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Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. INTRODUÇÃO No componente curricular “Corpo, Gênero, Sexualidade e Educação”, vamos estudar os conceitos básicos que permeiam as construções sociais, culturais e históricas sobre corpo, gênero e sexualidade que implicam no entendimento da concepção homem e mulher, na construção da identidade sexual e de gênero de meninos e meninas. Observaremos que a concepção de homem, de mulher, de menino, de menina que permeia as nossas relações sociais não são naturais, mas foram construídas ao longo de nossas vidas, pelas diversas instituições sociais, entre as quais a escola é uma das principais. Na primeira unidade temática, vamos estudar os conceitos básicos que contribuem para entendermos as relações de gênero e sexual que foram construídas ao longo da história. Assim como discutir o papel da escola frente às questões de gênero e sexualidade em nossa sociedade. Na segunda unidade, vamos estudar sobre a criança na atualidade e os processos de construção da identidade sexual e de gênero na infância, discutiremos o ser criança no contexto atual e as questões de gênero, sexualidade e os processos de construção das identidades sexual e de gênero na criança. Na terceira unidade, vamos discutir sobre diversidade sexual e de gênero e os desafios para sua inclusão nas escolas brasileiras. Na quarta unidade vamos estudar sobre as normas de gênero, sexualidade e as formas de articulação dos mecanismos de produção das identidades sexuais tidas como normais no espaço escolar. Compreender o processo de construção das identidades sexuais de gênero ao qual somos submetidos poderá nos ajudar na busca por soluções de problemas que nos afetam individual e coletivamente. Certamente, nos instrumentaliza para questionar as desigualdades de gênero e sexual, a heteronormatividade, respeitar as diferenças e viver em harmonia com a diversidade. Vivemos em um novo tempo, que exige novas posturas e diferentes olhares dos/as educadores para a realidade educacional. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. UNIDADE I CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE: REFLEXÕES NECESSARIAS PARA REPENSAR A EDUCAÇÃO ESCOLAR Prof.ª Esp. Ednelia Francisco dos Santos OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM Nessa primeira unidade, vamos estudar os conceitos como corpo, gênero e sexualidade necessários para entendermos as relações de gênero e sexual que foram construídas ao longo da história. Assim como discutir o papel da escola frente às questões de gênero e sexualidade na nossa sociedade. Os conceitos como corpo, gênero e sexualidade que perpassam nossa subjetividade não são naturais, mas construídos nas relações sociais, culturais e históricas. Compreender esses conceitos e as práticas que os constroem poderá auxiliar nas reflexões e práticas pedagógicas. Os conteúdos trabalhados nessa unidade serão base para outras unidades, então espero que você possa aproveitar e se motivar para esse importante desafio. Plano de estudo Nesta unidade serão abordados os seguintes tópicos: 1. Compreender os conceitos de corpo, gênero e sexualidade. 2. Identificar as práticas sociais responsáveis pela construção da concepção de corpo, gênero e sexualidade. 3. Discutir o papel da escola frente às questões de gênero e sexuais. 4. Refletir sobre as relações de gênero na nossa sociedade. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 1. COMPREENDER OS CONCEITOS DE CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE Para iniciar nossa discussão, citaremos algumas frases que atuam como reiteração da identidade de gênero e sexual "padrão", que certamente vocês já ouviram quando crianças ou já falaram para seus filhos/as ou alunos/as, dentre outras crianças. Dentre elas, "Engole o choro menino, homem não chora", “Essa menina parece um moleque, não para quieta", "Olha o caderno do 'Joãozinho' que capricho, parece até de menina" ou "Larga essa boneca menino, isso é brinquedo de menina". Essas são algumas das frases que diariamente ouvimos no ambiente escolar, mas porque será que é tão comum esse tipo de pensamento na escola? O que embasa essa concepção de gênero dos(as) educadores(as)? Esses são alguns dos questionamentos que refletiremos ao longo desta unidade. Assim, primeiramente procuraremos entender a expressão gênero e seu processo histórico. Segundo Louro (1997), a expressão gênero é recente na história, ela começou a ser utilizada com o movimento feminista do século XIX, no sentido de marcar que as diferenças entre homens e mulheres não são apenas de ordem física e biológica, mas também de ordem cultural. Isto é, adquiridas a partir das características atribuídas a cada sexo pela sociedade e sua cultura. Para a referida autora, as feministas anglo-saxãs iniciaram a distinção entre sexo e gênero com o objetivo de “[...] rejeitar um determinismo biológico implícito no termo como sexo ou diferença sexual” (SCOT, 1995 apud LOURO, 1997, p.21). Assim, por meio da linguagem mostraram o caráter social das distinções baseadas no sexo das pessoas. Essa distinção era contrária à concepção predominante que justificativa as desigualdades sociais entre homens e mulheres pela distinção biológica entre ambos. Com esse argumento de que as diferenças das relações entre homens e mulheres eram decorrentes das diferenças biológicas, naturalizava-se a ideia de que cada qual deveria desenvolver um papel determinado ao longo dos séculos. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Assim, parafraseando Louro (1997) naquela época, tanto no âmbito do senso comum como disfarçado por uma linguagem científica, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serviu para compreender e justificar a desigualdade social (LOURO, 1997). Nesse sentido, buscando mostrar que esta justificativa não condizia (e não condiz) com a realidade, desta forma, as feministas anglo-saxãs esforçavam para combatê-la, com o argumento de que: [...] não são, propriamente, as características sexuais, mas a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos (LOURO, 1997, p.21). Para Auad (2006), sexo não é a mesma coisa que gênero, embora estejam relacionados. O “sexo é percebido como uma questão biológica, enquanto gênero é uma construção histórica a partir dos fatos genéticos” (AUAD, 2006, p.22). O gênero é um conjunto de ideias e representações sobre o masculino e o feminino que cria uma determinada percepção sobre o sexo anatômico. E assim “[...] ter pênis ou ter vagina, ser menina, homem, mulher ou menino determina quais serão as informações utilizadas para organizar os sujeitos em uma desigual (e irreal) escala de valores” (AUAD, 2006, p.21). 2. IDENTIFICAR AS PRÁTICAS SOCIAIS RESPONSÁVEIS PELA CONSTRUÇÃO DA CONCEPÇÃO DE CORPO, GÊNERO E SEXUALIDADE 2.1 Concepção de Gênero Ao se considerar as relações de gênero como socialmente construídas, percebe-se que uma série de características consideradas “naturalmente” femininas ou masculinas corresponde às relações de poder que atravessam esses gêneros. O caráter “natural” dessas características tidas como femininas, como: meiga, delicada, Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons- Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. emotiva, submissa, sentimental, etc., e aquelas tidas como masculinas, como virilidade, ser “durão” (aquele domina as emoções), liderança, etc., são na verdade construídas, ao longo dos anos, dos séculos, de tanto serem praticadas, repetidas, contadas e recontadas. Mas as relações de gênero não têm nada de natural, elas são resultados da forma como estão sendo engendradas socialmente (AUAD, 2006). Essas características tidas como femininas e masculinas são apreendidas por meio das mais diversas práticas sociais, das quais a escola ganha destaque, pois, como afirma Philip R. D. Corrigan ( 1991) apud Louro (2000, p. 10), “[...] a escola pratica a pedagogia da sexualidade, o disciplinamento dos corpos. Tal pedagogia é muitas vezes sutil, discreta, contínua mas, quase sempre, eficiente e duradoura”. Essa pedagogia da sexualidade é descrita por Corrigan (1991) apud Louro (2000) em seu depoimento em um artigo intitulado The making of the boy meditations on what grammar school did with, to, and for my body, no qual descreve sua experiência em uma escola inglesa que, com o objetivo de “produzir o menino”, permitia formas legitimadas de violência exercidas pelos garotos maiores e mais “velhos” na escola sobre os “novos". De acordo com seu depoimento a [...] “produção do menino" era um projeto amplo, integral, que se desdobrava em inúmeras situações e que tinha como alvo uma determinada forma de masculinidade. Era uma masculinidade dura, forjada no esporte, na competição e numa violência consentida (CORRIGAM (1991), apud (LOURO, 2000, p. 10). A “produção da menina”, por sua vez, utilizava-se de práticas menos duras, porém não menos eficientes, como podem ver a partir do depoimento de Guacira Lopes Louro Numa escola pública brasileira predominantemente feminina, os métodos foram outros, os resultados pretendidos eram diversos. Ali nos ensinavam a sermos dóceis, discretas, gentis, a obedecer, a pedir licença, a pedir desculpas. Certamente também nos ensinaram, como a Corrigan, as ciências, as letras, as artes que deveríamos manejar para sobreviver socialmente. Mas essas informações e habilidades foram transmitidas e atravessadas por sutis e profundas imposições físicas (LOURO, 2000, p. 11). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Os objetivos dessas escolas eram a “produção de um homem e de uma mulher "civilizados", capazes de viver em coerência e adequação nas sociedades inglesa e brasileira, respectivamente.” (LOURO, 2000, p. 11). Assim, ser feminino ou masculino não é um processo natural, somos ensinados a ser, ou melhor, somos “produzidos” homens e mulheres por meio das relações práticas sociais e históricas. Segundo Braga (2009), o gênero, isto é, como ser homem ou mulher em nossa sociedade, é aprendido mesmo antes do nascimento, a partir do momento que se sabe o sexo da criança, cria-se uma série de expectativas em torno do comportamento, da personalidade de meninos e meninas, e se lança mão de práticas que reforçam e garantem essas expectativas. Práticas como presentear meninos com objetos de cor azul, carrinhos, etc., e meninas com objetos cor de rosa, bonecas, etc. O fato de se dirigir o foco para o caráter fundamentalmente social do gênero, não significa negar seu caráter biológico, mas enfatizar a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas de homem e mulher. Afinal, é no âmbito social que se constroem e reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos femininos e masculinos, e, portanto, é no social que se deve buscar as justificativas para as desigualdades e não nas diferenças biológicas (LOURO, 1997). Na medida em que o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino, obriga aquelas/es que o empregam a levar em consideração as distintas sociedades e os destinos, momentos históricos de que estão tratando. Afasta- se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas sobre os gêneros; a ótica esta dirigida para um processo, para uma construção, e não para algo dirigida a priori (LOURO, 1997, p.23). No entanto, conforme Louro (1997), as características sociais e relacionais do conceito gênero não deve levar a pensá-lo como se referindo à construção de papéis femininos e masculinos. Os papéis sociais de homem e mulher seriam, essencialmente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade coloca para seus membros definindo seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar, etc. “Através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é adequado (e Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas” (LOURO, 1997, p.24). E conforme Meyer (2003, p.16), gênero não se restringe aos papéis sociais, mas engloba: [...] todas as formas de construção social, cultural e linguística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade. Essa forma de teorizar o gênero implica alguns desdobramentos, o primeiro deles, segundo Meyer (2003), é reconhecer o caráter histórico do gênero, isto é, que não nascemos homens e mulheres, mas nos constituímos como homens e mulheres ao longo da vida, por meio das mais variadas instituições e práticas sociais, em um processo que não é linear, progressivo e harmônico e que nunca está finalizado e completo. O segundo desdobramento é considerar o caráter cultural do gênero, ou seja, que nascemos e vivemos em tempo, lugar e circunstâncias específicas, e consequentemente, há muitas e conflitantes formas de definir e viver a feminilidade e a masculinidade. O terceiro é analisar “as relações - de poder - entre mulheres e homens e as muitas formas sociais e culturais que os constituem como ‘sujeitos de gênero’” (MEYER, 2003, p.18). O quarto é considerar na análise dos gêneros, não o corpo em si, mas os processos e relações que possibilitam que sua biologia passe a funcionar como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais. Trata-se de [...] um afastamento de análises que repousam sobre uma ideia reduzida de papéis ou funções de mulher e de homem, para se aproximar de uma abordagem mais ampla, que considera que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. representações e pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo tempo em que estão centralmente implicadas com sua produção, manutenção ou ressignificação. (MEYER, 2003, p.18). A partir dessa concepção de gênero, deixa-se de focar os papéis ou funções de mulheres e de homens para entendê-los como constituintes da identidade dos sujeitos. Identidade essa que, conforme LOURO, 1997, p.24, são “identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias” (LOURO, 1997,p.24). 2.2 Construção da Identidade Parafraseando Louro (2000), os processos de reconhecimento de identidades inscrevem-se, ao mesmo tempo, à atribuição de diferenças e com isso instituem-se as desigualdades de ordenamentos, de hierarquias, que estão estreitamente imbricados com as redes de poder que circulam em uma sociedade. “O reconhecimento do "outro", daquele ou daquela que não partilha dos atributosque possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos” (LOURO, 2000, p. 9). Assim, por meio desse processo de reconhecimento das identidades, as sociedades constroem os contornos demarcando as fronteiras entre aqueles que representam a norma, isto é, que estão de acordo com seus padrões culturais e aqueles que ficam fora dela, às suas margens (Louro, 2000). Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os "outros" sujeitos sociais que se tornarão "marcados", que se definirão e serão denominados a partir dessa referência. Desta forma, a mulher é representada como "o segundo sexo" e gays e lésbicas são descritos como desviantes da norma heterossexual (LOURO, 2000, p. 9). Com essa prática de classificar os sujeitos, a sociedade estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar as identidades sociais. Assim, define, separa e, de forma Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. sutil ou violenta, também distingue e discrimina. Algumas dessas representações adquirem uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade, como é o caso dos grupos sociais que ocupam as posições centrais, tidas como "normais" nas questões de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião, entre outras, têm possibilidade não apenas de representar a si mesmo, mas também de representar os outros (Louro, 2000). Eles falam por si e também falam pelos "outros" (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos (LOURO, 2000, p.10). Sendo assim, concordamos com Louro (2000) quando afirma que as identidades sociais e culturais são políticas, pois as formas como elas se representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas experiências e práticas são sempre atravessados e marcados por relações de poder. Silva (1998) apud Louro (2000, p.10) diz que é por meio da “política de identidade” que “‘os grupos subordinados contestam precisamente a normalidade e a hegemonia’ das identidades tidas como normais”. Conforme Louro (2000), um campo em que esses mecanismos operam com bastante força é o da sexualidade, pois só uma forma de sexualidade é generalizada e naturalizada e acaba se tornando referência para todo o campo e para todos os sujeitos, isto é, a heterossexualidade. A heterossexualidade é concebida como "natural" e também como universal e normal. Aparentemente supõe-se que todos os sujeitos tenham uma inclinação inata para eleger como objeto de seu desejo, como parceiro de seus afetos e de seus jogos sexuais alguém do sexo oposto. Consequentemente, as outras formas de sexualidade são constituídas como antinaturais, peculiares e anormais (LOURO, 2000, p. 10). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 2.3. A concepção de sexualidade Assim como o gênero, a sexualidade não é natural aos seres humanos, mas é construída nas relações sociais, culturais e históricas. Conforme Louro (2010, p.11- 12), a sexualidade “é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem ‘verdades’”. Portanto, não dá para resumir a sexualidade aos corpos, supondo que estes são vividos universalmente da mesma forma, uma vez que socialmente são sugeridas, promovidas muitas formas de fazer-se mulher ou homem, de viver prazeres e desejos corporais. Formas essas que podem também ser renovadas, reguladas, condensadas ou negadas (LOURO, 2010). Dessa forma, Louro (2010) entende que a sexualidade engloba rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, enfim, processos culturais e plurais. Por meio dos quais definimos [...] o que é – ou não – natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita sempre no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2010, p.11). É, portanto, no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais, não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, nacionalidade de classe, etc. (LOURO, 2010). Os sujeitos são constituídos por essas identidades sociais na medida em que são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Assim, “reconhecer-se numa identidade supõe, pois responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência” (LOURO, 2010, p.12). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Mas não se trata de um processo simples e estável, uma vez que essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. Somos sujeitos de muitas identidades, que muitas vezes podem ser atraentes e depois tornarem-se desnecessárias, podendo assim ser rejeitadas ou abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes (LOURO, 2010). Porém, essa transitoriedade e contingência pode até ser aceita para as identidades de classe, mas não para as identidades de gênero e sexuais. Segundo Louro (2010), admite-se que um operário se transforme em um patrão, uma camponesa em uma empresária, mas não se admite que uma pessoa portadora do sexo masculino se apresente como uma pessoa de sexo feminino, ou vice-versa. Pois, para as sociedades ocidentais modernas, “a admissão de uma nova identidade sexual ou de gênero é considerada uma alteração essencial, uma alteração que atinge a ‘essência’ do sujeito” (LOURO, 2010, p.13, grifo nosso). Isso porque as identidades sexuais e de gênero parecem ser a referência mais segura sobre os indivíduos (LOURO, 2010). De acordo com o que diz Weeks (1995 apud LOURO, 2010, p.14), Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo ou se dissolvendo, seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas necessidades e desejos corporais. [...] O corpo é visto como a corte de julgamento final sobre o que somos ou que podemos nos tornar. Por que outra razão, estamos tão preocupados se os desejos sexuais, sejam hetero ou homossexuais, são inatos ou adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se o comportamento generificado corresponde aos atributos físicos? Apenas porque tudo o mais é tão incerto que precisamos do julgamento que, aparentemente, que nossos corpos pronunciam. Assim, Louro (2010) diz que nossos corpos constituem na referência que, por fim, surgem as identidades. No entanto, há uma ideia equivocada de que o corpo seja inequívoco e evidente por si só e, por isso, ele ditará as identidades sem ambiguidades e inconstâncias, mas essa correspondência natural e a-histórica entre Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.corpo e identidades não é verdadeira, pois os corpos são significados pela cultura e são continuamente por ela alterados. Para Louro (2010), por meio das mais diversas imposições culturais, nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais dos grupos a que pertencemos. 3. DISCUTIR O PAPEL DA ESCOLA FRENTE ÀS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUAIS Uma das imposições culturais responsáveis por construir os corpos “adequados” é a escola. Os corpos dos indivíduos devem apresentar marcas visíveis do processo de escolarização; marcas que, ao serem valorizadas por essas sociedades, tornam-se referência para todos (Louro, 2000). Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular (LOURO, 2000, p. 14). As práticas sociais e linguagens constituem sujeitos femininos e masculinos e produzem "marcas" nos sujeitos. No entanto, para que essas marcas se efetivem de fato é acionada não apenas a escola, mas também a família, a mídia, a igreja, a lei na produção das mesmas. Todas essas instâncias realizam uma pedagogia, fazem um investimento que, frequentemente, aparece de forma articulada, reiterando identidades e práticas hegemônicas enquanto subordina, nega ou recusa outras identidades e práticas; outras vezes, contudo, essas instâncias disponibilizam representações divergentes, alternativas, contraditórias (LOURO, 2000, p. 16). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Assim, a produção dos sujeitos ocorre por meio de um processo plural e permanente, ou seja, durante toda a vida. No entanto, esse não é um processo no qual os sujeitos participam como meros receptores, atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias, ao contrário, nesse processo eles estão implicados e são participantes ativos na construção de suas identidades” (Louro, 2000). Na constituição de mulheres e homens, ainda que nem sempre de forma evidente e consciente, há um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos na determinação de suas formas de ser ou "jeitos de viver" sua sexualidade e seu gênero (LOURO, 2000, p. 18) Em relação a todas as oscilações, contradições e fragilidades que marcam esse investimento cultural de “produzir” homens e mulheres, a sociedade busca, intencionalmente, por meio de múltiplas estratégias e táticas, tais como brinquedos, brincadeiras, vestuário, linguagem, mídia, religião, escola, família etc., ‘fixar’ uma identidade masculina ou feminina ‘normal’ e duradoura. Esse intento articula, então, as identidades de gênero ‘normais’ a um único modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual. (Louro, 1997, 1998 apud LOURO, 2000, p.17). Para Louro (2000), nesse processo de construir as identidades de gênero e sexual “normal”, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil, pois ela precisa, de um lado, incentivar a sexualidade "normal" e, de outro, simultaneamente, contê-la. A ideia disseminada pela escola é que um homem ou uma mulher deverão ser, necessariamente, heterossexuais e, para tanto, devem ser estimulados. No entanto, pensa-se que a sexualidade deve ser adiada para depois da escola, ou seja, para a vida adulta. É preciso manter a "inocência" e a "pureza" das crianças (e, se possível, dos adolescentes), ainda que isso implique no silenciamento e na negação da curiosidade e dos saberes infantis e juvenis sobre as identidades, as fantasias e as práticas sexuais (LOURO, 2000, p. 17). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. No entanto, nem todos e todas aceitam esse silenciamento da sexualidade e acabam expressando, de forma mais evidente, sua sexualidade. Por isso, se tornam alvos imediatos de redobrada vigilância, ficam "marcados" como figuras que se desviam do esperado, já que adotaram atitudes ou comportamentos que não são condizentes com o espaço escolar (Louro, 2000). Ao contrário da escola que procura silenciar a sexualidade, a mídia, as roupas, shopping-centers, músicas, programas e em outras múltiplas situações experimentadas pelas crianças e adolescentes, a sexualidade está sempre em evidência e, por isso, é considerada por alguns como uma ameaça à moral e aos bons costumes. Principalmente em se pensando nas crianças, pois são muito "sabidas" e isso se torna perigoso, pois passam a conhecer e a fazer muito cedo coisas demais (Epstein e Johnson, 1998 apud Louro 2000). Assim, redobra-se a vigilância sobre a sexualidade, mas isso não é o bastante para sufocar a curiosidade e o interesse das crianças, apenas conseguem limitar sua manifestação desembaraçada e sua expressão franca, fazendo com que as perguntas, as fantasias, as dúvidas e a experimentação do prazer pela criança e adolescente seja remetida ao segredo e ao privado. Por meio de múltiplas estratégias de disciplinamento do corpo, aprendemos a vergonha e a culpa e experimentamos a censura e o controle da nossa sexualidade. Assim, pensamos que as questões da sexualidade são assuntos privados e acabamos não percebendo sua dimensão social e política (LOURO, 2000). Em se falando de vigilância da sexualidade, esta aumenta significativamente quanto se trata daqueles e daquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual, isto é, os homossexuais. Para estes, as alternativas são poucas, restam-lhes o silêncio, a dissimulação ou a segregação. Assim, ao mesmo tempo em que se produz a heterossexualidade, provoca a rejeição da homossexualidade. “Uma rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia” (LOURO, 2000, p.18). Conforme Louro (2000), esse sentimento experimentado por mulheres e homens parece ser mais fortemente incutido na produção da identidade masculina. Afinal, vivemos em uma cultura bastante machista e a manifestação de afetividade entre meninos e homens é alvo de uma vigilância muito mais intensa do que entre as Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. meninas e mulheres. Meninos e meninas aprendem, desde pequenos/as, inclusive na escola, a fazer piadas e gozações, apelidos e gestos com aqueles e aquelas que não estão de acordo com os padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem. Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse "contagiosa", cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade (LOURO, 2000, p.19-20). Para as autoras Felipe (2008) e Louro (2008), a escola deveria se constituir em um espaço capaz de problematizar e desconstruir o sexismo, a heteronormatividade e outros tipos de preconceito, que começam dentro de casa. Desta forma, a escola, que deveria se configurar como um lugar de acolhimento e de ampliação dos conhecimentos dos alunos e alunas e também dos/as professores/as, tem se apresentado como um local hostil que reforça esses preconceitos, principalmente quando se trata de sexualidade, pois, ao invés de um local conhecimento, é um local e ocultamento. A escola é, sem dúvida, um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo sexual e que esse tipo- inato a todos - deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O lugar do conhecimento mantém-se, com relação à sexualidade, como o lugar do desconhecimento e da ignorância (LOURO, 2000, p. 20-21). Para Louro (2010), a instituição escolar, por meio da afirmação ou do silenciamento nos espaços reconhecidos e públicos ou nos cantos escondidos e privados, exerce uma pedagogia da sexualidade, legitimando determinadas identidades e práticas sexuais, reprimindo e marginalizando outras. No entanto, as instituições e indivíduos Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. para se afirmarem e se definirem precisam da identidade marginalizada, subjugada, pois sua afirmação se dá na medida em que a contrariam e a rejeitam. Nesse sentido, mesmo quando as identidades sexuais “alternativas” são excluídas ou negadas, continuam ativas e necessárias. “Elas se constituem numa referência para a identidade heterossexual; diante delas e em contraposição a elas a identidade hegemônica se declara e se sustenta” (ILOURO, 2010, p.31). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. CONCLUSÃO Assim, pensamos que os conhecimentos acerca do gênero e sexualidade devem fazer parte dos conteúdos escolares, uma porque mostrará para os/as profissionais da educação que mesmo negadas as identidades de gênero e sexual “alternativas”, marginalizadas, tão repudiadas socialmente são necessárias para a sustentação das identidades de gênero e sexual hegemônica. Além disso, porque o conhecimento dessas temáticas é fundamental para que a escola seja capaz de abandonar e questionar esse discurso que aprendemos sobre a sexualidade que diz sobre o que falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder, quem pode falar e quem deve ser silenciado. Sem contar que é só por meio do conhecimento que os sujeitos sairão da ignorância e serão capazes de duvidar, questionar essas verdades e certezas sobre os corpos e a sexualidade (Louro, 2000). Assim, as questões de gênero e sexualidade são temáticas que devem se fazer presentes em todos os níveis de ensino, uma vez que a representação do que é ser homem ou ser mulher inicia-se mesmo antes do nascimento em casa com a compra dos enxovais do bebê e continua na infância com a escolha dos brinquedos e as brincadeiras infantis tidas como de “menino” e de “menina”. Desse modo, a próxima unidade desse trabalho discutirá a criança e os processos de construção da identidade sexual e de gênero. Indicação de leitura EDUCAR MENINAS E MENINOS - RELAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA Autor: Daniela Auad Idioma: Português Editora: Contexto Assunto: Pedagogia Edição: 1º Ano: 2006 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Resumo: Como se comportam meninos e meninas nos recreios e nas salas de aula? Menino pode fazer balé e menina tocar bateria? EDUCAR MENINAS E MENINOS traz à tona as relações de gênero na escola e a construção das diferenças hierarquizadas entre os sexos. Além disso, analisa a escola mista e defende a ideia da co-educação, uma nova forma de educar que foge aos padrões tradicionais estereotipados de separação das "coisas de menino" e das "coisas de menina". Defende a igualdade com respeito às diferenças e mostra como isso pode ocorrer na prática escolar. Fonte: EDITORA CONTEXTO, 2017 Indicação de filme MENINOS NÃO CHORAM Lançamento: 10 de março de 2000 Dirigido por: Kimberly Peirce Com: Hilary Swank, Chloë Sevigny, Alison Foland Gênero: Drama Nacionalidade: EUA Sinopse: Saiba como Teena Brandon se tornou Brandon Teena e passou a reivindicar uma nova identidade, masculina, numa cidade rural de Falls City, Nebraska. Brandon inicialmente consegue criar uma imagem masculinizada de si mesma, se apaixonando pela garota com quem sai, Lana, e se tornando amigo de John e Tom. Entretanto, quando a identidade sexual de Brandon vem público, a revelação ativa uma espiral crescente de violência na cidade. Fonte: ADORO CINEMA, 2017 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. REFERÊNCIAS AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006. BRAGA, Eliane Rose Maio. Sexualidade Infantil: a importância da formação de professores(as) na questão de gênero. In: CARBELLO, Sandra Regina Cassol; COMAR, Sueli Ribeiro (Org.). Educação no século XXI: múltiplos desafios. Maringá: Eduem, 2009. p.129–137. ______. Gênero, sexualidade e educação: questões pertinentes à pedagogia In. :CARVALHO, Elma Julia Gonçalves de; FAUSTINO, Rosangela Célia (Org.). Educação e diversidade cultural. Maringá, PR: Eduem, 2010. p. 205-218. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós- estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: ______. (Org.). O corpo educado: pedagogia da sexualidade. 2 ed. Belo Horizonte: Autentica, 2000. pp.7-34. MEYER, Dagmar Estermann. Gênero e Educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira Lopes; VILADORE, Silvana (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. pp.9-27.
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