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CATALOGAÇÃO NA FONTE SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC Elaborado por Marciléia Aparecida de Paula – CRB-8/8530 S471i Semana da Biologia UFABC (9. : 2020) IX Semana da Biologia UFABC [recurso eletrônico] / Edição de Simone Rodrigues de Freitas e Guillermo Florez-Montero – [Santo André, SP] : Universidade Federal do ABC, 2021. 102 p. : il. Disponível em: http://professor.ufabc.edu.br/~simone.freitas/ Evento online realizado de 13 a 24 de julho de 2020. ISBN 978-65-5719-015-9 1. Biologia - Congressos. 2. Ecologia. 3. Proteção Ambiental. 4. Experimentos Animais. 5 Zoologia. 6. Biodiversidade. I. Freitas, Simone Rodrigues de, ed. II. Florez- Montero, Guillermo, ed. III. Título. CDD 22 ed. – 570 http://professor.ufabc.edu.br/~simone.freitas/ Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/ http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/ EDIÇÃO Simone Rodrigues de Freitas Guillermo L. Florez-Montero REVISÃO DOS CAPÍTULOS João Vitor de Luca Refundini Laurent Rodrigues Rezende Michaella Pereira Andrade Natalia Gabriela Solano Opazo Raquel Silva Neres dos Santos Taini Polo da Cunha Simone Rodrigues de Freitas Universidade Federal do ABC Av. dos Estados 5001, Bangú. Santo André, São Paulo, Brasil. DESIGN, DIAGRAMAÇÃO E MONTAGEM María Virginia O. Velásquez de Lucia Instagram/oma.creates ISBN 978-65-5719-015-9 IX Semana da Biologia UFABC 2021 SUMÁRIO PREFÁCIO ........................................................................................................... 7 Divisão da Fauna Silvestre: experiências e desafios na conservação da fauna silvestre na cidade de São Paulo. Leila Weiss de Almeida Pedrosa ................... 8 Animais não humanos e ciência: onde estamos e para onde vamos? Carolina Wood Fernandez Giugni Generoso ..................................................................... 13 Como fazer ciência sem explorar os animais? Natalia de Souza Albuquerque ... 19 Ética e experimentação animal: passado, presente e futuro. Marcela Sorelli Carneiro Ramos e Viviane Domingues Costa ..................................................... 25 Modelos biológicos alternativos na experimentação animal. Elizabeth Teodorov, Beatriz Paiva Santos Ferreira e Caio Alexandre de Freitas Schatzer ................. 31 Por que a COVID-19 afeta mais negros no Brasil e EUA? Ramatis Jacino ........ 35 Por que a Ciência se vale de argumentos e não de opinião? Exemplos da Paleontologia. Fabiana Rodrigues Costa Nunes ................................................. 41 Salvaguardando o serviço ecossistêmico de polinização: iniciativa Beekeep de ciência-cidadã. Natalia Pirani Ghilardi-Lopes, Tiago Maurício Francoy, Bruno de Carvalho Albertini, Sheina Koffler, Celso Barbieri Jr., Jailson Leocadio e Antonio Mauro Saraiva ........................................................................................ 45 A epidemia do design inteligente. Daubian Santos .............................................. 50 Animais fantásticos que aqui habitam: possibilidades de pesquisa no ambiente urbano. Rafael Lima Martins ................................................................................ 55 Folhas fazendo papel de raízes. Como assim? Daniela Boanares ..................... 62 SUMÁRIO O papel dos zoológicos para conservação da fauna silvestre. Thatiana Souza Andrade ............................................................................................................... 67 Genética aplicada à Conservação. Marcos Vinicius Bohrer Monteiro Siqueira ... 73 Consultoria Ambiental. Marcela Brasil de Castro Godinho e Felipe Nascimento Tavares ................................................................................................................ 78 Cartografia e geoprocessamento aplicados à biodiversidade e ao meio ambien- te. Artur Lupinetti Cunha, André Duílio Cruz e Douglas William Cirino ............ 85 AUTORES ............................................................................................................ 91 ÍNDICE DIGITAL .................................................................................................. 101 7 PREFÁCIO A IX Semana da Biologia UFABC foi realizada pela primeira vez online devido à pandemia do COVID-19. Como o evento foi online decidimos espalhar a carga horária de 34 horas de palestras e mesas-redondas em duas semanas à tarde e à noite. As mesas-redondas e palestras foram transmitidas via YouTube. Tivemos intérprete de libras em algumas mesas-redondas e palestras. O canal do YouTube da Semana da Biologia UFABC ultrapassou mil inscritos durante o evento. O evento obteve mais de 4 mil inscrições de todas as regiões do Brasil, sendo que 66% eram graduandos de outra instituição e 41% não conheciam a UFABC. A divulgação do evento foi feita pelas redes sociais (Facebook e Instagram) e pelo site (https://sites.google.com/view/ixsemanadabiologiaufabc/). Dentre os inscritos, centenas eram estudantes ou professores do ensino médio do estado de São Paulo e de outros estados, inclusive alunos da Escola Preparatória da UFABC (EPUFABC). A divulgação do evento foi pelas redes sociais, inclusive para o público-alvo que foi “professores e discentes do ensino médio". Sobre a avaliação do evento pelos participantes, obtivemos 347 respostas, sendo que 88% considerando o evento ótimo e 10% bom. Sobre a qualidade das transmissões e dos vídeos, 67% consideraram ótima e 31% boa. As palestras e mesas- redondas preferidas pelos inscritos foram (podia escolher mais de uma opção): 1) Palestra "Por que a Ciência se vale de argumentos e não de opinião?: Exemplos da Paleontologia" com 54%; 2) Mesa-redonda "Área de atuação do Biólogo" com 50%; e, 3) Palestra "Uso de animais no ensino: porque, quando e como substituir?" com 40%. Além disso, 90% pretende participar da X Semana da Biologia UFABC em 2021 com transmissão via web. Muito provavelmente a X Semana da Biologia UFABC a ser realizada em 2021 deverá ser totalmente online ou em formato híbrido. Profa. Dra. Simone Rodrigues de Freitas Coordenadora da Semana da Biologia UFABC https://sites.google.com/view/ixsemanadabiologiaufabc/ 8 Divisão da Fauna Silvestre: experiências e desafios na conservação da fauna silvestre na cidade de São Paulo a Leila Weiss de Almeida Pedrosa São Paulo é a maior cidade da América do Sul, abrigando uma população hu- mana formada por, aproximadamente, 12 milhões de habitantes. Integra a região me- tropolitana de São Paulo, considerada um dos maiores aglomerados populacionais do mundo. Essa cidade cresce por meio de um processo de urbanização intenso e, muitas vezes, desordenado em meio a um dos biomas mais ricos do mundo, a Mata Atlântica. À medida que a cidade de São Paulo cresce, ela promove alterações dos com- ponentes naturais desse bioma, como por exemplo, a redução e a fragmentação da cobertura vegetal original, ocasionando pressão sobre a biodiversidade local, com efeitos, muitas vezes, adversos a esta. O grande contraste existente entre a malha urbana e as áreas verdes remanescentes coloca a fauna silvestre de vida livre frente a uma série de desafios para sua sobrevivência e perpetuação na cidade. Nesse contexto, visando garantir a proteção e conservação da fauna silvestre no meio urbano, em 1993 foi criada oficialmente a Divisão Técnica de Medicina Veterinária e Manejo da Fauna Silvestre (DEPAVE-3), no âmbito da SVMA/PMSP, com sede no Parque Ibirapuera e com atribuições específicas voltadas a assistência médica-veterinária e biológica a animais silvestres vitimados, com vistas à reintrodução (Lei 11.426/1993). Em 1996, a estrutura inicial foi ampliada com a implantação do Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) e do Centro de Reabilitação de Animais Silves- tres (CETAS) e do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), no Parque 9 Anhanguera (Lei Municipal n. 12.055/1996; Decreto Municipal n. 37.653/1998). Em 2012, houve a inauguração do Centro de Manejo e Conservação da Fauna Silvestre (CEMACAS), no Parque Anhanguera, garantindo ao serviço uma estrutura mais ade- quada para o cumprimento de suas atribuições legais. Em 2014, foi criado o Serviço de Resgate de Animais Silvestres vitimados, composto por duas equipes especializadas do efetivo da GCM-Ambiental (Portaria Intersecretarial 001/SMSUSVMA/2014). Em 2019, o serviço é denominado como Divisão da Fauna Silvestre (DFS) (Decreto n. 58.625/2019). As demandas envolvendo animal silvestre vitimado ou em situação de conflito são triadas pela equipe do Plantão de Atendimento, visando à tomada de medidas adequa- das, caso a caso. O animal silvestre pode dar entrada no serviço de DFS por meio das seções técnicas de Clínica Veterinária, Quarentenário e Berçário, dependendo das con- dições do animal. Caso haja necessidade, são direcionados ao CRAS e, findado o pro- cesso de reabilitação, são encaminhados ao CETAS que providenciará a destinação dos animais, seja soltura em vida livre ou cativeiro. A seção técnica da Clínica Veterinária presta assistência médica-veterinária aos animais silvestres vitimados de vida livre, conduzindo cirurgias e exames de diagnósti- co complementar (Raios-X e ultrassom), quando necessário. Realiza o acompanha- mento diário dos animais internados até alta clínica, quando são encaminhados ao CRAS ou CETAS. Os filhotes recebidos em DFS são mantidos no Berçário, recebendo o suporte adequado que a imaturidade exige. A seção técnica do Quarentenário é responsável pelo recebimento e manutenção de animais silvestres oriundos de apreensões de silvestres frente ao tráfico ilegal e de animais silvestres com histórico de cativeiro. Ao CRAS compete a reabilitação de animais silvestres, visando a reintrodução. Geralmente os animais que necessitam passar por este processo são os imaturos, os filhotes ou aqueles que precisam realizar exercícios específicos. Para tanto, esta seção técnica conta com recintos de dimensões adequadas para realizar teste de voo e de caça, formação de grupos ou bandos de espécies gregárias a serem reintroduzidas, dentre outros procedimentos técnicos. Os recintos recebem enriquecimento ambiental para simular o ambiente do qual o animal se origina. O CETAS é responsável pela destinação dos animais silvestres com alta clínica ou rea- bilitados, respeitando critérios técnicos e a legislação ambiental. Providência toda a do- cumentação legal para o transporte e destinação dos animais, incluindo solturas a vida livre ou cativeiro. As solturas costumam ocorrer nas áreas de solturas cadastradas e 10 áreas verdes municipais, onde haja ocorrência da espécie. A destinação para cativeiro inclui o encaminhamento dos silvestres a instituições como zoológicos e criadouros conservacionistas. O CETAS realiza, também, o repatriamento de espécies oriundas de outros biomas brasileiros. As seções técnicas de Laboratório e Nutrição dão suporte técnico a todas as demais seções técnicas durante toda a internação dos animais em DFS. Ao laboratório compete à realização de exames laboratoriais e necroscópicos, a conservação de amostras de material biológico visando a elaboração de laudos, pareceres técnicos e fomento a estudos científicos das espécies atendidas. A seção de Nutrição cabe à ali- mentação e nutrição de todos os animais internados e de responsabilidade de DFS, formulando cardápios diários de acordo com as necessidades específicas de cada es- pécie. Mantém o biotério para criação de invertebrados utilizados na alimentação dos animais silvestres. Além dos serviços prestados pelas seções técnicas inseridas no fluxo de atendi- mento dos animais silvestres recebidos (descritas acima), a DFS conta com outras se- ções que desenvolvem atividades importantes para conservação da fauna silvestre na cidade. A Seção de Biologia realiza o inventário da fauna silvestre do município de São Paulo com intuito de conhecer a biodiversidade e publica as informações, periodica- mente, nas listas oficiais (Inventário da Fauna do Município de São Paulo). Este traba- lho é conduzido por meio de idas a campo em áreas verdes municipais para registrar as espécies silvestres encontradas por meio de observação direta ou identificação das vocalizações e vestígios como fezes, pegadas e carcaças. Este conhecimento acumu- lado dá suporte às solturas das diferentes espécies silvestres em suas devidas áreas de ocorrência e nos sinaliza sobre o grau de conservação ou perturbação de uma de- terminada área verde. Essa seção técnica também realiza o monitoramento da fauna silvestre pós-soltura para verificar o êxito das mesmas, além de emitir pareceres técni- cos relacionados a conservação da fauna silvestre. À Seção de Medicina Veterinária Preventiva compete a emissão de pareceres téc- nicos e o suporte a administração de áreas verdes municipais nas questões relativas à fauna silvestre. É responsável, também, pela manutenção e cuidado com as aves orna- mentais que compõem o Acervo Público de Anatídeos, distribuídas em seis (6) parques municipais. Além disso, é responsável pela vigilância de agravos à fauna silvestre, sen- do esta atividade dividida em duas frentes: Vigilância Ativa de Agravos Transmissíveis e Vigilância Passiva de Agravos não Transmissíveis. A primeira objetiva a coleta de mate- rial biológico para pesquisa de determinadas doenças em populações selvagens de ca- 11 pivaras, primatas, morcegos, gambás e anatídeos. A segunda visa conhecer os demais agravos que acometem a fauna silvestre na cidade, de caráter não transmissíveis, in- cluindo predação por animais domésticos, colisão em vidraças, traumas causados por linhas de pipa, atropelamentos, eletrocussões, dentre outros. A partir da análise destes dados, há conhecimento das espécies e grupos de animais silvestres mais atingidos por determinados agravos, possibilitando a proposição de políticas públicas e outras medidas com vistas à mitigação dos agravos. Ao longo de seus 27 anos, a Divisão da Fauna Silvestre (DFS) já atendeu mais de 93.000 animais silvestres, havendo um predomínio importante para a classe de aves. Por meio do Inventário, mais de 1121 espécies silvestres diferentes já foram re- gistradas no município de São Paulo. Por fim, a Divisão da Fauna Silvestre (DFS) tem um importante papel na proteção e conservação da fauna silvestre da cidade de São Paulo, prestando assistência aos silvestres vitimados com vistas a sua reintrodução e colaborando para o entendimento dos agravos à fauna silvestre no meio urbano. Os dados relativos aos agravos trans- missíveis em populações silvestres de vida livre nos permitem, também, avaliar aspec- tos relacionados à saúde humana, considerando a perspectiva de saúde única. O co- nhecimento gerado por esta instituição permite nortear a proposição de políticas públi- cas de proteção e conservação da fauna silvestre assim como informar a população no geral sobre medidas básicas que podem ser adotadas por todos os cidadãos na tentati- va de reduzir ou mitigar possíveis impactos negativos à fauna silvestre. As atividades de informação e educação ambiental também auxiliam na sensibilização e engajamen- to da população em geral em diversas questões relativas à conservação de fauna sil- vestre. Referências bibliográficas SÃO PAULO (Município). Decreto Municipal n° 37.653 de 25 de setembro de 1998. Regulamenta a lei nº 12.055, de 9 de maio de 1996, que dispõe sobrea implantação do Centro de triagem de Animais Silvestres e do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres, no parque anhanguera, e dá outras pro- vidências. Diário Oficial da Cidade de 26/09/1998, p. 2. SÃO PAULO (Município). Decreto Municipal n° 58.625 de 8 de fevereiro de 2019. Dispõe sobre a re- organização da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, bem como altera a denominação e a lotação dos cargos de provimento em comissão que especifica. Diário Oficial da Cidade de 09 de fevereiro de 2019, p. 1. 12 SÃO PAULO (Município). Lei Municipal n° 11.426, de 18 de outubro de 1993. Cria A Secretaria Muni- cipal Do Verde E Do Meio Ambiente - Svma; Cria O Conselho Municipal Do Meio Ambiente E Desen- volvimento Sustentável - Cades, E Dá Outras Providências. Diário Oficial da Cidade de 23 de outubro de 1993, p. 1. SÃO PAULO (Município). Lei Municipal n° 12.055, de 9 de maio de 1996. Autoriza o Executivo a im- plantar no Parque Anhanguera, o Centro de Triagem de Animais Silvestres e o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres. Diário Oficial da Cidade de 10 de maio de 1996, p. 1. SÃO PAULO (Município). Portaria Intersecretarial 001/SMSUSVMA, de 26 de junho de 2014. Estrutu- ra e organiza o Serviço de Resgate de Animais Silvestres vitimados na Cidade de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de 27 de junho de 2014, p. 3. SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Inventário da fauna sil- vestre do Município de São Paulo. São Paulo, 13 dez. 2018. Disponível em: <https:// www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/publicacoes_svma/index.php? P=268981>. Acesso em 22/01/2021. SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Principais agravos à fauna silvestre atendida na Divisão da Fauna Silvestre (pmsp), em 2017 e 2018. Trabalho inscrito no II Congresso de Áreas Verdes/SVMA. 13 Animais não humanos e ciência: onde estamos e para onde vamos? b Carolina Wood Fernandez Giugni Generoso Queria começar este texto contando uma experiência que tive na graduação que não está no meu currículo, mas que é importante para vocês entenderem o motivo de estar escrevendo sobre este tema. No primeiro semestre do curso de Biologia, fiquei fascinada pela disciplina de Biologia Celular e resolvi fazer um estágio em um laborató- rio da área. O principal método ali utilizado para estudar uma célula de interesse era a vivissecção. Aquilo significava que eu teria que abrir camundongos vivos para estudar o que queria. Quando soube dessa informação, a primeira coisa que me veio na cabe- ça foi o pensamento de que, apesar de difícil, o uso de animais na pesquisa era um “mal necessário”. Na época que essa ideia estava forte, segui o estágio e aprendi muito sobre a rotina de um laboratório de pesquisa experimental: confeccionar lâminas histo- lógicas, como olhar “rolha” de camundongos fêmeas (um método para ver se estavam prenhes ou não), como medir a temperatura... Enfim, estava “tudo certo” até que che- gou o momento em que estive cara a cara com a vivissecção. Eu vi, do início ao fim, o procedimento de abrir um camundongo vivo e de observar o coração dele batendo. Quando chegou minha vez de fazer o procedimento (e é com muita culpa que admito que o fiz), foi uma das situações mais traumatizantes que já passei. Apesar de gostar muito da área, desisti do estágio por causa da vivissecção. Não conseguia olhar para os olhos de um ser senciente durante o abate e fingir que aquilo não me afetava. A sorte é que conheci outra área incrível, responsável pelo estudo do 1 Para este texto, os termos “Experimentação Animal” ou “Testes em Animais” serão usados para se referir especificamente aos experimentos da fase pré-clínica (e.g., voltados para produção de medicamentos). 14 comportamento animal: a etologia. Hoje, estudo comunicação e comportamentos rela- cionados com a empatia em animais (mais especificamente, cães domésticos). O que é importante dizer de todos os experimentos que faço no Laboratório de Cães é que to- dos os sujeitos dos experimentos são de tutores (palavra não utilitarista que substitui o termo “dono”) voluntários. Ou seja, os experimentos não são invasivos e qualquer pes- soa pode levar seu cão para participar (desde que atenda aos critérios da pesquisa). Entretanto, mesmo tendo me encontrado em outra área, nunca consegui esque- cer a experiência que tive em relação à vivissecção e sempre me perguntei se a ideia do “mal necessário” era realmente verdade. Buscando entender melhor essa questão, encontrei um livro intitulado: “Experimentação animal: um obstáculo ao avanço científi- co”, do prof. Dr. Thales Tréz, um grande pesquisador brasileiro que dedicou mais de 15 anos da sua carreira para estudar a problemática da experimentação animal. Através deste livro e da leitura de diversos artigos científicos relevantes, descobri muitas coisas importantes que, infelizmente, são pouco discutidas no ambiente universitário. Espero mostrar aos presentes leitores um ponto de vista diferente do que normalmente é apre- sentado. No entanto, adianto que não pretendo abordar o aspecto ético envolvido com o uso de animais na ciência, apesar de considerá-lo extremamente relevante. Aproximadamente 192.1 milhões de animais são mortos por ano no mundo para fins de pesquisas na área da saúde (Taylor e Alvarez, 2019), o que equivale a 365 ani- mais por minuto. Acionistas do setor de desenvolvimento de medicamentos têm perdi- do pelo menos dezenas de bilhões de dólares anualmente devido às falhas na experi- mentação animal (estimativas variam entre 53 a 100 bilhões de dólares por ano) (Kramer e Greek, 2018). Com todos estes gastos e números de animais usados em mente, é plausível questionar: “Seria a experimentação animal realmente necessária?” Logicamente que os pesquisadores que usam animais argumentam que sim. É comum justificarem a experimentação animal apresentando opiniões como: "Praticamente to- das as conquistas médicas do século passado dependem direta ou indiretamente de pesquisas com animais” (Mattews, 2008) ou “A necessidade de pesquisa com animais é "auto-evidente"” (Page, 2003). Mas uma crítica que vários pesquisadores vêm fazen- do é a de que há poucas evidências disponíveis para apoiar essa visão (Akhtar, 2015; Knight, 2019; Pound e Ritskes-Hoitinga, 2018). Evidências anedóticas ou alegações não suportadas são frequentemente usadas como justificativa (Ram, 2019). Porém, não podemos assumir acriticamente os benefícios do uso de animais em pesquisas (Knight, 2019). Todas essas alegações precisam ser testadas através de um método científico rigoroso. Pra isso, cria-se primeiramente uma pergunta: “O modelo animal pode (ou não) ser utilizado para prever a resposta humana? (i.e., é preditivo?)”. Depois, 15 se cria uma hipótese, que nada mais é do que uma resposta testável a essa pergunta: animais podem prever (ou não) essa resposta. Isso é testável! Um corpo crescente de evidências tem mostrado que, em várias áreas, os modelos animais têm um baixo valor preditivo para os seres humanos e, portanto, se mostram ineficazes (Bailey, Thew e Balls, 2015; Bracken, 2009; Greek e Kramer, 2019; Shanks, Greek e Greek , 2009). Afinal, onde está a evidência de que a pesquisa com animais beneficia os seres humanos? Esta pergunta não é minha, é de um grupo de pesquisadores que decidiu analisar revisões sistemáticas de pesquisas com modelos animais. O estudo foi publi- cado na British Medical Journal (BMJ), uma revista científica renomada. Os autores ressaltaram que os dados em animais foram considerados irrelevantes para a contribui- ção clínica das áreas analisadas, comprometendo seriamente o princípio de que expe- rimentos em animais são necessários para informar a medicina clínica (Pound et al., 2004). Os pesquisadores indicaram ainda que o valor da pesquisa com animais em tra-tamentos humanos em potencial é superestimado e precisa de uma avaliação rigorosa e urgente. Mais recentemente, dois destes mesmos autores publicaram outro estudo na BMJ com uma conclusão parecida: a de que os benefícios do uso de animais em pesquisas biomédicas continuam sem comprovação (Pound e Bracken, 2014). Como pontuado por Kramer e Greek (2018): “centenas de pesquisas biomédicas publicadas em periódicos como Nature, Science e Journal of the American Medical As- sociation apontam que a modelagem animal é ineficaz, enganosa para os pesquisado- res, incapaz de prevenir o desenvolvimento de drogas perigosas e propensa a atrasar o desenvolvimento de drogas úteis” (tradução livre). Outros artigos e livros também mostram inúmeras falhas na experimentação animal (Akhtar, 2015; Dolgin, 2013; Herrmann e Jayne, 2019; Pound e Ritskes-Hoitinga, 2018; Tréz 2015; Van Norman, 2019). Uma grande crítica apontada nestas referências é a problemática ligada à extra- polação de dados de animais para humanos. De um lado temos animais que vivem em ambientes extremamente controlados: com temperatura regulada, alimentação padroni- zada e linhagens homogêneas. Do lado oposto estamos nós, uma espécie diferente que vive em um ambiente heterogêneo, que varia em termos de cultura, de estilo de vida, de fatores físicos, emocionais e ambientais. Para Pound e Ritskes-Hoitinga (2018, p.1), “o problema das diferenças entre espécies nunca poderá ser superado e sempre prejudicará a validade externa e a tradução confiável de descobertas pré-clínicas para os seres humanos” (tradução livre). Portanto, o fato de um medicamento ter “êxito” nos testes em animais não significa que ele será 100% seguro para os seres humanos. Mas e os resultados que deram certo? Sobre isso, chamo a atenção para o seguinte parágrafo retirado do livro mencionado anteriormente: 16 “Especialistas podem apontar situações em que houve correlação entre os achados em animais e os humanos, mas não passam disso: pontuações. Como há uma quantidade massiva de experimentos com animais, é de esperar que algum dado animal se correlacione com a resposta em huma- nos. Se estivéssemos em uma sala escura, dando chutes em bolas para acertar uma goleira que não sabemos onde está, é possível que ocasional- mente a acertemos. Há, no entanto, mais motivos para lamentos do que pra comemorações". (Tréz, 2015, p. 227) De fato, existem pesquisas que utilizaram animais e que forneceram resultados relevantes para a ciência. Mas não podemos focar em exemplos específicos (Tréz, 2015). Precisamos dar um passo para trás e enxergar a experimentação animal como um todo e como ela realmente é: um obstáculo ao avanço científico (Tréz, 2015). Um paradigma cheio de falhas (Akhtar, 2015; Harrison, 2016) que envolve gastos desne- cessários (Meigs et al., 2018; Keen, 2019), efeitos colaterais (Van Norman, 2019), mor- te e sofrimento de animais e possivelmente de seres humanos (Johnson e Smajdor, 2019). Bom, com tudo isso em mente, talvez a pergunta: “Seria a experimentação ani- mal necessária?” não seja a mais apropriada. A questão que realmente está em jogo aqui é: “Seria a experimentação animal eficaz?”. Essa pergunta gera um debate tão longo e complexo que seria impossível falar de todos os aspectos envolvidos em poucas páginas. Mas pra quem quer se aprofun- dar no assunto, sugiro a leitura das referências que coloquei. O artigo de Van Norman (2020) e toda a parte 7 do livro: “Experimentação Animal: trabalhando em direção a uma mudança de paradigma” (tradução livre) possui diversos exemplos e discussões atuais sobre métodos substitutivos (Herrmann e Jayne, 2019). Vale pontuar que o fato de ainda não existirem métodos substitutivos para todas as áreas de pesquisa não é justificativa para estacionar em um paradigma de experimentos com animais que tem se mostrado ineficaz. A insistência exagerada na continuação dos testes em animais pode desviar fundos de pesquisas mais relevantes para médicos e pacientes (Pound e Bracken, 2014) e prejudica o avanço e o investimento financeiro nos métodos substitu- tivos. Além disso, negar a possibilidade do avanço científico em relação aos métodos substitutivos é um ato anticientífico, pois a ciência é nutrida de descobertas que antes eram consideradas impossíveis (exemplos simples como celular e avião já são sufici- entes). Para finalizar, encerro com uma pergunta pertinente, feita por uma ouvinte da 17 palestra (Juliana França): “Por que a ciência insiste em utilizar animais para a produção científica diante de tantas evidências da sua ineficácia?”. Leitura suplementar HERRMANN, K.; JAYNE, K. Animal Experimentation: Working Towards a Paradigm Change. Boston: Brill, 2019. TRÉZ, T. Experimentação Animal: um obstáculo ao avanço científico. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2015. VAN NORMAN, G. A. Limitations of Animal Studies for Predicting Toxicity in Clinical Trials: Part 2: Po- tential Alternatives to the Use of Animals in Preclinical Trials. JACC: Basic to Translational Science, v. 5, n. 4, p. 387–397, 2020. Referências bibliográficas AKHTAR, A. The Flaws and Human Harms of Animal Experimentation. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, v. 24, n. 4, p. 407–419, 2015. BAILEY, J.; THEW, M.; BALLS, M. Predicting human drug toxicity and safety via animal tests: Can any one species predict drug toxicity in any other, and do monkeys help? ATLA Alternatives to Laboratory Animals, v. 43, n. 6, p. 393–403, 2015. BRACKEN, M. B. Why animal studies are often poor predictors of human reactions to exposure. Jour- nal of the Royal Society of Medicine, v. 102, n. 3, p. 120–122, 2009. GREEK, R.; KRAMER, L. A. The Scientific Problems with Using Non-Human Animals to Predict Hu- man Response to Drugs and Disease. In: HERRMANN, K.; JAYNE, K. (Eds.). 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A teoria da dissonância cognitiva pode explicar porque pessoas, muitas vezes, fazem um esforço para ajustar seus pensamentos quando esses pensamentos, palavras ou comportamentos entram em embate entre si. Quando acreditamos que animais são sujeitos, não objetos; que são indivíduos detentores de direitos; que animais sentem dor e possuem emoções; e que são seres de valor próprio e intrínseco (Regan, 2006), como assistir, por exemplo, a um macaco se esticar da sua gaiola feita de barras frias de metal para alcançar o exterior, numa tentativa nada mais que fantasiosa de conseguir sair dali? “Pelo conhecimento!”, “Pela cura!”, “Pela humanidade!”, “Pelos animais!” são algumas das justificativas comuns cri- adas nessas e em outras situações pelas pessoas para viabilizar práticas cruéis contra animais não-humanos. Mas, qual é o problema científico? Primeiro, não existe uma relação direta, positi- va e consistente entre experimentação animal e avanço científico (Tréz, 2015; 2008). Segundo, se duas pessoas saudáveis, do mesmo gênero e idade, que moram na mes- ma cidade e vivem em um ambiente de desenvolvimento semelhante podem apresen- tar reações completamente diferentes a uma mesma dosagem de um mesmo medica- mento, como esperar que animais de diferentes populações ou, mais ainda, de diferen- tes espécies reajam de formas parecidas? Terceiro, pesquisadores e professores de 20 instituições de ensino superior e de centros de pesquisa parecem se agarrar com todas as forças a esse modus operandi que vem sendo demonstrado obsoleto no mundo to- do; essas amarras representam um sério obstáculo ao desenvolvimento científico. Por fim, mas, possivelmente, mais importante: dados espúrios. Dados coletados de animais que vivem em confinamento, em isolamento do mundo natural, e muitas vezes de qual- quer interação social, sob estresse físico e psicológico poderão conter “ruído” e pode- rão não condizer com a realidade dos fenômenos. Algumas pessoas podem dizer que isso é “conversa de ativista”. Apesar de consi- derar que o ativismo seja um excelente combustível para fazer Ciência de qualidade, quero que este capítulo seja lido como um texto escrito por uma cientista. Por exemplo, o artigo de divulgação científica India pushes for alternatives to animals in biomedical research, de Outubro de 2019, possibilita uma interessante reflexão sobre os esforços da Índia para inclusão e implementação de alternativas ao uso de animais na pesquisa biomédica no país (Vaidynathan, 2019). Uma das pesquisadoras que foi entrevistada é a doutora Swaminathan, que é ex-diretora geral do Conselho Indiano de Pesquisa Mé- dica (ICMR) e uma das diretoras gerais da Organização Mundial de Saúde. Ela pontua contundentemente que os grupos de direitos dos animais não foram o principal motor por trás da posição do ICMR pela busca de métodos substitutivos. Pelo contrário, ela coloca que foi uma decisão científica e que os grupos de ativismo animalista foram apenas parte da discussão. Há muitas formas de se fazer pesquisa sem submeter animais, sejam eles de qualquer espécie, a dor e ao sofrimento (Greif, 2003). Como etóloga, cientista da área do comportamento animal, me atrevo a dar alguns – poucos – exemplos de investiga- ções que liderei ou das quais participei como co-autora. Por exemplo, pesquisa sobre (i) o impacto de embarcações de turismo e de sons antropogênicos sobre o comporta- mento de golfinhos, que pode ser feito com espécies que habitam a costa do nosso pa- ís e com animais de vida livre (Alburquerque e Souto, 2013), em vez de trabalhar com animais de cativeiro; (ii) a escolha de uso de áreas por tartarugas marinhas, que pode ser feito com tartarugas adultas de vida livre nas estações de nidificação (Santos et al., 2016), em vez de retirar animais da natureza; (iii) como mamíferos não-humanos reco- nhecem expressões emocionais de heteroespecíficos (animais de outra espécie) e de coespecíficos (animais da mesma espécie) e como respondem às emoções dos outros indivíduos, que pode ser feito com cães domésticos domiciliados (vivendo com sua fa- mília) e com o uso de paradigmas experimentais não-invasivos (Albuquerque et al., 2016; Albuquerque et al., 2018), em vez de retirar animais da natureza, estressá-los e, ainda, causar-lhes desconforto físico e psicológico; (iv) o temperamento de animais por 21 meio de dimensões fortemente evidenciadas pela literatura pelo uso de questionários (Savalli et al., 2019; Savalli et al., 2020), em vez de lidar com amostras reduzidas e co- locar animais em situações potencialmente estressantes para testes diretos; (v) habili- dades cognitivas de mamíferos filogeneticamente distantes, que pode ser feito com ani- mais como as cabras e os bodes vivendo em um santuário (Nawroth, et al., 2018), em vez de expor animais a ambientes experimentais que podem se tornar negativos para os sujeitos; (vi) os mecanismos de regulação social e emocional de primatas não- humanos, que pode ser realizado por meio de vídeos de alta resolução provenientes da filmagem sistemática e orientada do comportamento de macacos-prego selvagens em diferentes áreas de ocorrência desse animal (Albuquerque, em preparação), em vez de retirar animais da natureza, criar primatas em laboratório, estudar indivíduos que não estão com seu grupo social ou que vivem em isolamento. Então, é possível fazer Ciência sem explorar os animais? A resposta é: SIM! Cer- tamente, há dificuldades: você vai contra a correnteza; há uma pressão acadêmica de alguns pesquisadores e professores – aqueles que estão presos ao modus operandi da experimentação animal; é possível que haja uma maior demanda de trabalho pelo fato de trabalhar com metodologias não-invasivas que, às vezes, requerem um pouco mais de tempo; e será necessário energia e criatividade para (re)pensar e elaborar novos métodos. Mas, ao mesmo tempo, há grandes ganhos! Especialmente no que diz res- peito à ética e à qualidade dos dados e, consequentemente, das conclusões dos traba- lhos. Mas, não seria a experimentação animal contemporânea ética? É muito comum escutar que o conceito dos 3 R’s (reduzir, refinar e substituir) já resolveria as questões éticas envolvidas com a experimentação animal. Ao mesmo tempo, muitas pessoas di- rão que essas questões éticas não são realmente “questões”, uma vez que animais uti- lizados em experimentos são “reproduzidos” para tal finalidade. Mas, é aí que entra a discussão “espécie vs indivíduo”, em que poucos prestam atenção. Quando pensamos em reduzir o número de animais utilizados em experimentos invasivos ou quando refi- namos um experimento e diminuímos o nível da dor, por exemplo, estamos pensando nos animais como espécie: animais sendo reconhecidos como um grupo, sem individu- alidade. Ou seja, apesar de menos animais sofrerem, alguns – às vezes, muitos – so- frem e cada um desses animais é um ser que sente dor e possui emoções e que sofre de forma autônoma, independentementedo número de animais utilizados. É apenas no substituir do conceito dos 3 R’s que os animais têm um ganho como indivíduos, porque o método invasivo em si passa a não mais ser empregado. 22 Animais são capazes de sentir, eles vivenciam dor e prazer e possuem emoções positivas e negativas (Darwin, 1965). Animais não humanos são sencientes (Andrade e Santos, 2019; Prada, 2008; Spencer, 2000) e possuem a arquitetura neurológica ne- cessária para possuir consciência (ver Declaração de Cambridge, 2012). De acordo com o professor Marc Bekoff (2007), não é somente quando os animais experienciam a dor física (por exemplo, quando são torturados) que eles sofrem, mas também quando não têm suas necessidades e desejos respeitados. Segundo o autor, um bom bem- estar não é bom o suficiente, por isso precisamos fazer mais do que apenas ajustar a temperatura do biotério para que os animais fiquem mais “confortáveis”. Um bom bem- estar é o mínimo que podemos garantir. De fato, a experimentação animal é uma contradição lógica, como diria o filósofo Charles Magel. Em uma mão, “os animais são parecidos demais” conosco para justifi- car sua utilização em experimentos científicos ou da indústria farmacêutica, mesmo quando ainda se tratam de testes cruéis. De outro, “os animais são diferentes demais” das pessoas, o suficiente para não levarmos em consideração sua capacidade de sen- tir dor e de vivenciar emoções durante esses mesmos estudos baseados e estrutura- dos em crueldade. Como diria o Professor Bekoff: “Embora, obviamente, ainda reste muito a aprender, o que já sabemos de- veria ser suficiente para inspirar mudanças na maneira como tratamos os animais. Precisamos transformar conhecimento em ação. Não podemos simplesmente continuar nas condições em que estamos, porque isso é o que sempre fizemos. O que sabemos mudou, e o mesmo deveria aconte- cer com o nosso relacionamento com os animais. (...) Quando reconhece- mos que algo é errado, devemos nos empenhar para mudar isso” (Marc Bekoff, 2007) Já sabemos muito. Precisamos mudar. Pelo bem dos animais e da Ciência. Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, N.; GUO, K.; WILKINSON, A.; RESENDE, B.; MILLS, D. S. Mouth-licking by dogs as a response to emotional stimuli. Behavioural Processes v. 146, p. 42-45, 2018. 23 ALBUQUERQUE, N.; GUO, K.; WILKINSON, A.; SAVALLI, C.; OTTA, E.; MILLS, D. S. Dogs recog- nize dog and human emotions. Biology Letters, v. 12, n. 1, p. 20150883, 2016. ALBUQUERQUE, N. em preparação. Social and emotional mechanism in capuchin monkeys. ALBUQUERQUE, N.; SOUTO, A. Motorboat noise can potentially mask the whistle sound of estuarine dolphins (Sotalia guianensis). Ethnobiology and Conservation v. 2, n. 5, p 1-15, 2013. ANDRADE, M.; SANTOS, C. M. D. On neglected taxa: protostomes and the evolution of myelination. Animal Sentience, v. 3, n. 21 p. 18, 2019. Consciousness in Human and Non-human Animals. 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WALTERS, K. S.; PORTMESS, L. Ethical vegetarianism: from Pythagoras to Peter Singer. Albany: State University of New York, 1999. 25 Ética e experimentação animal: passado, presente e futuro c Marcela Sorelli Carneiro Ramos e Viviane Domingues Costa Poucos assuntos na ciência despertam tamanho interesse na população mundial quanto o uso de animais para pesquisas em laboratórios. Podemos arriscar em dizer que todos concordam que existe falta de consenso na decisão de usar cobaias em ex- perimentos científicos. Tratando-se de um importante dilema ético, a luz da ciência e por que não, da história, podem auxiliar na compreensão dos aspectos éticos e morais que tangem esse assunto ainda controverso na sociedade mundial. Diante de um contexto histórico bastante extenso, destacaremos apenas alguns exemplos que possam ajudar a compreender melhor o tema em questão. Iniciamos com Hipócrates (550 a.C.), pai da medicina, foi responsável por desenvolver os primei- ros estudos sobre as comparações entre órgãos humanos e de animais através de dis- secação. Já em 300 a.C, Aristóteles (384 – 322 a.C.) e Erasístrato (304 – 258 a.C.), realizaram experimentos em animais vivos. Poucos anos depois, o cientista grego Galeno (129 – 199 d.C.) fez experimentos com animais para o avanço da compreensão da anatomia, fisiologia, patologia e farmacologia, recebendo o título de “o pai da vivis- secção”, uma vez que dissecou porcos e cabras. Estudos apontam que foi o primeiro a realizar experimentos com animais vivos, em público. Após sua morte, os estudos de vivissecção com animais se encerraram, retornando somente no século XV, quando Andreas Vesalius realizou inúmeras vivissecções em animais para estudo da anatomia e, posteriormente publicou sua obra De fabrica corporis humani, detalhando de forma impecável a anatomia humana. Já no século XVII, o filósofo René Descartes (1596- 1650) acreditava que os processos de pensamento e sensibilidade faziam parte da al- ma e, como na sua concepção, os animais não tinham alma, não havia sequer a possi- 26 bilidade de sentirem dor (1, 2, 3). Em 1638, o renomado cientista William Harvey (1578-1657) publicou um estudo descrevendo a fisiologia da circulação sanguínea, onde utilizou mais de 80 espécies de animais, caracterizando o primeiro uso sistemático de animais em atividades científicas "Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus” 4. Por fim, em 1780, o filósofo inglês Jeremy Benthan, publica o livro "Introduction to the principles of morals and legislation", retomando idéias já existentes na antiga Grécia, lançando a base atu- almente utilizada para a proteção dos animais. Benthan escreveu: A questão não é, po- dem eles raciocinar? ou podem eles falar? Mas, podem eles sofrer? 5 Entre os anos de 1800 e 1900 fatos importantes devem ser pontuados como a descoberta por Louis Pasteur sobre o surgimento de infecções (não são espontâneas!)e afirmações polêmicas, até mesmo para época, feitas pelo cientista Fraçois Magendie (século XIX), onde afirmava que animais não sentiam dor pois eram tidos como máqui- nas. Seu sucessor, Claude Bernard (1813-1878), considerado o maior fisiologista de todos os tempos, contribuiu ativamente para a descoberta de mecanismos neuroendó- crinos no controle da homeostase humana, utilizando animais em seus experimentos, sem qualquer preocupação com os aspectos éticos envolvidos. Claude Bernard, em seu livro An Introduction to the Study of Experimental Medicine 6, publicado em 1865, justificava a utilização de animais em pesquisas, alegando que: “Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e ab- solutamente. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar os animais para serviços caseiros, para comida e proibir o seu uso para a instrução em uma das ciên- cias mais úteis para a humanidade”. No mesmo século, surgem as primeiras sociedades protetoras dos animais, sen- do a primeira criada em 1824 na Inglaterra, Society for Preservation of Cruelty to Ani- mals. Ainda, os ingleses foram os pioneiros na regulamentação da utilização de ani- mais para fins de pesquisam através da publicação do British Cruelty to Animal Act, em 1876. Já em 1900, um fato histórico importante e marcante: é criado o Instituto Oswal- do Cruz (IOC/Fiocruz), com a missão de produzir vacinas para combater a epidemia de peste bubônica que atingia o país. Toda a produção de soros e vacinas, de diferentes doenças, até a década de 70, dependeu diretamente do uso de animais, prática que possibilitou a eliminação da varíola no Brasil, por exemplo. O isolamento da insulina em 1922, a partir de experimentos em cachorros, revolucionou o tratamento do diabetes. Na década de 70, o tratamento para hanseníase ganhou destaque e avanços a partir de antibióticos desenvolvidos em pesquisas com tatus e, ao final dessa década, em 1978, o direito dos animais ganha visibilidade quando a UNESCO divulga a Declaração 27 Universal dos Direitos dos animais. Embora o breve histórico descrito até aqui evidencie que, apesar dos avanços nas tecnologias e nas discussões éticas pertinentes aos diferentes momentos da histó- ria da ciência, no que tange a experimentação animal, sempre houve controversas e contrapontos. Grandes cientistas e pesquisadores de destaque na ciência antiga e con- temporânea, apresentaram argumentos polêmicos que, nos dias de hoje, seriam com- pletamente inaceitáveis. A fim de enriquecer o histórico aqui apresentado, um parágrafo exclusivo deve ser colocado para falar do zoólogo William Russell e do microbiologista Rex Burch. Em 1959, eles publicaram o livro “Os princípios da técnica experimental humanitária (The Principles of Humane Experimental Technique)” 7. Esta obra é fruto de um projeto inicia- do em 1954, tendo como seu idealizador Charles Hume, fundador da Federação de Universidades pelo Bem-Estar Animal (Universities Federation for Animal Welfare, UFAW). O livro aborda diferentes questões éticas e traz para comunidade científica, a teoria dos 3 “Rs”, Replace, Reduce e Refine. Em detalhes: i) replace ou substituir diz respeito a substituição do uso de animais por métodos como: testes in vitro, modelos matemáticos, cultura de células e/ou tecidos, simulação por computador, etc. ii) reduce ou reduzir refere-se a redução do número de animais utilizados nas pesquisas, bem como avaliação estatística prévia dos estudos propostos visando reduzir ao máximo o número de animais de experimentação e iii) refine ou refinar significa utilizar técnicas visando minorar a dor e o sofrimento dos animais como por exemplo, cuidados de anal- gesia e assepsia nos períodos pré, trans e pós-operatório, redução do desconforto, es- tresse, dor etc. Diariamente, diversas teorias científicas relacionadas ao benefício da saúde hu- mana surgem e necessitam serem testadas. Atualmente, o uso de animais em pesqui- sa ainda se faz necessário, principalmente no desenvolvimento de medicamentos, vaci- nas e curas de doenças crônicas. Considerar a ética relacionada aos animais é condi- ção sine qua non para qualquer pesquisa com ética e de qualidade. Os animais não podem se defender, falar ou até mesmo expressar o desejo de participar de um proce- dimento experimental. Portanto, torna-se obrigatória a preservação do bem-estar ani- mal, durante toda a realização da pesquisa até o momento final, onde é realizada a eu- tanásia. Nesse sentido, junto ao avanço tecnológico e realização de experimentos mais elaborados onde, a utilização do animal se torna cada vez menor, um crescente debate ético e científico vem fortalecendo as regras e diretrizes que permeiam o uso de ani- 28 mais para experimentação em pesquisas científicas. Portanto, as leis têm sido grandes aliadas em inibir e até proibir ações de más condutas éticas nas pesquisas que utilizam animais. Algumas leis de proteção aos animais surgiram ao longo da história como por exemplo, em 1641, na Colônia de Massachussets Bay, voltada aos animais utilizados em tarefas humanas, ou em 1822, quando foi instituída a Lei Inglesa Anti-crueldade, voltada para animais domésticos de grande porte. Nos anos seguintes, outros países da Europa e nos Estados Unidos, também criaram entidades semelhantes. No Brasil, a primeira sinalização nesse sentido, foi o Decreto-Lei nº 24.645, de 10 de julho de 1934, o qual descreve pena a quem aplica maus tratos aos animais. De acordo com seu § 3º, inciso IV, os maus tratos são definidos por: "Golpear, ferir ou mutilar voluntariamente qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésti- cos, ou operações outras praticadas em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência” 8. Infelizmente, o decreto foi revo- gado posteriormente e o conteúdo dessa Lei não foi regulamentado. No Brasil, a primeira legislação a estabelecer normas diretamente aplicáveis à prática em experimentação científica com animais surge em maio de 1979 com a Lei 6.638 que estabelece normas para a prática didático-científica da vivissecção de ani- mais 9. Infelizmente, o intuito não foi o de proibir a prática da vivissecção, muito pelo contrário, a lei permitia que fossem feitas, em todo território nacional, conforme descrito em seu artigo 1º: “Fica permitida, em todo o território nacional, a vivissecção de ani- mais, nos termos desta Lei.” Contudo traz recomendações para que essa prática seja realizada com a recomendação de criação de Comissão de ética no uso de animais os CEUA´s que regulamenta a criação de biotérios para atividades de pesquisa e ensino superior. Com isso, diversos centros de pesquisa científicas e universidades desenvol- veram seu próprio CEUA inspirados na lei, implementando manuais de conduta ética regulamentar. Anos depois, e após inúmeras propostas a fim de regulamentar as questões éti- cas na experimentação animal, em 2008, surge a Lei nº 11.794/08, regulamentada pelo decreto 6.899 em 15 de julho de 2009, popularmente conhecida como Lei Arouca, re- gulamenta o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, voltada especifica- mente para os procedimentos para o uso científico de animais e que revoga a Lei No 6.638, de 1979 10. Como ponto fundamental da Lei Arouca, destaca-se a criação do Conselho Nacio- nal de Controle de Experimentação Animal (CONCEA), ligado ao Ministério da Ciência 29 e Tecnologia, que tem como competências “expedir e fazer cumprir normas relativas à utilização humanitária de animais com finalidade de ensino e pesquisa científica”; cre- denciar instituições brasileiras para criação ou utilização de animais em ensino e pes- quisa científica; monitorar e avaliar a introdução de técnicas alternativas que substitu- am o uso de animais em ensino e pesquisa. Deacordo com a lei, a utilização de uso de animais fica restrita às atividades de ensino nos estabelecimentos de ensino técnico de nível médio da área biomédica e aos de ensino superior. O uso também fica permitido nas atividades relacionadas à ciência básica e aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos, imunobiológi- cos, instrumentos e quaisquer outros testados em animais 10. Para conseguir credenciamento no CONCEA, as instituições devem constituir previamente uma Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). Essas comissões são compostas por veterinários, biólogos, docentes, pesquisadores e um representante de sociedade protetora de animais legalmente estabelecida. A partir das informações re- metidas por essas comissões, o CONCEA constitui um cadastro atualizado dos proce- dimentos de ensino e pesquisa que utilizam animais de experimentação. A lei estabele- ce penalidades para as instituições que descumprirem os termos nela definidos, com advertência; multa; suspensão, interdição temporária e definitiva das atividades; sus- pensão de financiamentos oficiais. A história nos mostrou que a ciência foi capaz de superar grandes desafios assim como outros desafios, ainda maiores, são impressos a cada dia. A experimentação ani- mal é, ainda hoje, um grande desafio. Não se pode imaginar ciência na área médica sem a busca por novos métodos para substituição do modelo animal em experimenta- ção, assim como, não se pode aceitar a realização de experimentos científicos sem o controle das instâncias responsáveis, legislações vigentes e conduta ética adequada. Esse desafio é global, e envolve cientistas e cidadãos, afinal, todos são responsáveis pela colheita dos frutos plantados no planeta chamado Terra! Referências bibliográficas 1. GOLDIM, J.R.; RAYMUNDO, M.M. Pesquisa em Saúde e os Direitos dos Animais. 2 ed. 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Lei nº 11.794, de 08 de outubro de 2008. Planalto. Disponível em: www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11794.htm. Acesso em: 30 de out. 2020. 31 Modelos biológicos alternativos na experimentação animal c Elizabeth Teodorov, Beatriz Paiva Santos Ferreira e Caio Alexandre de Freitas Schatzer A discussão acerca do uso de animais não-humanos nas pesquisas científicas vem despertando crescente interesse na última década, particularmente da sociedade civil. Muitos eventos relatando abusos, maus-tratos e condições insalubres dos animais utilizados em pesquisas levaram ao aumento da mobilização de ativistas e militantes da causa animal para a abolição de atividades científicas que se utilizam de modelos animais em seus estudos. Faz-se necessário importante esclarecimento acerca das atividades envolvendo uso de animais não humanos em pesquisas científicas. Todo projeto de pesquisa cujo objetivo de estudo utiliza animais em seus protocolos, geralmente roedores (camundongos e ratos), lagomorfos (coelhos) e peixes, obrigatoriamente deve ser pre- viamente submetido para aprovação em uma Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA) da Instituição. A CEUA é composta por membros qualificados e capacitados a analisar todas as etapas de um projeto científico no que diz respeito ao uso de animais, verificando a aplicação das leis e diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) que é órgão integrante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), bem como aquelas estabelecidas pela Socie- dade Brasileira da Ciência em Animais de Laboratório (SBCAL/COBEA). Assim, é ga- rantido que todos os animais que serão utilizados nesses estudos não sofrerão maus- tratos bem como se assegura a sanidade e conforto durante todo o período experimen- tal. Importante ressaltar que nenhum projeto de pesquisa pode ser iniciado sem a apro- vação da CEUA. 32 Os esforços para a descoberta modelos alternativos que pudessem substituir o uso de animais fizeram com que muitos pesquisadores estudassem novos protocolos e métodos. Assim, criou-se a Rede Nacional de Métodos Alternativos (RENAMA), que disponibiliza 24 métodos até o momento, como testes in vitro para avaliação de corro- são ocular, testes com pele humana reconstruída, entre outros. Todos esses métodos validados se basearam no chamado “Princípios dos 3Rs” (Replacement, Reduction, Refinement) proposto pelos pesquisadores Russel e Burch em 1953 e que foi um mar- co no desenvolvimento de métodos alternativos ao uso de animais. Em tradução livre a Redução (Reduction) está relacionada ao o uso de menos animais em experimentação, mas que possa garantir os resultados obtidos nos estudos; o Refinamento (Refinement) diz respeito a todas as medidas para alívio ou minimizar a dor, sofrimento ou estresse dos animais e a Substituição (Replacement) significa substituir o uso de animais vertebrados vivos por metodologias confiáveis que também garantam os resul- tados obtidos. Infelizmente nem toda pesquisa científica consegue substituir por completo o uso de animais. Pode-se citar alguns exemplos: em pesquisas que estudam células cardía- cas, se faz necessário o uso de animais para obtenção dessas células (chamada de cultura primária); em pesquisas cujo foco é avaliação de efeitos colaterais comporta- mentais (como nos estudos com medicamentos antidepressivos e ansiolíticos) não há como substituir o animal por um conjunto de células pois essas não respondem aos objetivos do estudo. Ou ainda, estudos que necessitam do tecido cerebral para avaliar doenças, distúrbios e aspectos da fisiologia do sistema nervoso central também não podem ainda ser substituídos por outros métodos. Os estudos nessas áreas estão avançando, como programas de computador que simulam redes de neurônios, meca- nismos fisiológicos entre outros, porém ainda são escassos e não refletem a magnitude de todo o organismo. Na UFABC o uso de métodos substitutivos ao uso de animais não-humanos vem sendo amplamente incentivado, respeitando-se as particularidades de todos os estu- dos. Assim, em 2018 foi defendida a primeira dissertação de Mestrado utilizando-se o modelo biológico experimental Danio rerio e em 2020 a primeira dissertação de Mestra- do utilizando o modelo biológico experimental Artemia salina. Essas duas linhas de pesquisa estão relacionadas ao impacto ambiental de várias substâncias químicas como medicamentos, dermatocosméticos e poluentes em geral, analisando aspectos da ecotoxicologia em meio hídrico. Deve-se, no entanto, relembrar que, nos estudos científicos nos quais a substituição de modelos animais tradicionais, como roedores e coelhos, ainda não ocorre totalmente, a ética, o cumprimento das leis e diretrizes de 33 bem-estar e sanidade animal, a responsabilidade de professores e alunos e o respeito máximo aos animais sempre deve ser a conduta exigida. O Danio rerio (conhecido popularmente como zebrafish oupeixe paulistinha) é um peixe encontrado em águas rasas e que no Brasil é muito utilizado como peixe or- namental. Esse peixe tem sido cada vez mais utilizado em pesquisas científicas por possuir características muito interessantes como tamanho corporal pequeno, diferen- ças entre machos e fêmeas facilmente identificadas e maior facilidade na criação e ma- nutenção em condições de biotério. O uso do Danio rerio em pesquisas científicas ocorre principalmente devido a todas as etapas de desenvolvimento (do ovo até fase larval) serem transparentes tornando possível a visualização imediata dos efeitos de produtos químicos nesse animal. Outro fator de extrema importância que justifica o uso deste peixe é a sua genética, já que seu DNA foi totalmente sequenciado e possui cerca de 70% dos seus genes homólogos aos genes humanos. Isso permite utilizar o Danio rerio para estudos de doenças humanas, como a Doença de Alzheimer, Transtor- no do Espectro Autista, Câncer, processos de cicatrização, estudos sobre o sistema imunológico além de uma série de estudos toxicológicos, tanto em relação a agentes químicos como também avaliação de impactos ambientais nos ambientes aquáticos. A Artemia salina (ou camarão-de-salmoura) conhecida por seu alto valor nutritivo e facilidade em sua criação, sendo utilizados rotineiramente como alimento vivo para peixes ornamentais. São microcrutáceos, muito parecidos com os camarões, mas não possuem uma carapaça dura, sendo que se adaptam muito bem a condições de expe- rimentação em laboratório e assim não é necessária sua criação e manutenção em um biotério específico. Ainda, sua manutenção é de baixo custo, apresenta facilidade de manejo e confere rapidez nos resultados dos estudos realizados. A Artemia salina pode ser estudada em suas diversas formas de desenvolvimento, desde cistos (que são ovos cobertos por uma película dura e que se encontram nessa condição quando o ambiente em que estão não são favoráveis para a eclosão) até as fases larvais chama- das de náuplios e também os adultos, onde a diferenciação entre macho e fêmeas é identificada facilmente. Esses organismos são muito importantes para estudos de eco- toxicidade pelo seu, sendo possível obter uma gama de resultados como avaliação de alterações comportamentais, morfológicas, e bioquímicas quando esses animais são expostos a diferentes agentes químicos. Apresentou-se brevemente dois modelos biológicos que vêm sendo utilizados em todo o mundo para substituir os modelos animais clássicos, e que tem revelado impor- tantes resultados em termos de neurobiologia do comportamento e ecotoxicidade. As- sim, a contribuição da UFABC no cenário de pesquisa internacional e de qualidade vem 34 continuadamente aliando modelos alternativos de pesquisa e com resultados que vão desde o nível molecular até o aspecto macro-ecológico, e que podem ser utilizados e difundidos nas mais diferentes frentes da ciência. Leitura suplementar FRAJBLAT, M.; AMARAL, V.L.L.; RIVERA, E.A.B. Ciência em animais de laboratório. Cienc. Cult., 60 (2), 2008. GARRETTO, J.V.T.M.; MARTINS, F.P. Substitutivos do modelo animal no ensino de técnica cirúrgica: uma revisão. Rev. Med. (São Paulo), 97(6): 561-568, 2018. RUSSELL, W.M.S.; BURCH, R.L. The Principles of Humane Experimental Technique. 1959. Disponí- vel em <http://altweb.jhsph.edu/pubs/books/humane_exp/het-toc> TRÉZ, T.A. Considerações sobre o conceito dos 3Rs e o potencial conflito com novas compreensões do animal experimental. Rev. Bras. Zooc., 19(2): 97-113, 2018 35 Por que a COVID-19 afeta mais negros no Brasil e EUA? d Ramatis Jacino Existem significativas coincidências entre Brasil e Estados Unidos. Ambos compõem o grupo das 10 maiores economias do Planeta, ostentam dimensões conti- nentais e têm população maior do que outras 190 nações. As semelhanças históricas também são grandes. As duas nações tiveram a escravidão como modelo fundamental para o desenvolvimento das suas economias e ao extinguirem o cativeiro estruturaram- se como sociedades racistas. Recentemente essas coincidências foram aprofundadas com a chegada ao poder de grupos políticos obscurantistas, liderados por indivíduos que verbalizam preconceitos raciais e contra grupos minoritários, negam a gravidade de uma pandemia devastadora e apresentam soluções de cura baseadas em convic- ções sem a menor base científica. Comportamento esse que fez desses países campe- ões mundiais em infecções e mortes pela COVID-19, que por sua vez tem vitimado principalmente a população negra. Ao longo da pandemia provocada pela COVID-19, assistimos pronunciamentos de autoridades e manifestações de rua contra o distanciamento social que chocam pe- los argumentos desumanizadores. Todavia, as motivações que levam a esse comporta- mento não são inéditas ou marginais na história do Brasil e dos EUA, nem na lógica de um sistema em que o lucro é sacralizado. Sistema esse que, para além de banalizar a morte, escolhe a quem será dado o direito à vida e quem deverá ser sacrificado em no- me de uma nova divindade a qual todos devem tributos: o Mercado. Diligentemente ne- gadas por governantes mais contidos, proprietários e executivos de grandes empresas e “analistas” da mídia nacional, são essas mesmas motivações que levam à sabota- gem das medidas de isolamento social, em defesa unicamente do lucro, em detrimento 36 das mais de 90.000 vidas humanas perdidas até o momento em que escrevemos este artigo, e sabe-se lá mais quantas a serem ceifadas até que se encontre uma vacina. A política da morte, ou a necropolítica apontada por Mbembe (2003), estrutura a sociedade brasileira, naturaliza as abissais desigualdades e foca prioritariamente na população negra, principal afetada pela atual pandemia e por escolhas econômicas e formas de gestão excludentes, historicamente protagonizadas pelo Estado brasileiro. Essa política esteve presente ao longo de três séculos e meio de escravidão e marcou a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, consolidando o processo de exclusão social dos recém-libertos. Foi naquele período que as oligarquias escravis- tas e o Estado que a elas servia, norteados pelo darwinismo social e a eugenia, desen- volveram uma série de ações para branquear a população brasileira e marginalizar os negros. A construção Três razões combinadas levaram ao fim da escravidão no Brasil: a luta dos escra- vizados, a pressão do Império Britânico e a lógica do capitalismo. A primeira materiali- zada nas fugas, assassinatos de senhores e feitores, rebeliões, insurreições e até mes- mo a criação do mítico Palmares, um verdadeiro país no interior da Colônia. A segunda foi a expansão do capitalismo industrial liderado pela Inglaterra, carente de mercados consumidores, disputando rotas de navegação, que, - ao impor uma nova divisão inter- nacional do trabalho, exerce forte pressão pelo fim do tráfico2. A terceira foi a lógica ca- pitalista de acumular riqueza comprando a força de trabalho e não o indivíduo, que na condição de escravizado poderia se evadir, adoecer ou morrer, em prejuízo do seu pro- prietário. Percebendo que estava se exaurindo o modelo que os beneficiara por diversas gerações, os grandes proprietários de terra iniciam os processos necessários à transi- ção para o trabalho assalariado. Foram norteados pela ideologia racista construída ao longo de três séculos que, para justificar a escravidão, atribuía aos negros uma série de deformidades de caráter, impeditivos à sua adaptação ao trabalho assalariado, relegando-os, portanto, à condição de sabotadores naturais do “progresso da nação”. Assim, a legislação, promulgada pelos representantes das oligarquias escravistas no Parlamento e no Executivo tornou-se o instrumento que, implícita ou explicitamente, promoveu a marginalização dos ex-escravizados. 2 Por exemplo, o Slave TradeSuppression Act, que ficou conhecido como Lei Bill Aberdeen, promulgado em 08/08/1845, autorizava os britânicos a prender qualquer navio suspeito de transportar escravizados. 37 São exemplos de iniciativas legais que prejudicaram população negra: a Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850, que cria impedimentos a que pobres em geral e negros em particular tenham acesso à terra; a Lei Rio Branco, de 28 de setembro de 1871, que, ao “libertar” o filho de mulher escravizada e mantê-la no cativeiro, levou à desagregação da família negra; a Lei Saraiva/Cotegipe, de 28 de setembro de 1885, que “libertava” o sexagenário depois de exauridas todas as suas forças e capacidade produtiva. Existiram, ainda, normas legais que explicitamente impediam que a popula- ção oriunda da escravidão se integrasse na sociedade capitalista que se estruturava. O uso da legislação para a discriminação racial tem como exemplos o Decreto Federal do Visconde do Bom Retiro, então Ministro dos Negócios do Império do Brasil, de 1854, determinando que não seriam admitidas matrículas de escravizados nas escolas públicas, e a Postura Municipal promulgada em São Paulo, em 6 de outubro de 1886, proibindo que escravizados exercessem os trabalhos melhores remuneradas e valori- zados socialmente. A estas decisões soma-se a efetivação, por grandes fazendeiros e pelo Estado, do projeto de branqueamento por meio da promoção da vinda dos imi- grantes europeus para substituir os ex-escravizados no mercado de trabalho, no cam- po e nas cidades. Fernandes (1978, v. 1, cp. 1) considerava que a marginalização econômica e social dos negros se deu como resultado da omissão do Estado brasileiro, a serviço dos interesses das oligarquias que o hegemonizavam, durante e depois da vigência da escravidão legal. Sem pretender refutar aquela análise, é possível - baseado na legis- lação citada e nas iniciativas de grandes fazendeiros e dos governos provinciais e nacional - afirmar que, para além da omissão, houve uma ação do Estado e das oligar- quias para promover a marginalização econômica e social dos ex-escravizados. Ação essa que os condenou à ocupação das franjas do sistema, portanto, à alta vulnerabili- dade social, responsável, dentre outras consequências, pelo agravamento de doenças adquiridas em decorrência das péssimas condições de trabalho no cativeiro e amplia- das por habitações precárias, falta de saneamento básico, má alimentação, trabalhos penosos e insalubres. A manutenção Na atualidade, o instrumento mais visível da necropolítica no Brasil é a mortanda- de e o hiperencarceramento da juventude negra, promovidos pelo braço armado do Estado e pelo sistema de Justiça. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada quatro pesso- as assassinadas pela polícia no Brasil, três eram negras, 76,2% do total. Contudo, é a 38 marginalização econômica e social a que toda população negra foi submetida ao longo da nossa história a principal responsável pela sua eliminação física. As seculares desigualdades entre negros e brancos são a principal razão da COVID19 impactar de maneira particular os negros no Brasil, assim como nos EUA. O desemprego, por exemplo, é um indicador irrefutável dessa desigualdade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE), o terceiro trimestre de 2018 regis- trou que a taxa de desemprego entre pessoas pardas era de 13,8%, entre as pretas 14,6% e entre as brancas 9,9%. Em pesquisa focada no trimestre seguinte, averiguou- se que as pessoas que se declararam brancas tiveram rendimento mensal médio de R$ 5.416 enquanto que os pardos atingiam R$ 2.467 e os pretos R$ 1.746. A exclusão social e a condição de miserabilidade da população pobre em geral, composta por maioria de negros, aumentou significativamente com o crescimento do desemprego, do subemprego e com o desmantelamento dos programas de proteção social. Um dos indicadores mais dramáticos é o aumento do número de moradores em situação de rua, condição que tem como resultado final, muitas vezes, sua eliminação física. Segundo matéria publicada pelo site Yahoo Notícias3, em 15 de setembro de 2019, o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) denunciava que, entre meados de 2016 e setembro de 2019, cerca de 40 mil pessoas viviam nas ruas da cidade de São Paulo, mais que o dobro se comparado aos números fornecidos pela Fundação de Pesquisas Econômicas (FIPE) em 2015, que informava existirem 15.905 pessoas vivendo nas ruas da capital paulista. Sabe-se que o novo coronavírus pode ser fatal para quem tem diabetes, asma ou hipertensão, doenças com maior incidência na população negra. Nessa pandemia, os trabalhadores e trabalhadoras mais vulneráveis são os entregadores de comida e diversos objetos, carregadores, trabalhadores autônomos e informais, em limpeza, segurança e empregados dos serviços públicos de saúde. Além, evidentemente, dos habitantes de moradias precárias e das pessoas em situação de rua. Todos, em sua maioria, negros. De acordo com informações do Ministério da Saúde, publicadas no site das Nações Unidas Brasil, em 05/12/20174, quase 80% dos usuários do SUS são negros e, embora esse ainda seja um dos melhores sistemas de saúde do mundo, a notória falta de recursos, problemas de gestão e o desmonte sistemático que vem sofrendo desde o golpe de 2016 levam a que, em tempos de pandemia, suas insufici- ências se agravem, mais uma vez em prejuízo da população pobre, que em sua maio- ria é negra. 3 Reportagem de Everton Menezes. https://br.noticias.yahoo.com/moradores-de-rua-sp-070048350.html 4 https://nacoesunidas.org/quase-80-da-populacao-brasileira-que-depende-do-sus-se-autodeclara-negra/ 39 A tragédia Para o capitalismo no atual estágio, uma parte significativa do exército de reserva de mão de obra é dispensável, aliás é necessário que pereça para o modelo ser exito- so. Se outrora era da lógica do capitalismo manter um grupo enorme de pessoas à margem do sistema, hoje é da sua natureza que morra parte desse grupo, que tem crescido vertiginosamente como resultado da concentração de renda e dos avanços tecnológicos. São as “sobras”, para quem não há trabalho, nem acesso ao mercado consumidor, que apenas “atrapalham” o sistema e já não mais podem ser atendidas pelas políticas compensatórias previstas pelo neoliberalismo original. Em tempos de financeirização, o neoliberalismo “hard” da atualidade necessita praticar a necroecono- mia. Se, como afirmava Lênin, o imperialismo é a etapa superior do capitalismo, a polí- tica da morte significa a maximização do tipo de sociedade que este capitalismo globa- lista forjou. Evidentemente, a morte é seletiva e quem deve morrer são os indesejáveis, os não consumidores, não aculturados, os “inferiores”. Na crise do novo coronavírus, as manifestações de rua de empresários e inte- grantes da classe média alta (brancos, na totalidade) defendendo que seus emprega- dos (negros, na maioria) voltem a trabalhar - enfrentando a contaminação certa em um transporte coletivo onde é impossível manter o distanciamento social -, representam a parte visível da necropolítica/necroeconomia. Consciente ou inconscientemente, aque- les indivíduos representam a vanguarda na aplicação radical da economia e da política da morte. Permitem assim, que os verdadeiros operadores de tais orientações se man- tenham na retaguarda, confortáveis na sua peroração douta, higiênica e polida, masca- rando o verdadeiro caráter do Sistema. Os manifestantes de rua, com suas insanas teorias de conspiração, palavras de baixo calão, negacionismo e ataques às instituições democráticas e os equilibrados e racio- nais líderes empresariais e políticos, defensores da volta ao trabalho, têm algo em co- mum: a certeza de que a morte dos produtores
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