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Indaial – 2020 Ações InterdIscIplInAres e promoção dA sAúde Ana Célia Teixeira de Carvalho Schneider Dalvan Antonio de Campos João Batista de Oliveira Junior Marina Steinbach Virgínia de Menezes Portes 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Ana Célia Teixeira de Carvalho Schneider Dalvan Antonio de Campos João Batista de Oliveira Junior Marina Steinbach Virgínia de Menezes Portes Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: S358a Schneider, Ana Célia Teixeira de Carvalho Ações interdisciplinares e promoção da saúde. / Ana Célia Teixeira de Carvalho Schneider et.al. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 226 p.; il. ISBN 978-65-5663-101-1 1. Promoção da saúde. – Brasil. I. Schneider, Ana Célia Teixeira de Carvalho. II. Campos, Dalvan Antonio de. III. Junior, João Batista de Oliveira. IV. Steinbach, Marina. V. Portes, Virgínia de Menezes. VI. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 610 III ApresentAção Neste Livro Didático, são apresentados e aprofundados conceitos re- levantes para a área da saúde, considerando sua multiplicidade e complexi- dade. Na primeira unidade, os conteúdos acerca das concepções de saúde, medicalização, ética, biopoder, biopolítica e necropolítica são divididos em três tópicos, sendo eles: 1) refletindo sobre saúde; 2) entendendo a medicali- zação e a ética; 3) compreendendo o biopoder, a biopolítica e a necropolítica. A fim de garantir o processo de aprendizagem, a unidade procurou desenvolver os conceitos a partir das explicações do que são, seus processos de surgimento e como são aplicados, além de suas potencialidades e desafios no campo da saúde. Os resumos das unidades procuram sintetizar de maneira didática e resumida os tópicos desenvolvidos, assim como, as questões abordadas nas autoatividades objetivam auxiliar no processo de aprendizagem do aluno. No primeiro tópico são apresentados os fatores que influenciaram para a conceituação diversificada da noção de saúde ao longo da história, salientando as diferenças e aproximações entre elas. Da mesma forma, como sua aplicação ocorre a partir de noções hegemônicas e contra-hegemônicas, sendo elas abordadas por meio do conceito biomédico e o ampliado de saúde, respectivamente. Procura-se, neste tópico, a apresentação dos fatores que estão relacionados com essas duas concepções, assim como, em quais estratégias de cuidado em saúde podemos identificá-los. A Promoção da Saúde apresenta-se como uma estratégia importante para a saúde das populações, apresentada nesta unidade a partir da maneira como ocorre na vida prática das pessoas, considerando também suas múltiplas definições. Neste sentido, buscou-se apresentar que o conceito de saúde e doença varia historicamente e são influenciados por aspectos econômicos, culturais, sociais e políticos que marcam desde a Antiguidade Clássica até a contemporaneidade. Demonstrando, a partir disso, a relevância dos olhares atentos e críticos na formação em saúde. No Tópico 2 apresentamos os conceitos de medicalização e ética e o quanto estes são fundamentais na discussão contemporânea quando pensamos sobre o conceito de saúde ou doença dentro das perspectivas já apresentadas no Tópico 1. Para isso, iniciamos com a temática da medicalização a partir de um contexto histórico e social, no qual, a partir de determinado momento, se tem uma extrapolação dos domínios da medicina para o corpo social apresentado a concepção a partir de seus principais pensadores. A discussão de medica- lização da vida, a partir de uma normatização da vida em todos os âmbitos, individualizando questões amplas que são influenciadas pelo contexto eco- IV nômico, político, cultural, histórico entre outros. Finalizamos essa discussão com a reflexão de algumas práticas medicalizadas e muito presentes nos dias atuais, como o TDHA e o sedentarismo. Em seguida, iniciamos uma discussão sobre o conceito de ética, ca- racterizando-a de maneira geral como uma reflexão sobre a moral, valores e princípios e trazendo aspectos e marcos cruciais para o seu desenvolvi- mento. Ainda, é apresentado o conceito de bioética enquanto uma área do conhecimento que se propõe responder os problemas éticos no campo das ciências biológicas. Por último, é apresentado o conceito de ética do cuida- do, trazendo em pauta a temática do cuidado, autocuidado e cuidado de si. Finalizando o tópico, abordamos a temática da iatrogênia, a partir de uma proposta de mais um contexto atual, com foco na segurança do paciente e fatores de risco evitáveis e injustos. Já no Tópico 3, discutiremos três conceitos bastante contemporâneos e que se articulam, sendo ele, o Biopoder a Biopolítica — conceitos que têm como principal pensador o filósofo Michel Foucault — e a Necropolítica, se- guiremos a mesma proposta dos tópicos anteriores, apresentando o contexto histórico e social desses conceitos e discutindo a partir de seus principais pen- sadores, sempre dialogando com suas implicações no contexto da vida prática. O intuito é que esses conceitos auxiliem a reflexão sobre a realidade ao qual estamos inseridos, desde o biopoder, que se mostra como uma téc- nica de controle e regulação dos corpos individuais — em uma perspectiva biológica — transformando as pessoas em corpos assujeitados e produtivos. Assim como o biopoder, a biopolítica trata de um controle que ultrapassa o campo individual e que se volta para a coletividade se preocupando com os variados âmbitos da vida que influenciarão na organização social e econômi- ca da população (natalidade, mortalidade etc.). A partir da discussão desses dois conceitos, faremos uma reflexão sobre a necropolítica, que tem como principal pensador o filósofo Achille Mbembe, que mostra como novos arranjos do saber-poder, com foco maior nas desigualdades, impactam na vida e na morte das populações. A Unidade 2 está dividida em três tópicos: 1) O ensino na área da saúde; 2) Modelos de saberes e práticas; e 3) Modelos assistenciais. No tópico “Ensino na área da saúde”, foram apresentados marcos relevantes para a saúde no Brasil e no mundo, resultando em novas formas e modelos, como a Estratégia de Saúde da Família. A partir da apresentação do ensino na área da saúde, baseado nas clássicas escolas médicas, demons- trou-se aspectos relevantes que influenciaram mudanças necessárias no cam- po da formação em saúde. Assim, com o passar dos anos, o conceito amplo de saúde — não restringindo-se apenas à ausência de doenças — passa a compor a agenda da formação nesta área, baseada na concepção de que é ne- cessário preparar os profissionais de saúde para responder as necessidades complexas da sociedade na atualidade. V No tópico “Modelos de saberes e práticas”, o desenvolvimento do conteúdo concentrou-se nos elementos que caracterizam os modelos tradi- cionais de aprendizagem, até os modelos mais inovadores como a interdis- ciplinaridade e multidisciplinaridade, os quais emergem a partir da necessi- dade de incentivar a autonomia do aluno e formar um profissional crítico e reflexivo. Além disso, relata o processo de tensionamento, identificação dos desafios e tentativas práticas de respostas para a ocorrência das mudanças nos cursos de graduação das áreas da saúde. O tópico “Modelos assistências” detém-se a apresentar os marcos históricos mundiais e brasileiros que contribuíram para que a Constituição Federal de 1988 garantisse a saúde como dever do Estado e direito de todos, assim como, o nascimento do Sistema Único de Saúde e seus princípios e diretrizes. O tópico aborda o conceito e diferencia sistemas integrados de sistemas fragmentados de atenção à saúde, além de abordar os principais aspectos que os caracterizam e suas funções. Explicita também como se or- ganiza os níveis de atenção à saúde no Brasil,abordando seus objetivos e complexidades. Considerando que a finalidade dos Modelos de Atenção em Saúde é organizar o processo de trabalho em saúde, o capítulo apresenta antigos modelos de saúde, desde o Modelo Médico Assistencial Privatista (demanda espontânea) até o Modelo da Determinação Social da Saúde. Por fim, na terceira unidade, serão abordados os determinantes so- ciais da saúde, bem como seus principais modelos e aplicação para aborda- gem de populações vulneráveis. A unidade está dividida em três tópicos, sendo eles: 1) Os determinantes sociais da saúde; 2) Modelos de determi- nantes sociais da saúde; e 3) Determinantes sociais da saúde e as populações vulneráveis. No primeiro tópico são apresentados os principais Determinantes Sociais da Saúde (DSS), com ênfase e exemplificação dos determinantes am- bientais, econômicos e sociais. Serão também enfatizadas a importância dos DSS para abordagem das doenças crônicas, que apresentam grande preva- lência no contexto contemporâneo. Além disso, são exploradas as contribuições dos DSS para explicação da relação entre as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde, demons- trando que diferentes condições sociais, econômicas e ambientais produzem efeitos em seus organismos e geram formas desiguais de adoecer e morrer. No segundo tópico são apresentados e aprofundados os modelos de saúde, com ênfase nos dois principais modelos de determinantes sociais da saúde propostos por Dahlgren e Whitehead, e Solar e Irwin, adotados pela Organização Mundial da Saúde e pelas comissões nacional e internacional para DSS. A partir deles são demonstradas as formas de compreender aspectos da saúde que transcendem os determinantes biológicos, identificando as características nos indicadores saúde a depender do grupo que se está trabalhando em diferentes níveis de análise, aplicando os diferentes modelos de DSS. VI No terceiro tópico são trabalhadas as articulações e interação dos DSS em três grupos sociais vulneráveis, a saber: a população privada de liberdade, a população em situação de rua e a população indígena. Para cada uma dessas populações são exploradas as formas como as iniquidades sociais fazem com que determinados grupos fiquem submetidos de forma mais vulnerável a condições que geram doenças e agravos em saúde. Além disso, são demonstradas como essas diferenças evitáveis podem ser transformadas por meio da atuação dos profissionais da saúde visando melhorar a saúde dos indivíduos que compõem esses grupos. Bons estudos! Ana Célia Teixeira de Carvalho Schneider Dalvan Antonio de Campos João Batista de Oliveira Junior Marina Steinbach Virgínia de Menezes Portes Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VII VIII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE IX UNIDADE 1 - SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA ...........................................................................1 TÓPICO 1 - REFLETINDO SOBRE SAÚDE ........................................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3 2 O QUE É SAÚDE? ...................................................................................................................................3 2.1 CONCEITO BIOMÉDICO DE SAÚDE ...........................................................................................4 2.2 CONCEITO AMPLIADO DE SAÚDE ............................................................................................6 2.2.1 Promoção da Saúde .................................................................................................................8 3 CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DO CONCEITO DE SAÚDE ....................................12 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................16 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................17 TÓPICO 2 - ENTENDENDO A MEDICALIZAÇÃO E A ÉTICA ...................................................19 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................19 2 O QUE É MEDICALIZAÇÃO? ..........................................................................................................20 2.1 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA.......................................................................................................21 2.2 PRÁTICAS MEDICALIZADAS .....................................................................................................23 2.2.1 Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) .........................................................................23 2.2.2 Medicalização do sedentarismo/ práticas corporais .........................................................24 3 ÉTICA E BIOÉTICA ............................................................................................................................27 3.1 O QUE É ÉTICA? .............................................................................................................................27 3.2 O QUE É BIOÉTICA? ......................................................................................................................28 3.3 ÉTICA DO CUIDADO ....................................................................................................................32 3.4 CUIDADO, AUTOCUIDADO E CUIDADO DE SI ....................................................................33 3.5 IATROGENIA ...................................................................................................................................36 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................39 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................41TÓPICO 3 - COMPREENDENDO O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA E A NECROPOLÍTICA ....................................................................................................43 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................43 2 O QUE É BIOPODER? .........................................................................................................................44 3 BIOPOLÍTICA ......................................................................................................................................47 4 NECROPOLÍTICA ...............................................................................................................................49 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................57 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................58 UNIDADE 2 - INTERDISCIPLINARIDADE E SISTEMAS HIERÁRQUICOS E HORIZONTAIS ........................................................................63 TÓPICO 1 - O ENSINO NA ÁREA DA SAÚDE ...............................................................................65 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................65 2 BREVE TRAJETÓRIA DA ATENÇÃO A SAÚDE ..........................................................................65 sumárIo X 3 A FORMAÇÃO EM SAÚDE NO BRASIL E NO MUNDO ..........................................................69 4MUDANÇAS NO SETOR SAÚDE E O “NOVO” ENSINO NA SAÚDE NO BRASIL ...........77 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................85 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................86 TÓPICO 2 - MODELOS DE SABERES E PRÁTICAS 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................89 2 O MODELO TRADICIONAL ............................................................................................................89 3 OS TRÊS PARADIGMAS DO ENSINO-SERVIÇO DA ATUALIDADE ..................................92 4 O PROCESSO DE TRABALHO NA SAÚDE ................................................................................106 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................109 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................110 TÓPICO 3 - MODELOS ASSISTENCIAIS .......................................................................................111 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................111 2 OS SISTEMAS DE SAÚDE...............................................................................................................111 3 O QUE É O SISTEMA DE ATENÇÃO À SAÚDE? ......................................................................116 3.1 SISTEMAS FRAGMENTADOS HIERARQUIZADOS .............................................................117 3.2 REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE ...............................................................................................117 4 MODELOS DE ATENÇÃO À SAÚDE ............................................................................................125 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................135 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................137 UNIDADE 3 - A ABORDAGEM DOS DETERMINANTES SOCIAIS PARA AÇÕES EM SAÚDE ........................................................................................139 TÓPICO 1 - OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE ........................................................141 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................141 2 CONCEITO DE DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE (DSS) .........................................141 2.1 HISTÓRICO ....................................................................................................................................143 3 DETERMINANTES DA SAÚDE .....................................................................................................148 3.1 DETERMINANTES AMBIENTAIS DE SAÚDE ........................................................................149 3.1.1 Exemplos de determinantes ambientais ............................................................................151 3.2 DETERMINANTES ECONÔMICOS .........................................................................................153 3.2.1 Exemplos de determinantes econômicos ..........................................................................154 3.3 DETERMINANTES SOCIAIS ......................................................................................................156 3.3.1 Exemplos de determinantes sociais ...................................................................................158 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................160 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................161 TÓPICO 2 - MODELOS DE DETERMINANTES SOCIAIS DE SAÚDE ...................................163 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................163 2 O QUE SÃO MODELOS CONCEITUAIS DE SAÚDE? .............................................................163 3 PRINCIPAIS MODELOS DE DSS ..................................................................................................164 3.1 MODELO DE DAHLGREN E WHITEHEAD ...........................................................................166 3.2 MODELO DE SOLAR E IRWIN ..................................................................................................169 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................173 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................174 TÓPICO 3 - DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE E AS POPULAÇÕES VULNERÁVEIS ...................................................................................175 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................175 XI 2 SAÚDE E VULNERABILIDADE SOCIAL ....................................................................................175 2.1 ENTENDENDO OS CONCEITOS ..............................................................................................176 3 OS DSS E A SAÚDE DE POPULACÕES VULNERÁVEIS ........................................................177 3.1 POPULAÇÃO PRIVADA DE LIBERDADE ...............................................................................178 3.2 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA ...................................................................................181 3.3 POPULAÇÃO INDÍGENA ...........................................................................................................184 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................192AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................193 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................194 XII 1 UNIDADE 1 SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer diferentes formas de pensar saúde, através dos modelos de de- terminação social em contraponto ao modelo biomédico; • saber como os modelos biomédicos influenciam na forma em que as pes- soas e coletividades adoecem e percebem sua saúde; • compreender o processo de medicalização da vida nas práticas em saúde e da ética como um instrumento fundamental de análise de tais processos; • analisar as relações sociais, principalmente no campo da saúde, através dos conceitos de biopoder, biopolítica e necropolítica. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – REFLETINDO SOBRE SAÚDE TÓPICO 2 – ENTENDENDO A MEDICALIZAÇÃO E A ÉTICA TÓPICO 3 – COMPREENDENDO O BIOPODER, A BIOPOLÍTICA E A NECROPOLÍTICA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 REFLETINDO SOBRE SAÚDE 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, abordaremos as diversas formas de pensar o conceito saúde, suas diferentes definições ao longo do tempo, assim como alguns aspectos que impactam suas diferentes conceituações. Assumiremos como foco as perspecti- vas voltadas ao modelo biomédico e ao conceito ampliado de saúde (modelo de determinação social do processo saúde e doença). No decorrer do tópico, você deverá refletir sobre as diferentes formas de pensar saúde e, consequentemente, do processo saúde-doença e de como essas diferentes maneiras influenciam o universo da saúde (formação e atuação profis- sional, mercado, sistemas de saúde). Dentro desse percurso, levantaremos uma discussão breve sobre os determinantes sociais em saúde e a promoção da saúde, demonstrando os marcos importantes em seus surgimentos, assim como aspectos desafiadores e paradoxais. No que tange à construção histórico-social do conceito de saúde, procura- mos apresentar a construção do conceito ao longo história, salientando os aspec- tos sociais, culturais, políticos e econômicos que corroboraram para sua modifi- cação. Para que possamos entender essa construção, aproximamos a discussão aos marcos históricos, assim, as diferentes concepções de saúde serão abordadas desde a Antiguidade Clássica até os recentes desafios da contemporaneidade. Você deverá refletir sobre o que é saúde a partir da lente que permite identificar as noções históricas, os motivos associados aos aparecimentos e desa- parecimentos. Da mesma forma, deverá ser capaz de refletir acerca dos modelos e fatores influenciadores — que tendem a se tornar cada vez mais complexos — que corroboram para concepção individual e coletiva de saúde nas múltiplas formas de organização social em determinado tempo e lugar. 2 O QUE É SAÚDE? O conceito de saúde não pode ser apresentado como algo estático, único e absoluto. Ao se deparar com a definição do que é saúde, se faz necessário refletir também sobre qual é o momento histórico que estamos analisando, a conjuntura social, econômica, política e social, pois saúde não tem um significado universal, ela depende de valores individuais, concepções científicas, religiosas, filosóficas, entre outras (SCLIAR, 2007). UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 4 Desse modo, é importante entender que existem diversos conceitos e formatos de compreender o que é e como promover saúde, e essas diferentes maneiras de pensar resultam em práticas e ações diferentes. Um bom exemplo das diversas formas de pensar saúde são as diversas definições existentes e que vão sofrendo modificações ao longo do tempo, quando saúde já foi considerada como “ausência de doença”. Já foi definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946, s.p.) como “o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência da enfermidade” que amplia essa concepção, apesar de ainda ser um conceito abstrato. Temos ainda o conceito de saúde proposto pela Constituição Federal de 1988, por meio do artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988, s.p.). Com base no exposto anterior, vamos conhecer dois modelos conceituais sobre a maneira de reconhecer o processo saúde-doença, o modelo biomédico e o modelo da determinação social da doença, logo após faremos uma discussão mais detalhada sobre a construção histórico-social do conceito de saúde. 2.1 CONCEITO BIOMÉDICO DE SAÚDE O modelo biomédico, considerado hegemônico na nossa sociedade, apre- senta uma compreensão de saúde e doença pautada nas ciências da vida, tendo como foco principal a doença, partindo especificamente da biologia, anatomia e fisiologia. Nessa perspectiva, a doença é considerada uma desordem, uma falta de adaptação do organismo ao meio, sempre existindo um mecanismo etiopa- togênico por trás das doenças (PUTTINI; PEREIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2010). Na abordagem histórica, o modelo biomédico surge a partir da perspecti- va científica do século XVII, a partir de uma visão mecanicista e reducionista do Homem e da Natureza que se dá através de alguns filósofos como Galileu, Des- Para pensar como existem diferentes formas de ver as coisas, utilizaremos um exemplo retirado da Gestalt. Quando analisamos o elemento I3, nos deparamos com di- ferentes perspectivas, em que algumas pessoas entenderão como letra bê e outras como o número 13, mas quando colocamos dentro de um contexto de letras: A, I3, C ou de um contexto numérico 12, I3, 14, direcionamos o olhar sobre aquele objeto e percebemos que o contexto em que está inserido modifica a forma de olhar e também o modo de intervir sobre tal aspecto. IMPORTANT E TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 5 cartes, Newton, Bacon, dentre outros que defendiam a realidade do mundo como uma máquina (ALBUQUERQUE; OLIVEIRA, 2002). Assim, o modelo biomédico tradicional se traduz por uma visão cartesiana de ver o mundo, considerando a doença como um desarranjo temporário ou constante do funcionamento de um organismo. Por isso, podemos afirmar que curar uma doença se equivalia ao con- serto de uma máquina (ENGEL, 1977; NOACK, 1987). O modelo capitalista norte-americano, conhecido como flexneriano, é o grande responsável pela difusão do modelo biomédico, pois a partir de uma pes- quisa realizada nos EUA, em 1919 (patrocinada pela Fundação Carnegie), Flexner defende o modelo (biomédico) da Rockefeller Foundation, afirmando que era o ideal para o ensino de medicina, assim foi amplamente propagado. Esse modelo adota uma lógica unicausal, fragmentada e unidirecional, centrada na doença ao invés da promoção de saúde e da prevenção de doenças, no médico e na alta tecnologia, tem a verdade científica como absoluta, considera o corpo humano uma máquina, tem foco no indivíduo em detrimento do coletivo (VERDI; DA ROS; CUTOLO, 2010). Apresentamos na sequência um quadro que aborda as principais caracte- rísticas do modelo Flexneriano: QUADRO 1 – PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO MODELO FLEXNERIANO Positivismo Tem a verdade científica. Fragmentação/ Especialização Ensino com ênfase na anatomia, estudando segmentos do humano, dando origem às múltiplas especialidades médicas. Mecanicismo Considera o corpo humano umamáquina. Biologicismo As doenças são causadas sempre por um agente causal (biológico, físico, químico). Tecnificação Centraliza os processos de diagnóstico e cura nos procedimentos e equipamentos tecnológicos. Individualismo Focaliza o indivíduo, negando os grupos sociais e a comunidade. Curativismo Dá ênfase à cura das doenças, em detrimento da promoção da saúde e da prevenção das doenças. Hospitalocêntrico O melhor ambiente para tratar as doenças é o hospital, porque tem todos os exames acessíveis e se administra medicamentos nas horas certas. FONTE: Adaptado de Verdi, Da Ros e Cutolo (2010) Quando nos referimos ao modelo biomédico como hegemônico, estamos reconhecendo que se trata de uma lógica que ainda serve de alicerce para a formação dos cursos da área da saúde refletindo diretamente na atuação dos profissionais, além disso, ao longo do tempo, esse modelo foi sendo assimilado pelo senso comum, que tende cada vez mais valorizar a doença e seus procedimentos diagnósticos que requerem alta tecnologia. UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 6 Pensar em uma atuação profissional pautada em uma lógica biologicista faz com que os profissionais desconsideram a subjetividade das pessoas/pacientes, tendo uma prática pautada no diagnóstico e na terapêutica, desconsiderando suas condições de vida, o acesso a determinados procedimentos e/ou condutas, muitas vezes culpabilizando os indivíduos por seu estado de saúde ou doença. Tendo em vista uma visão coletiva ou epidemiológica pautada no modelo biomédico, a saúde da coletividade é marcada pela presença ou ausência de fatores de risco. Várias críticas são apontadas nesse modo de pensar, apontando como a organização política e social da sociedade se relaciona e influencia o modo de adoecer populacional (PUTTINI; PEREIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2010). 2.2 CONCEITO AMPLIADO DE SAÚDE Com o intuito de ampliação do modo de ver e conceber a saúde, outros modelos foram se estabelecendo. Partindo de um conceito ampliado, saúde está vinculada à conquista dos direitos humanos e não se restringe ao modelo bio- médico e nem à acessibilidade aos serviços, depende também de outros fatores que são considerados determinantes e condicionantes sociais da saúde, tais como educação, habitação, trabalho, renda, transporte, alimentação, lazer, meio am- biente, entre outros, que devem ser assegurados pelo Estado. Nosso foco será a discussão do modelo de determinação social da saúde e da doença, que surge como uma nova forma de ver esse processo. Sua origem se dá na Europa, no século XIX, através do Movimento de Medi- cina Social. Tal movimento, encabeçado pelo médico Rudolf Ludwig Karl Virshow, defendia que o modo como as pessoas vivem e trabalham afetam diretamente a forma como elas adoecem, tendo uma determinação social, cultural e econômica. Virchow conseguiu, sem conhecer a bactéria, nem antibióticos, terminar com a epidemia de febre tifoide na região da Silésia (Polônia), com a mudança da carga horária de trabalho, de 16 para 10 horas diárias, melhores condições de saneamento nas fábricas (abriu janelas), proibição de trabalho para menores (de 4 para 12 anos), maior salário (mais dinheiro para comprar comida para os filhos), alimentação adequada e a construção de casas populares próximas às fábricas. INTERESSA NTE Desse modo, esse modelo surge como um campo de novos conhecimentos e saberes ampliando a forma de pensar saúde, na contramão do modelo biomédico. É importante salientar que o modelo ampliado não desconsidera ou nega a determinação biológica, pelo contrário, os profissionais de saúde necessitam dominar tais conhecimentos, porém é importante reconhecer que a forma como TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 7 as pessoas adoecem vai muito além de questões individuais relacionadas ao corpo biológico, e que as condições sociais afetam diretamente o modo como as pessoas vivem e adoecem. O novo paradigma representa uma nova maneira de interpretar as necessidades e ações de saúde, não mais numa perspectiva unicamente biológica, mecanicista, individual, específi ca, mas numa perspectiva contextual, histórica, coletiva, ampla. Assim, de uma postura voltada para controlar os fatores de risco e comportamentos individuais, volta- se para eleger metas para a ação política para a saúde, direcionadas ao coletivo (PEREIRA; PENTEADO; MARCELO, 2000, p. 41). Como o modelo de determinação social se mostra como uma forma de pensar multifatorial, mais amplo e politizado, alguns autores levantam a discussão sobre os determinantes sociais em saúde como forma de aproximar essa discussão da vida prática, sendo defi nido pela Comissão Nacional dos Determinantes Sociais e Saúde (CNDSS) como fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que infl uenciam a ocorrência de problemas de saúde e dos seus fatores de risco. Existe uma ampla discussão sobre os determinantes sociais em saúde e várias proposições para esse conceito em nível internacional. Um modelo adotado pela CNDSS foi proposto por Dahlgren e Whitehead, que coloca os DSS distribuídos em diferentes camadas, desde uma camada mais próxima dos determinantes individuais até uma camada mais distal com os macrodeterminantes (sociais, econômicos, culturais e ambientais) que infl uenciam todas as outras camadas. FIGURA 1 – DETERMINANTES SOCIAIS: MODELO DE DAHLGREN E WHITEHEAD FONTE: <https://bit.ly/3eg8C0e>. Acesso em: 22 maio 2020. UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 8 De todo modo, se faz necessário refletir o quanto o modo de organização social, ou seja, como os homens e mulheres se apropriam e interagem com o ambiente, influenciam diretamente a produção de saúde e doença das pessoas. Dessa forma, ter uma concepção ampliada do processo saúde-doença é pensar nos determinantes sociais em saúde e o quanto o acesso ou não a eles causam iniquidades e desigualdades sociais em saúde que são evitáveis, injustas e desnecessárias. Com base nisso, é fundamental que as políticas públicas considerem esses aspectos a fim de serem mais equânimes e condizentes com a realidade da população. 2.2.1 Promoção da Saúde A Promoção da Saúde surge como um novo modo de olhar para as questões de saúde, entretanto, assim como o conceito de saúde, passa a ser vista de diversas maneiras e atravessada diretamente pelos modelos conceituais em saúde, especialmente o modelo biomédico e o modelo de determinação social, já trabalhados neste tópico (CZERESNIA, 2003). Em meados dos anos 1970, a promoção da saúde é discutida na Declaração de Alma-Ata que surgiu da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. Esse debate amplia o modo de ver saúde, indo para além de um “problema” individual e se tornando também um problema social e político. Nesse momento surge a concepção de promoção da saúde oriunda do Canadá, que fica conhecida como uma nova concepção de saúde, voltada para a determinação social e econômica da saúde e um olhar ampliado não mais centrada apenas na doença. Carvalho (2004) aponta que esse novo modelo traz a afirmação do social, busca superar o modelo biomédico e considera a saúde um direito de cidadania. Outro ponto importante oriundo dessa conferência foi a centralidade na atenção primária, uma vez que foram considerados os determinantes sociais como importantes protagonistas no processo saúde e doença (PAIM, 2013). Buss (2000, p. 23) define a Promoção de Saúde como: Uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, estando associada a um conjunto de valores que inclui: qualidade de vida, saúde, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, participação, entre outros. Apresenta como elementos essenciais a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos institucionais e comunitários para o enfrentamento e resolução dos problemas de saúde. O SistemaÚnico de Saúde que nasce em um contexto de lutas por democracia e por direitos de cidadania é pensado e criado com base na Promoção da Saúde em sua perspectiva da determinação social proveniente do Canadá, considerando saúde no seu sentido amplo, sendo assim defendido e registrado na 8ª Conferência Nacional de Saúde: TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 9 [...] saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde, é, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. [...] Por não ser um conceito abstrato, saúde] define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas (BRASIL, 1986, p. 1). Desse modo, fica claro que o SUS foi idealizado para superar o modelo biomédico, com caráter preventivista e assistencial, com uma proposta de reestruturação organizacional dos serviços e ações em saúde. O Programa de Saúde da Família (PSF), atual Estratégia de Saúde da Família (ESF), se mostra como uma das estratégias de reestruturação e superação do modelo biomédico a partir da proposta de atenção primária, porém o que ainda se observa é uma forte influência do modelo hegemônico. É inegável as conquistas e avanços alcançados com o SUS desde sua implantação, como a ampliação do acesso, dos cuidados domiciliares, da atenção à saúde das mulheres, crianças e idosos, no tratamento das doenças crônicas, entre vários outros. Apesar disso, ainda nos deparamos com uma forte influência do modelo biomédico nas ações e condutas, o que se torna um grande obstáculo para a consolidação dos princípios do SUS e de um novo modo de ver a saúde. Como já apontado anteriormente, a promoção da saúde também vive com uma pluralidade de concepções, trazendo controvérsias e questionamentos tanto na sua forma conceitual quanto nas ações aplicadas. Além do modelo ampliado de saúde, ainda nos deparamos com um olhar sobre a promoção da saúde pautados no modelo biomédico, tendo um enfoque preventivo voltado à mudança de comportamento, nesse caso, as ações de promoção da saúde têm o objetivo de modificar os hábitos e o estilo de vida das pessoas com um olhar. Desse modo, as situações indesejadas são evitadas, principalmente nas populações consideradas de risco, criando um ambiente de autovigilância. A partir dessa perspectiva, temos a retirada da responsabilidade do Estado e uma responsabilização direta sobre os indivíduos, os culpabilizando, assim, por suas condições de saúde ou doença, que na maioria das vezes são de cunho social e estão fora de sua governabilidade. Nesse contexto, a promoção da saúde apresenta-se como uma ferramenta de controle do corpo (CASTIEL; DIAS, 2007). Entretanto, criou-se uma educação em saúde autoritária, em que os técnicos e profissionais transmitem seus saberes biomédicos e reducionistas por meio de uma imposição vertical sobre o que consideram saudável e verdade científica (CARVALHO, 2004; MOREIRA et al., 2009). A seguir apresentamos um quadro explicativo que busca sintetizar os dois modelos conceituais e suas principais formas e características de operacionalização: UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 10 QUADRO 2 – MODELOS CONCEITUAIS MODELO PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS Modelo Biomédico Compreensão dos fenômenos de saúde e doença com base nas ciências da vida, principalmente a partir da biologia, tendo uma lógica unicausal, fragmentada, unidirecional, considerado um modelo hegemônico. Modelo da determinação social da doença Novo modo de olhar para o processo saúde-doença, entendendo que as condições de vida e trabalho das pessoas e coletividades estão diretamente relaciona- dos a sua situação de saúde e o modo pelo qual elas adoecem, estando ainda ligadas a valores como de- mocracia e cidadania. FONTE: Adaptado de Verdi, Da Ros e Cutolo (2010). Tendo como foco a perspectiva ampliada de saúde, quando pensamos na promoção da saúde, estamos mobilizando uma série de fatores relacionados à vida das pessoas e comunidades, sendo necessário um trabalho dinâmico, composto por um planejamento intersetorial, multiprofissional, e que leve em consideração as reais necessidades dos indivíduos envolvidos no processo – profissionais de saúde, lideranças, mulheres e homens da comunidade, conselheiros, profissionais de outros setores, entre outros –, requisitando ações que ampliem a consciência sanitária através de práticas que considerem direitos e deveres, educação para a saúde etc. Ainda, se fazem necessárias mudanças reais nos padrões econômicos no tocante dessas sociedades, além de se pensar políticas públicas que garantam uma maior possibilidade de acesso e recursos de maneira mais igualitária — água potável, ar puro, ambientes saudáveis, alimentação adequada, educação, informação, transporte etc. — atuando sobre as grandes desigualdades sociais vivenciadas. Os valores relacionados à cultura é outro aspecto fundamental quando se pensa em uma concepção ampliada de saúde, pois não se deve colocar suas crenças e conhecimentos como verdade absoluta e universal, pois diferentes culturas possuem diferentes maneiras de lidar, explicar e de curar as doenças. Portanto, conhecer as práticas culturais do território em que está inserido é imprescindível para planejar as ações de saúde daquele povo, sejam elas de promoção, prevenção ou reabilitação (BRASIL, 2016). Nesse sentido, a participação social é outro eixo fundamental quando se pensa em promoção da saúde, pois as pessoas devem participar tanto da construção das práticas e políticas públicas como na identificação dos problemas e necessidades de saúde, sendo protagonistas no que tange às ações relacionadas a sua vida e sua comunidade, entendo protagonismo como: [...] o processo de protagonizar, de ser o protagonista, o figurante TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 11 principal de uma apresentação. Do latim “protos” — principal, primeiro — e de “agonistes” — lutador, competidor. Protagonismo é um termo muito usado no teatro, no cinema, na novela, para se referir ao personagem principal da encenação. Neste caso, dizemos que as pessoas da comunidade, vocês, toda a equipe e outras pessoas de outras instituições devem ser protagonistas, devem ser atores, devem participar dos planos e das ações (BRASIL, 2016, p. 54). Em suma, a promoção da saúde em seu modo amplo se traduz por um trabalho que envolve diferentes setores e atores sociais, relacionando diretamente às condições de vida e saúde das pessoas (acesso à terra, ao trabalho, à alimen- tação, à moradia etc.). Além disso, leva em consideração as particularidades de cada comunidade, sua cultura, valores, crenças, práticas, entre outros. Portanto, trabalhar a promoção da saúde envolve pensar os fatores que impactam o modo de viver e de adoecer das pessoas e coletividades, necessitando também da parti- cipação popular para entender as necessidades e formular as possíveis soluções. Uma equipe de saúde da família de uma determinada comunidade recebe vários casos reincidentes de diarreia aguda no último mês, onde a maioria dessas pessoas foi ‘tratadas’ através dos protocolos clínicos para tratamento da diarreia aguda. Antes de prosseguirmos, podemos pensar: quais fatores podem estar associados a estes casos? Continuando... A partir de uma reunião de equipe, os profissionais de saúde decidiram fazer uma visita no território, para pensar quais fatores poderiam estar influenciando esta situação, pois a maioria dos pacientes diagnosticados morava na mesma região. Após uma visita junto à equipe de vigilância sanitária no território e reunião com algumas lideranças do centro comunitário, os profissionais encontraram os seguintesproblemas: • A maioria das famílias possuía um sistema precário de abastecimento de água e tratamento de esgoto. • A maioria das casas da região observada não trata a água para consumo. Desse modo, algumas estratégias foram adotadas pela equipe: 1. Realizar reunião com outros setores com o intuito de solucionar os problemas relacionados ao abastecimento de água e tratamento de esgoto. 2. Realizar um planejamento envolvendo vários atores sociais (lideranças da comunidade, profissionais de outros setores (educação, meio ambiente) bem como com algumas pessoas que moravam na região afetada). A partir desse planejamento foram realizadas diversas ações de educação em saúde, incluindo ações na unidade básica de saúde e nas escolas, trabalhando assuntos como: tratamento de água antes do consumo, preparo de alimentos e higiene pessoal, rodas de conversas entre os moradores e integração com o conselho de saúde local. NOTA UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 12 3 CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DO CONCEITO DE SAÚDE Neste subtópico, abordaremos o processo de construção do conceito de saúde e, portanto, de doença ao longo da história. Como já afirmamos anterior- mente, esses conceitos se modificam de acordo com aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, isso significa que possuem relevantes variações porque estão diretamente ligados a um tempo e lugar, submetidos, dessa forma, aos va- lores, princípios e regras específicas de uma determinada sociedade. Como exemplo, podemos citar as diferentes concepções de saúde entre a cultura ocidental e oriental na contemporaneidade. Enquanto a medicina orien- tal entende as doenças como resultante do desequilíbrio do organismo humano (causas naturalizadas), a medicina moderna ocidental atua diante do corpo na busca de um estado biológico normal, exigindo, desse modo, alta tecnologia e custos elevados, apesar de apresentar diferentes realidades econômicas e sociais. Por isso, a evolução conceitual de saúde e doença, assim como o de sociedade, não responde necessariamente a uma qualificação, no sentido de afirmarmos que melhorou ao longo do tempo, mas corresponde a uma defesa de verdades, dis- cursos e valores sociais e culturais que vigoram naquele tempo e lugar. Na Antiguidade Clássica, a crença era de que as doenças eram causadas por elementos naturais ou sobrenaturais, compreendendo, assim, a saúde e do- ença por meio da filosofia religiosa. Dessa forma, o ambiente físico, os astros, o clima, os insetos e os animais eram reconhecidos como os possíveis causadores de doenças, uma vez que, para os gregos, eram os fatores externos que as pro- duziam. Assim, na contramão da doença e para alcançar a harmonia perfeita do corpo humano — podemos considerar para alcançar a saúde — as estações do ano, as características do vento e da água, assim como demais fatores externos deveriam ser considerados. É ainda nesse período que se inicia a ideia empírica do contágio (BARATA, 1985). Já na Idade Média, a religiosidade assume a centralidade causal das do- enças. Entretanto, com as crescentes epidemias, no final desse período retoma-se Nas reuniões seguintes, a equipe percebeu a diminuição progressiva dos casos de diarreia aguda, destacando que ainda não havia sido modificado nenhum aspecto físico daquele ambiente relacionado ao tratamento de água e esgoto. AGORA REFLITA: • Quais fatores influenciaram para a diminuição dos casos? • Quais conceitos estudados até aqui se relacionam com este caso? • Qual perspectiva da promoção da saúde esteve envolvida nesta situação? E por quê? • Agora que já conversamos sobre o conceito ampliado de saúde e a promoção da saúde, você se lembra de outros exemplos como esse? TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 13 a ideia de contágio entre a população, mas agora com caráter religioso. Assim, as causas estão ligadas à conjugação dos astros, ao envenenamento das águas pelos leprosos, judeus ou até mesmo por bruxarias. Sob forte influência do cristianis- mo, a doença assume um sentido místico religioso — vista como castigo — e a cura é buscada em poderes milagrosos (amuletos, água benta, exorcismo). Ainda nesse período, os estudos empíricos são responsáveis pela formação das ciências básicas, surgindo assim a necessidade de descobrir a origem das matérias que causavam os contágios, dando origem à Teoria Miasmática, cuja explicação da doença estava nas partículas que não podiam ser vistas, os miasmas. O século XIX foi marcado pela capacidade da medicina social de criar as condições de salubridade adequadas à nova sociedade, a partir disso, abrindo es- paço para que gradativamente a prática médica individual ocupasse lugar central nas práticas de saúde das populações. Surgem também explicações sobre a doen- ça a partir das condições de vida e de trabalho. É nesse período que ocorre o nas- cimento da bacteriologia e com ela a concepção de que para cada doença há um agente etiológico, capaz de ser combatido com intervenções químicas e vacinais. Assim, o século XIX fica conhecido pelo fortalecimento da biologia cientí- fica, não apresentando influência relevante da filosofia. Nesse período, identifica- -se o fortalecimento da patologia celular, da fisiologia, da bacteriologia, resultan- do o significativo desenvolvimento de pesquisas científicas nessa área. Por isso, afirma-se que nessa época há uma transição da medicina como ciência empírica para ciência experimental, assumindo centralidade numa ciência que pode ser testada, aplicada e comprovada (BARATA, 1985). A Teoria Multicausal rouba a cena no século XX, reconhecida como a des- coberta científica que impacta a produção de saúde e doença da população. A in- suficiência da teoria unicausal da doença de caráter biologicista e histórico, e com uma concepção reducionista do social, exige explicações multicausais. Já se sabia então que os fatores causadores das doenças eram relacionados ao agente etioló- gico, ao hospedeiro e ao meio ambiente, formando a triangulação bastante conhe- cida. Entretanto, identificou-se que as causas agiam separadamente, possuindo assim relações diretas e indiretas entre si. Nesse período, mesmo que de maneira muito incipiente, se começa a considerar os fatores psíquicos como causadores de doenças e limitadores do estado de saúde da população, tanto na perspectiva individual quanto coletiva. Assim, surgem outras formas de enxergar a existência humana, ampliando o escopo de fatores influenciadores na saúde e na doença, o que podemos reconhecer como o início da concepção biopsicossocial. Se até aqui saúde significava não ter doenças, a contemporaneidade rompe com essa concepção. Até esse momento não havia uma definição universal do que era saúde e para isso seria necessário um consenso entre as nações, sendo possível obtê-la somente por meio de um organismo internacional. Influenciada pelas gran- des manifestações e conflitos políticos, econômicos e sociais mundiais, em 1948 a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu saúde não apenas como a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social. A nova definição implicou o reconhecimento do direito à saúde e da obrigação do UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 14 Estado na promoção e proteção da saúde. Essa concepção de saúde refletia a luta dos movimentos sociais do pós-guerra pela ascensão do socialismo, questões que marcavam o cenário político, econômico e social da época (SCLIAR, 2007). Assim, saúde não significava mais a ausência de doenças, mas deveria ser capaz de expressar o direito a uma vida sem privações, entendo que o trabalho, a moradia, o convívio social, o acesso a serviços e bens de consumo, o saneamento básico, a dimensão psicológica, dentre outros, eram aspectos relevantes na defi- nição de saúde e doença de uma população. Apesar de avançada para a época em que foi realizada, essa definição pas- saa exigir atualmente outras concepções diante da complexidade da saúde dos indivíduos. Diante da definição do que é saúde e de seus parâmetros de nor- malidade, é preciso lançarmos um olhar detalhado para outros fatores. O que é normal? Como é mensurada a normalidade de um fenômeno? Comumente, o normal é pensado como sendo o estado mais comum — como deveria ser — de um determinado fenômeno, a partir disso, determina-se o mais saudável, haven- do uma padronização. Entretanto, pelo fato de a saúde e a doença envolverem dimensões subjetivas, sociais, econômicas, políticas e não apenas biologicamente científicas, a normatividade que define o normal e o patológico varia de uma so- ciedade para outra nos diferentes tempos e lugares (CANGUILHEM, 1995). Além disso, podemos dizer que, para além das definições de normal e patológico, as sociedades contemporâneas têm considerado as questões estéticas como componentes importantes na concepção de ter ou não saúde. Dessa forma, se identifica novos elementos capazes de definir saúde e doença. Em contrapo- sição, os determinantes sociais em saúde nos chamam atenção para os múltiplos fatores que influenciam o nível de saúde e qualidade de vida das populações, salientando-os em uma associação direta com a classe social, relações étnicas e de gênero, condições de trabalho e sanitárias, acesso aos serviços de saúde e bens de consumo, dentre tantas outras. Cenários estes que revelam mundos comple- tamente opostos — atravessados pela dimensão econômica e social — em uma mesma cidade, por vezes, em um mesmo bairro. Desafios que se relacionam di- retamente ao fazer saúde e produzir cuidado no cotidiano dos serviços de saúde em seus diferentes níveis de atenção. Para concluirmos, pensar saúde na contemporaneidade é muito mais do que uma aplicação técnica e normativa a partir de perspectivas teóricas redu- toras do conhecimento biológico, psíquico e social. A partir das concepções de promoção da saúde é possível identificarmos a potencialização da capacidade in- dividual e coletiva das pessoas para conduzirem suas vidas frente aos múltiplos determinantes e condicionantes da saúde. Isso significa que é preciso estar atento aos acontecimentos das diversificadas realidades, os quais nos exigem e inspiram múltiplos olhares. É necessário deslocarmos as nossas lentes, enquanto estudantes e profis- sionais da saúde, para novos saberes e compartilhamentos. O que estamos salien- tando aqui é que as noções de saúde e doença variam historicamente e tendem TÓPICO 1 | REFLETINDO SOBRE SAÚDE 15 a se tornar cada vez mais complexas, uma vez que as modificações econômicas, culturais, sociais e políticas vão alterando a vida das pessoas, impactando, assim, a forma de viver, de se ver nesse mundo, e sentir-se saudável ou doente. É fun- damental considerar que o aparecimento e desaparecimento de fenômenos de saúde e doença, o aumento ou a diminuição de sua frequência, a menor ou maior importância que adquirem estão diretamente associados às múltiplas formas de organização social em determinado tempo e lugar. Sugestões de leituras: • ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Editora Fiocruz, 2011. • MALTA, D. C et al. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): capítulos de uma caminhada ainda em construção. Ciência & Saúde Coletiva, Manguinhos, v. 21, n. 6, p. 1683-1694, 2016. • RIOS, D. R. S.; SOUSA, D. A. B.; CAPUTO, M. C. Diálogos interprofissionais e interdisciplinares na prática extensionista: o caminho para a inserção do conceito ampliado de saúde na formação acadêmica. Interface, Botucatu, v. 23, 20p., ago. 2019. DICAS 16 Neste tópico, você aprendeu que: ● A saúde possui diferentes significados, assim como os fatores que corroboraram ao longo da história para suas múltiplas conceituações. ● Há dois modelos que possuem grande relevância para pensar saúde, sendo eles: o conceito biomédico, o qual é considerado hegemônico na nossa sociedade e apresenta uma compreensão pautada nas ciências da vida, centralizado na doença, partindo especificamente da biologia, anatomia e fisiologia; e o conceito ampliado de saúde, que considera saúde uma conquista dos direitos humanos e não se restringe à acessibilidade aos serviços, depende também de outros fatores que são considerados determinantes e condicionantes sociais da saúde, assim, indo além do ao modelo biomédico. ● Sobre a Promoção da Saúde, o que é e de que maneira ela acontece na vida prá- tica das pessoas, e de que maneira é vista como um novo modo de olhar para as questões de saúde, possuindo também múltiplas definições. Destacamos sua di- mensão prática, a qual é atravessada diretamente pelos modelos conceituais em saúde, especialmente o modelo biomédico e o modelo de determinação social. ● Na construção histórica social do conceito de saúde vimos sua evolução desde os fatores externos, fortemente presentes na Antiguidade Clássica até a influência dos determinantes e condicionantes em saúde, concepções do que é normal e patológico que marcam a contemporaneidade. ● O conceito de saúde e doença varia historicamente e tende a se tornar cada vez mais complexo, uma vez que as modificações econômicas, culturais, sociais e políticas vão impactando a maneira de se senti saudável ou doente. ● Devido a sua capacidade de modificação, vimos a importância de deslocarmos as nossas lentes, enquanto estudantes e profissionais da saúde, para novos saberes e compartilhamentos da produção do cuidado na atualidade. RESUMO DO TÓPICO 1 17 1 Leia a seguinte contextualização acerca do cuidado às pessoas que vivem com alguma doença crônica: AUTOATIVIDADE Colocando um pouco em prática toda essa discussão teórica que vimos até aqui, podemos analisar uma situação muito comum nos servi- ços de saúde, vivenciada diariamente pelos profissionais. O cuidado às pessoas que vivem com alguma doença crônica. No geral, a ideia que temos — e comumente a forma que é traba- lhada nos serviços de saúde — é que a partir de um diagnóstico formado, considerado um desvio ou falha, é necessário agir para buscar a normali- dade — ou chegar o mais próximo dela. Desse modo, algumas condutas são tomadas, como a prescrição de alguma medicação, algumas técnicas e métodos persuasivos com o intuito de corrigir algumas condutas. Pensando que para a maioria das doenças crônicas (hipertensão, diabetes etc.) as pessoas necessitam realizar algumas mudanças de há- bitos (alimentação, exercícios físicos, evitar a ingestão de álcool e outras drogas), esta passa a ser uma recomendação universal para controle de determinadas morbidades. Esse exemplo é recorrente no cotidiano dos profissionais de saúde, e a forma de olhar e pensar o processo saúde e do- ença impactará diretamente a maneira como esses profissionais atuam. Assim, a prática em saúde, geralmente, baseia-se em ações pau- tadas em concepções biomédicas, delegando cada vez mais a responsa- bilidade sobre o seu estado de saúde — e doença — aos indivíduos e aos grupos sociais envolvidos, supondo falta de conhecimento ou de inte- resse destes. Esse modelo reforça ainda mais uma atuação pautada em normas e atitudes autoritárias e hierarquizadas, desconsiderando, ainda, a complexidade de lidar com a vida e a saúde dessas pessoas. Temos que refletir para além, que tal responsabilização sobre os sujeitos tira a res- ponsabilidade do Estado em prover as condições adequadas, e somente com tais condições acessíveis a todos poderia se pensar em um processo de tomada de decisão ou ‘escolha’, o que se torna impossível de ser pen- sado com tanta desigualdade. Faz-se necessário entender qual a condição de vida de cada pes- soa, sua situação econômica e social, pois tais fatores influenciarão dire- tamente o seu acesso a determinados meios que não são disponibilizados para todas as pessoas. Partindo de uma concepção ampliada do processo de saúde doença, o profissional não deve desconsiderar a importância da melhoria nos parâmetros biológicos daquela pessoa,mas pensar com ela 18 quais são as possibilidades existentes ou não de realizar tais mudanças, e quais são as formas para que essas condições ocorram, através de um exercício de direitos e de cidadania, para que de fato as pessoas tenham autonomia e consigam tomar decisões a respeito do seu processo de saú- de e doença. Agora, reflita e responda aos seguintes questionamentos: a) Qual é a concepção de saúde que está posta diante da atuação da equipe, comumente ocorrida, conforme afirmação do texto? b) Podemos identificar práticas mais próximas do modelo biomédico ou do conceito ampliado de saúde? Por quê? c) Quais elementos e/ou estratégias a promoção de saúde nos oferta para pensar em planos terapêuticos mais exclusivos e de acordo com as diferentes realidades? d) Como a construção histórica e social do conceito de saúde nos auxilia para problematizar e refletir sobre o que é ter saúde atualmente? 19 TÓPICO 2 ENTENDENDO A MEDICALIZAÇÃO E A ÉTICA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, abordaremos o conceito de medicalização e de ética, seus processos históricos e sociais de construção, assim como suas interfaces com as diversas disciplinas e sua aplicação prática. Por isso, você deverá refletir sobre os temas mencionados, os quais estão subdivididos em dois grandes grupos com o objetivo de apresentar detalhadamente cada conceito, facilitando a aprendizagem. A partir disso, apresentaremos como a medicalização, enquanto um processo de extrapolação dos limites da medicina, passou a ser considerada uma expressão de extenso alcance social. Da mesma maneira, as formas pelas quais a medicalização da vida se configurou como uma prática da medicina que interfere a forma de viver, por meio da moral, das normas, dos comportamentos e dos costumes. Valores e princípios que moldarão e sustentarão as práticas medicalizadas com base na lente reducionista de ver a saúde e a doença, sobretudo de enxergar os modos de viver em uma sociedade adoecida e marcada pela valorização de um ideal humano inalcançável. Apresentaremos aspectos e marcos fundamentais para o surgimento da ética, enquanto temática desenvolvida pela filosofia e responsável por refletir sobre a moral, seus valores e princípios, assim como o nascimento da bioética como tentativa de responder aos problemas éticos oriundos das descobertas e das aplicações das ciências biológicas, sobretudo procurando refletir a partir de suas contribuições para o contemporâneo e complexo contexto da saúde e das práticas profissionais. Em seguida, a ética do cuidado será abordada a partir de um conjunto de noções que implicam distintas definições de narrativas, experiências e sentimentos, apresentando elementos fundamentais para a reflexão de estudantes e profissionais de saúde. O convite à reflexão se estende para os temas do cuidado, autocuidado e cuidado de si, quando procuramos apresentar suas diferentes definições, evitando o equívoco comum de serem utilizados como sinônimos. Por fim, abordaremos o conceito de iatrogenia, tendo como base sua relevância na contemporaneidade, sobretudo pela emergência de temas como a segurança do paciente e a redução dos fatores de risco no cuidado em saúde, com base nos danos evitáveis causados aos pacientes. UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 20 2 O QUE É MEDICALIZAÇÃO? A medicalização é o processo de extrapolação dos limites da medicina e de fenômenos que faziam parte de outros campos, como a educação, as leis, a reli- gião entre outros, e que passam a ser objetos de preocupação médica, mostrando-se como uma expressão de extenso alcance social. A partir disso, ocorreu a incorpo- ração de normas biomédicas para a vida comum, fazendo com que as experiências singulares das pessoas se tornassem objetivo de controle e intervenção médica, nor- matizando o cotidiano, o corpo e o comportamento, tentando intervir em todos os modos de expressão da vida humana (CONRAD, 2007; TESSER, 2010). A medicalização é considerada um fenômeno mundial, entretanto, surge da medicina moderna entre o final do século XVIII e o início do século XIX, mo- mento em que se vivia o processo de industrialização e reorganização da maneira de viver nas cidades, à época da constituição de alguns estados europeus. O con- ceito de medicalização ganha relevância principalmente a partir das concepções e críticas de alguns autores, com destaque para Ivan Illich e Irving Zola, a respeito das condutas da medicina na sociedade, tendo as obras A expropriação da saúde: nêmesis da medicina, de Illich (1975) e Medicine as an Institution of Social Control, de Zola (1972), servido como forte base passa essa discussão (CONRAD, 2007). Outra contribuição importante nessa temática é a obra de Michael Fou- cault (1984), que utilizou do conceito de biopolítica para compreender as raízes da medicalização, ou seja, a ideia de uma estratégia que incluiu o biológico como componente das preocupações de gestão da sociedade pelo Estado moderno a partir do século XVIII. Na obra O nascimento da medicina social, Foucault abor- da elementos para uma primeira definição de medicalização, apontando como as ações médicas interferiram a existência humana de diversas formas. Foucault ainda aponta três contextos históricos importantes que caracterizam a interferên- cia médica na sociedade, momentos estes que se constituem como três etapas da formação da medicina social, sendo o cenário da Alemanha, França e Inglaterra (ZORZANELLI; CRUZ, 2018). Na Alemanha, no século XVIII, a medicalização tem como objeto de in- tervenção o Estado, com o intuito de regular as situações relacionadas à saúde, resultando em uma normatização da formação médica e uma inserção de tais profissionais dentro do aparelho de Estado, incorporando assim o saber médico para a sociedade. Outro contexto utilizado por Foucault se dá na segunda metade do século XVIII, na França, quando a medicina passa a se preocupar com as cidades por conta de um processo de urbanização descontrolado, com grande propensão ao risco de doenças por falta de uma estrutura sanitária inadequada, criando assim um projeto de saneamento das cidades. Finalmente, o terceiro momento se dá na Inglaterra, no século XIX, onde a medicina passa a ter como objeto de intervenção a força de trabalho e a pobreza. TÓPICO 2 | ENTENDENDO A MEDICALIZAÇÃO E A ÉTICA 21 Criando a lei dos pobres, por conta de uma epidemia de cólera em 1832, portanto, a lei tinha o intuito de controlar os pobres (através de medidas autoritárias, como obrigatoriedade de vacinação), fazendo com que as pessoas ficassem mais ap- tas ao trabalho e oferecessem menores riscos às classes mais ricas (FOUCAULT, 1984b; ZORZANELLI; CRUZ, 2018). Em meio a tantos pressupostos e olhares para a medicalização, se faz ne- cessário refletir sobre como esse fenômeno impacta diretamente os dias atuais, seja na formação profissional, na construção da subjetividade das pessoas, na re- lação profissional paciente, e nos mais distintos âmbitos da vida. Assim, os pró- ximos tópicos ajudarão a pensar como esse fenômeno está presente nas nossas vidas e por que devemos olhar de forma crítica para esse processo. A crítica é centrada na capacidade que o modelo biomédico possui de reduzir e descontextualizar os problemas sociais, dessa forma, os problemas de saúde são individualizados e colocados diretamente sobre controle e interven- ção do poder médico, tirando de questão situações que poderiam ser de origens sociais e coletivas. Portanto, todas as questões, como o desempenho no traba- lho, na vida social, o crescimento, adoecimento e o envelhecimento, por exemplo, acabam sendo justificadas como problemas ‘fisiológicos’, ocorrendo um reducio- nismo biológico sobre problemas sociais, culpabilizando os indivíduos por sua situação de saúde e normatizando diagnósticos que tomam o lugar do controle sobre a vida (CONRAD, 2007). 2.1 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA Como vimos anteriormente,o processo da medicalização é um fenômeno que vem crescendo demasiadamente. Camargo Jr. (2013) aponta para a existência de diversos entendimentos sobre o conceito da medicalização, o qual está ligado ao modo de olhar a saúde e sua relação com a sociedade (como já discutido no tó- pico anterior), pois dependendo do momento histórico e da concepção de saúde hegemônica, diferentes formas de intervenção medicalizadas serão empregadas. Desse modo, a medicalização da vida faz parte desse grande processo de medicalização social, nesse caso, retratado pela apropriação da medicina por situ- ações normais da vida das pessoas, interferindo diretamente a moral, as normas, os comportamentos, costumes, dentre outros. Eventos como nascimento, morte, adolescência, menopausa, envelhecimento, sentimentos, sexualidade e hábitos de vida passam a ser explicados, normatizados e alvos de intervenção a partir de parâmetros biomédicos (GAUDENZI; ORTEGA, 2012; CAPONI, 2009). Dessa forma, diferentes situações da vida, bem como sensações físicas e psicológicas normais (como insônia e tristeza) são transformados em transtornos, doenças e distúrbios psiquiátricos (como distúrbios do sono e depressão), ocultando gran- des problemas sociais, políticos, culturais, econômicos e emocionais que afetam a vida das pessoas. UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 22 Quando se fala em medicalização é comum a associação, principalmente para fora dos muros acadêmicos/científicos, com a medicamentalização — que seria o uso excessivo e abusivo dos medicamentos, extrapolados para problemas não médicos — que também faz parte desse processo, mas que não se limita a isso. Oliveira, Harayama e Viégas (2016) apontam que o processo da medicaliza- ção é amplo e não se limita ao produto medicamento, possuindo uma lógica com- plexa que envolve o controle da vida das pessoas e das coletividades; enquanto medicamentalização descreve o uso de medicamentos em casos que a priori não faziam parte das atribuições médicas, portanto, não existia medicamentos para tal. Então, a medicamentalização se mostra como uma das consequências do pro- cesso de medicalização social. Contudo, a medicamentalização é ponto crucial quando pensamos na me- dicalização da vida. É importante salientar que essa utilização indiscriminada dos medicamentos não traz efeitos apenas no corpo individual, ainda, integra um movimento de patologização social que mobiliza toda uma economia política, pois atua desde a produção até o consumo desses produtos, sendo a indústria farmacêutica um dos mercados que mais cresce e mais movimenta a economia no mundo todo (TESSER; POLI NETO, 2010). Ao abordarmos o contexto de medicalização da vida é importante enten- der que não existem vilões ou mocinhos, mas que as relações sociais que vão sendo construídas e consolidadas em determinado lugar e em determinado mo- mento histórico, produzem um novo modo de relacionamento na sociedade. Illi- ch (1975) aponta que a partir desse fenômeno criou-se uma sociedade adoecida que exige medicalização universal a partir de uma instituição médica que ateste morbidade universal. Desse modo, os avanços tecnológicos permitem a produção de novos equi- pamentos e testes, ampliando cada vez mais as possibilidades diagnósticas, assim, cada vez mais categorias sociais vão sendo criadas, fazendo com que se torne im- possível encontrar pessoas que não se adéquam a nenhuma das classes terapêuti- cas, e tendo como consequência a transformação de grandes grupos de pessoas em pacientes potenciais (ILLICH, 1975). Um exemplo disso são as reduções dos pontos de corte, criando novas normas e novos rótulos, tais como os pré-diabéticos, pré-hi- pertensos ou algumas condições que vão se expandindo e criando novas doenças a partir de vivências e sofrimentos que antes não eram de interesse do setor biomé- dico. Para cada nova categoria criada, a indústria farmacêutica produz inúmeras drogas, prometendo alívio e eficácia (NORMAN; TESSER, 2009). Em meio a tantas soluções rápidas e direcionadas, a partir de diversas maneiras (inclusive pelas práticas profissionais na saúde), as pessoas vão dei- xando sua capacidade de enfrentar seus problemas, adoecimentos e problemas emocionais cotidianos, perdendo sua autonomia, gerando uma dependência ex- cessiva e uma alienação, e o medicamento passa a ser utilizado como solução de problemas. TÓPICO 2 | ENTENDENDO A MEDICALIZAÇÃO E A ÉTICA 23 A mídia se mostra como um dos grandes responsáveis pela dissemina- ção desses valores, através de suas propagandas de medicamentos nos diversos meios de comunicação, ressaltando que as indústrias farmacêuticas investem mais em propagandas do que em pesquisa e desenvolvimento (BRASIL, 2019). Esse modelo tem implicações diretas na atuação dos profissionais de saú- de, pois as práticas de saúde passam a reproduzir esse discurso medicalizante que tende a patologizar a vida através das normatizações das diferenças e buscando individualizar questões que são influenciadas pela história, política, economia, cultura, dentre outros fatores, e que não podem ser pensadas sem esses aspectos. Os profissionais precisam estar dispostos a pensar para além dos diagnós- ticos e do reducionismo implicado nessa maneira medicalizada de pensar e agir, respeitando as singularidades, as diversidades, as condições de vida das pessoas, pautando sua atuação em um cuidado integral e humanizado. 2.2 PRÁTICAS MEDICALIZADAS Pensar em uma sociedade medicalizada é pensar em uma atuação profissional que produz e reproduz práticas medicalizadas. Em uma sociedade adoecida, marcada pelo consumismo, por uma valorização de um ideal humano inalcançável, os profissionais acabam por atuar com base em um reducionismo. Esse tópico se propõe a refletir sobre diferentes práticas de saúde que reproduzem o modelo hegemônico, se tornando medicalizadas. O objetivo é que tanto os futuros profissionais de saúde, quanto os demais leitores, consigam analisar criticamente as diversas formas de relação de poder, concepções e demais fatores presentes nas intervenções e práticas nos serviços de saúde. 2.2.1 Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) Foucault (1979), ao discutir biopoder, relata sobre instituições disciplinares que se apresentam como um espaço de formação de corpos dóceis e disciplinados, criando subjetividades obedientes. Nesse sentido, a escola se mostra como um es- paço que produz e reproduz normas, e vai além, tem a função de corrigir e enqua- drar comportamentos e atitudes que desviem das normas sociais ‘desejáveis’. Assim, a infância se torna lócus privilegiado de intervenção sobre os cor- pos, tendo a psiquiatria papel fundamental nesse quesito, se apropriando da in- fância e da escola para levantar diagnósticos sobre comportamentos considera- dos indesejáveis, classificando assim como distúrbios de cunho biológico. Nesse sentido, um dos diagnósticos mais presente no contexto escolar é o Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH), que é definido como um transtor- no neurobiológico de causas genéticas que aparece na infância e frequentemente acompanha a pessoa por toda a vida. Está relacionada normalmente à dificul- UNIDADE 1 | SAÚDE, MEDICALIZAÇÃO, ÉTICA, BIOPODER, BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA 24 dade de aprendizagem e problemas relacionados ao comportamento, e tendo o Metilfenidato — conhecido comercial e popularmente como Ritalina — como o medicamento mais prescrito para o tratamento desse transtorno e que atua como um estimulante do sistema nervoso central (BIANCH; FARAONE, 2015; ITABO- RAHY; ORTEGA, 2013). Por tratar-se de um tema bastante polêmico, tem sido foco de várias pes- quisas atualmente e, de maneira geral, é apresentada de maneira bem simplifica- da. Os diagnósticos sobre o TDAH são bastante complexos, pautados a partir de categorias descritivas criadas pela psiquiatria, entretanto, mesmo com protocolos existentes, as queixas levantadas se tratam de
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