJA para a educação básica, já que os conteúdos são ressignificados e ganham sentido para a vida diária. Para concluir, vamos pensar em termos gerais o que seria uma defi- nição de currículo. Podemos sintetizar com base na análise de Moreira e Candau (2006), quando expõem que currículo constitui um instru- mento utilizado por diferentes sociedades para desenvolver os proces- sos de conservação, transformação e renovação dos conhecimentos historicamente acumulados, sendo, portanto, uma construção social a depender das demandas sociais e do momento histórico. Assim, em vários contextos, o currículo teve suas formas diver- sas, com destaque ora para modelos mais conservadores, ora para modelos mais progressistas. O currículo, de acordo com Moreira e Candau (2006), já foi de- finido como: Singularidades da mediação pedagógica 73 Currículo associado à listagem de objetivo. Listagem de disciplinas a serem ensinadas e, dentro de cada disciplina, os conteúdos. Currículo como conhecimento escolar, conteúdo, grade etc. Conjunto de experiências que o aluno vive na escola sob a orientação do professor. Currículo como um plano. Em cada formato dessa lista, podemos imaginar uma maneira de pensar a escola, o ensino, o professor e o aluno. Trata-se de uma forma de posicionar-se e reforçar o fato de que a educação jamais será neu- tra, carregando sempre princípios, valores e um currículo oculto. Este é o currículo subentendido nos modos de organização, participação e do que realmente é vivido nas entrelinhas das escolas, porém não é sistematizado como conhecimento escolar. Os diversos enfoques expressam ideias e valores também distintos, como quando se associa o currículo à experiência: o foco sai do conteú- do que se ensina, do conhecimento escolar que se aprende e passa para a experiência vivenciada pelos sujeitos. Dessa maneira, para Moreira e Candau (2006), o currículo expressa o conjunto de experiências que os alunos vivem na escola e que se relaciona com o conhecimento escolar. Essa visão não descarta o papel do conhecimento, pois não se pode pensar a escola sem conhecimento. A ideia defendida pelos autores traz à tona outras questões e reforça o fato de que o ser humano aprende e ensina as experiências em meio às relações que estabelece na escola. Contudo, não descarta a necessidade de o aprender estar organizado, pensado e planejado; ou seja, não é algo que acontece de qualquer jeito. 74 Educação de Jovens e Adultos Moreira e Candau (2006) ainda apresentam alguns destaques acer- ca do currículo como um processo dinâmico: Currículo é simultaneamente projeto e prática, um projeto político-cultural. Currículo na condição de núcleo central da escola. Currículo é necessariamente um conjunto de escolhas, é uma seleção de cultura e uma seleção de um conjunto mais amplo de possibilidades. No entanto, os destaques pontuados pelos autores somente se concretizam pela ação mediada e compromissada com a formação do educando desde o planejamento até a efetivação desse plano em sala de aula. 4.2 A formação do professor de EJA Vídeo A formação do professor da Educação de Jovens e Adultos (EJA) é apregoada na legislação brasileira como prioridade para atender aos adolescentes, jovens, adultos e idosos que não tiveram acesso à esco- larização básica e que têm nesta modalidade de ensino a oportunidade de retomar a escolarização. Devido a diversos fatores de várias ordens, esses educandos possuem perfis diferenciados dos discentes do cha- mado sistema regular de ensino. De acordo com Soares (2008), é possível notar que a formação docente para atuação na EJA ainda é muito incipiente dentro do ce- nário atual. Nesse sentido, o autor revela que há um escasso inves- timento na formação de profissionais para atuar nessa modalidade, sendo esse um problema que corrobora a restrição do processo de formação docente às experiências vividas na escola e à adaptação de práticas pedagógicas destinadas a crianças, assim, comprometendo a qualidade na implementação de um projeto político-pedagógico des- tinado especialmente às escolas de EJA. Em termos de normatização da formação básica inicial para atuação na EJA, é a mesma destinada à formação do professor da educação bá- sica, ficando a critério dos sistemas de formação de docentes a oferta Investigue se em seu município e estado existem diretrizes municipais e estaduais para a oferta da EJA. Pesquise como elas são apresentadas nas propostas político-pedagógicas das escolas que a oferecem, ana- lisando como cada instituição faz a abordagem curricular e as devidas adequações. Atividade 1 Singularidades damediação pedagógica 75 de disciplinas especiais ou isoladas para melhor aprofundamento, po- rém, sem caráter obrigatório. No Parecer n. 11/2000, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2000, p. 21), é colocado que: o preparo de um docente voltado para a EJA deve incluir, além das exigências formativas para todo e qualquer professor, aquelas rela- tivas à complexidade diferencial desta modalidade de ensino. Assim esse profissional do magistério deve estar preparado para interagir empaticamente com esta parcela de estudantes e de estabelecer o exercício do diálogo. Jamais um professor aligeirado ou motivado apenas pela boa vontade ou por um voluntariado idealista e sim um docente que se nutra do geral e também das especificidades que a habilitação como formação sistemática requer. Esse documento remete à ideia do reconhecimento por parte dos órgãos governamentais da qualificação específica para EJA e ainda da preocupação com o (des)preparo dos educadores para trabalhar com os adolescentes, jovens, adultos e idosos, de modo a corroborar uma educação que garanta não somente o acesso, mas que dedique esfor- ços para a permanência dos educandos nos espaços escolares. Entre- tanto, isso não reverte a obrigatoriedade da formação básica. Da mesma forma que a habilitação para a docência, isso não se res- tringe somente à formação pragmática, técnica, com a certificação ne- cessária para o exercício da profissão, mas a um posicionar-se perante às demandas do mundo. Nessa visão, o tornar-se professor da EJA é uma ação de cada dia, um processo de adoção de posturas pedagógi- cas legitimadas pela realidade social, que envolve a interpretação das representações de mundo dos educandos e o conhecimento de suas expectativas. É na relação pedagógica e dialógica com seus educandos que o educador constituirá sua identidade. Nessa lógica, conforme Soek (2009), podemos discutir qual é o pa- pel, a natureza, a abrangência e a dimensão dos cursos de formação de professores, seja inicial ou continuada, e no que isso implica a prática pedagógica cotidiana, pois é fundamentalmente o professor o maior propulsor de mudanças sociais. A mudança de paradigma, nesse sen- tido, é entender que educação não pode ser transmissão, mas, sim, diálogo em construção. Com base nesse modelo, o professor assume uma postura de facilitador do conhecimento, e não de detentor do co- nhecimento, como na pedagogia tradicional. 76 Educação de Jovens e Adultos No Brasil, muito pouco vem sendo feito na qualidade da carreira dos profissionais da educação para que a situação educacional em geral e a for- mação para EJA específica sejam revertidas. Em relação à Educação de Jo- vens e Adultos, notamos pouco cuidado com a formação e a carreira desses profissionais, como se de fato a EJA lutasse para deixar de existir e como se o professor se fabricasse por um passe de mágica. Desse modo, pensar na importância do docente como agente que con- tribui para processos de transformação social implica a compreensão de que o professor não se torna professor na sua formatura da licenciatura, mas, sobretudo, na sua vida docente. Isso pressupõe que o processo de formação inicial se amplia para a formação continuada e, prioritariamen- te, que seja uma formação em serviço. Segundo Alves (2002, p. 18), “a formação de professores neces- sita ser compreendida segundo múltiplos contextos: a) o da forma- ção acadêmica [...]; b) o das propostas oficiais [...]; c) o das práticas pedagógicas cotidianas [...]; d) o das culturas vividas [...]; e) o das pesquisas em educação [...]”. Para refletir sobre essas possibilidades pedagógicas, Freire (2011) assinala que a prática docente deve ultrapassar a apreensão dos co- nhecimentos nas suas múltiplas dimensões – ontológica, política, ética, epistemológica e pedagógica –, passando a ser testemunhada pelos educadores, para que no processo dialético possa criar meios para a produção de conhecimento. Nesse sentido, vale ressaltar que os professores da EJA são privile- giados com uma gama de experiências trazidas pelos seus educandos, jovens e adultos, que poderão ressignificar os processos educativos nos espaços escolares, formando e se autoformando continuamente. 4.3 Materiais didáticos, avaliação e mediação pedagógica Vídeo Os desafios da atuação com a EJA exigem do educador um olhar cui- dadoso sobre as questões que norteiam a mediação pedagógica desde o conhecimento de quem são os seus educandos, o planejamento das atividades, até os recursos didáticos e as formas de se avaliar. Uma das principais questões anteriores às práticas pedagógicas se refere ao papel de acolhimento que os docentes precisam ter em men- Sobre a formação do professor necessária para a atuação na EJA, elenque, de acordo com o que você estudou nesta seção, ações e requisitos pertinentes à ação docente. Atividade 2 Singularidades da mediação pedagógica 77 te, pois, uma vez evadidos da escola, os alunos da EJA sentem dificul- dades em retomar seus estudos e precisam superar inúmeros outros desafios para retornarem às rotinas de estudos e aos bancos escolares. A aceitação e o acolhimento dessas condições são imprescindíveis. Na relação entre educador e educando e nas formas de se cons- truir novos conhecimentos, diversos fatores influenciam e interferem no processo de ensino e aprendizagem, tanto os aspectos operacionais do dia a dia da sala de aula quanto as próprias concepções que se tem sobre as relações com o conhecimento. A inovação curricular não consiste apenas em mudar, ou tentar mudar, o que se ensina e se aprende na escola. Tão importante quanto o que se ensina e se aprende é como se ensina e como se aprende. Na verdade, hoje sabemos que ambos os aspectos são indissociáveis. O que finalmente os alunos aprendem na escola depende em boa medida de como o aprendem; e o que final- mente nós professores conseguimos ensinar aos nossos alunos é indissociável de como lhes ensinamos. (SALVADOR, 1999, p. 30) O processo educativo não se caracteriza pelo recebimento de co- nhecimentos prontos e acabados, mas pela ação e reflexão sobre os conhecimentos, ou seja, a forma como cada um os recebe e reelabora. Questionar a realidade, formulando problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criativida- de, a intuição e a capacidade de análise crítica; selecionar procedi- mentos e verificar a sua adequação; e aproximar o cotidiano dos conteúdos escolares e vice-versa são alguns dos desafios da EJA. Isso não significa que se deva fazer uma mera adaptação de uma transposição didática realizada para alunos do chamado “ensino regular”, ou ensinar somente com base nas demandas que os alu- nos trazem, mas ter clareza do que ensinar dentre os saberes ditos “científicos”, aqueles saberes escolares, aproximando da real ne- cessidade da vida cotidiana. Essa transposição didática dos saberes científicos e dos saberes cotidianos para os saberes escolares deve ser construída com base no perfil e nos interesses dos aprendizes na etapa e no nível de co- nhecimento em que se encontram. Deve ser construída tendo em mente alunos com experiências específicas de vida, como os da EJA. Por isso que na orientação de aprendizagem de alunos adultos devemos levar em conta aspectos da vida cotidiana, e não somen- 78 Educação de Jovens e Adultos te conteúdos curriculares das disciplinas padrões desconectadas da realidade, pois as unidades apropriadas para se organizar um pro- grama de aprendizagem são as situações de vida. Contudo, dadas as características do alunado da EJA e das formas de oferta e organiza- ção, a questão curricular não segue um padrão preestabelecido, por isso continua sendo tão emblemática. Em uma de suas abordagens sobre a questão de que educação ne- nhuma é neutra, Freire (1997, p. 135-136) discute: que conteúdos ensinar, a favor de que ensiná-los, a favor de quem, contra que, contra quem.Quem escolhe os conteúdos e como são ensinados. Que é ensinar? Que é aprender? Como se dão as relações entre ensinar e aprender? Que é o saber de experiência feito? Podemos descartá-lo como impreciso, desarticulado? Como superá-lo? Que é o professor? Qual seu papel? E o aluno, que é? E o seu papel? [...] Como superar a tentação basista, voluntarista, e como superar também a ten- tação intelectualista, verbalista, blablabante? Como trabalhar a relação linguagem-cidadania?. É nesse sentido que se propõe repensar as práticas educativas na EJA, tendo em vista que: a singularidade das conexões que cada um estabelece, em função de suas experiências e saberes anteriores e, também, a multipli- cidade de conexões possíveis, não faz sentido pressupor um tra- jeto único e obrigatório para todos os sujeitos em seus processos de aprendizagem. Cada um tem uma forma própria e singular de tecer conhecimentos através dos modos como atribui sentido às informações recebidas, estabelecendo conexões entre os fios e tecituras anteriores e os novos. Esse entendimento coloca novas exigências àqueles que pretendem formular propostas curricula- res que possam dialogar com os saberes, valores, crenças e expe- riências dos educandos, considerando-os como fios presentes nas redes dos grupos sociais, das escolas/classes, dos professores e dos alunos e, portanto, relevantes para a ação pedagógica [...] O formalismo e a fragmentação dos saberes que vêm caracterizan- do a grande maioria das propostas curriculares que conhecemos poderiam, assim, ser superados. (OLIVEIRA, 2007, p. 87) Diante da especificidade da demanda da EJA, esse fator se torna mais agravante quando as vivências culturais e sociais dos jovens e adultos são ignoradas, articulando a isso a imposição de propostas curriculares com a mesma lógica infantil. Nesse contexto, o óbvio e o Singularidades da mediação pedagógica 79 comum são ressaltados ao invés de rompidos e transformados. O que vemos em grande proporção são materiais e técnicas educativas sendo transpostos da educação de crianças sem qualquer senso de adapta- ção, infantilizando as práticas escolares da educação de adultos, princi- palmente no que tange à alfabetização. A falta de material didático específico para a EJA pode ser um dos agravantes dessa situação. A produção de livro didático específico, no Brasil, é bem tardia. Tirando raras exceções de produções locais, o primeiro programa nacional de distribuição de livro didático desti- nado à EJA só ocorreu no ano de 2007, influenciado pelas metas do Plano Nacional de Educação (PNE) para a erradicação do analfabetismo entre jovens e adultos. Posteriormente, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi ampliado para a Educação de Jovens e Adultos nas etapas do ensino fundamental. Ainda não há um programa do livro didático na modalidade EJA para o ensino médio. Com a escassez de materiais didáticos aliada à pouca formação de professores para essa modalidade, é obvio que ocorra a transposição didática do ensino regular. Mas o grande problema não é somente o uso dos materiais didáticos; podemos aproveitar os diferentes re- cursos, desde que sejam feitas as adequações necessárias. O maior impasse é incorrer na infantilização do adulto, pois a relação que este tem com as questões e as expectativas escolares é potencialmente dis- tinta da que as crianças têm. O aluno adulto, além de toda bagagem sociocultural que já traz consigo, espera que a escola o auxilie em suas demandas da vida adulta e de profissionalização. Nesse sentido, a sondagem inicial dessas concepções ou dos sabe- res que os educandos da EJA já trazem pode ser verificada em uma espécie de avaliação diagnóstica. Para Soek (2009), quando o educando da EJA chega à escola, ele traz consigo suas representações de mundo e espera que ela valorize seu modo de pensar, bem como ofereça condições de “ir além”. Em outras palavras, é papel da escola dar subsídios para que os educandos possam se desenvolver intelectualmente, ampliando suas visões de mundo. Dadas essas condições, cabe ressaltar a importância de uma concepção de avaliação da aprendizagem condizente com a postura adotada, compreendendo a necessidade de se conhecer o que o aluno já sabe e o que ele ainda não sabe, pois somente assim será possível 80 Educação de Jovens e Adultos oferecer desafios ao seu saber para que, em seu esforço intencional, transforme-o em novos saberes. Ainda de acordo com a autora, avaliar exige que se defina aonde se quer chegar, que se estabeleçam os critérios para, em seguida, es- colher os procedimentos, inclusive aqueles referentes ao modo e ao contexto em que foram produzidos. É fundamental que o educador entenda as dimensões do ensi- no e da aprendizagem, bem como que avaliar é um dos processos, definindo-se, assim, o ponto de partida, o caminho e o ponto de che- gada para que novas aprendizagens aconteçam. Ao mudarmos a no- ção de avaliação, mudamos também o enfoque para a aprendizagem, e não somente na questão do ensino, pois aprender não é a mesma coisa que copiar ou repetir aquilo que foi ensinado. A aprendizagem é um processo construtivo, pessoal, em que cada um aprende por si, seguindo seu próprio caminho. Uma concepção de avaliação comprometida com a inclusão e a pluralidade vai além da visão tradicional, hierárquica, que focali- za o controle do aluno e promove a seletividade dentro do sistema socioeducacional por meio de notas e conceitos. É preciso alcançar uma percepção que tenha por objetivo compartilhar informações e subsídios que favoreçam o desenvolvimento do educando e a amplia- ção de seus conhecimentos. A avaliação, nessa perspectiva, é um meio, e não um fim em si mes- ma. É um processo diagnóstico e contínuo no qual o conhecimento e a autonomia do educando precisam ser respeitados e vivenciados pela escola. Para isso, devemos elaborar um conjunto de procedimentos in- vestigativos que possibilite o ajuste pedagógico para tornar possível o ensino de melhor qualidade. A avaliação deve funcionar, por um lado, como ferramenta que possibilite ao educador analisar criticamente sua prática pedagógica e, por outro, como instrumento que apresente ao educando a possibili- dade de saber sobre seus avanços e suas possibilidades no contexto escolar. Muitas das ideias equivocadas que o estudante enuncia resul- tam, muitas vezes, de aproximações sucessivas que ele está tentando fazer com o objeto do conhecimento. Assim, esses equívocos devem ser interpretados pelo educador como erros construtivos, próprios do verdadeiro sentido pedagógico comprometido com a emancipação crí- tica, e mediadores do processo avaliativo. Singularidades da mediação pedagógica 81 Dessa maneira, o compromisso com o desenvolvimento das ca- pacidades do educando, que se expressam nos acertos e equívocos próprios do processo de aprendizagem, deve ser concebido como um indicador para a reorientação da prática pedagógica, e nunca como um meio de estigmatizar o educando. A avaliação formativa, realiza- da com participação e diálogo entre os agentes educativos, fornece os elementos necessários para rever os avanços e as dificuldades que se expressam durante as diferentes etapas do processo escolar. No interior dessas propostas, as ideias de avaliação formativa nos mostram os procedimentos que devem ser utilizados pelos educado- res para adequar a ação pedagógica aos progressos e às necessidades de aprendizagem dos educandos. • Considerar a aprendizagem um amplo processo, em que o aluno reestrutura seu co- nhecimento por meio das atividades que lhe são propostas. • Buscar estratégias e sequências didáticas adequadas às condições de aprendizagem dos alunos. • Ampliar os conhecimentos do professor sobre os aspectos cognitivos do aluno; com- preender como ele aprende, identificar suas representações mentais e as estratégias que utiliza para resolver uma situação de aprendizagem. • Interpretar os erros não como deficiências pessoais, mascomo manifestação de um processo de construção. A construção do conhecimento supõe a superação dos erros, por um processo sucessivo de revisões críticas. Considerar os erros objetos de estudos, uma vez que eles revelam as representações e estratégias dos alunos. • Diagnosticar as dificuldades dos alunos e ajudá-los a superá-las. • Evidenciar aspectos de êxito nas aprendizagens. (BRASIL, 2002, p. 137) É objetivo da avaliação formativa apontar, no processo de ensino e aprendizagem, o caminho a ser percorrido. Assim, é fundamental que o professor entenda a avaliação como um recurso que serve para guiar o planejamento e replanejamento do seu percurso educativo. Portanto, as reflexões sobre ensino e aprendizagem, avaliação, metodologias de ensino, prática pedagógica e materiais didáticos na EJA devem levar em conta muito mais que uma simples escolha. Elas precisam refletir as possíveis relações entre educador, educando e so- ciedade de conhecimento, considerando também outros elementos do processo educativo, por exemplo, a formação do professor e as suas 82 Educação de Jovens e Adultos concepções sobre a Educação de Jovens e Adultos; o espaço onde acon- tece essa significação, a sala de aula; e, principalmente, o perfil social, econômico e cultural dos sujeitos. Pensar nessas ações didático-curriculares e metodológicas para a EJA implica explicitar as concepções de mundo, de educação, de ser humano, de escola, de currículo, de conhecimento e de ensino e apren- dizagem coerentes com as especificidades dessa demanda. Requer repensar, sobretudo, que seres humanos estamos formando, como e para que sociedade vamos formar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um dos desafios importantes no contexto da EJA é a implementação de propostas pedagógicas que articulem o conhecimento trazido pelo educando ao conhecimento escolar a ser reelaborado e produzido. As diferenças de idades e, com isso, os diferentes saberes e fazeres desse público produzidos pelas suas culturas, condições sociais e econômicas constituem-se em desafios para os educadores na implementação dessas práticas, sobretudo por ser com base nas concepções que se tem de ensi- no, aprendizagem, currículo e avaliação e até mesmo de que ser humano se quer formar que se propõem práticas alternativas e adequadas aos objetivos de formação. Devemos considerar que os educandos da EJA possuem a diversidade no que se refere ao seu perfil, mas, também, em uma visão macrossocial, apresentam igualdade nessa diversidade, pois são provenientes de gru- pos sociais análogos, afastados de direitos à educação, interrompidos em tempos passados por escolhas necessárias à sua sobrevivência. Conhecer o mundo diversificado da EJA e as formas de produção do conhecimento em que o professor exercerá sua prática pedagógica é ponto de partida para refletir, compreender e buscar soluções para a me- lhoria do ensino. REFERÊNCIAS ALVES, N. A experiência da diversidade no cotidiano e suas consequências na formação de professoras. In: VICTORIO FILHO, A.; MONTEIRO, S. C. F. (orgs.). Cultura e Conhecimento de Professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ARROYO, M. G. Educação de jovens e adultos em tempos de exclusão. Alfabetização e cidadania, Brasília, RAAAB, n. 11, p. 9-20, 2001. De acordo com o apresentado sobre as noções de avaliação for- mativa na Proposta Pedagógica de EJA para o 2º Segmento, quais procedimentos podem ser utilizados pelos educadores para adequar a ação pedagógica aos progressos e às necessidades de aprendizagem dos educandos? Atividade 3 Singularidades da mediação pedagógica 83 BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF: MEC/SEB, 2000. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental – 5ª a 8ª série: Volume 1. Brasília: SEF, 2002. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/ arquivos/pdf/eja_livro_01.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020. FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz & Terra, 1997. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. São Paulo: Paz & Terra, 2011. MOREIRA, A. F. B.; CANDAU, V. M. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: MEC/SEB, 2006. OLIVEIRA, I. B de. Reflexões acerca da organização curricular e das práticas pedagógicas na EJA. Educar em Revista, Curitiba, n. 29, p. 83-100, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602007000100007&lng=pt&nrm=iso. Acesso: em: 11 ago. 2020. SALVADOR, C. C. (org.). Psicologia da educação. Porto Alegre: Artmed, 1999. SANTOMÉ, J. T. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998. SOARES, L. O educador de jovens e adultos e sua formação. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 47, p. 83-100, jun. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982008000100005. Acesso em: 11 ago. 2020. SOEK, A. M. Aspectos contributivos do manual do livro didático do PNLA/2008 na formação do alfabetizador do programa Brasil alfabetizado. Curitiba, 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/ bitstream/handle/1884/18613/Dissertacao%20Ana.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 11 ago. 2020. GABARITO 1. O objetivo da atividade é conhecer as propostas pedagógicas locais, verificando as adequações diante das normativas nacionais. As propostas pedagógicas são públicas, ou seja, todos têm acesso pelo site da escola ou das secretarias de educação munici- pal e estadual. Por se tratar de documento público, qualquer cidadão pode solicitar para conhecer e analisar como são dispostas a questão curricular, as adequações e as formas de oferta da EJA. Algumas escolas tratam essas propostas como um documen- to escolar, assim, os alunos em formação pedagógica podem solicitá-las na secretária para fins de estudo. Isso geralmente é feito durante estágio supervisionado, mas pode ser solicitado a qualquer momento. 2. Para se ter uma noção do que é ser educador da EJA, além das questões de formação, é muito importante analisar a realidade local e como ela se apresenta. Por isso, en- tender que mais do que ser um profissional que dá aulas, espera-se que o tornar-se professor da EJA seja uma ação de cada dia, um processo de adoção de posturas peda- gógicas legitimadas pela realidade social, que envolvem a interpretação das represen- tações de mundo dos educandos e o conhecimento de suas expectativas. É na relação pedagógica e dialógica com os educandos que o educador constituirá sua identidade. 84 Educação de Jovens e Adultos 3. O objetivo dessa atividade é colocar em prática as reflexões do tópico, fazendo o alu- no perceber semelhanças e diferenças entre propostas curriculares e como a noção de avaliação interfere na aprendizagem. Logo, é parte de uma avaliação formativa, como descrito na Proposta Pedagógica de EJA – 2º Segmento (BRASIL, 2002): consi- derar a aprendizagem um amplo processo; buscar estratégias e sequências didáticas adequadas às condições de aprendizagem dos alunos; ampliar os conhecimentos do professor sobre os aspectos cognitivos do aluno; compreender como ele aprende, identificar suas representações mentais e as estratégias que utiliza para resolver uma situação de aprendizagem; interpretar os erros não como deficiências pessoais, mas como manifestação de um processo de construção; diagnosticar as dificuldades dos alunos e ajudá-los a superá-las; e evidenciar aspectos de êxito nas aprendizagens. Relações de ensino-aprendizagem:metodologias de ensino 85 5 Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino Não há como falar em relações de ensino e aprendizagem e em metodologias de ensino para a Educação de Jovens e Adultos sem tratar das contribuições de Paulo Freire para essas práticas. Com exceção das metodologias ditas tradicionais, mesmo as que se mostram como alternativas na atualidade, quando são analisadas suas origens, vemos forte influência do pensamento freiriano, seja nos princípios de problematização e dialogicidade ou seja nos prin- cípios de educação para mudança social ou como transformação. Neste capítulo, o objetivo é apresentar os pressupostos e os di- ferenciais da prática pedagógica freiriana, os princípios dessas me- todologias no encaminhamento de um trabalho pedagógico que leve em conta os conhecimentos prévios dos educandos, os con- ceitos de uma relação dialógica e o trabalho com temas geradores, conforme metodologia proposta por Paulo Freire como prática de dialogicidade, de liberdade, de mudança e de transformação social. Você vai descobrir que o método dito freiriano não é exatamen- te um método, e pode ser adequado e aplicado a diversas situa- ções, desde a alfabetização até como metodologia alternativa para se debater qualquer assunto. Além disso, irá entender o que significa o conceito de educação bancária, bastante característico na educação brasileira, e, mais importante, compreender como organizar o trabalho pedagógico de modo a levar em conta os saberes dos educandos e possibilitar uma educação significativa e transformadora. 86 Educação de Jovens e Adultos 5.1 O conhecimento prévio dos educandos Vídeo Freire (2011, p. 47) denunciou com a frase “ensinar não é trans- ferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção e construção” o conceito de educação bancária, como se o aluno fosse um repositório em que o professor despejava conteúdo, aprenden- do sistematicamente sem questionar e sem trazer nada seu para que a aprendizagem ocorresse. Figura 1 Educação como depósito h iy b i Jn L P v w x E d S v Z rudall30/Shutterstock c d L E i oJ Ao e a a d u Baseando-se nessa reflexão e com o advento das teorias construti- vistas que centram no aluno os conceitos de aprendizagem, muito se tem discutido sobre os papeis do professor e do aluno nessas relações de ensino-aprendizagem e as ações necessárias para que a aprendiza- gem de fato ocorra. Desse mesmo contexto decorre também toda a influência sócio in- teracionista e de mediação pedagógica, demonstrando a importân- cia do meio cultural e de se levar em consideração os conhecimentos prévios dos educandos na organização das atividades didático peda- gógicas, partindo do que Vygotsky (1987) chamou de zona de desenvol- vimento proximal e zona de desenvolvimento potencial. A abordagem construtivista de educação deriva dos estudos de Jean Piaget (1896-1980), que demonstram como a criança constrói em etapas sucessivas sua aprendizagem. No Brasil, foi amplamente divulgada com a implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998). A noção de conhecimento prévio na teoria construtivista não é sinônimo de pré-requisito, o termo se refere ao que o aluno, criança, jovem ou adulto já sabe para que, com base nesse conhecimento, alicerce novas aprendizagens. Saiba mais Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 87 Figura 2 Zona de desenvolvimento proximal (ZDP) Or la /S hu tte rs to ck Zona de desenvolvimento potencial Saber atual Mediação (ZDP) Saber a ser alcançado Zona de desenvolvimento real Zona de desenvolvimento proximal Fonte: Elaborada pela autora. Uma das ideias cunhadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) é a consideração dos conhecimentos prévios dos alunos como um dos pontos mais importantes no processo de ensino-aprendiza- gem, e isso tornou-se um dos “chavões” mais utilizados na educação. Mesmo na educação de crianças, passou-se a considerar, assim como já afirmava Rousseau (2004), que a criança não é uma “tábula rasa” ou um “papel em branco” a ser preenchido com os saberes escolares, pois quando chega à escola ela já traz consigo parte de sua cultura e das suas representações de mundo, assim como noções do que representa a aprendizagem escolar. Agora imagine essa ideia para jovens e adultos, que por definição já possuem mais tempo de experiências e de vida. Na EJA, essa no- ção se tornou a premissa educacional e o ponto de partida para novas aprendizagens, pois não é possível pensar em um projeto educativo para essa modalidade sem levar em conta os saberes prévios dos edu- candos. Mas como isso pode ocorrer na prática? Para se considerar essa premissa, é preciso conhecer minima- mente o perfil e os interesses dos educandos da EJA. Também re- quer, como afirma Soek (2009), que o educador conheça a história de vida e sua cultura, entendendo-os como sujeitos com diferentes experiências de vida e que não tiveram acesso à escola devido a di- versos fatores, mas que possuem conhecimentos adquiridos em ou- tras instâncias da vida social e devem ser considerados como ponto de partida na aprendizagem escolar. 88 Educação de Jovens e Adultos Para a autora, os desafios da EJA exigem um olhar cuidadoso sobre essas questões que podem interferir na motivação do educando em sala de aula, uma vez que um dos fatores que dificultam a aprendiza- gem encontra-se no fato de o aluno iniciar ou recomeçar a escolariza- ção na fase adulta, acreditando que “não deu certo para a escola”, “que burro velho não aprende trote novo”, “papagaio velho não aprende a falar”, ou seja, vários estereótipos que facilmente encontramos nos di- zeres dos educandos da EJA, levando-os a desencorajar-se no enfrenta- mento dos desafios da aprendizagem na vida adulta. Para Soek (2009), muitos alunos sentem vergonha de voltar aos bancos escolares depois de adultos porque possuem a visão distorcida que a escola é o espaço de aprendizagem para crianças. Grande parte desses alunos desconhece o direito constitucional que garante o acesso à escolarização formal e gratuita para todo e qualquer cidadão em idade escolar e também àqueles em distorção idade/ano escolar. Muitos acreditam que o fato de não terem estudado é culpa deles mesmos. Nesse sentido, é de fundamental importância que em uma metodolo- gia destinada à EJA se leve em conta o que o aluno jovem, adulto ou ido- so aprendeu em outros contextos da vida social, ou seja, considerando sua condição de falante competente da língua para os usos cotidianos, a riqueza e a variedade de suas experiências de vida, saberes e interes- ses, sua origem regional, cultural e formas de expressão, valorizando sua linguagem e evitando a infantilização ou criação de linguagem artificial, estranha em ambiente escolar. Talvez seja essa a maior riqueza ao se trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos, pois conhecer suas histórias e origens culturais, pen- sar as formas diferentes de “se virar” no mundo letrado, dar voz e vez à cultura popular, valorizar e aproximar esses saberes dos conhecimen- tos escolares tornará a aprendizagem rica e contextualizada. Essa visão de mundo e de escola que os educandos da EJA trazem consigo muitas vezes é reforçada na visão do educador, que na tenta- tiva de se aproximar e facilitar a aprendizagem acaba por reproduzir padrões e reforçar estereótipos do tipo: “vamos escrever só teu nome”; “depois vemos se consegue apender mais coisas”; “vamos escrever só um pouquinho”; “não sei se meus alunos conseguem mais do que isso”; “não uso livro didático, pois não sei se meus alunos acompanham”. To- dos esses exemplos escondem formas de se lidar com a predisposição Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 89 do conhecimento, ocultando noções de desconhecimento da real po- tencialidade da aprendizagem escolar. Se o professor tiver uma noção da potencialidade, as chances de uma aprendizagem efetiva e significa- tiva aumentam exponencialmente.Na EJA, deve-se sempre levar em consideração os saberes adquiri- dos em outras instâncias do conhecimento, na informalidade das ex- periências cotidianas e na prática do trabalho, procurando com base nesses conhecimentos criar espaços interativos e de aprendizagem que permitam aos educandos, com seus saberes prévios e suas expe- riências anteriores, avançar na reelaboração e na construção de novos conhecimentos. O objetivo dessas proposições mais amplas e o foco de atuação ba- seados nas experiências dos aprendizes expressa um sentido autênti- co, buscando criar na escola um ambiente de plena liberdade onde se possa questionar, refletir, criar, elaborar e construir o conhecimento, e que possibilite à luz das considerações teóricas e práticas superar as dificuldades, replanejando e propondo novas propostas pedagógicas com base nas análises do contexto observado, da motivação e da auto- motivação para aprender, da vontade de aprender e continuar a apren- der, entendendo o conceito do aprendiz e auto aprendiz, pressupostos básicos do modelo andragógico. Cite exemplos de situações que se possa levar em conta a premissa de “respeitar os saberes prévios dos educandos”. Atividade 1 5.2 A relação dialógica Vídeo Muito tem se falado em educação dialógica e linguagem dialógica, mas você sabe o que as caracterizam e como se faz? Para Freire (2011, p. 154), “ensinar exige disponibilidade para o diá- logo, pois o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inclusão em permanente movimento da história”. Com isso, ele revela que a dialogicidade é inerente à prática educativa. Nessa perspectiva, o ato pedagógico é compreendido como relação de troca, como práxis, em que teoria e prática se unem na ação ativa e libertadora. Entender que esse princípio da dialogicidade deve ser apli- cado em qualquer meio educacional é transformador para educandos e, principalmente, para o educador. 90 Educação de Jovens e Adultos Freire (2012) tratou da questão da dialogicidade como a essência de uma educação como prática de liberdade. Para ele, a base estaria na palavra, que quando dialogada permite esse movimento de ação e reflexão, convertendo-se numa práxis, que seria essa reflexão da ação. Assim, não há dialogo se não houver fé nos homens e em ser mais e melhor. A metodologia baseada no diálogo, ou metodologia dialógica, é uma proposta pedagógica apresentada por Freire com intermédio da pala- vra, ou seja, pela palavra nos expressamos e revelamos o mundo como o conhecimento, para o autor, “é dizendo a palavra com que, pronun- ciando o mundo, os homens o transformam, e ao se modificarem, mu- dam o mundo ao seu redor” (FREIRE, 2011, p. 109). O diálogo representa a base para a construção de uma consciên- cia crítica, e sem ele não é possível falar em verdadeira educação. De acordo com Freire (2011, p. 116), “ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens e mulheres se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Para que essa interação aconteça, ela re- quer uma autêntica relação dialógica que se constrói com base em um profundo respeito ao saber, ao ser e ao pensar do outro. Assim, “não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fossemos os portadores da verdade a ser transmitida aos de- mais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles” (FREIRE, 1992, p. 127). Uma das formas de efetivar essa proposta dialógica foi baseada no que Freire chamava de círculo de cultura – que mais tarde foi adaptada como proposta de trabalho com “temas geradores” –, ou seja, a busca de conteúdos programáticos de qualquer temática que pode ser iniciada em uma roda de conversa com a finalidade de sondar os domínios ou os conhecimentos prévios sobre o assunto em questão, estendendo até chegar ao que o educador precisa ensinar. Essa mesma ideia pode ser trabalhada nos princípios de avaliação diagnóstica, que pode ser feita oralmente, solicitando algo por escrito ou com pequenos testes com o objetivo de diagnosticar o que o edu- cando já sabe para então planejar uma intervenção ou organização de unidades didáticas de aprendizagem, partindo do que ele já domina para, assim, trabalhar novos conceitos e novas aprendizagens. Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 91 O processo da prática baseada em temas geradores para iden- tificar os conhecimentos prévios ou iniciar uma unidade de apren- dizagem de conteúdos programáticos pode ser sintetizado da seguinte maneira: a. Levantamento dos temas geradores: por intermédio do diálogo ou círculo de cultura, também conhecido como investigação temática, com o propósito de registrar os temas afins ou unidades de interesse de aprendizagens, diagnosticando o que sabem e pensam sobre o assunto. Se não surgirem as problemáticas espontaneamente, o educador deve perseguir e incentivar temáticas até que o assunto seja engajado pelo grupo de trabalho. b. Identificação: com base nos apontamentos obtidos no círculo de cultura, roda de prosa ou sala de aula buscando por temas geradores, identificar e escolher os temas a serem aprofundados e trabalhados, retomando os conhecimentos expressos sobre o tema e expondo os novos conteúdos programáticos ou conhecimentos. c. Problematização ou criação de situações existenciais típicas do grupo: podem ser objetivas e subjetivas, considerando as relações políticas, sociais e econômicas. Busca-se a reflexão e conscientização tomando o cuidado de sempre registrar as informações e os conhecimentos expressos a serem trabalhados. Note que essa metodologia pode ser adaptada em diversas situa- ções de aprendizagem, de qualquer temática, em qualquer nível de ensino. O mais importante é o professor ter claro aonde se pretende chegar nessa condução, de modo que ao iniciar um círculo de cultura ou uma unidade temática baseada em temas geradores não fique so- mente na conversa ou no diálogo oral, mas que avance, envolvendo os educandos e tornando possível a apresentação do que for mais impor- tante, chegando ao estudo do tema em questão. Na metodologia de Freire, o essencial é valorizar o humano, as pes- soas, seus saberes, suas experiências e sua história de vida. Nesse sentido, seus princípios metodológicos não são aplicáveis somente à alfabetiza- ção como proposto inicialmente, mas a qualquer prática educativa, pois a dialética contida nessa metodologia pressupõe um movimento que se origina da prática social e se amplia para conceitos mais elaborados, como problematização e instrumentalização, retornando para a prática social com uma ação transformada, conforme exemplificamos a seguir. 92 Educação de Jovens e Adultos Ol lie T he D es ig ne r/ Sh ut te rs to ck Prática social inicial: jogar lixo na rua. Problematização: o lixo que eu jogo prejudica o meio ambiente? Prejudica a minha vida? Instrumentalização: o educador junto ao educando busca no conhecimento elaborado as explicações para os questionamentos. Prática transformada: após a tomada de consciência, o aluno poderá até continuar a jogar o lixo na rua, mas consciente dos danos que está provocando, ou apresentar uma prática transformada e, nesse caso, ecologicamente correta. Catarse: com base nas reflexões acerca da prática inicial, articulando-se ao conhecimento elaborado, ocorre, então, a tomada de consciência: “eu também contribuo para os danos ao meio ambiente, à minha vida e à vida de meus vizinhos”. Esses são exemplos de como podemos trabalhar em uma perspec- tiva dialética. Além disso, com base em um tema gerador podemos ampliar o trabalho pedagógico em EJA independentemente de nível es- colar, idade ou requisitos anteriores à aprendizagem. Uma educação baseada nos princípios de dialogicidade é uma edu- cação que prepara seus sujeitos para um novo mundo que se abre. Assim, é fundamental que o professor reconheça que sua ação não é unilateralou monológica, mas dialógica, devendo, por isso, ser con- duzida mediante negociações entre aquele que ensina e aquele que aprende na perspectiva de se reconhecer de modo consciente a rele- vância do seu papel e dos elementos que determinam uma ação edu- Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 93 cativa crítica e criticizadora, visando a libertação e a emancipação dos sujeitos envolvidos no percurso educativo. Dessa forma, na organização do trabalho pedagógico, podemos utilizar variadas estratégias didáticas, desde que se considere as pre- missas das práticas baseadas no diálogo e da educação como possibili- dade de transformação, como propunha Freire (2011). Nessa perspectiva de educação crítica, o grande desafio, portanto, é romper com a postura fatalista e criar possibilidades para uma prá- tica escolar capaz de minimizar as dificuldades que os educandos tra- zem, além de respeitar a autonomia de aprendizagem e as diferenças individuais, assegurando o acesso e a permanência dos alunos jovens e adultos no processo educacional. Elabore uma atividade, mesmo que fictícia, baseada nos princípios de educação dialógica e educação como prática de liberdade, levantando os seguin- tes itens e adequando ao público e aos objetivos com os quais se pretende trabalhar: prática social inicial; problematização; instru- mentalização; catarse; e prática transformada. Anote quais são os conteúdos programáticos e os objetivos de aprendizagens a serem abordados nesse pequeno planejamento. Atividade 2 5.3 Palavras ou temas geradores Vídeo Quando se fala em Educação de Jovens e Adultos, seja no Brasil ou até mesmo em outros lugares do mundo, uma das principais referên- cias continua a ser Paulo Freire. Não só pela extensa bibliografia que deixou, mas pelos princípios e exemplos que continuam a inspirar di- versas práticas educativas até os dias atuais – não só na educação de adultos. Por isso, na discussão de metodologias de ensino para a EJA, é muito difícil não considerar as abordagens baseadas nos princípios da educação freiriana. Mas você sabe quais princípios são esses? O que caracteriza uma prática pedagógica como frei- riana? O que são metodologias de palavras ou te- mas geradores? Muitas pessoas já ouviram falar de Paulo Freire, mas compreendê-lo em sua essência não é algo que se faça com um método simples a ser aplicado. Seguir e ser fiel à sua metodologia não é só uma forma de encarar e ver o mundo, mas perseguir os princípios a que serve uma educação como prática de liberdade e transformação social. Uma das formas de se conhecer esses princípios é lendo seus escritos e livros. Para entender um pouco mais sobre a me- todologia proposta por Freire e a experiência de Angicos, no Rio Grande do Norte, sugerimos o vídeo Angicos 50 anos - vídeo do MEC, publicado pelo canal Inst. Paulo Freire. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=rgcyWqpa0fc. Acesso em: 11 ago. 2020. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=rgcyWqpa0fc https://www.youtube.com/watch?v=rgcyWqpa0fc 94 Educação de Jovens e Adultos Para a alfabetização de adultos, Freire propôs o uso das palavras ou temas geradores juntamente à problematização da situação existencial vivenciada. Nesse processo de troca de conhecimentos, a leitura da realidade vai se tornando possível, e a seleção dos conteú- dos que se constituirão no objeto de estudo da alfabetização adqui- re outro sentido além da aquisição das habilidades de leitura e de escrita, da função social e da educação para transformação. Com a experiência na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, Freire alfabetizou 300 trabalhadores em 45 dias, sem a tradicional cartilha. Nesse experimento, ele propôs o uso das palavras gerado- ras com base naquele contexto. A experiência de Angicos simboliza muito mais que uma prática de alfabetização, simboliza um marco na história de lutas pelo direito à educação. O uso de palavras ou temas geradores pressupõe o emprego de processos mentais de análise e síntese, ao mesmo tempo em que ao escolher os temas a serem problematizados com base na realidade existencial do alfabetizando, este poderá refletir sobre os temas que lhe interessem. Vamos entender como isso pode funcionar na prática? A metodologia baseada em temas geradores, de acordo com os pressupostos da teoria freiriana sobre palavras geradoras, envolve al- gumas etapas. Vamos conhecê-las passo a passo. Primeiro, é preciso investigar e conhecer o universo vocabular dos educandos e desse contexto de diálogo é que vão surgir temas ou palavras geradoras. Por exemplo, em uma roda de conversa ou aula, algum aluno pode versar sobre algum problema que a comunidade está enfrentando, como chuvas fortes, falta de saneamento, desemprego, enfim, qualquer tema que mereça ser problematizado e que venha à tona no diálogo. Em seguida, é papel do educador tematizar, ou seja, separar o tema gerador principal a ser discutido e as palavras que possam ser utilizadas como palavras geradoras. Por exemplo, com um grupo que discute a questão de alimentação, podem ser separadas palavras como batata, tomate etc. Para conhecer e enten- der o que significou a experiência de Angicos, é sugerida a leitura da aná- lise histórica no site 50 anos Angicos e programa nacional de alfabetização, realizada 50 anos depois com base nessa expe- riência e nesse contexto. Disponível em: http:// angicos50anos.paulofreire.org/. Acesso em: 11 ago. 2020. Leitura http://angicos50anos.paulofreire.org/ http://angicos50anos.paulofreire.org/ Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 95 A melhor palavra geradora é aquela que reúne em si a porcentagem mais alta de crité- rios sintáticos (possibilidade ou riqueza fonética, grau de dificuldade fonética comple- xa, possibilidade de manipulação de conjuntos de signos, de sílabas, etc.), semânticos (maior ou menor intensidade de relação entre a palavra e o ser que designa), poder de conscientização que a palavra tem potencialmente, ou conjunto de reações sociocultu- rais que a palavra gera na pessoa ou no grupo que a utiliza. (FREIRE, 2000, p. 43) Depreende-se, assim, que as palavras geradoras devem ser selecio- nadas de acordo com a representação da realidade do educando, de sua gradação fonêmica e produtividade silábica para a formação de novas palavras. Pois na seleção de palavras, como batata ou tomate, as decodificações e codificações de novas palavras girarão em torno das sílabas decorrentes dessas palavras. Por exemplo, ao decodificar BATATA, temos BA-BE-BI-BO-BU e TA-TE-TI-TO-TU. As junções possíveis dessas sílabas podem gerar novas palavras, como BATA, BATE, BATI, TODA, TUDO, TABU, entre outras. Daí fica fácil entender o conceito de palavra geradora: de uma palavra é possível gerar inúmeras outras. De acordo com esse princípio, as palavras geradoras devem obe- decer à sequência gradual das dificuldades fonéticas, e à medida que o alfabetizando for compondo novas combinações, novas palavras vão surgindo e passando a fazer parte desse universo. Por isso, é im- portante garantir o registro dessas novas palavras, ou sílabas, para depois serem incentivados à construção de outras palavras e a com- pará-las para descobrir semelhanças e/ou diferenças entre elas. O uso do alfabeto móvel também é uma excelente dica para montagem de novas palavras. Nesse processo de construção de palavras, a leitura e a escrita devem acontecer simultaneamente para que o alfabetizando possa diferenciar sons e formas de escrita, assim, o educando aprende a ler a escrever. A terceira etapa consiste na problematização que conduz à refle- xão e ao desenvolvimento da criticidade. “A melhor palavra geradora é aquela que tem poder de conscientização, ou conjunto de reações socioculturais que a palavra gera na pessoa ou no grupo que a utiliza” (FREIRE, 2000, p. 55). Para isso, as palavras geradoras devem ser pro- blematizadas com a mediação do educador. Toda palavra, por mais96 Educação de Jovens e Adultos simples que seja, pode ser problematizada. Por exemplo, não basta discutir e saber escrever panela, é necessário desenvolver um roteiro que explique o significa a palavra panela para o grupo: comida, fome, cozinha, alimentos etc. A quarta etapa consiste na representação desse aspecto da rea- lidade ou de uma situação construída no jogo das interações sociais significativas e críticas para suscitar novos debates em sala de aula. Pode ser cartaz, desenho, slide, representação, qualquer associação entre uma imagem e a palavra que a represente com base em uma problematização, de modo que sirva como um lembrete tanto da escri- ta quanto da discussão suscitada. Cada palavra geradora deverá ter a sua ilustração construída em conjunto. Após a etapa anterior, ou como atividade da mesma proposta pos- teriormente à problematização, devem ser criados cartazes ou fichas com as palavras geradoras e suas famílias fonêmicas, seguindo no es- tudo de palavras geradas pelo conjunto das sílabas. Figura 3 Palavras geradoras pa-ne-la pa-ne-la pa-pe-pi-po-pu pa-pe-pi-po-pu panela panela sho wc ak e/ Sh ut te rs to ck na-ne-ni-no-nu na-ne-ni-no-nu la-le-li-lo-lu la-le-li-lo-lu panela pa-pe-pi-po-pu na-ne-ni-no-nu la-le-li-lo-lu pano - papo - pipa - lupa - napa - lipo - pula - nino - pepino - nulo - pulo Fonte: Elaborada pela autora. Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 97 É importante reiterar a polêmica sobre a questão do Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos. Por diversas vezes, Freire se pronun- ciou ratificando que não se trata simplesmente de um método ou uma técnica de alfabetização ou, até mesmo, uma receita a ser seguida, mas, como ele mesmo descreve, de um jeito de ser e estar no mundo: Quando a gente encarna e vive este não estar só no mundo, isso tem a ver com o chamado “Método Paulo Freire”. Mas eu não gosto de falar disso, que é um negócio chato para burro. Por que isso, no fundo, não é método. Não é nada, isso é uma concepção de mundo que tá aí, é uma pedagogia e não um método cheio de técnicas. Eu acho que a gente sabe muito mais as coisas, quando a gente aprende o significado disso que eu disse e põe em práti- ca, do que quando tá pensando no “ba-be-bi-bo-bu”. O “ba-be-bi- -bo-bu” só se encarna quando esse outro princípio é respeitado. (FREIRE, 1992, p. 4) Em uma concepção de educação libertadora, o aprender abre espa- ço para o diálogo, o questionamento e a reflexão sobre outras visões de mundo. No universo da alfabetização de adultos, eles costumam dizer que aprender a ler equivale a ver novas formas de enxergar o mundo. Por isso, além da discussão existencial, é necessário ir para a escrita de fato e todos seus desdobramentos necessários aos conheci- mentos do mundo letrado. Afinal, como ressaltado nas palavras de Freire (2011, p. 59), “mi- nha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser objeto, mas sujeito também da História.” Esse era o objetivo maior da edu- cação na perspectiva freiriana. Elabore você mesmo suas fichas de alfabetização, com base em palavras que considera importante para essa atividade e levando em conta os princípios apresentados na metodolo- gia de palavras geradoras, tanto pelo debate em torno da palavra selecionada quanto das unidades fonéticas. Ao fazer essa atividade, separe as palavras em sílabas e perceba como novas palavras podem ser formadas, como elas vão surgindo e o que podem representar. Atividade 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, você entendeu por que Paulo Freire consagrou-se como um grande educador, que ao pensar o ser humano, a sociedade e suas relações, preocupou-se em discutir a educação brasileira e os meios para torná-la melhor mediante o diálogo e a participação de todos, na perspectiva de uma educação libertadora capaz de contribuir para que o educando torne-se sujeito de seu próprio desenvolvimento, envolvimento e transformação social. Freire acreditava que ao mudar a si mesmo, seja pela alfabetização ou pelo desenvolvimento educacional, era possível mu- dar seu entorno. 98 Educação de Jovens e Adultos Você percebeu também que por meio das palavras ou temas gerado- res é possível mediar diversas situações, seja para reflexão ou prática de alfabetização. Dessa forma, reforçamos a importância de se propiciar um ensino dialógico pautado na conscientização sobre a importância de ser e estar neste mundo e com o mundo, fazendo com que o educando se insira nele como um sujeito, sem se adaptar como um objeto, mas como alguém que conhece e tem poder de transformar a realidade em que vive por meio do trabalho e da participação livre e consciente. Daí o caráter transformador e revolucionário da educação. O que acontece é que esses princípios são complexos, desafiadores e difíceis de serem aplicados em sua totalidade, pois os sistemas edu- cacionais são cheios de normas, regras e legislações, e devido à cultura dominante de visão utilitarista e à cultura escolar é difícil romper com os ditames das tradições escolares. Por outro lado, o educador que se propõe a exercitar esses princípios consegue colher os frutos, ou seja, experienciar a educação como trans- formação e como prática de liberdade. REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf. Acesso em: 11 ago. 2020. FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 24. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2000. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012. SOEK, A. M. Aspectos contributivos do manual do livro didático do PNLA/2008 na formação do alfabetizador do Programa Brasil Alfabetizado. Dissertação (Mestrado em Educação) – Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/18613/Dissertacao%20Ana. pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 14 ago. 2020. ROUSSEAU, J. J. Emílio, ou Da educação. Trad. de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Relações de ensino-aprendizagem: metodologias de ensino 99 GABARITO 1. O objetivo desta atividade é aproximar-se do mundo real dos educandos da EJA e identificar suas visões de escola e de mundo, bem como as noções que têm da escola, da aprendizagem escolar e das aprendizagens da vida. Para se levar em conta a pre- missa de se respeitar os saberes prévios dos alunos, é preciso conhecer minimamente o perfil e os interesses dos educandos da EJA. Requer, também, conhecer a história de vida e cultura, entendendo-os como sujeitos com diferentes experiências de vida e que não tiveram acesso à escola devido a diversos fatores, mas que possuem conheci- mentos adquiridos em outras instâncias da vida social e que devem ser considerados como ponto de partida na aprendizagem escolar. 2. O objetivo desta atividade é levar o aluno a refletir e utilizar a metodologia baseando-se em uma prática próxima à sua realidade. Ao pensar nos itens exemplificados a seguir, conseguirá entender, como explicado no texto, maneiras de se trabalhar com determi- nada temática: • Prática social inicial: consumo consciente da água. • Problematização: como o ciclo da água interfere na minha realidade, no meu dia a dia. • Instrumentalização: o educador junto ao educando busca no conhecimento ela- borado as explicações para os questionamentos. Pode-se fazer um levantamento de dados de pesquisa sobre o tema. • Catarse: com base nas reflexões acerca daprática inicial, articulando-se ao co- nhecimento elaborado, ocorre, então, a tomada de consciência: eu também par- ticipo desse ciclo. • Prática transformada: após a tomada de consciência, o aluno poderá entender a forma como participa do ambiente, ou seja, que ao desmatar, por exemplo, in- terrompe o ciclo, que ao desperdiçar água, também está prejudicando. Se torna- rá consciente dos danos que está provocando ou poderá apresentar uma prática transformada e, nesse caso, ecologicamente correta. 3. Essa atividade visa vivenciar a metodologia de palavras geradoras percebendo suas possibilidades de uso, sua essência linguística, bem como as possibilidades de pro- blematização. É uma atividade básica para se descobrir possibilidades de usos e de metodologias para a alfabetização de adultos. Ana Maria Soek A n a M aria So ek Ed u c a ç ã o d e Jo v en s e A d u lto s Com a leitura desta obra, você vai compreender o contexto histórico, social, político e cultural do surgimento da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, bem como os movimentos de alfabetização de base popular até se tornar modalidade da Educação Básica, além de conhecer o perfil sociocultural desse alunado, as principais legislações e os documentos oficiais que regem a EJA no Brasil, suas especificidades e sua organização. Vai entender os conceitos referentes a analfabetismo, analfabetismo funcional, letramento e índices estatísticos e, também, refletir sobre as formas de mediação e organização curricular nas propostas pedagógicas para EJA, a formação do professor, as adequações necessárias no uso de materiais didáticos e alternativas metodológicas. Código Logístico 59467 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6652-0 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 5 2 0 Página em branco Página em branco