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JESUS O Maior Filósofo Que Já Existiu

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08-4778.
© 2007 por Peter Kreef
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
K92j
Kreeft, Peter, 1937--
Jesus, o maior �lósofo que já existiu/Peter Kreeft; [tradução Lena Aranha]. - 3ª ed. - Rio de Janeiro:
Petra, 2016.
Tradução de: e Philosophy of Jesus
ISBN 978.85.8278.043-5
1. Jesus Cristo - Ensinamentos. 2. Jesus - Personalidade e missão. 3. Igreja Católica - Doutrinas. 4.
Cristianismo - Filoso�a. I. Título.
CDD: 232.954
CDU: 27-31-475
PETRA EDITORA
Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8312/8313
SUMÁRIO
Introdução I: A quem se dirige o livro?
Introdução II: Por que Jesus é �lósofo?
Introdução III: Quais são as quatro grandes perguntas da �loso�a?
I. A metafísica de Jesus (O que é real?)
1. Metafísica judaica de Jesus
2. O novo nome que Jesus usa para Deus
3. A metafísica do amor
4. As consequências morais da metafísica
5. A santidade como a essência da ontologia
6. A metafísica de “Eu Sou”
II. A epistemologia de Jesus (Como sabemos o que é real?)
III. A antropologia de Jesus (Quem somos nós para saber o que é real?)
IV. A ética de Jesus (O que deveríamos ser para sermos mais reais?)
1. Personalismo cristão: ver “só Jesus”
2. A superação do legalismo
3. A refutação do relativismo
4. O segredo do sucesso moral
5. Jesus e o sexo
6. Jesus e a ética social: solidariedade
7. Jesus e a política: ele é de esquerda ou de direita?
Conclusão
INTRODUÇÃO I
A quem se dirige o livro?
Este livro é para cristãos e para não cristãos.
(1) O livro pretende apresentar aos cristãos uma nova dimensão de Jesus:
Jesus, o �lósofo.
(2) E pretende apresentar aos não cristãos uma nova dimensão da
�loso�a, uma nova �loso�a e um novo �lósofo. O livro não pretende convertê-
los.
Mas eu sou cristão e também �lósofo, ou seja, acredito que Jesus é Deus.
E não escondo esse fato nem o disfarço. Por isso, coloco em maiúscula seu
nome do começo ao �m do livro.
Espere um pouco! Se acabo de perdê-lo como leitor potencial por causa
dessa declaração, desa�o-o — agora como �lósofo, não como cristão — a se
perguntar antes de largar a leitura e a dar uma resposta lógica: você se recusaria
a ler um livro sobre a �loso�a de Buda apenas por ser escrito por um budista?
Ou um livro explicando a �loso�a do Alcorão apenas por ser escrito por um
muçulmano? Não faria mais sentido recusar-se a lê-lo se não fosse escrito por
alguém que conhecesse bem o assunto?
INTRODUÇÃO II
Por que Jesus é filósofo?
O quê? Jesus é �lósofo? Ele faria uma preleção em Harvard, ou empreenderia
um longo diálogo socrático na Academia de Platão, ou, ainda, escreveria um
comentário sobre a Crítica da razão pura de Kant?
É claro que não. E todo mundo sabe disso. Essa é uma “verdade trivial”.
Jesus, em outro sentido, foi um �lósofo, mas esse segundo sentido
também é trivial. Todos têm alguma “�loso�a de vida”. Até Homer Simpson é
�lósofo.
Contudo, Jesus foi um �lósofo em um sentido intermediário relevante,
no sentido em que Confúcio, Buda, Maomé, Salomão, Marco Aurélio e Pascal
foram �lósofos.
Cito C. S. Lewis, como a autoridade que me apoia nessa classi�cação,
em uma carta que escreveu para dom Bede Griffeths (Collected Letters of C. S.
Lewis, volume II [Coletânea de cartas de C. S. Lewis, volume II]. São Francisco:
Harper/SF, 2004, p. 191):
Questiono seu relato sobre nosso Senhor quando diz: “Ele é essencialmente um
poeta, e não é, de forma alguma, um �lósofo”. Com certeza, o “tipo de mente”
representada na natureza humana de Cristo (e em virtude de sua humanidade,
suponho, que, nem de forma absurda nem irreverente, podemos falar dela como
“um tipo de mente”) acha-se exatamente na mesma distância do poeta e do �lósofo.
[...] A�nal, ele é pleno de argumentos, de respostas argutas e até mesmo de ironia. A
passagem sobre o denário (“De quem é esta imagem e esta inscrição?”); o dilema a
respeito do batismo de João Batista; o argumento contra os saduceus nas palavras:
“Eu sou [...] o Deus de Jacó etc.”; a terrível, mas quase engraçada, armadilha
preparada por seu an�trião fariseu (“Simão, tenho algo a lhe dizer”); o repetido uso
de a fortiori (“Se [...] quanto mais”); e os apelos à nossa razão (“Por que vocês não
julgam por si mesmos o que é justo?”) — sem dúvida, reconhecemos em todos esses
exemplos o veículo humano e natural da Palavra encarnada como uma compleição
mental em que a perspicácia de um arguto camponês é tão notável quanto uma
qualidade imaginativa — em outras palavras, algo bastante próximo (em termos de
natureza) a Sócrates e a Ésquilo.
Mesmo em relação às parábolas, [...] o modo como a alegoria representa sua
verdade é intelectual, não imaginativo — como a ilustração de um �lósofo, e não o
símile de um poeta. Para a imaginação, o juiz injusto não tem nenhuma semelhança
com Deus — não traz para a história nem o aroma nem o colorido de Deus (como,
por exemplo, o pai do �lho pródigo traz). A semelhança dele com Deus é puramente
para o intelecto. É um tipo de soma da proporção — A:B::C:D.
Mas este livro não é tanto sobre o estilo �losó�co, nem sobre o método e,
tampouco, sobre o “tipo de mente” de Jesus, mas é sobre sua essência �losó�ca,
suas respostas �losó-�cas, sua �loso�a.
INTRODUÇÃO III
Quais são as quatro grandes perguntas da filosofia?
Existem quatro perguntas �losó�cas perenes. “Filoso�a” quer dizer “amor à
sabedoria”, e a sabedoria, se a tivermos, pode responder, pelo menos, a quatro
grandes perguntas:
1. O que é? O que é real? Em especial, o que é mais real?
2. Como podemos saber o que é real e, em especial, o que é mais real?
3. Quem somos nós, quem quer conhecer o real? “Conhecer a si
mesmo.”
4. O que deveríamos ser, como deveríamos viver para sermos mais reais?
Há perguntas a respeito do ser, da verdade, do “eu” e da bondade. As
divisões da �loso�a que examinam esses quatro aspectos recebem nomes
técnicos: metafísica, epistemologia, antropologia �losó�ca e ética.
1. Vamos começar pelo começo: tudo é relativo na metafísica. A primeira
coisa que todo bebê quer descobrir é: o que existe? A primeira pergunta
que meu �lho fez foi: “Que é aquilo?” Ele continuou a fazer essa
pergunta em relação a tudo, como uma metralhadora, até conseguir
compilar um catálogo de respostas, um universo. Se formos sábios, não
crescemos nunca.
2. Mas nós mudamos. No início da adolescência, nos tornamos críticos:
não queremos saber apenas a diferença entre gatos e cachorros, mas
também entre verdade e falsidade. Queremos saber como podemos
compreender, como podemos ter certeza. Tornamo-nos epistemólogos.
E como a questão mais interessante da metafísica é a respeito da
realidade última, a questão mais interessante da epistemologia é sobre
conhecer a realidade última: como nós, tolos �nitos, podemos conhecer
a sabedoria in�nita? Como o homem pode conhecer Deus? Ou até
mesmo saber se existe um Deus?
3. Um pouco depois, também nos voltamos para o nosso interior.
Perguntamos quem realmente somos quando deixamos de representar
nos palcos das outras pessoas. Por que é tão difícil “conhecer a si
mesmo”? É claro que somos seres humanos, mas o que é isso? (“Que é
aquilo?”) Uma vez que tomamos consciência do conhecido, queremos
saber quem é o conhecedor.
4. Por �m, quando constatamos que esse “eu” que compreendermos é
fundamentalmente diferente de tudo o mais no universo conhecido,
porque apenas ele pode fracassar em ser seu verdadeiro “eu”, então
precisamos não só discernir entre verdade e falsidade, mas também entre
bem e mal. Podemos ser bons ou maus. Nada mais no universo tem essa
escolha. O nosso “eu”, de forma distinta das nozesou das estrelas, não é
totalmente dado a nós, mas é formado pelas nossas escolhas. Uma vez
que percebemos isso, perguntamos como podemos nos tornar nosso
verdadeiro “eu”, nosso “eu” real, nosso “eu” bom. Como pessoas ruins
podem se tornar boas? E o que é ser uma pessoa boa? (“Que é aquilo?”)
A ordem lógica das perguntas é esta: antes de sabermos como
reconhecemos que algo é real, precisamos conhecer alguma coisa real; e antes
de sabermos o que é bom para nós, precisamos compreender quem somos. Essa
ordem lógica apresenta solidez, praticidade e acessibilidade crescentes, e
interessa às pessoas comuns. A ética baseia-se na metafísica; do ponto de vista
lógico, ela é posterior à metafísica, mas é psicologicamente mais convincente.
Há mais de dois milênios, os �lósofos meditam profundamente a
respeito dessas quatro perguntas. Por que eles não encontraram respostas
adequadas, conclusivas e aceitas por todos? Por que uma das melhores
de�nições de �lósofo é “aquele que contradiz outros �lósofos”? H. L. Mencken
declarou: “A �loso�a consiste basicamente no fato de um �lósofo argumentar
que os outros são tolos. Cada �lósofo, em geral, prova isso.”
O argumento cristão é: porque a única resposta adequada e �nal para as
quatro perguntas é Cristo. João, o escritor mais �losó�co da Bíblia, começa seu
Evangelho identi�cando Jesus com o logos (“No princípio era aquele que é a
Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra tornou-se
carne e viveu entre nós.”). O que é logos? É uma palavra grega de sentido
incrivelmente rico. Eis alguns dos sentidos: o logos representa a Palavra de
Deus, a revelação de Deus, a fala de Deus, a sabedoria de Deus, a mente de
Deus, a verdade de Deus, a razão de Deus, a �loso�a de Deus.
Jesus é a �loso�a de Deus.
I 
A METAFÍSICA DE JESUS
1. Metafísica judaica de Jesus
O primeiro fato que devemos conhecer a respeito de Jesus, a �m de entender
a sua metafísica — na verdade, o fato que é a chave histórica necessária para a
compreensão de tudo que Ele diz, fato esse que, de uma maneira ou de outra,
tem sido negado, esquecido, ignorado ou minimizado por todos os hereges da
história — é que Jesus era judeu.
Ele não era gnóstico, nem da Nova Era. Ele não era modernista, nem
humanista secular. Ele não era marxista, nem socialista. Ele não era �lósofo
platônico. Ele não era panteísta brâmane. Ele não era ariano racista. Ele não era
assistente social, nem psicólogo pop, nem mito pagão, nem mágico. Ele não era
democrata nem republicano; na verdade, Ele não era norte-americano. Ele não
era libertário, nem monarquista; não era anarquista, nem radical e, tampouco,
neoconservador. Ele não era um homem medieval nem moderno. Ele era
judeu.
O que isso tem a ver com metafísica? Tem tudo a ver. Jesus conhecia a
resposta crucial para a pergunta crucial da metafísica porque era judeu. A
verdade suprema da metafísica, a natureza última da realidade, para os judeus,
não era o mistério incognoscível, como o era para todas as tribos, nações e
religiões pagãs que existiam ao redor deles.
Isso não se devia ao fato de que os judeus eram mais espertos que todos
os outros povos. Isso se devia ao fato de que a Realidade suprema, por motivos
conhecidos apenas por ela mesma, escolheu revelar-se a eles, e a ninguém mais.
Deus saiu do esconderijo.
Na verdade, Ele lhes disse seu nome: “Eu Sou”.
“Eu” é o nome de uma pessoa, não de uma força. Deus é um ser, e não
algo.
A meio hemisfério de distância, na Índia, grandes sábios tiveram a
percepção de que a Realidade suprema era única e in�nita, mas não sabiam que
seu nome era “Eu”. Ao contrário, a maioria deles pensava que o “eu” ou “ego”
(a palavra latina para “eu”) — ou seja, nosso senso de que somos indivíduos
únicos, irredutíveis e distintos — era a ilusão suprema e o grande obstáculo
para o esclarecimento supremo.
É provável que esse tenha sido o motivo pelo qual o Oriente nunca
desenvolveu uma moralidade ou política de direitos humanos como �zeram os
judeus, os cristãos e os mulçumanos; en�m, o Ocidente. Pois o fundamento
metafísico para a noção dos direitos do homem é a ideia (ou, antes, a verdade
revelada) de que o homem foi criado à imagem de Deus. Os direitos humanos
do “eu” e a própria realidade humana do “eu” estão fundamentados no “eu”
divino. O Ocidente foi receptivo aos dois “eus”, enquanto o Oriente obstruiu
os dois.
Na verdade, duas religiões não poderiam diferir de forma mais radical
em sua metafísica que o judaísmo e o hinduísmo. O que o hinduísmo a�rmava
ser a ilusão suprema e o obstáculo supremo ao esclarecimento e à sabedoria era
exatamente o que o judaísmo a�rmava ser a realidade e a sabedoria supremas.
Se um judeu dissesse ao seu rabino: “Acabo de descobrir que sou Deus”, o
rabino rasgaria a roupa dele e clamaria: “Blasfêmia! Insanidade! Arrogância!
Idiotice!” Mas se um hindu dissesse a mesma coisa para seu guru, este sorriria e
diria: “Parabéns. Finalmente você descobriu a verdade. Bem-vindo à categoria
dos iluminados”.
O hinduísmo e o judaísmo elevaram-se acima do paganismo pela
percepção de que Deus era único e perfeito. Os hindus alcançaram esse ponto
de baixo para cima; os judeus, de cima para baixo: os hindus chegaram a Ele
por meio da experiência mística humana; os judeus, por meio da revelação
divina.
O hinduísmo e o judaísmo eram as duas religiões mais puras do mundo
antigo. As duas religiões ultrapassaram o paganismo por meio do
conhecimento de que Deus é onisciente e, portanto, não pode ser enganado,
iludido, in�uenciado como os deuses do paganismo, nem se pode escapar dele.
Mas o motivo para a crença dos judeus era diferente do dos hindus. O motivo
dos judeus era que Deus sabia tudo, pois Ele criou o universo; o dos hindus era
que Deus estava sonhando o universo.
A noção da Criação, propriamente dita, é única dos judeus. Ela é
expressa por uma palavra exclusivamente judaica: bara’. Essa palavra não tem
equivalente em nenhuma outra língua antiga. É um verbo que não tem outro
sujeito além de Deus. Apenas Deus pode criar. Pois criar quer dizer fazer a
partir do nada, não a partir de alguma coisa. Criar quer dizer trazer à própria
existência alguma coisa, não apenas sua forma, sentido, estrutura, ordem ou
destino. Criar não é apenas dar nova forma a uma matéria já existente; é fazer a
própria existência da matéria.
Nenhuma vez na história, essa ideia, a ideia de um único Deus criar a
própria existência de tudo a partir do nada, entrou em alguma mente humana
a não ser na dos judeus e daqueles que aprenderam com eles (principalmente
cristãos e muçulmanos).
O Deus judeu, sozinho entre os muitos deuses antigos, sempre foi “Ele”,
nunca “ela” (nem “isto”, nem “eles”, nem um ser hermafrodita). Pois “ela”
simbolizava algo imanente, enquanto “Ele” era transcendente. “Ela” era o
ventre de todas as coisas, a mãe cósmica, mas “Ele” era outro que não a mãe-
Terra. Ele criou a terra e entrou nela vindo de fora, da mesma forma que o
homem vem do interior da mulher. Ele impregnou o não-ser com o ser, a
escuridão com a luz, a matéria morta com a vida, a história com os milagres, as
mentes com as revelações, seu povo escolhido com os profetas, e as almas com a
salvação. Ele era transcendente.
Por isso, apenas o judaísmo, dentre todas as religiões antigas, não tem
deusas nem sacerdotisas. Pois os sacerdotes são representantes e símbolos dos
deuses. Os sacerdotes são os intermediários não só entre o homem e Deus, mas
também entre Deus e o homem. As mulheres, como os homens, também
podem representar o homem diante de Deus, pois elas também são seres
humanos, valiosas, boas e piedosas. Mas as mulheres não podem representar
esse Deus para o homem, pois Deus não é nossa mãe, mas nosso Pai. A Terra é
nossa mãe.
Jesus sempre chamou Deus de “Pai”. E Jesus não era de forma alguma um
misógino. Ele libertou a mulher mais que qualquer outro em seu tempo. Mas
Ele também era judeu. Ele acreditava que o judaísmo era a revelação do
verdadeiro Deus. Ele acreditava que Deus nos ensinou como falar dele. Ele não
só acreditavanisso, mas sabia disso, pois estava lá! Ele era (e é) o eterno Logos,
Mente, Razão ou Palavra de Deus. Ele era a Mente que tinha inventado o
judaísmo — a não ser que Ele fosse um mentiroso; e o judaísmo, uma mentira.
O monoteísmo hindu harmonizou-se com o politeísmo. Até hoje, os
hindus adoram muitos deuses tanto quanto adoram apenas um. Brahma
manifestava-se igualmente em Vishnu, o “criador” imanente da vida; e em
Shiva, o destruidor; e em Kali, a esposa de mil braços de Shiva — e em
literalmente milhares de deuses e deusas. Mas, para os judeus, simplesmente
não existem outros deuses. Com um traço não ecumênico da caneta de Deus,
todos os deuses de todas as religiões do mundo foram riscados do mapa.
A história não é complacente com o politeísmo. No Ocidente, todos os
outros deuses estão mortos. (Quantos templos de Diana, de Mitra ou de Zeus
você encontra nas Páginas Amarelas da sua cidade?) E também os adoradores
deles. (Qual foi a última vez que você conversou com um cananeu, ou um
moabita, ou um hitita?) Quatro mil anos depois de Abraão, metade das pessoas
do mundo aprendeu com os judeus que (como dizem os muçulmanos) “não
existe nenhum Deus além de Deus”. Ele é o único, o Criador. Ele é o único
Deus.
Esse é o primeiro ponto da metafísica de Jesus. Ele não é original. Todos
os judeus sabiam disso. Qualquer pessoa que ignore, duvide ou minimize a
força desse fato histórico não tem a mínima possibilidade de entender a
�loso�a de Jesus.
E eis uma segunda crença exclusivamente judaica: que a vontade divina é
perfeitamente boa, reta, santa e justa. Deus é o único Deus que você não pode
in�uenciar. E uma vez que esse é o caráter da Realidade suprema — e desde
que para sermos verdadeiramente reais temos de nos conformar ao caráter da
Realidade suprema — por conseguinte, o sentido da vida é ser sagrado, santo.
A moralidade �ui da metafísica, porque a bondade �ui de Deus. “Sejam santos
porque eu, o SENHOR, o Deus de vocês, sou santo.” A Torá repete essa ligação
como uma fórmula litúrgica. Deus, ao contrário dos deuses do politeísmo ou
do panteísmo, não tem um lado obscuro. Por isso, nós também não podemos
ter um lado obscuro. As consequências da metafísica judaica para a ética
abalaram o mundo. O mundo todo tem uma mãe judia, uma consciência
judia, porque o mundo todo tem um Pai judeu.
Essa bondade divina não é apenas perfeita, ela é mais que perfeita. Ela
irradia como a luz do sol. Ela é o amor ágape, generoso, altruísta, que doa e
sacri�ca a si mesmo. Deus procura intimidade com o homem, Deus quer se
casar com o homem. Isaías declara: “O seu Criador é o seu marido” (Isaías
54:5). Para esse �m, Ele faz alianças, prepara para a aliança fundamental, o
casamento.
Nenhum pagão jamais suspeitou da possibilidade de existir essa
intimidade, nem mesmo com seus deuses �nitos e antropomór�cos, ou seja, o
relacionamento que a Escritura chama de “fé” ou �delidade. E, por essa razão,
nenhum pagão jamais entendeu o sentido mais profundo nem o horror do
“pecado”, pois o pecado é a ruptura desse relacionamento. O pecado é para a fé
o mesmo que a in�delidade é para o casamento. Apenas quem conhece a
maravilha do casamento pode conhecer o horror da in�delidade.
Por isso, Jesus, o judeu, levava o pecado muito mais a sério que qualquer
pagão poderia levar, e é por isso que Ele paga o preço máximo — sua própria
vida — para nos salvar do pecado.
Do ponto de vista puramente racional do �lósofo, a coisa mais
surpreendente acerca do conceito judaico de Deus não é o fato de Deus ser
único, nem perfeito, nem bom, nem mesmo amoroso, mas de que Ele, o ser
in�nito, tem caráter. Ele não é apenas “o fundamento do ser”, mas um
indivíduo com personalidade. E esse indivíduo e sua personalidade podem ser
conhecidos (connaitre, kennen) por intermédio da experiência da oração, do
esforço moral, do arrependimento e da fé como um relacionamento vivo com
Ele semelhante ao casamento. Apesar de ser in�nito; “in�nito” não quer dizer
“que não tenha caráter”. Ele é in�nitamente santo, in�nitamente reto,
in�nitamente justo, in�nitamente amoroso etc. Ele não é tudo em geral e nada
em particular. Ele discerne entre o bem e o mal, e exige que façamos o mesmo
no pensamento e na vida. Para esse propósito, Ele concede a cada um de nós a
consciência, o profeta interior: para que sejamos moralmente rigorosos e
judiciosos e saibamos discernir entre o bem e o mal. Ele, por ser in�nitamente
rigoroso, não faz concessão ao mal. E nós, se quisermos viver em sua família,
como seus �lhos, devemos fazer o mesmo. Da mesma forma que seu Filho
unigênito é igual ao Pai, nós, seus �lhos adotivos, também temos de ser iguais
ao Pai. Por isso, Ele nos diz: “Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de
vocês” (Mateus 5:48).
Os judeus religiosos anteriores a Jesus já tinham aprendido com seus
profetas boa parte dessas verdades surpreendentes a respeito de Deus (embora
eles não soubessem que Deus tinha um Filho eterno) e, assim, acerca da
Realidade suprema e, portanto, acerca da metafísica. Tudo que Jesus fez foi
mostrar o que eles já sabiam, mostrar isso de “forma próxima e pessoal”, pôr a
face de Deus “na face deles”. Ele não mostrou a eles um novo Deus, nem
ensinou um novo conceito de Deus nem um novo atributo de Deus, mas deu a
eles uma nova obra de Deus, a mais extraordinária de todas as obras de Deus, a
Encarnação, e nela, a redenção por meio do sofrimento, da morte e da
ressurreição divinas.
O Pai e o Filho são o mesmo Deus, pois “quem me vê [Jesus], vê o Pai”
(João 14:9). Tal pai, tal �lho. Jesus não era Deus representado, mas Deus
presente, Deus tornado o mais presente possível, Deus conhecido pela visão,
até mesmo pelo toque e também pela fé. O Céu veio à terra. Esse não era um
novo conceito de Céu, mas uma nova presença do Céu. Jesus mostrou ao seu
povo escolhido 33 anos de Céu. Pois o Céu está onde Deus está. Deus de�ne o
Céu, não é o Céu que de�ne Deus.
2. O novo nome que Jesus usa para Deus
O nome pelo qual Jesus chamava Deus era ainda mais espantoso que aquele
que Deus revelou a Moisés. Os judeus aprenderam com Moisés que Deus é
apenas Eu Sou, a pessoa eterna, perfeita, única e totalmente real. E Jesus
chamava essa pessoa por um nome que ninguém jamais sonharia ou ousaria
usar: “Pai”.
Esse fato representava dois choques: Deus era Pai de Jesus, por natureza,
na eternidade; e nosso Pai, por adoção, no tempo.
(No mundo antigo, “�lho adotivo” era o título legal genérico para
mulheres e homens adotados; uma vez que o direito de herança era passado por
meio dos homens, “�lho” era a palavra necessária para designar o fato de que
mulheres e homens tinham direito à plena herança espiritual de todas as
riquezas de Deus concedidas por intermédio de Cristo. O ponto realmente
“inclusivo” só poderia ser expresso por meio de uma palavra aparentemente
“exclusiva”.)
E Jesus ainda foi mais adiante. Ele usava a palavra “Abba” — não apenas
“Pai”, mas “Papai”, o termo íntimo usado pela criança ou pelo bebê. (Até
mesmo um bebê consegue balbuciar: “Abba”, ou “Papa”.) Aquele que é
in�nitamente transcendente, agora, também será, por todo o resto do tempo e
da eternidade, in�nitamente íntimo. Agora, o Pai está brincando com o bebê e
usando a fala dos bebês. O divino inacessível tornou-se tão acessível que pôde
ser morto. Ele não só tornou seu espírito acessível, mas também seu sangue.
Suas palavras de salvação não eram como as dos �lósofos: “Esta é minha
mente”, mas: “Isto é o meu corpo” (Mateus 26:26).
O apóstolo João, já idoso, ainda estava espantado e estupefato quando
ponderou esse paradoxo ao escrever sua primeira epístola. A primeira frase do
Evangelho dele diz: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com
Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória.” A primeira frase de sua epístola declara: “O que era desde
o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que
contemplamos e as nossas mãos apalparam.” A origem implícita de toda
manifestaçãotornou-se clara. O “Tao”, por trás das “dez mil coisas”, se tornou
uma dessas manifestações.
A equação de Deus com Cristo é semelhante à equação E = mc². A
energia divina foi convertida em massa por uma espécie de �ssão transnuclear.
O sujeito divino (“Eu”) tornou-se um objeto humano (“ele”). A velocidade da
luz celestial tornou-se �nita.
Por que Ele fez isso?
3. A metafísica do amor
“Para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é
com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (1 João 1:3). O “ponto crucial” ou o
resultado prático do paradoxo teológico da Encarnação é a oportunidade
religiosa de relação, ou intimidade, com a Realidade suprema. Essa é a solução
mais radical para o problema fundamental da metafísica: como conhecer o Ser.
O Ser (“Sou”) também se tornou pessoa (“Eu”), e constata-se que o
conhecimento é casamento! O objeto da metafísica propôs casamento ao
metafísico. Isso é algo totalmente inesperado, como se Newton, ao descobrir a
gravidade, tivesse ouvido uma voz vinda de toda a gravidade do universo:
“Você quer se casar comigo?” É como se o quadrado da hipotenusa declarasse
estar apaixonado por Pitágoras.
Apenas o amor poderia motivar essa loucura. Os braços estendidos de
Cristo na Cruz são a resposta de Deus à nossa pergunta infantil: “Quanto você
me ama?”; “Esse tanto!” Quão grande é essa extensão? É a distância entre o
Céu e a terra que foi transposta pela Encarnação, e era a distância entre o Céu e
o Inferno que foi transposta pela nossa salvação.
Cristo é a revelação, ou a realidade, suprema de Deus, do mais supremo
segredo da metafísica. A busca metafísica do homem encontra sua realização
terrena �nal no Gólgota, o “lugar da Caveira”, no qual o mundo assistiu ao
mais dramático evento da história: a morte e a vida travando um combate
milagroso (Mors et Vita duello, con�ixere mirando, nas palavras do Dies Irae
[Dia da Ira]). A vida não venceu a morte pela força, mas pelo amor. O pequeno
Cordeiro derrotou a grande besta usando sua arma secreta: seu sangue, seu
amor. Ele deixou a besta, como um Drácula invertido, beber seu sangue.
Ele poderia nos redimir com uma gota de sangue; por que sofreu uma
morte tão sangrenta? Porque tinha mais sangue para dar. Para escândalo dos
estudiosos, a resposta de Deus à nossa busca metafísica não é um conceito nem
um símbolo mítico, mas essa obra. Você consegue ver a natureza da realidade
suprema quando olha para um cruci�xo. Há mais sabedoria metafísica no olhar
sincero de uma única criança cristã que nas mais altas experiências místicas do
sábio ou do guru, e que no mais excelente dos sistemas �losó�cos de um Platão
ou de um Aristóteles. Eles podem conhecer a experiência do Ser ou o conceito
do Ser, mas a criança cristã vê a face do Ser.
Como algum homem mortal poderia ousar imaginar essa história? Como
o coração humano poderia conceber esse pensamento? O efeito não pode
exceder a causa. Esse pensamento — de que o Deus perfeito agiria como se
precisasse muitíssimo de nós, pecadores — é muito absurdo para ser outra
coisa além de uma terrível insanidade ou uma revelação celestial.
Como poderíamos saber, se não por Cristo, que Deus nos ama? Quero
dizer, que Ele realmente nos ama, não apenas com a �lantropia apropriada, mas
com paixão totalmente imprópria. Mesmo se algum homem ousasse esperar
isso, que fundamento poderia haver para essa louca esperança? Que dados
temos para isso? Que provas? Com certeza, não a natureza (“Natureza, rubra
em dente e garra”), nem a vida humana (“solitária, pobre, sórdida, embrutecida
e curta”), nem a história humana (“O banco da matança no qual a felicidade
das pessoas é sacri�cada”). Cristo é o único dado que temos para saber que
Deus é amor.
Contudo, uma vez revelada, a história absurda parece totalmente bela.
Tolkien diz a respeito do Evangelho: “Não existe uma lenda que os homens
mais desejam que seja verdade.” Pois a maior alegria da vida é ser amado,
apaixonadamente amado, in�nitamente amado; ser totalmente conhecido, com
todos os meus defeitos, e, ainda assim, ser totalmente amado.
Sartre, em sua obra Huis clos [Sem saída], mostra como, aparentemente,
isso é impossível. Ele argumenta que eu conhecer você equivale a conhecer
tudo que o torna não digno de ser amado; e que eu amar você é o mesmo que
amar um ideal, um sonho, uma fantasia de mim mesmo. Apenas Deus torna
possível o impossível. Ser, ao mesmo tempo, amado e conhecido, isso é
celestial. Lembra-se da alegria que você sente quando recebe até mesmo um
pouquinho de amor, até mesmo a coisa mais minimamente próxima de amor
de um ser humano pouco inteligente e pecaminoso como você mesmo? Bem,
multiplique isso in�nitamente, essa é a diferença entre humanidade e
divindade; e aí você começa a entender a alegria de ser conhecido e amado por
Deus. Quão amado? Amado esse tanto. Amado a ponto de Ele enviar Cristo.
Todavia, vivemos à sombra do pecado, a roupa amortecedora de luz que
usamos sobre a glória divina com que fomos criados; por isso, o amor de Deus
nos parece menos intenso e poderoso que o amor de um homem ou uma
mulher. Mas essa sombra foi retirada por Cristo. Ela era o véu que escondia o
Santo dos Santos no templo, e Ele rasgou o véu. No Céu, nós, com olhos
puri�cados, conseguiremos suportar a visão da luz, e o véu será retirado por
completo. Por enquanto, conseguimos suportar apenas um pouco da luz da
tumba vazia. (Lembra-se da cena �nal do �lme A Paixão de Cristo, de Mel
Gibson?) Talvez seja por isso que Cristo não permitiu que fôssemos verdadeiras
testemunhas oculares do evento de sua ressurreição; esse evento nos teria
cegado.
4. As consequências morais da metafísica
As consequências dessa metafísica para a moralidade são importantes. Da
mesma forma que o amor “percorre todo o caminho para o alto” em direção à
Realidade suprema, a Deus, a moralidade também faz isso. A verdadeira
moralidade (diferente da moralidade legalista, pragmática ou política) é
fundamentada na metafísica. Pois a essência da moralidade, o amor ágape, é a
essência do Ser divino. Cristo revolucionou a metafísica ao revelar não só o
amor, mas a metafísica do amor, o fato de que o amor é a essência de Deus;
esse amor, em última instância absoluta, é “como ele é”.
Todo argumento consiste numa relação entre “A” e “B”: “B” decorre de
“A”; “C” decorre de “B”; “D” decorre de “C”; e assim por diante. Contudo, é
preciso haver alguma causa primeira que não é explicada por nenhuma outra,
apenas por si mesma. A respeito dessa última, devemos apenas dizer: “Porque é
assim.” Cristo revelou que o “é assim” é o amor. A equação suprema é “Deus é
amor” (1 João 4:8), e não “Ser é Ser”.
Essa é a verdade suprema a respeito do “é assim”, a verdade de que Deus
é amor; essa é outra razão por trás de outro paradoxo surpreendente do
cristianismo; o paradoxo de que o Deus absolutamente único é uma Trindade
de pessoas. A razão é que a coisa suprema, a unidade suprema, é a unidade de
amor, não de número nem de matéria. A matéria segue a lei da matéria, que
são as leis da matemática, as leis da quantidade. Matéria é aquilo que pode ser
quanti�cado. Mas a unidade matemática, aritmética, não é o tipo mais elevado
de unidade, o tipo mais uni�cado de unidade. Antes, a empatia pessoal e ativa
da identidade do amante com a identidade do amado é a unidade mais elevada.
E aqui, por unidade “mais elevada”, não me re�ro apenas à “melhor”, mas
também à “mais verdadeiramente uma.”
Observamos pálidas, mas de�nitivas, indicações disso até mesmo em
nossos débeis amores, se ao menos eles forem de�nitivos. O amante encontra
sua unidade, sua identidade, seu “eu”, seu ego, mais no ente amado que em si
mesmo.* A morte, sofrimento ou pecado do ente amado são muito mais
ameaçadores para a vida, a identidade e a alegria do amante que a dele mesmo
poderia ser. Conhecemos esse fato estranho só por experiência e só se formos
amantes. Assim, conhecemos por experiência a base para a Trindade.
Conhecemos essa base apenas praticando o amor, praticando o que a Trindadeé, e não por meio da teorização.
Contudo, a isso segue-se a teoria, como uma sombra, se a substância viva
vier primeiro. E a teoria é isto: que o amor, conforme já observamos, o mais
elevado e mais uni�cado tipo de unidade, requer mais de uma pessoa, a menos
que se trate apenas de amor egoísta, de autoerotismo. O amor requer o amante
e o ente amado.
E o mais elevado grau de amor entre o amante e o ente amado pode ser
tão real que é uma realidade em si mesma, uma terceira pessoa. Pois o amor é
produtivo e criativo. A sexualidade humana é uma pálida, mas santa, imagem
desse fato supremo. Por isso, o fugaz ato sexual é tão extasiante, e isso nos dois
sentidos da palavra: a alegria indizível e o sair de si mesmo de forma mística.
No nível meramente animal, o ato sexual supera qualquer coisa, pois ele é uma
imagem do êxtase in�nito e eterno da Trindade.
Se Deus fosse apenas uma pessoa, apenas um amante, em vez de ser o
amor completo, ele precisaria de outra pessoa para poder amar, e, assim, Deus
precisaria de suas criaturas. Ou ele não precisaria de outra pessoa, e então o
amor dele seria apenas o amor de si mesmo. Mesmo quando esse amor
“egoísta” não é competitivo nem pecaminoso, ele não pode produzir o êxtase e
a alegria, espiritual e sexual, que o amor abnegado pode produzir e produz.
Uma vez que Deus é completo, Ele é o amor completo; amante, ente
amado e amor, tudo em um: sujeito do amor, objeto do amor e o ato de amor.
Esses três aspectos, cada um deles, são tão reais em Deus que eles não são
apenas aspectos abstratos distinguidos pela mente, mas são verdadeiramente
pessoas reais, distintas e concretas.
Assim, a natureza da Realidade suprema é Trina: não só uma unidade
absoluta, mas também uma multiplicidade absoluta. A pluralidade e a unidade
“percorrem todo o caminho para o alto”. Esse fato também é revelado apenas
por Cristo. Quem não crê em Cristo, não crê na Trindade. O dado para o
segredo supremo da metafísica é Cristo. Ele é o maior metafísico do mundo.
Nota
* Fosse eu mulher, diria “sua” e em “si mesma”. Não direi “seu ou sua” nem “eles mesmos”, pois abusar da
gramática não é reparação para o pecado de insultar as avós.
5. A santidade como essência da ontologia
E como os santos são “pequenos Cristos”, Gabriel Marcel está certo quando
diz que “a santidade é a verdadeira introdução para a ontologia” (“On the
Ontological Mystery” [“Sobre o mistério ontológico”], em e Philosophy of
Existentialism [A �loso�a do existencialismo]).
Considero essa uma das mais enigmáticas e signi�cativas expressões já
ditas por algum �lósofo. Não é sentimentalismo, mas lógica perfeita. Pois:
1. A ontologia, ou metafísica, é a ciência do ser.
2. Nossa compreensão mais clara do ser, ou da realidade, deve vir do ser
mais real, não do menos real.
3. E o ser mais real, a origem, o padrão e o arquétipo de toda a realidade
é Deus.
4. Mas não conhecemos Deus diretamente, como um objeto, pois o
nome dele não é “Isto É” (objeto), mas “Eu Sou” (sujeito).
5. E nós também somos sujeitos “eus”, não-objetos, uma vez que fomos
criados à imagem dele.
6. Contudo, de alguma maneira podemos conhecer, e conhecemos, a nós
mesmos.
7. Portanto, o indivíduo, ou individualidade, é a chave, porta ou janela
para a metafísica.
8. No entanto, o indivíduo, como ser, é analógico. É uma questão de
grau. Nós somos mais ou menos autênticos, mais ou menos reais. Os
átomos não são reais como as almas, as almas humanas não são reais
como Deus.
9. As pessoas humanas mais reais são os santos. Eles são o que todos nós
fomos planejados para ser.
10. Além disso, o estudo da santidade é a chave para o estudo do ser.
Vejamos isso novamente, mas, desta vez, enfatizando o papel primordial
de Cristo.
1. A metafísica é a ciência do ser.
2. A natureza do ser é a natureza de Deus, pois todos os seres são
de�nidos por Deus, o Criador de todo ser. Por exemplo, todo ser é bom
porque Deus é bom; e todo ser ou é o Criador, que é supremamente
bom, ou a criatura criada pelo Criador e, portanto, também é boa.
3. Deus “fala”, ou “expressa”, ou “revela” a si mesmo em seu Logos, sua
palavra eterna, sua mente. Esse é o Cristo eterno. Jesus é seu nome
humano, Logos é seu nome eterno; Jesus e Logos são a mesma pessoa.
Deus Pai não retém nada ao expressar seu “Eu” completo em Deus Filho.
4. Deus Filho tornou-se homem e nos deu a revelação �nal, de�nitiva e
perfeita de Deus e, portanto, do Ser.
5. Os santos são pequenos Cristos. Vemos Cristo por intermédio dos
santos. Eles são as janelas que mostram mais a luz de Cristo, que é a luz
do Pai, que, por sua vez, é a luz do Ser.
6. Por isso, os santos são as janelas para o Ser, e, assim, o estudo da
santidade é a chave para a metafísica.
O pensamento de Marcel refuta nosso hábito tolo e nocivo de colocar a
metafísica e a santidade em compartimentos muito separados. De um lado,
supõe-se que a metafísica é objetiva e impessoal. Contudo, o objeto último, o
ser último, a realidade última da metafísica é uma Pessoa. O nome dela é “Eu
Sou”. De outro lado, supõe-se que a santidade é subjetiva e psicológica. No
entanto, o ponto último de ser santo é ser real, ser semelhante a Deus, a �m de
nos conformarmos à natureza última da realidade objetiva e, assim, revelá-la.
Outra forma de observar a conexão entre metafísica e santidade é
lembrar dois dos nomes de Deus, o Deus único: ele é Amor (ágape) e também
é o Ser necessário, a Imutável forma como as coisas são, o Real �nal, a
Realidade suprema. Assim, a Realidade suprema é o amor ágape. Portanto, o
objeto da metafísica é a santidade.
Vejamos ainda outra fórmula: para ter êxito na metafísica precisamos
conhecer o real �nal; para conhecer o real �nal temos de amar; amar é ser
santo; portanto, ter êxito na metafísica é ser santo.
6. A metafísica de “Eu Sou”
Os judeus, até a Encarnação, eram proibidos de ter alguma imagem ou
pintura de Deus. Pois a essência de Deus, revelada no nome que Ele forneceu a
Moisés na sarça ardente (Êxodo 3:14), é “Eu Sou”. Deus é o genuíno sujeito, e
não o objeto. Não existe uma foto de Deus porque é Ele que está por trás da
câmera.
Quando a câmera fotográ�ca era uma novidade, meu avô era o único
que tirava fotos da família. O resto da família sempre aparecia nas fotogra�as,
mas ele não. Ele tinha a única câmera fotográ�ca da família, e cabia entregá-la
a outro membro da família para que pudesse ter uma fotogra�a de si mesmo.
Foi isso que Deus fez na Encarnação. O Ser tornou-se um ser, o Sujeito tornou-
se um objeto, Deus tornou-se homem, Eu Sou tornou-se um Ele.
No entanto, Ele ainda é Eu Sou. Observe como, agora, Ele interage com
suas criaturas, e você detectará o segredo metafísico do nome “Eu Sou”.
“Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se.”
Disseram-lhe os judeus: “Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?”
Respondeu Jesus: “Eu lhes a�rmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!”
Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo (João 8:56-59).
Uma das evidências mais impressionantes a respeito de Jesus — Eu Sou,
o sujeito, não o objeto — é como Ele sempre manifesta sua identidade na
interação com suas criaturas. Em todos os seus encontros com as pessoas, Ele se
torna, no tempo, o que é na eternidade. Ele é o primeiro e, por isso, não pode
ser o segundo. Ele é o sujeito e, por isso, não pode ser o objeto.
Ele não pode ser objeto da manipulação nem do controle humano a
menos que consinta. Claro que esse consentimento culmina em sua
cruci�cação. Contudo, lembre-se de que Ele a�rmou: “Ninguém a tira de
mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade” (João 10:18).
Ele também não pode ser objeto da compreensão e do entendimento
humanos. Pois “a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam”
(João 1:5; ARC). Quando Ele é questionado por seus inimigos, quando eles
tentam transformá-lo em algo e pendurá-lo na parede, quando tentam
transformá-lo em objeto do controle e da compreensão deles, Jesus não só
escapa, como também inverte a relaçãopara que Ele se torne o questionador; e
eles, os questionados. (Jesus entende perfeitamente o arquétipo do gracejo
judaico: “Diga-me, por que um rabino sempre responde a uma pergunta com
outra pergunta?”; resposta: “Por que um rabino não deveria responder a uma
pergunta com outra?”)
1. “Devemos apedrejar a adúltera ou não?”
(Se apedrejar, desa�a a Roma; se não, a Moisés.)
“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a
pedra” (João 8:7).
2. “É certo pagar imposto a César ou não?”
(César é o rei de vocês ou não? São esses mesmos homens que logo
gritariam: “Não temos rei, senão César!”)
“Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (em vez
de vice-versa, que era o que eles estavam fazendo) (Lucas 20:25).
3. “Com que autoridade estás fazendo estas coisas?”
“De onde era o batismo de João?”
“Não sabemos.”
“Tampouco lhes direi com que autoridade estou fazendo estas coisas”
(Mateus 21:25-27).
4. “‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua
alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’, e ‘Ame o seu
próximo como a si mesmo’ [...] E quem é o meu próximo?”
Jesus, depois de contar a parábola do bom samaritano, disse: “Vá e
faça o mesmo.” (Responda à pergunta sobre quem é o próximo sendo o
próximo — como eu estou fazendo.) (Lucas 10:37)
5. “Senhor, serão poucos os salvos?”
“Esforcem-se para entrar” (Lucas 13:23,24).
Todos esses exemplos têm em comum o fato de que o juiz e o julgado
trocam de lugar. Cristo, o tigre, abre as barras da jaula que os homens tentam
colocar em torno dele e prende seus pretensos captores na jaula. Ele é o
pescador, o Rei pescador, e nós somos o peixe, não vice-versa. Esse pescador
não pode ser pego como um peixe. Ele não se amolda a nenhuma rede nem
morde nenhuma isca, nem mesmo a da tentação do diabo no deserto. Não há
lugar na boca dele para o anzol se prender, pois sua boca é fogo.
O evangelho de João deixa esse fenômeno especialmente claro; já logo no
início, com as próprias primeiras palavras que João registra como saídas dos
lábios de Jesus: “O que vocês querem?” (João 1:38) A pergunta pode parecer
fortuita e comum, mas é profunda.
É profunda uma vez que é uma sondagem que chega ao âmago do nosso
coração. Ela quer dizer: “O que você mais ama?” E isso quer dizer: “Quem é
você?” Pois somos o que amamos. Transformamo-nos naquilo que amamos.
Nós nos “identi�camos com” o que amamos. Encontramos nossa identidade
naquilo que amamos. Santo Agostinho sabia bem disso; é por isso que
escreveu: Amor meus, pondus meum — “meu amor é minha gravidade”, meu
sentido, meu destino. Transformamo-nos naquilo que mais amamos, naquilo
em que pomos nosso coração. Nossa hereditariedade nos faz o que somos, mas
nossos corações nos fazem quem somos.
Jesus diz a mesma coisa: “Peçam, e lhes será dado; busquem, e
encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta.” (Mateus 7:7) Em outras
palavras, o que você ama você consegue. Por isso, tenha cuidado com o que
você ama.
Por essa razão, o amor é uma coisa muito perigosa. Ele muda você. Ele
muda sua vida. Ele é tão objetivamente real como uma grande pedra quente
atirada no seu rosto. Não é apenas um pensamento ou sentimento interior, isso
realmente acontece. Nós nos unimos ao que amamos. Tornamo-nos o que
amamos. Quanto mais você amar chocolate, mais chocolate você se torna.
Quanto mais amar o canibalismo, mais canibal se torna. Quanto mais amar a
Cristo, mais semelhante a Ele se torna. Nada é mais assustador que isso.
Lembre-se de como o mundo �cou com medo de Cristo: ele o cruci�cou.
Você quer isso? Jesus pergunta-lhes: “O que vocês querem?”, da mesma
forma pessoal e insistente que perguntou a seus primeiros discípulos. Pensamos
que estamos em uma busca por Ele, mas Ele questiona nossa busca, questiona
nosso coração. Ele está em uma busca por nós. Ele é o questionador, e temos de
responder a ele, e não vice-versa. Foi exata-mente isso que Jó descobriu quando
se encontrou com Deus. Foi isto também que Viktor Frankl observou alguns
prisioneiros de Auschwitz descobrirem: que o ultraje que acontecera com eles,
o sofrimento imenso demais para a mente apreender, a coisa terrível cujo
sentido questionavam (“Por que devo sofrer tanto?”); isso não era a resposta,
mas a pergunta; apenas podiam descobrir a resposta para suas perguntas por
meio da ação deles mesmos; eles eram a resposta, e a vida era a pergunta, e não
vice-versa. E isso era verdade quer eles acreditassem que havia um Deus por
trás da “vida”, usando-a como sua máscara, quer achassem que era apenas a
“vida” fazendo a pergunta a eles.
Jesus, nestas quatro palavrinhas: “O que vocês querem?”, não faz apenas
uma pergunta, mas muitas. Por exemplo, Ele está fazendo a pergunta que a
maioria dos judeus da época Dele respondia de forma errônea, da mesma
forma que muitos gentios o fazem hoje: vocês querem um Messias político?
Um sentido para seus objetivos políticos, sejam quais forem, de direita ou
esquerda, socialista ou libertário, monarquista ou marxista, herodiano ou
zelote, colaboracionista ou rebelde? Nessa pergunta, Jesus deu a resposta para a
pergunta deles (“O Senhor é o nosso Messias?”). Ele está dizendo: “Se vocês
querem um meio sobrenatural para seu �m natural, não sou seu Messias. Não
venham a mim.” (Provavelmente foi por isso que Judas o traiu. A política
sempre traiu a religião, da Inquisição à Al Qaeda.)
Com essa pergunta, Ele também se dirigia a um grupo menor, os
eclesiásticos apolíticos que o viam como um rabino em vez de como um
rebelde, e Ele estava perguntando: “Vocês querem um mestre que os afague, e
sirva de instrumento para desígnios escusos, e os proteja, e reforce a autoestima
de vocês, a satisfação com vocês mesmos e o orgulho digno de vocês? Um
contraste com o criador de problemas, João, o Batista? Alguém que vai
condenar e ofender seus inimigos, os romanos, mas não vocês? Se é isso que
vocês querem, não venham a mim. Não sou seu Messias.”
E Ele também se dirige a um grupo de pessoas ainda menor, mas
relevante, seus contemporâneos estudiosos e �lósofos e seus seguidores ao
longo dos séculos. Ele lhes pergunta: “Vocês querem um �lósofo racional que
não os surpreenda nem confunda? O tipo de mestre que os deixa seguros ao
contar a vocês o que já sabem, em vez de deixá-los inseguros por desa�á-los a ir
além do limite da segurança do conhecimento humano, até mesmo do
conhecimento mais profundo, a mergulhar nas ondas terríveis onde vocês
encontram de fato aquele que é todo santo e em cuja presença vocês caem ‘aos
seus pés como morto’ (Apocalipse 1:17)? Vocês preferem conhecer ideias
satisfatoriamente inteligentes em vez de Deus? Ou, se vocês se encontrarem
com Deus, preferem encontrá-lo como um tio, em vez de como um terremoto
(para usar as palavras memoráveis do rabino Abraham Heschel)? Se é isso que
vocês querem, não venham a mim. Não sou seu Messias”.
Nossa pergunta fundamental para Jesus — “Quem é você?” —
ricocheteia nele e bate em cheio em nosso rosto. Ele não responde a nossa
pergunta: “Quem é você?”, até que respondamos à pergunta dele: “Quem são
vocês? O que vocês querem?” Vamos a Ele com a esperança de que seja a
resposta para nossa pergunta e O encontramos nos perguntando se somos a
pergunta para a resposta dele.
Esse não é um artifício, como um enigma, um método opcional,
escolhido, como o método socrático. É uma inevitabilidade ontológica por
causa de quem Ele é. Ele é Deus. Deus não é nossa resposta na forma de
homem, nosso servo, o meio para o nosso �m. Pensar isso é antropomor�smo
pagão. Não, Deus é o �m. Ele é o Absoluto; Ele não é relativo a nós, mas nós a
Ele. Ele é o Primeiro, o Criador, o Iniciador. Ele é o cortejador, e nós, os
cortejados; Ele é o fecundador; e nós, os fecundados; Ele é o noivo; e nós, a
noiva. (A imagem de cortejar talvez seja relativa do ponto de vista social, mas a
da fecundação não o é. Por isso, Deus, na Bíblia, sempre é “Ele” e nunca “ela”.
Pensar o contrário disso seria cometer um erro metafísico, um solecismo contra
a gramática do ser, um pecado da mentecontra a natureza imutável da
realidade suprema.)
Esse é o Deus de Abraão, o Deus verdadeiro. Os �lhos muçulmanos de
Abraão jamais sucumbiram à tentação da psicologia pop, do relativismo, do
subjetivismo, do humanismo secular ou do feminismo “politicamente correto”,
como muitos judeus e cristãos norte-americanos o �zeram. (Eles têm tentações
diferentes, como o fascismo islâmico. Nenhum de nós está imune às correntes
de pensamento.)
Nos quatro Evangelhos, nenhum dos encontros entre Cristo e nós é
estruturado pelo fato de que Deus é o grande Eu Sou; o sujeito, não o objeto;
aquele que questiona, não o que responde; o juiz, não o réu; quem inicia, não
quem reage. Esse é um dos indícios, uma das pegadas, por assim dizer, do
verdadeiro Deus; e quando judeus ou muçulmanos devotos leem os
Evangelhos, eles conseguem encontrar esse indício, fundamentados em suas
próprias Escrituras. Cristo fala dessa possibilidade ao declarar: “Todos os que
ouvem o Pai e dele aprendem, vêm a mim” (João 6:45); e: “Se vocês cressem
em Moisés, creriam em mim” (João 5:46).
Essa possibilidade ou sinal — o sinal de que a divindade de Cristo é
encontrada no fato de que Ele sempre é o provocador, não o provocado — é
exatamente o que devemos esperar se duas premissas forem verdadeiras. A
primeira premissa é a essência do Cristianismo: que Cristo é o Filho de Deus.
A segunda é que o princípio “tal pai, tal �lho” é uma verdade não só no sentido
literal e biológico, mas também analógico e teológico, uma vez que a realidade
biológica deriva da realidade teológica da mesma forma que a criatura deriva
do Criador. Portanto, conhecer o Pai é realmente conhecer o Filho, conhecer
um é conhecer o outro.
Imagine um muçulmano devoto. O muçulmano devoto é simplesmente
alguém que é cheio com o verdadeiro “islamismo”, ou submisso e entregue ao
único Deus, a quem os muçulmano chamam de Alá (o sentido simples e literal
do termo “Alá” é “o único Deus”). O muçulmano tem profunda reverência
pelo profeta Maomé exatamente porque vê nele o exemplo perfeito de
“islamismo” para Alá. Quando Alá ordena, Maomé obedece. Quando Alá diz:
“Narre!”; Maomé narra.
Agora, imagine esse muçulmano lendo os evangelhos pela primeira vez.
Ele �caria impressionado com o fato de que Jesus, como Maomé, é totalmente
obediente ao Pai. (“Pois desci dos céus, não para fazer a minha vontade, mas
para fazer a vontade daquele que me enviou. [...] O meu ensinamento não vem
de mim mesmo. Vem daquele que me enviou.”) Esse fato reforçaria a crença
muçulmana de que Jesus é um grande profeta. Todavia, a seguir, surge um
enigma: Jesus, ao contrário de Maomé, sempre é o juiz, nunca o julgado. O
próprio Corão classi�ca Maomé como um pecador, ao qual Alá ordena que se
arrependa de seus pecados. No entanto, Jesus indaga: “Qual de vocês pode me
acusar de algum pecado?” E o que faria esse muçulmano com o fato de que
depois de esbravejar contra a “inadequada” e blasfema noção cristã de que Alá
teria um �lho, Maomé, de forma repentina e surpreendente, declara: “Mas
saiba que se Alá tivesse um Filho, eu seria o primeiro a adorá-lo”?
Há incerteza, como no Salmo 139:19-24, de Davi?
A pegada divina que o muçulmano pode detectar nas palavras de Jesus
registradas nos evangelhos não é o mero fato de que Ele a�rma ser divino.
Homens loucos já a�rmaram isso, e os muçulmanos declaram aqui que loucos
eram os cristãos que escreveram os Evangelhos, não Cristo. A pegada divina de
que falo é o estilo das a�rmações de Jesus. Sempre que lhe é feita uma pergunta,
Ele reverte a situação de modo que o questionador se torne o questionado.
Sempre que lhe é feita uma pergunta abstrata e impessoal, Ele fornece uma
resposta concreta e pessoal. Quando lhe perguntam quem a�rma ser, Ele não
fornece um nome discutível, como “Zeus”, mas o nome santo e único de seu
Pai que declara a presença real dele: “Eu Sou.”
Imagine os maiores �lósofos do mundo promovendo uma conferência a
respeito da existência de Deus: ateístas versus teístas. Depois da apresentação de
todos os argumentos em prol do ateísmo, o caso em prol do teísmo é
apresentado por um visitante: o próprio Deus que aparece na conferência não
como um �lósofo defendendo uma teoria, mas como uma constatação de fato,
e ele chega silenciosamente por trás dos �lósofos e faz: “Buu!”
Esse é o grande e santo gracejo de São Tomás de Aquino em um de seus
textos mais famosos, o artigo sobre a existência de Deus que faz parte da obra
Suma Teológica. (Aquino tem o mesmo tipo de senso de humor de Jesus: é o
extremo oposto da piada, é a ironia que reside na própria essência do que ele
fala.) Em cada artigo da Suma, Tomás de Aquino, depois de ouvir as objeções à
sua tese, defende-a em dois estágios: primeiro, na seção que começa com a
fórmula “Ao contrário”, seguida de uma citação de autoridade; e, segundo, na
seção que inicia com a fórmula “Respondo que”, seguida de um argumento
original. Qual citação de autoridade sobre a existência de Deus que Aquinate
usa? Nenhuma citação a respeito de Deus, mas uma citação de Deus: “Ao
contrário, Deus mesmo disse: ‘Eu Sou’.” Deus entra às escondidas no debate da
conferência e se apresenta como prova. É como o “alôôôôô” que a adolescente
dirige aos pais quando eles falam dela na sua presença, como se ela não
estivesse ali. Jesus usou esse tipo de humor em João 8:58. A resposta foram
pedras atiradas nele. Também é o mesmo tipo de humor que Sócrates usou na
Apologia quando, julgado por ateísmo, levou à corte, como sua testemunha, a
palavra de um deus do oráculo dél�co. A resposta que Sócrates teve foi a cicuta.
As pessoas não gostam que suas vítimas inocentes riam delas de forma sutil e
amistosa.
Essa situação continuará até o �m dos tempos, já que Jesus durará até o
�m dos tempos, sabendo-se que Ele é “o mesmo, ontem, hoje e para sempre”
(Hebreus 13:8). A Encarnação teve um começo, mas não tem um �m. Ela
divide o tempo em dois para sempre, cortando o nó górdio da história. Abraão
olhava em direção ao início desse evento, enquanto nós o olhamos em
retrospectiva; mas Deus não olha para adiante nem para trás, já que Ele não é
um mero personagem em sua peça, mas o próprio dramaturgo. Para Deus, é
uma verdade eterna o fato de que a carne, o sangue, o corpo e a alma humanos
se ligam em uma união hipostática a seu Filho, a Palavra divina de Deus.
Conforme a�rma o Credo de Atanásio, a Encarnação não aconteceu pelo
rebaixamento da divindade em humanidade, como se a divindade pudesse
sofrer mudança, mas pela elevação da humanidade à divindade. Nós sofremos
mudança, nós somos potencialmente isso ou aquilo, mas Deus é
completamente presente. Nós somos potencialmente passíveis de sermos feitos
divinos, mas Deus não é potencialmente passível de se tornar humano. Deus é
completamente presente. (Esse é o primeiro sentido de “agir”.) Por essa razão,
Ele age (esse é o segundo sentido de “agir”), enquanto nós também sofremos a
ação dele. Não se pode agir sobre a natureza divina. Ela não pode ser mudada.
Ela não é passiva nem potencial. Apenas quando Deus assume a natureza
humana nós podemos agir sobre Ele. E então agimos a ponto de rejeitá-lo, de
coroá-lo com espinhos e de pregá-lo.
Na Encarnação, o “Eu Sou” tornou-se o Ele “foi concebido pelo Espírito
Santo e nasceu da Virgem Maria”. A seguir, no Calvário, o Eu que se tornou
Ele se tornou uma coisa: o Deus que se fez homem se tornou um cadáver.
Contudo, depois, houve (ou, antes, há) “o resto da história”: a
ressurreição. O ponto surpreendente de toda essa história para a metafísica é
que essa história toda é a história do Ser.
II
A EPISTEMOLOGIA DE JESUS
A primeira grande pergunta �losó�ca é: o que é? A segunda, que segue
naturalmente a primeira, é: como sabemos o que é? A primeira pergunta refere-
se ao ser; e a segunda, à verdade.
A verdade diz respeito ao ser, pois “verdade” quer dizer “a verdade sobre
o ser”. “A laranja é redonda” é verdade apenas porque a laranja é redonda.
A resposta de Jesus para a primeira pergunta, a respeito do ser, foi Ele
mesmo. A resposta não era apontar paraalgo, mas ser, ser “Eu Sou”. Por isso, a
resposta dele para a segunda pergunta, a respeito da verdade, também não
aponta para nenhuma outra coisa como a verdade, mas simplesmente para o
fato de Ele mesmo ser a verdade: “Eu sou [...] a verdade” (João 14:6).
Daí a suprema ironia de Pilatos dirigir cinicamente a grande pergunta
dos �lósofos, “O que é verdade?”, à própria verdade eterna, perfeita, absoluta,
divina, encarnada, concreta e pessoal, a Verdade em pé diante dele, condenada.
O ceticismo de Pilatos reclama implicitamente: “Como se supõe que eu
conheça o grande fogo-fátuo �losó�co, a ‘verdade’? Posso vê-la? Posso tocá-la?”
E Jesus responde: “Sim, pode. Na verdade, você pode cruci�cá-la.”
Contudo, quando o homem cruci�ca a Verdade, a verdade cruci�ca o
homem. Justamente no ato por meio do qual Pilatos condena a Verdade
encarnada, a verdade não-encarnada condena Pilatos.
Jesus não responde a Pilatos com palavras, porque a Verdade encarnada é
a luz, não um objeto iluminado. Jesus não está em julgamento, Pilatos está.
Quando justapomos Jesus com essa segunda grande pergunta �losó�ca, a
pergunta epistemológica, observamos a repetição do mesmo padrão que vimos
com a primeira pergunta: da mesma forma como Jesus não é um metafísico,
mas algo mais metafísico que um metafísico — Ele é o próprio Ser, objeto de
toda a busca da metafísica —, Ele não é apenas um epistemólogo, mas a
verdade que toda a epistemologia busca. Pois Jesus não é um �lósofo
tradicional, um amante da sabedoria, pelo simples fato de que Ele é a
sabedoria. Ele é o amado por quem “o amor pela sabedoria” está apaixonado. O
título deste livro é apropriado porque Jesus é mais �losó�co que qualquer
�lósofo, não menos.
Ele é a resposta para a grande e constante busca de Jó:
Existem minas de prata
e locais onde se re�na ouro.
O ferro é extraído da terra,
e do minério se funde o cobre.
O homem dá �m à escuridão
e vasculha os recônditos mais remotos em busca de minério, nas mais escuras trevas.
Longe das moradias ele cava um poço,
em local esquecido pelos pés dos homens;
longe de todos, ele se pendura e balança. [...]
As mãos dos homens atacam a dura rocha
e transtornam as raízes das montanhas.
Fazem túneis através da rocha,
e os seus olhos enxergam todos os tesouros dali.
Eles vasculham as nascentes dos rios
e trazem à luz coisas ocultas.
Onde, porém, se poderá achar a sabedoria?
Onde habita o entendimento?
O homem não percebe o valor da sabedoria;
ela não se encontra na terra dos viventes.
O abismo diz: “Em mim não está”;
o mar diz: “Não está comigo”.
Não pode ser comprada, mesmo com o ouro mais puro,
nem se pode pesar o seu preço em prata. [...]
De onde vem, então, a sabedoria?
Onde habita o entendimento?
Escondida está dos olhos de toda criatura viva,
até das aves dos céus. [...]
Deus conhece o caminho;
só Ele sabe onde ela habita (Jó 28).
Que lugar é esse? Jesus. Ele é o lugar em que habita a sabedoria. Só Jesus
revela Deus e o homem para o homem, pois só Ele é perfeitamente Deus e
perfeitamente homem. Conforme diz Pascal:
Nós não só conhecemos Deus por intermédio de Jesus Cristo, mas também só nos
conhecemos por intermédio dele; só conhecemos a vida e a morte por meio de Jesus
Cristo. À parte de Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido de nossa vida nem
de nossa morte, de Deus nem de nós mesmos. (Pensamentos, p. 417)
O que devemos saber? Apenas duas coisas: quem somos e quem é Deus.
Pois essas são as duas únicas pessoas de quem jamais conseguiremos fugir por
toda a eternidade. E saber quem somos envolve conhecer o sentido da nossa
vida, e isso envolve conhecer o sentido da morte, pois ela limita a vida da
mesma forma que a moldura limita o quadro. A a�rmação de Pascal (que é a
a�rmação do próprio Jesus e de todos seus discípulos que escreveram o Novo
Testamento) é que Jesus é a resposta, a verdadeira, e �nal, e suprema, e única
resposta adequada para as quatro questões de Pascal: Deus, “eu”, vida e morte.
A primeira dessas quatro questões é Deus. Ele é a primeira questão
porque Deus é o primeiro em tudo. Temos de começar com o Princípio. O que
mais precisamos conhecer é o Ser mais necessário.
Mas isso é impossível porque Ele “habita em luz inacessível” (terceiro
cânon da missa). Como o Sujeito eterno, Eu Sou, pode tornar-se objeto do
conhecimento humano? Como pode o mero homem mortal, esse tolo �nito,
caído e falível, conhecer Deus? É muito mais fácil uma ameba descerebrada
conhecer o homem.
A resposta de Cristo vem em duas partes: primeiro a má notícia; depois,
a boa.
A má notícia (que já conhecemos se formos sábios como Jó) é que não
podemos conhecê-lo. “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18). Mas, logo a
seguir, ele nos dá a boa notícia: “O Deus Unigênito, que está junto do Pai, o
tornou conhecido” (João 1:18). A busca universal do homem por Deus, como
a torre de Babel, é um fracasso universal. A �loso�a, em última instância, é o
clássico gracejo do fazendeiro de Vermont: “É, daqui não dá para chegar lá.”
Contudo, a busca de Deus pelo homem é um sucesso, e o nome desse sucesso é
Jesus.
Não podemos conhecer Deus, a Verdade suprema, escalando alguma
torre humana, quer construída com palavras quer com tijolos. Só podemos
conhecer Deus se Ele descer até nós, se Ele descer a escada de Jacó. Jesus é a
escada de Jacó (Ele mesmo diz isso, compare João 1:51 com Gênesis 28:12); e
vemos essa escada de cabeça para baixo, pois ela realmente está apoiada no
Céu, não na terra, como a torre de Babel. A fundação dela não pode ruir como
a de Babel, pois não é constituída de pensamento e de palavras (logoi)
humanos, mas de pensamento e palavra divinos (o Logos, João 1:1).
É totalmente razoável o fato de que o raciocínio humano não consiga
encontrar Deus. Para provar isso, precisamos de um princípio básico da
epistemologia, o qual descobriremos observando os vários graus do
conhecimento humano. Pois os graus de conhecimento correspondem aos
graus de realidade, uma vez que o conhecimento corresponde à realidade. (Na
verdade, “conhecimento” quer dizer “correspondência com a realidade”.)
Comecemos com a suposição de que queremos conhecer algo muito
inferior a nós mesmos: alguma abstração, ideia, regra ou número imaginado
pelo homem. Nesse caso, toda a atividade vem de nós. Pois uma ideia abstrata
não pode fazer nada por si mesma; toda a vida dela origina-se na nossa.
A seguir, suponha que você queira conhecer algo inferior a você, algo que
não é vivo, e cuja realidade independe de você, como uma pedra. A realidade
dela independe da sua mente, mas toda atividade dela (exceto o próprio ato de
existir e sua natureza) vem de você. Você tem de ir até ela e estudá-la. Ela não
faz nada, �ca ali passiva e se deixa estudar.
Depois, suponha que você queira conhecer algo vivo, uma planta. Ela
tem alguma atividade própria. Ela muda de semente para árvore, de viva para
morta, de saudável para doente. Portanto, a planta é um pouco mais difícil de
conhecer, em especial, de prever. Ela é viva, e nós falamos “do mistério da vida”.
Não falamos sobre o “mistério das pedras”. Mas a planta ainda é razoavelmente
fácil de conhecer e, em essência, é passiva.
A seguir, suponha que você queira conhecer um animal. Isso é ainda
mais difícil, pois o animal tem um grau de realidade muito mais elevado e rico.
Ele é ativo. Ele, ao contrário da planta, pode fugir e esconder-se de você. É
preciso conquistar a con�ança dele. Vocês compartilham uma vida mental.
Contudo, você ainda é o iniciador. Não vemos cobaias fazendo experimentos
de laboratório em homens.
Bem, você sobe mais um degrau, quando o ser que você quer conhecer é
outro ser humano, um igual, a atividade é dividida igualmente, ou quase, entre
vocês. (Você faz a maior parte da atividade quando dialoga com criancinhas,
enquanto a pessoa mais velha e mais sábia faz a maior parte da atividade ao
dialogar com você. Essa é a razão pela qual devemos dedicar a maior parte do
tempo de oração ouvindo.)
Depois, suponha que você queira conhecer um anjo. Se o anjo não se
revelarpor si mesmo, saberemos muito pouco, quase nada a respeito dele.
Por �m, suponha que você queira conhecer Deus. Aqui toda atividade
tem de ter origem nele. Se Ele não tomar a iniciativa, simplesmente não
podemos conhecê-lo.
Por isso, para haver o conhecimento de Deus é preciso ocorrer a
revelação divina.
Mas existe revelação divina, Deus revelou-se e de muitas formas:
primeiro, ao criar o universo, mas, por último e acima de tudo, por intermédio
de Cristo, a revelação �nal e de�nitiva de Deus. Não haverá mais nenhuma
revelação de�nitiva até o �m dos tempos. “Pois foi do agrado de Deus que nele
habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19). Esse versículo informa-nos que
Cristo é tudo de Deus que podemos conhecer, pois Ele é tudo de Deus que
existe. Não há mais em Deus do que em Cristo. O Pai está todo no Filho, não
reteve nada. Cristo é a suprema revelação epistemológica da suprema realidade
metafísica. Cristo é a chave para a epistemologia.
Observe o desdobramento dessa realidade nos Evangelhos. Note como
Cristo trabalha, como Ele faz muito mais que apenas conhecer a verdade e
ensiná-la. Observe como Ele é a verdade, não como na equação dois mais dois
são quatro, mas como as abelhas são em uma colmeia. (Ser abelha é o que as
abelhas fazem. Existir é um ato.) Observe como a epistemologia ganha vida
porque a verdade está viva e ativa e, por isso, pode nos libertar. Observe como
“a verdade os libertará”:
Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em
adultério. Fizeram-na �car em pé diante de todos e disseram a Jesus: “Mestre, esta
mulher foi surpreendida em ato de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar
tais mulheres. E o senhor, que diz?” Eles estavam usando essa pergunta como
armadilha, a �m de terem uma base para acusá-lo. Mas Jesus inclinou-se e começou
a escrever no chão com o dedo. Visto que continuavam a interrogá-lo, Ele se
levantou e lhes disse: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe
atirar uma pedra.” Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão. Os que
o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando pelos mais velhos. Jesus �cou
só, com a mulher em pé diante dele. Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe:
“Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?” “Ninguém, Senhor”, disse ela.
Declarou Jesus: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de
pecado” (João 8:3-11).
Os mestres da lei e os fariseus exigem que Jesus responda a essa pergunta,
eles estão certos de que o pegarão em uma armadilha: o que Ele diria que devia
ser feito a essa mulher pega em adultério? A Lei de Moisés, ou seja, a Lei de
Deus, ordenava que ela fosse apedrejada. (Observe que a Lei não permite ou
recomenda essa punição, mas ordena.) Todavia, a lei romana proibia que os
judeus exercessem o direito de aplicar a pena capital independentemente do
crime. (Note que essa lei não desencorajava a aplicação dessa punição pelos
judeus, em vez de pelos romanos, mas proibia.) Assim, se Jesus dissesse: “Não,
não apedrejem a mulher”, seria desobediência a Moisés; portanto, uma heresia.
Se Ele dissesse: “Sim, apedrejem a mulher”, desobedeceria a Roma e seria
considerado traidor. Se ele não dissesse nada, desobedeceria à lei da
honestidade e seria covarde.
Nenhuma sabedoria humana escaparia dessa armadilha perfeita. Apenas
três respostas são logicamente possíveis (sim, não e o silêncio), e todas as três
condenariam Jesus: a lei mosaica o condenaria se dissesse não; a lei romana, se
dissesse sim; e a lei natural, se não dissesse nada.
Ah, mas lembre-se de quem Ele é. Ele é Eu Sou. Ele é aquele que falou a
Moisés da sarça ardente, quando este tentou sujeitá-lo ao exigir que dissesse seu
nome. Assim, Ele sujeitou Moisés ao fornecer, como seu nome, o nome que
nenhum judeu devoto ousaria sequer pronunciar dali em diante. Pois
pronunciar “Eu Sou” seria o mesmo que a�rmar possuir esse nome, a�rmar ser
esse “Eu”. Esse nome só pode ser dito na primeira pessoa. Qualquer outro
nome pode ser dito na segunda pessoa, àquela a quem se dirige (“você”), ou na
terceira pessoa, àquela a quem se representa ou refere (“ele” ou “ela”).
Bem, 1.500 anos depois, Jesus interpreta a mesma reversão de papel. Ele
interpretou esse papel na sarça ardente ao transformar sua resposta em
pergunta. (Lembre-se, Ele é um rabino. “Por que um rabino sempre responde a
uma pergunta com outra pergunta?”) Ele, de fato, diz: “Se algum de vocês
estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.” E eles, como Jó,
percebem de imediato que o tempo todo apenas pareciam ser os
questionadores, mestres, juízes, examinadores, controladores, ativos, sábios
que, como os cientistas, examinavam uma nova espécie de animal. Na verdade,
eles eram, e sempre foram, os questionados, os alunos, os julgados, os testados,
os controlados, aqueles que sofrem a ação, os conhecidos, não os conhecedores.
Eles sempre tiveram esse papel porque eles são criaturas. Deus, em todos os
momentos da vida deles, sempre os testou, não vice-versa. Aqui, Cristo apenas
levantou por um momento a cortina da ignorância humana para que, pela
primeira vez, todos pudessem entender de forma clara o que estivera
acontecendo o tempo todo.
Nenhuma técnica pode realizar essa guinada epistemológica radical.
Apenas a presença real de Cristo pode. Por isso, nenhum homem consegue
imitar com sucesso os métodos dele. Por isso, ninguém consegue ser bem-
sucedido em imaginá-lo como personagem de �cção. Nunca foi escrita uma
�cção convincente sobre o homem mais famoso da história. Contudo, já se
escreveu muita �cção convincente, e ainda se escreverá muita, sobre a maioria
dos outros homens famosos da história. Eis um forte argumento, para o
Cristianismo, em favor da verdade dos Evangelhos: não é possível que Cristo
seja uma �cção, pois ninguém no mundo até hoje, depois de 2.000 anos que o
conhecemos, escreveu uma �cção convincente a respeito dele; se ninguém
consegue imaginar, de forma convincente, “o que Jesus faria”, enquanto
consegue calcular o que Alexandre, Buda, Sto. Agostinho, Lincoln ou
Churchill fariam, como alguns pescadores judeus de 2.000 anos atrás poderiam
escrever essa �cção incrivelmente original, de criatividade sem precedentes,
baseados em nada? Esse personagem não poderia ser inventado porque Ele
continua não podendo ser inventado. Ele só pode ser real.
A forma como Jesus reverte o papel entre questionador e questionado
não pode ser posta em nenhuma fórmula, pois todas as fórmulas são universais
e, portanto, repetíveis; mas Cristo é o Filho unigênito de Deus. A forma como
Jesus reverte o papel entre questionador e questionado também não pode ser
posta em nenhuma fórmula porque todas as fórmulas são objetivas e
impessoais, mas Cristo é o Sujeito pessoal, o divino Eu Sou. Ele é bem-
sucedido de forma reiterada nas “armadilhas” preparadas simplesmente sendo
Ele mesmo, apenas por essa ser a natureza dele, da mesma forma como o sol é
bem-sucedido em sua “armadilha” de brilhar simplesmente porque brilhar é sua
natureza. A luz do sol ilumina naturalmente, sem esforço, todas as coisas, de
todos os tamanhos, formas e cores. Isso é o que a luz faz porque isso é o que a
luz é. E Cristo continua a reverter o papel porque Eu Sou é o que Ele é.
Os Evangelhos mostram várias vezes essa inversão de papéis. Nós
aprendemos pela repetição. Os sábios precisam de poucos exemplos porque são
rápidos em entender a verdade universal no exemplo particular. Quanto mais
sábios somos, de menos exemplos precisamos. Se fôssemos realmente sábios, se
tivéssemos visão espiritual de raio X, descobriríamos que Jesus é divino apenas
com essa passagem do Evangelho de João. (Na verdade, de acordo com seu
livro autobiográ�co Ben Israel [Filho de Israel], aconteceu exatamente isso com
Arthur Katz.)
Jesus, após livrar-se da condenação dos mestres da lei e dos fariseus,
liberta a mulher acusada: “Eu também não a condeno.” Ele não dá
continuidade à acusação dos mestres da lei e dos fariseus contra ela; ao
contrário, impede-a e, em vez de condená-la,liberta-a. Eles queriam prendê-lo
e também a ela, na armadilha lógica que armaram; mas, em vez disso, Ele a
liberta e também a si mesmo. O trabalho deles é prender; o dele, libertar. Pois
Ele é a verdade, e “a verdade os libertará” (João 8:32).
Uma vez que Deus existe, nada acontece por acaso. E já que nada
acontece por acaso, não foi por acaso que Deus permitiu que essa passagem
fosse inserida no Evangelho de João. A passagem não se refere apenas a essa
mulher, mas a todos nós. Todos nós cometemos adultério contra Deus. E ao
lermos essa passagem, nós é que somos testados — não apenas pela Lei de
Deus contra o adultério físico e espiritual, mas também pela própria história
que nos testa ao perguntar que trabalho estamos fazendo — o de Cristo ou o
dos fariseus? Podemos ter a esperança, enquanto lemos essa passagem, de
permanecer espectadores que julgam o espetáculo da arquibancada, mas não
podemos fazer isso. Somos jogados na situação; não estamos julgando a
situação, mas sendo julgados. Na verdade, estamos sempre sendo julgados, não
pela Lei, mas por Cristo. Ele sempre é o Sujeito que julga, que tem
conhecimento; e a nós somos sempre o objeto julgado, conhecido. Nossa
verdade é a nossa conformidade ao conhecimento dele.
Pois Deus não descobre a verdade, como nós fazemos. Ele a decreta, Ele
a cria. Nós, em parte, também fazemos isso nas artes criativas. Nelas, fazemos a
verdade; no mais, a descobrimos. É verdade que os elfos são pequenos e
travessos no mundo de Sonhos de uma noite de verão, pois Shakespeare os fez
assim; e é verdade que os elfos são altos e imponentes em O senhor dos anéis,
pois Tolkien os fez assim. A Criação (o universo) é a arte de Deus e a ciência do
homem. O que é objetivo para nós (por exemplo, tigres) é subjetivo para Deus.
Primeiro, Ele inventa os tigres, então nós os descobrimos; da mesma forma que
primeiro Tolkien inventa os hobbits, depois, nós os descobrimos. Quando
descobrimos a verdade a respeito da Criação, estamos lendo os pensamentos do
Criador.
O que essa verdade teológica tem a ver com João 8? Ela é o fundamento
para Cristo libertar a mulher pega em adultério. Pois Cristo não é criatura, mas
o Criador. Nas palavras do Credo Niceno, ele é “gerado, não feito;
consubstancial com o Pai. A mulher recebeu a compensação prática desse
mistério teológico; e nós também. Cristo não está passivamente preso pela
verdade, como nós estamos; Cristo libera ativamente a verdade, como Deus o
faz. Cristo não é cientista, mas artista.
Apenas conecte estes três versículos, e você perceberá isto: (1) Eu sou [...]
a verdade (João 14:6); (2) A verdade vos libertará (João 8:32); (3) Portanto, se
o Filho vos libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Mas essa é apenas metade da história, e gostamos de esquecer a outra
metade dela. Cristo não diz apenas: “Eu também não a condeno”; Ele
acrescenta: “Abandone sua vida de pecado”. As duas partes são igualmente
necessárias em sua obra de libertação, como a fé e as obras (obras de amor) o
são na salvação. Lembre-se, a profecia não diz: Ele receberá o nome de Jesus
[Salvador ou o Senhor salva] porque Ele salvará o seu povo da punição por
causa do pecado; e sim: Você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque Ele
salvará o seu povo dos seus pecados. Dizer: “Eu também não a condeno”, sem
acrescentar: “Abandone sua vida de pecado”, seria uma obra de
aprisionamento, não de libertação; da mesma forma que, como �zeram os
mestres da lei e os fariseus, dizer: “Abandone sua vida de pecado”, sem
acrescentar: “Eu também não a condeno”, é algo que prende, em vez de
libertar. Pois o pecado nos aprisiona da mesma forma que, com certeza, não
perdoar o faz. Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado (João 8:34).
Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna
em Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 6:23).
O pecado é como a droga. São necessárias duas coisas para se libertar do
vício de alguma droga: alguém tem de amá-lo ternamente o bastante para
libertá-lo, e alguém tem de amá-lo de forma dura o bastante para exigir que
você permaneça livre do vício. Essa é a obra dupla do Salvador. Os teólogos, às
vezes, chamam-na de justi�cação e santi�cação. As duas coisas não podem ser
separadas. Separar a delicada urdidura e a resistente trama dessa vestimenta sem
costura representa des�á-la e destruí-la completamente. Contrapor ternura
liberal com obstinação conservadora, ou vice-versa, não é nada mais que um
novo aprisionamento, um novo dilema como o que os fariseus apresentaram
para Jesus.
Mas Jesus, como escapou do dilema dos fariseus, também escapa do
nosso dilema. Ele escapa de todas as nossas redes, pois não é peixe, mas o
Pescador, “o pescador de homens”, e nós somos seus peixes. Ser pego em sua
rede é ser libertado, pois sua rede é a verdade.
Por isso, no mesmo capítulo, Ele, após libertar a mulher, interpreta o que
acabara de fazer ao nos contar que a verdade os libertará (v. 32). Mas a verdade
libertou a mulher? Não era verdade que ela tinha cometido adultério? Como
essa verdade podia libertá-la?
Temos di�culdade em entender como essa verdade pode libertá-la
porque pensamos na verdade como algo abstrato e impessoal; como um
princípio geral (por exemplo, adultério é pecado) ou como um fato especí�co
(por exemplo, ela cometeu adultério). Ambos, o princípio geral e o fato
especí�co, são expressos em proposições, sentenças, a�rmações. Isso é verdade
proposicional.
Não jogarei aqui o popular jogo de cartas de descartar a verdade
proposicional. Pois esta é preciosa e é serva de Cristo, não sua inimiga. Por isso,
até mesmo a verdade proposicional, a verdade abstrata e a verdade �losó�ca
podem ser libertadoras.
A �loso�a de Sócrates, por exemplo, liberta-nos de muita ignorância, em
especial da nossa ignorância a respeito da nossa ignorância. Mas ela não nos
liberta de toda a ignorância. Ela nos conta muito a respeito de nós mesmos,
mas muito pouco sobre Deus.
E as proposições da boa psicologia podem nos libertar de muito
autoengano; mas não de todos. Na verdade, pensar que ela faz isso é o maior
dos autoenganos.
E as proposições da ciência, �lha da �loso�a, e da tecnologia, neta dela,
podem nos libertar de muita ignorância em relação à natureza e de muita dor e
muito sofrimento por meio da conquista da natureza; mas podemos apenas
adiar, não derrotar, o trunfo da natureza: a morte.
As verdades da ciência aumentam nossa liberdade. Por exemplo, somos
livres para escapar da gravidade da terra e viajar pelo ar ou espaço apenas por
causa das verdades proposicionais da física e da matemática. Mas não podemos
nos libertar completamente da gravidade, pois ela está em nossa essência
enquanto criaturas feitas de matéria. Em algum momento, o que sobe tem de
descer. Nenhum conhecimento da verdade proposicional abstrata pode nos
livrar disso.
Mas Jesus pode. Ele torna possível escapar para sempre da gravidade da
terra, subir para o Céu, não descer para o Inferno. Ele levanta nosso corpo da
sepultura; e nossa alma dos nossos pecados.
Como Ele consegue fazer isso? Porque Ele é a verdade, e a verdade vos
libertará, e se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Essa é a epistemologia encarnada e, portanto, fortalecida. Ele é a palavra
poderosa, pois é a Palavra de Deus. Ele tem poder para libertar a mulher
porque tem poder para criar o universo. Ele é a Palavra do Pai pronunciada
para criar o universo (Gênesis 1:2). Ele não é apenas a palavra “com
autoridade”, mas a “palavra poderosa” (Lucas 4:32; Hebreus 1:3). Ele não copia
meramente o que é quando fala, Ele cria o que é. Quando Ele, no túmulo de
Lázaro, diz: “Lázaro, venha para fora!”, até mesmo a morte o obedece.
Ele é a Palavra de Deus no singular porque Ele é absolutamente singular.
Ele não é a palavra sobre Deus, nem a última palavra sobre Deus, mas, sim, a
Palavra de Deus. Ele não é sobre nada mais, tudo o mais é sobre Ele. Tudo no
universo e tudo na Bíblia é um dedo apontando para Ele. Ele é o �m da
epistemologia.
*
Como conhecemos Deus? Uma

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