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TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Eduardo Pacheco Freitas A função social do conhecimento histórico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar a edificação do processo da consciência histórica. Reconhecer as identidades individual e coletiva. Descrever as elaborações teóricas do tempo e da memória nos tempos históricos. Introdução A história é um ramo do conhecimento humano que apresenta diversas particularidades. Em primeiro lugar, seu objeto de estudo — o passado — é problemático, por não ser diretamente acessível ao historiador. Portanto, o historiador trabalha a partir de fontes, que são vestígios de outros tempos que chegaram aos dias atuais e podem ser analisados, descritos, interpretados e comunicados pelo pesquisador por meio de uma narrativa. No entanto, a história não é uma forma de conhecimento que simples- mente revela a erudição do historiador, sem conexão alguma com o con- texto no qual se situa. Na verdade, é possível afirmar que o conhecimento histórico possui uma função social. Seu ensino serve para a formação da identidade e para a constituição de cidadãos críticos, por meio do aprendi- zado da história e da memória. É via conhecimento histórico que o ser hu- mano pode se situar no espaço e no tempo, sendo capaz de compreender o mundo onde vive. Em suma, o conhecimento histórico cria a consciência histórica, isto é, o conhecimento do passado, que orienta o presente e projeta o futuro, na formação das identidades individuais e coletivas. Neste capítulo, você vai aprender como ocorre a edificação do pro- cesso da consciência histórica, bem como reconhecer as identidades coletivas e individuais inerentes a ele. Além disso, também conhecerá as elaborações teóricas do tempo e da memória nos tempos históricos. O processo de formação da consciência histórica Certamente você já deve ter ouvido alguém falar que a história não “serve para nada”. No senso comum, frequentemente existe a ideia de que apenas disciplinas como português e matemática são importantes, pois seriam as únicas úteis para o trabalho. Porém, nada está mais distante da realidade do que essa ideia de a história não ter valor. Muito pelo contrário, a história é uma das ciências mais importantes, justamente por estudar o que o ser humano já fez e, assim, mostrar quem ele é. Dessa forma, a história como disciplina tem uma função social, que, a partir da formação da consciência histórica, promove o desenvolvimento de cidadãos críticos. Conhecimento histórico e formação de cidadãos críticos Afi nal, por que estudamos história? Essa é uma questão que perpassa gerações e é respondida de diversas maneiras com o passar do tempo ou de acordo com a sociedade que faz a indagação. No entanto, existe atualmente um possível consenso sobre qual a necessidade e a importância de se estudar e produzir conhecimento histórico. A resposta sem dúvida alguma passa pela formação dos cidadãos, mas necessariamente levando em conta seu desenvolvimento crítico como ser humano, de forma que cada um possa se apropriar das experiências do passado para pensar o presente e projetar o futuro. Estudar história é indagar ao mesmo tempo os sentidos da vida individual e da coletividade no decorrer do tempo. Não é à toa que Marc Bloch (2001, p. 67) já pontuava que a história é a “[...] ciência dos homens no tempo”. Portanto, é dessa forma que a história contribuirá para a localização do ser humano nesse mundo. É ela que pode fornecer as coordenadas necessárias para a orientação de cada um de nós na própria vida, enquanto seres sociais e históricos que somos, afinal. É importante saber ler a história criticamente. Vejamos o caso das chamadas histórias nacionais, por exemplo, que narram o processo de construção das nações. Não raro esse tipo de história é apologética, com o intuito de gerar uma identidade nacional. Portanto, há a glorificação de um passado mítico, supostamente comum a todos os habitantes da nação, fato que desconsidera que qualquer coletividade humana é heterogênea, com diferentes grupos, uns privilegiados, outros opri- midos. Nesse sentido, é possível dizer que uma nação possui muitos passados. Um exemplo que deixa isso muito claro diz respeito à conquista da América pelos europeus — no caso do território que viria a se tornar o Brasil, pelos portugueses. Esse processo de forma alguma foi pacífico ou sem violência, A função social do conhecimento histórico2 causando, inclusive, genocídio. As populações indígenas foram quase que totalmente exterminadas. Da mesma forma, não é possível narrar a história do país sem incluir a escravidão africana, que ao longo de quase quatro séculos trouxe da África milhões de homens, mulheres e crianças, que encontraram aqui uma vida de abuso e sofrimento. Pois estes são elementos que estão na base da construção da nação brasileira e que nos ajudam entender a desigualdade e a violência existentes no país. Outro exemplo importante é que, até algumas décadas atrás, a história era escrita sem personagens femininas, como se as mulheres jamais tivessem realizado qualquer atividade importante na experiência histórica da humanidade. Somente nos últimos anos, quando os direitos das mulheres se tornaram um assunto a ser discutido com mais seriedade, é que a historiografia passou a inclui-las, surgindo até mesmo um ramo específico conhecido como “história das mulheres”. É assim que os historiadores, em conexão com a disciplina ensinada em sala de aula, devem ter em mente a construção de uma história que demonstre a pluralidade do ser humano e de sua experiência ao longo do tempo. Os grupos historicamente oprimidos devem seu passado contado e incluso na busca de uma história que faça sentido e que exerça sua função social de promover o pensamento crítico. A produção do conhecimento histórico deve atender a esses critérios para que as novas gerações conheçam o passado, de modo a refletirem sobre o presente e projetarem o futuro. Marc Baldó, professor espanhol de história contemporânea, defende que os historia- dores saiam dos ambientes acadêmicos e divulguem o conhecimento histórico que produzem de maneira mais intensiva na sociedade. Afinal, a história tem sua função social e deve chegar ao grande público. Na entrevista disponível no link a seguir, você conhecerá o pensamento e as propostas do professor. https://qrgo.page.link/PfCAM Formação de sentido e consciência histórica Rüsen (2014) propõe uma disciplina que estabeleça a conexão entre a história como disciplina acadêmica e a história ensinada em sala de aula: a “didática da história”. Esta, por sua vez, teria como objeto a formação de consciência 3A função social do conhecimento histórico histórica, que é “[...] a forma de consciência temporal humana, na qual a expe- riência do passado enquanto história é interpretada para o presente” (RÜSEN, 2014, p. 97). Ou seja, na história, enquanto formadora de consciência histórica, são interpretados e debatidos os acontecimentos históricos — consideradas as cargas de sentidos e interpretações acumuladas pela historiografi a — à luz do presente e das questões atuais. Para o autor, as narrativas históricas “[...] podem gerar regras de ação abstratas a partir de acontecimentos concretos do passado e aplicá-las ao acontecimento atual e às expectativas de futuro (historia magistra vitae — história mestra da vida)” (RÜSEN, 2014, p. 99). Portanto, a história, ao ser ensinada, tem em vista produzir conhecimento histórico que responda questões cotidianas em busca de orientações para a vida, para ações visando o futuro. Ainda segundo Rüsen (2014, p. 103), a orientação tem a ver com a memoração histórica, isto é, com o processo de formação de sentido, através do ato de narrar histórias e interpretar a experiência temporal, que “[...] torna o passado tão presente que ele se torna proveitoso à vida”. Se compreendermos a “[...] história como grandezaorientadora da práxis vital” (RÜSEN, 2014, p. 100), teremos melhores condições de entender o que é de fato a consciência histórica. Para isso, é importante termos em mente que a consciência histórica humana atua em três modos: funcional, reflexivo e pragmático. O primeiro deles diz respeito às instituições culturais onde os seres humanos são “construídos”; já o modo reflexivo tem a ver com a elabo- ração interpretativa e representativa do passado, ou seja, um posicionamento consciente perante a experiência do tempo. A escola é uma dessas instituições culturais que fornecem a consciência histórica. É a partir do modo reflexivo que a história deixa de ser premissa e passa a ser o término da formação histórica de sentido, encaminhando assim ao último modo, o pragmático, que serve como diretriz ao que queremos extrair da experiência histórica com vistas ao presente e ao futuro (RÜSEN, 2014). Para finalizar, chegamos ao ponto principal, o aprendizado histórico, que se dá na “formação de sentido” que “[...] pode ser explicitada concei- tualmente como a interconexão complexa de quatro atividades mentais: experimentar, interpretar, orientar e motivar” (RÜSEN, 2014, p. 267). Como resultado, a experiência do passado é interpretada e atualizada como história, derivando daí a formação histórica de sentido. A consciência his- tórica tem a ver com o desenvolvimento da capacidade de interpretação do tempo. Assim, o aprendizado histórico, além de proporcionar a aquisição de competências experienciais, orientadoras e motivadoras, promove a A função social do conhecimento histórico4 aquisição daquele elemento que é central neste processo: a competência interpretativa. Dessa forma, a narrativa histórica atuaria como um “[...] processo de constituição de sentido da experiência do tempo” (RÜSEN, 2011, p. 95). Para ampliar seus conhecimentos sobre a teoria da consciência histórica, como pensada pelo alemão Jörn Rüsen, assista à conferência “Historiografia e pesquisa a partir da teoria da consciência histórica na Alemanha”, realizada pelo professor Dr. Marcelo Fronza. https://qrgo.page.link/EPrrQ Consciência histórica e as identidades individual e coletiva Você já deve ter se deparado em algum momento com as velhas perguntas “quem somos, de onde viemos e para onde vamos”. Muitas vezes, elas podem nos parecer engraçadas, como uma brincadeira a respeito das especulações fi losófi cas sobre a vida. No entanto, se você analisar a questão mais de perto, irá perceber que, em boa medida, essas perguntas retratam muito bem o que é que a consciência histórica, a qual, em última análise, tem a ver com o problema da identidade, seja coletiva ou individual. Identidades emergentes nas memórias históricas Imagine por um momento se a cada dia você acordasse a não lembrasse de nada que havia ocorrido no dia anterior, nem em todos os outros. A vida se tornaria impossível, não é mesmo? Isso comprova que o ser humano é o que é em grande parte pela sua experiência acumulada, pelos conhecimentos que adquiriu, por tudo que fez e viveu. Isso certamente ocorre no nível indivi- dual. Porém, se você considerar a questão mais de perto, perceberá que esse cenário acontece também no âmbito da coletividade. Uma sociedade ou um grupo social qualquer não pode existir enquanto agrupamento que possui suas próprias regras, suas tradições e seus conhecimentos sem que o passado, ou 5A função social do conhecimento histórico sua memória, exerça um papel preponderante nas atividades do presente e nas concepções do porvir. Em resumo, todos esses elementos giram em torno de uma relação principal: a do passado com a formação da identidade. De acordo com Pais (1999, p. 1): Sem consciência histórica sobre o nosso passado (e antepassados...) não perceberíamos quem somos. Esta dimensão identitária — quem somos? — emerge no terreno de memórias históricas partilhadas. Por isso, o sen- timento de identidade — entendida no sentido de imagem de si, para si e para os outros — aparece associado à consciência histórica, forma de nos sentirmos em outros que nos são próximos, outros que antecipam a nossa existência que, por sua vez, antecipará a de outros. Ao assegurar um senti- mento de continuidade no tempo e na memória (e na memória do tempo) a consciência histórica contribui, deste modo, para a afirmação da identidade — individual e coletiva. Assim, o autor nos esclarece o que é identidade: é a visão que temos de nós mesmos, para nós e para os outros. Esse fenômeno ocorre não somente no âmbito individual, mas também na coletividade. Ou seja, não apenas o indivíduo expressa sua própria individualidade, mas igualmente esta é expressa pela sociedade na qual vive, ambas inter-relacionadas. Mas como essas identidades surgem? É precisamente por meio da consciência histórica, do conhecimento do passado em comum e da projeção do futuro que sabemos quem somos no presente, tanto individual quanto coletivamente. A questão da identidade pode ser delimitada como uma construção social, tratando-se, portanto, de um processo a longo prazo, que vai de- monstrar com o passar do tempo que a identidade tem a ver com um permanente diálogo com o outro. Pois essa é uma das maneiras iniciais de se pensar a identidade, tanto em nível individual quanto social: é o espelho do outro que pode ajudar a mostrar quem o sujeito é ou deixa de ser. É a partir das definições do outro que a identidade pode ser definida. Portanto, a identidade permanece em constante elaboração, moldando-se nessas relações de alteridade. Inicialmente, no âmbito do Iluminismo, a identidade foi pensada como algo apenas individual, inerente ao indivíduo. Posteriormente, ela passou a ser concebida sociologicamente, pressupondo-se a interação entre a identidade interna que se relaciona o tempo todo com a externa, isto é, a identidade so- cial. Na pós-modernidade, a identidade passa a ser vista como algo mutável, cambiável, que não é estático, estando em constante movimento, além de ser fragmentária e pode existir como diversas identidades que coexistem. Con- A função social do conhecimento histórico6 tudo, uma questão central diz respeito à relação entre identidade e memória. Esta última é o referencial para a primeira. A identidade é construída sobre a memória, sobre o que é lembrado, sobre o que é esquecido e silenciado (SOUZA, 2014). No link a seguir, você poderá assistir a um vídeo da mesa redonda com os professores Giovani José da Silva e Jean Carlo Moreno no X Seminário Nacional de Didática da História, ocorrido em 2018, em que são discutidas, dentre outros temas, a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a didática da história. https://qrgo.page.link/5Q4AG Segundo Rüsen (2001), a relação entre o “ser” — entendido como a iden- tidade — e o “dever” — a ação — é feita precisamente pela consciência histórica. Isso significa que a narrativa histórica, em sua operação de apanhar os eventos passados, acaba por criar a identidade dos indivíduos a partir das suas próprias experiências e da coletividade. Nesse processo, o presente é tornado inteligível, sendo-lhe conferida uma expectativa em relação ao futuro. Dessa maneira, a consciência histórica apresenta uma atribuição prática, que promove a identidade dos sujeitos e estabelece uma dimensão temporal na realidade vivida por eles. Assim, surge uma orientação que tem a capacidade de guiar a ação, mediadora da memoração da história. Nesse sentido, fica evidente o papel central que uma formação sólida dos professores de história e o ensino desta disciplina adquirem na sociedade. Há uma relação direta entre o ensino de história, aprendizado de história e a construção de habilidades para orientação na vida de modo a promover uma identidade histórica coerente e estável. De acordo com Rüsen (2006, documento on-line): O aprendizado histórico é uma das dimensões e manifestações da consciên- cia histórica. É o processo fundamental de socialização e individualização humanae forma o núcleo de todas estas operações. A questão básica é como o passado é experienciado e interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o futuro. Aprendizado é a estrutura em que diferentes campos de interesse didático estão unidos em uma estrutura coerente. Ele determina a significância do assunto da história da didática bem como suas abordagens teóricas e metodológicas específicas. 7A função social do conhecimento histórico Assim, no ensino de história, deve-se procurar retomar as vivências pessoais e coletivas dos alunos e professores, vendo-os como seres históricos que vivem em uma realidade analisável, que pode e deve ser retrabalhada objetivando sua conversão em conhecimento histórico — e, mais do que isso, em autoconhecimento. É dessa forma que os sujeitos encontrarão um sentimento de pertencimento “[...] numa ordem de vivências múltiplas e contrapostas na unidade e diversidade do real” (SCHMIDT; GARCIA, 2005, documento on-line). Muitas vezes, os alunos podem não gostar de história; nesse caso, o que precisa ficar claro é que sem ela não é possível compreender o mundo em que vivemos. A história tem seu papel essencialmente social, pois a partir dos seus conteúdos, pode-se chegar-se à cidadania. Em primeiro lugar, a consciência histórica terá importância na formação da identidade, seja ela individual, co- letiva, nacional etc. Como um segundo passo, o aprendizado histórico ajudará na consolidação dos valores democráticos, permitindo que os jovens estudantes tenham contato com sua própria herança histórico-cultural, bem como com a de outras pessoas, outros povos e outros contextos muito diferentes. Isso fará com que o estudante de história não seja contaminado por preconceitos, intolerância ou irracionalidade. A consciência histórica é uma das premissas básicas da civilização. Como acentua Rüsen (2006, documento on-line), a história é uma matéria de “[...] experiência e interpretação”, e a sua didática demonstra a conexão existente entre “[...] história, vida prática e aprendizado”, o que garantiria um novo sentido à expressão historia magistra vitae. Elaborações teóricas do tempo e da memória na história Memória, lugares de memória e memórias históricas Para o historiador Jacques Le Goff (2003), o conceito de memória é “crucial” no seio das ciências humanas e da história. Seu signifi cado pode estar relacionado tanto a um fenômeno psicológico e individual quanto à vida em sociedade. A noção de memória varia de acordo com a presença ou não da escrita, e quando se torna objeto do Estado ou de outras instituições visando a preservação dos acontecimentos passados, produz documentos e monumentos. Portanto, a memória, enquanto fenômeno social, também é controlada em algum nível pelas forças dominantes. A memória está relacionada à ausência e, portanto, na mesma medida, às representações. O ato de memorar é indissociável da A função social do conhecimento histórico8 narrativa, possuindo dessa forma uma função social que corresponde à co- municação entre sujeitos sobre um determinado objeto ausente. Nos estudos historiográficos sobre as memórias históricas, é indispensável que se leve em consideração as diferenças relevantes que a memória, ou a memoração, apresenta em diferentes contextos históricos no tempo e no espaço. Segundo Le Goff (2003), existiram e existem sociedades com memória essen- cialmente oral, enquanto outras possuíram ou possuem a memória estruturada sobre a escrita. A partir daí, o autor divide as memórias históricas em cinco os tipos, considerando também os momentos de transição entre a memória oral para a memória escrita. A primeira delas seria a memória étnica, das sociedades ágrafas. Nessa modalidade, a memória coletiva se apresenta, sobretudo, como a narrativa dos mitos de origem. Já no tipo de memória que surge na passagem da Pré-história para a Antiguidade, ocorre a transição da oralidade à escrita. Nessa forma de memória, há grande destaque para a construção de monumentos, que, além da frequente motivação religiosa, tem por objetivo registrar os feitos da sociedade que os erige. No período medieval, com o predomínio do cristianismo, que se apresenta como uma religião da recordação (já que firmada teologicamente na história), a lembrança do sacrifício de Cristo e das vidas dos santos configura a forma da memória social desse época. O surgimento da imprensa, no século XV, opera uma transformação radical na memória ocidental. De modo similar, novas formas de comemoração acabam surgindo, como medalhas, festas cívicas no calendário, selos postais etc. Durante os processos revolucionários de 1789, foram criados arquivos nacionais e públicos, abrindo uma nova fase dos documentos da memória nacional (LE GOFF, 2003). Nos dias de hoje, com o desenvolvimento das tecnologias da informação, a memória é preservada de maneiras inimagináveis até bem pouco tempo atrás, sem esquecermos dos outros avanços do último século, como a fotografia, o cinema, as gravações de áudio etc. Um conceito importante dentro do âmbito das relações entre história e memória é o de “lugares de memória”, definido da seguinte forma pelo his- toriados francês Pierre Nora (1993, documento on-line): São lugares com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diferentes. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivo, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio que parece um exemplo extremo de 9A função social do conhecimento histórico uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. Portanto, nem somente locais físicos como monumentos, museus ou memo- riais podem ser considerados lugares que resguardam ou evocam memórias. As próprias criações não tangíveis da cultura, como os saberes, as práticas e os ritos, servem como locais privilegiados para a memoração social. A razão essencial para a existência dos lugares de memória é materializar o passado, permitir que o tempo pare, que o esquecimento seja bloqueado, que o imaterial seja materializado (NORA, 1993). Com isso em mente, cumpre lembrar que é na memória que ocorre o encontro do momento com a duração; é a memória que refaz a experiência vivida do real. Dessa forma, o próprio ato de memorar em si carrega uma função social, que é a de fornecer ou propiciar as orientações para o agir: Lembramos menos para conhecer do que para agir, sublinharam os autores modernos [Paul Ricoeur e Pierre Nora]. Nessa perspectiva, a memória é menos um entender o passado do que um agir; impossibilidade, portanto, de se cogitar uma memória desinteressada, voltada para o conhecimento puro e descompromissado do passado (SEIXAS, 2005, p. 53). Barros (2009), baseado nos trabalhos de Maurice Halbwachs, afirma que é preciso estabelecer as diferenças entre memória e memória histórica. Esta última tem a ver com a memória que é partilhada entre todos os indi- víduos de uma determinada sociedade. Ela se apresenta independente da historiografia elaborada pelos historiadores. Assim, a memória histórica é muito mais ampla, por exemplo, do que a memória autobiográfica, que se resume ao tempo de vida do indivíduo rememorado. Por sua vez, a memória histórica abrange um período muito maior de tempo, abarcando a vida desse indivíduo e talvez toda a existência da sociedade na qual ele se encontra inserido. A memória como fonte histórica Como vimos, a memória não é um processo exclusivamente restrito ao indi- víduo, possuindo relações importantes com os modos como uma sociedade se constitui e refl ete sobre si mesma. No entanto, as característicaspecu- liares da memória oferecem ao historiador novos desafi os e a necessidade A função social do conhecimento histórico10 de enfrentar questões diversas quando em comparação aos outros tipos de fontes. A memória é imprecisa e, além do que é lembrado, o trabalho com a memória deve atentar para seus silêncios e para as suas lacunas. Nos dias de hoje, os historiadores já não tem mais as pretensões da “história científi ca” do século XIX, de reproduzir literalmente os fatos sobre os quais se debruçam. Como impossibilidade metodológica, esse elemento acaba se impondo sobre a pesquisa histórica, fazendo com que os historiadores aceitem que seu objeto de estudo é, por sua natureza, calcado sobre vestígios e, portanto, lacunar e impreciso em grande parte das vezes. Tudo isso, quando tratamos da memória enquanto fonte histórica, cresce exponencialmente, impondo novos problemas frente aos historiadores. Barros (2009, documento on-line), suscita questionamentos acerca das possibilidades do uso da memória como fonte para o trabalho do historiador: Com relação ao aspecto da utilização da memória como “fonte histórica”, persiste ainda nos dias de hoje uma série de polêmicas com relação a como tratar a memória como fornecedora de materiais para a história, essa vista como ciência ou campo de saber que organiza o conhecimento sobre o passado ou sobre o homem no tempo. Como considerar a memória para a construção de uma interpretação histórica? Como utilizar fontes tidas como registros memorialistas, como as fontes orais, pelos historiadores? Percebe-se, na citação acima, que Barros trata da história oral, método de pesquisa histórica que se utiliza de entrevistas com o objetivo de explorar memórias as mais diversas, desde pessoas que tenham vivido como atores em eventos históricos de grande vulto até meros observadores de acontecimentos que tenham passados despercebidos pela história. O uso da memória como fonte histórica passou por diversas fases ao longo dos séculos. No século XVI, era bem aceita, com o frade franciscano Bernardino de Saha- gún (1499–1590) entrevistando os povos nativos da América recém-conquistada pelos espanhóis, com o objetivo de conhecê-los melhor. No século XVIII, com o Iluminismo, os registros orais perderam credibilidade, devido às pretensões cientí- ficas do período. Contudo, no século XIX, o historiador Jules Michelet (1798–1874) realizou um trabalho inédito e muito interessante, no qual entrevistou muitos franceses, com o objetivo de registrar suas impressões a respeito da Revolução Francesa (BARROS, 2009). 11A função social do conhecimento histórico Há muitos séculos, as fontes orais, que são, em sua essência, memoria- lísticas, vêm sendo utilizadas para a promoção de reflexões históricas. No século XVI, historiadores se valiam deste recurso para escrever e inter- pretar a história. No entanto, com o surgimento da história positivista no século XIX, que considerava como fonte histórica somente os documentos escritos e de origem oficial, a história feita com base em depoimentos orais perdeu sua credibilidade. Somente a partir do século XX, sobretudo com o advento de tecnologias que permitem a gravação de voz, é que a oralidade voltou a fazer parte do arsenal de fontes do historiador. Segundo Barros (2009, documento on-line), “[...] como não se pretende recuperar os fatos, mas problematizar os fatos”, a utilização de fontes orais, ou seja, de fontes eminentemente estruturadas sobre a memória individual e social, tornou-se comum na historiografia, sobretudo a partir da década de 1980. Assim, fica clara a relação entre a função social do conhecimento histórico, as identidades coletivas e individuais e a memória histórica. A primeira é inerente à história enquanto ramo do conhecimento, pois é este que dará as orientações para a vida humana. A memória cumpre um papel importante nesse aspecto, pois é ela que atua na formação da identidade. Sem o conhecimento do passado, seja em forma de história ou em forma de memória, a vida humana seria muito diferente da que conhecemos, senão impossível. No Brasil, diversas instituições são voltadas à produção de conhecimento histórico com base na utilização da memória como fonte histórica. Em seus acervos, existem milhares de entrevistas sobre os mais diversos temas, abarcando desde personalidades do cinema e do campo das artes em geral até moradores das favelas do Rio de Janeiro. É um material riquíssimo, que registra as memórias de pessoas de todas as idades, gêneros, profissões e condições socioeconômicas. Os acervos são abertos para consulta pública e constituem uma vasta fonte para a pesquisa historiográfica. As instituições mais importantes onde você pode encontrar os registros memorialistas são: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Rio de Janeiro), Museu da Imagem e do Som (São Paulo), Museu da Maré (Rio de Janeiro) e Museu da Pessoa (São Paulo). A função social do conhecimento histórico12 BARROS, J. A. História e memória — uma relação na confluência entre tempo e espaço. Mouseion, v. 3, n. 5, p. 35–67, 2009. Disponível em: https://biblioteca.unilasalle.edu.br/ docs_online/artigos/mouseion/2009_v3_n5/jdbarros.pdf. Acesso em: 29 ago. 2019. BLOCH, M. Apologia a história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2003. NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, v. 10, p. 7–28, 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/12101/8763. Acesso em: 29 ago. 2019. PAIS, J. M. 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