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HISTÓRIA DO BRASIL REPÚBLICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Relacionar as principais ações do governo de Eurico Gaspar Dutra. > Explicar o retorno de Getúlio Vargas e suas principais realizações. > Reconhecer a visão da historiografia brasileira sobre a Era Vargas. Introdução Neste capítulo, você vai estudar um importante período da história brasileira e compreender como inúmeros aspectos e características de muitos governantes e figuras históricas que transitaram durante esse período podem ser encontrados direta ou indiretamente em diversas esferas na atualidade, além do fato de ainda terem uma importância ímpar na historiografia. Esse período inclui os anos de 1946 a 1954. Duas figuras são centrais para compreender os processos políticos no país: Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas. A partir do ano de 1946, inaugura-se um período no Brasil que ficou conhecido por alguns nomes diferentes, como Quarta República Brasileira, República Nova, República de 46 ou República Populista. Esse período vai até 1964, com o Golpe Civil-Militar, todavia, aqui, nosso recorte temporal será até 1954, ano marcante para a história do Brasil, pois é o ano da morte do então presidente Getúlio Vargas. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas Krisley Aparecida de Oliveira Eurico Gaspar Dutra: ascensão e governo Antes de explicar como ocorreu a ascensão ao poder do General Eurico Gaspar Dutra, é necessário que façamos uma retrospectiva rápida para situar em que período esse governante está inserido e quais são os fatos e as condições que o levaram a ocupar esse cargo, uma vez que, conforme aponta Bloch (2001) em seu livro, a história é a ciência do homem no tempo. Getúlio Vargas ocupou o cargo de governante do Brasil em dois momentos diferentes da história. Para compreender tanto o governo de Gaspar Dutra quanto o retorno de Vargas para o que recebeu o nome de Governo Demo- crático de Getúlio Vargas, é preciso citar que o Estado Novo (1937-1945) ficou caracterizado como um regime autoritário, que se alinhava a outros regimes autoritários vigentes no mundo naquele mesmo período, como é o caso da Alemanha nazista e da Itália fascista. Em 1942, alguns submarinos alemães atacaram e naufragaram navios brasileiros. A população ficou revoltosa com isso e começou a pressionar Vargas para que ele declarasse guerra contra a Alemanha. Sem saída, Vargas o fez, mas isso começou a minar o seu governo, tendo em vista que declarou guerra a um país com o mesmo modelo autoritário adotado pelo seu próprio governo. A partir daí, ele começou a perder apoio e a sociedade passou a rejeitá-lo. Vargas ainda tentou resgatar um pouco de sua imagem, já no tér- mino do Estado Novo, em 1945, ao convocar uma nova Assembleia Nacional Constituinte e chamar novas eleições. Além disso, ele também permitiu que fosse feita uma reorganização partidária e concedeu anistia política a presos. A sua imagem, no entanto, já estava muito desgastada e as manifestações contrárias ao seu governo ganharam grandes proporções. Nesse mesmo ano surgiu um movimento visando a defender a permanência de Vargas como presidente, que recebeu o nome de queremismo. Segundo o que apontam as professoras Schwarcz e Starling (2015), estu- dantes de direito começaram a se manifestar em prol do estabelecimento de uma democracia e organizaram uma manifestação com o intuito de ganhar apoio popular, principalmente das massas, que eles acreditavam, até aquele momento, que também estavam insatisfeitos com o governo ditatorial de Vargas. Todavia, não ocorreu o que eles queriam. A maioria dos trabalhadores que estava na Praça da Sé, local onde a manifestação foi parar, começaram a gritar palavras de ordem, como “Nós queremos Getúlio”, “O povo está com Getúlio” e “Viva os trabalhadores”. A partir desse momento, o movimento queremista começou a crescer, espalhando-se. Muitas pessoas de classes mais altas não compreendiam o porquê de os operários e trabalhadores O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas2 estarem apoiando Vargas. A imprensa da época os retratava como vândalos e desordeiros. Ainda de acordo com as professoras Schwarcz e Starling (2015, p. 390), muito se explica com o apoio da classe trabalhadora, por isso: [...] tinha natureza política: a defesa dos direitos que garantiam a cidadania social obtida pelos trabalhadores a partir da década de 1930. Ao perceber que o Estado Novo caminhava para um final desfavorável ao presidente, os trabalhadores saíram às ruas: suspeitavam que o conjunto de lei de proteção ao trabalho, até então com dois gumes, sem Getúlio poderia começar a cortar de um lado só — o lado do patrão. Com o maior alcance do movimento queremista, Vargas se aproximou do movimento, que lhe deu apoio, e o utilizou como forma de propaganda. A partir disso, foram criados comitês queremistas no país com o apoio do Ministério do Trabalho e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Houve então a organização de eventos: discursos eram transmitidos via rádio e panfletagens eram feitas, bem como comícios e outros (Figura 1). O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que foi a criado por Vargas, também se uniu aos queremistas e lhe deu apoio, porém, a crise no governo de Vargas apenas aumentou e, em 29 de outubro, os militares deram um ultimato a Vargas, que, sem escolha, acabou renunciando. Figura 1. Comício queremista no Largo da Carioca (RJ) em 1945. Fonte: Queremismo (c2020). O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 3 Quando ainda fazia parte do Ministério de Guerra no Estado Novo, Eurico Gaspar Dutra fora sondado por grupos oposicionistas a Getúlio Vargas, que o convidaram para dar um golpe para afastar o então presidente. Seu nome foi pautado pelos setores governistas, em associação com o Partido Social Democrático (PSD), para concorrer à presidência. A oposição, em torno da União Democrática Nacional (UDN), colocou o nome de Eduardo Gomes. Dutra ganhou as eleições com a ajuda decisiva do PTB e de Vargas, que utilizou a sua imagem junto àqueles que ainda o apoiavam para pedir votos ao seu ex-ministro de guerra. De acordo com Moura (1990), as principais análises desse momento apon- tam para uma descontinuidade econômica e para a continuidade da política institucional do governo Dutra, que seguiu o mesmo padrão do Estado Novo. Corpos legislativos, partidos políticos e eleições voltaram a existir. Apesar disso, o autoritarismo sobreviveu em partes da nova Constituição de 1946 e não enfrentou uma forte oposição. No final de 1946, a maioria da UDN apoiou uma frente partidária com o PSD. Com isso, as medidas de repressão social e política que foram colocadas em ação pelo governo não sofreram intervenção. Em relação à política externa do governo Dutra, houve uma continuação política dos últimos anos do governo Vargas, conforme aponta Moura (1990, p. 21–22): Desde o início, o governo Dutra acreditava na ligação especial do Brasil com os aliados ocidentais e confiava que um alinhamento estreito à política norte-ame- ricana constituía a melhor defesa para enfrentar um novo conflito global. […] Para os planejadores políticos brasileiros, o alinhamento aos Estados Unidos deveria conferir ao país um certo número de vantagens, a mais importante das quais seria a manutenção de uma posição militar única na América Latina e sua correspondente posição política. Uma segunda vantagem seria a participação ativa nas conversações de paz do pós-guerra e no estabelecimento de uma nova ordem internacional. Dois temas gerais faziam parte das formulações da política externa: co- laboração e amizade com as nações do continente e colaboração com as nações democráticas para a consolidação da paz. Porém, com Vargas, esse alinhamento foi feito como um instrumento da política externa brasileira, ao passo que com Dutra ele se tornou, na prática, o objetivo da política. Grande parte das decisões, após a Constituição de 1946 e a retiradada perspectiva personificadora, ficou a cargo do Itamarati, que nesse período era extrema- mente influenciado por perspectivas liberais e preocupações jurídicas, as quais fizeram com que o alinhamento governamental de Dutra fosse, no fim das contas, voltado para políticas em favor dos Estados Unidos. Ianni (1986) chama esse período de Período do Liberalismo Econômico, no qual ocorreu O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas4 o desmantelamento da estrutura estatal em nome do capital estrangeiro. Investimentos em setores públicos foram drasticamente reduzidos e a Consti- tuição, com cunho liberal, passou a fornecer bases para as ações econômicas do governo. Com isso, o custo desse alinhamento que favorecia o capital estrangeiro levou os salários ao congelamento e a inflação teve alta, além disso, instalou-se uma recessão econômica e, consequentemente, houve perda de poder aquisitivo para parte da população do país. A concentração ficou maior e, por essa razão, o distanciamento social entre as classes aumentou exponencialmente. Para tentar estimular o desenvolvimento dos setores da Saúde, Alimenta- ção, Transporte e Energia, o governo desenvolveu o plano econômico SALTE, que é justamente a junção das letras iniciais de cada um dos setores men- cionados. No setor da saúde, o plano tinha como objetivo melhorar o nível sanitário da população, principalmente a rural. No setor dos transportes, o plano era reaparelhar os portos e melhorar a navegabilidade dos rios, bem como aparelhar a frota marítima e construir oleodutos. Referente à energia, a maioria das iniciativas estava ligada à exploração da energia financiada pelo capital privado e estrangeiro e caberia, portanto, ao governo estimular as empresas concessionárias. Dessa forma, visando a coordenar os gastos públicos e a dirigir investimentos para esses setores prioritários, o plano de Dutra sacrificou os trabalhadores para tentar conter a inflação, pois causou uma redução no poder aquisitivo do salário mínimo. Sob a perspectiva de Ianni (1986), a situação social do Brasil no final do governo Dutra era um caos. Governo democrático de Getúlio Vargas Conforme aponta Ianni (1986), com os quatro anos de congelamento dos salários dos trabalhadores e a grande repressão, o período de governança de Dutra chegou ao fim dando espaço para que Getúlio Vargas retornasse ao poder nas eleições de 1950, tudo isso somado ao fato de que essa seria a segunda eleição de um país que caminhava para uma democracia. No primeiro momento em que esteve no poder, entre os anos de 1930 a 1945, Vargas mi- nou a participação de agremiações políticas, sindicados e partidos e, como vimos anteriormente sobre o governo de Dutra, não fez grandes mudanças nos modos de governança. Sendo assim, quando chegaram as eleições de 1950, os partidos políticos ainda não estavam totalmente organizados e, portanto, não conseguiram apresentar, de maneira substancial, nomes paras as eleições. É importante também ressaltar que, nesse espaço de tempo em que não esteve na chefia do país, Vargas conseguiu consolidar ainda mais a O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 5 sua imagem carismática de defensor do povo, sendo, inclusive, eleito Senador no Rio Grande do Sul em 1946. Para o pleito de 1950, o PSD, no qual era filiado Gaspar Dutra, apresentou o nome do político mineiro Cristiano Machado para concorrer. Já a UDN repetiu o nome de Eduardo Gomes, que havia sido candidato em 1946 contra Dutra e perdido. Vargas abraçou então a legenda do PTB, que ajudou a criar, e se lançou como candidato, aproveitando-se ainda da imagem que conseguiu criar e dos apoios conquistados entre lideranças populares. Além disso, ele se utilizou do velho conhecido clientelismo, ou seja, da troca de favores para conseguir apoio dos líderes do PSD, ganhando, dessa maneira, votos de pessoas de pequenos centros urbanos e do campo. Segundo D’Araujo (1992), nesse momento de corrida eleitoral, a única pessoa que poderia oferecer risco à campanha vitoriosa de Vargas seria Ademar de Barros — principal liderança do Partido Social Progressista (PSP). Ao perceber essa ameaça, Vargas logo tratou de iniciar negociações com Ade- mar Lopes para que ele desistisse de sua candidatura própria para apoiá-lo, prometendo, portanto, que nas próximas eleições ele apoiaria Ademar Lopes para a presidência. O Quadro 1 apresenta os nomes listados para a eleição. Quadro 1. Candidatos à presidência e à vice-presidência e seus partidos Presidente Vice-presidente Principais partidos Eduardo Gomes Cristiano Machado João Mangabeira Getúlio Vargas Odilon Braga Altino Arantes Vitorino Freire Alipio Correia Neto Café Filho UDN, PRP, PL PSD, PR, PST PSB PTB, PSP Fonte: Adaptado de D'Araujo (1992, p. 78). Levando em consideração a dinâmica partidária que se estabeleceu e os acordos em campanha que foram feitos, Vargas ganhou, sem muita surpresa, as eleições daquele ano. Segundo D’Araujo (1992, p. 78): Os resultados eleitorais asseguram 48,7% do total de votos a Getúlio Vargas, seguido por Eduardo Gomes (29,7%), Cristiano Machado (21,5%) e João Mangabeira (0,1%). A candidatura Vargas é vitoriosa em 18 das 24 unidades da federação, perdendo apenas no Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Minas Gerais e nos territórios do Acre e Amapá. É interessante registrar que apenas em um grande estado, Minas Gerais, a votação fica eqüitativamente distribuída entre os três principais candidatos, com ligeira vantagem para Eduardo Gomes. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas6 Os setores políticos, militares e econômicos logo absorveram os resultados das eleições sem muitas contestações, com exceção da UDN, que marcada- mente, em posição de combate ao getulismo, começou a colocar objeções para a posse de Vargas, e de acordo com D'Araujo (1992, p. 79): “Liderado pelo Deputado Aliomar Baleeiro, esse partido lança mão de um recurso jurídico tendo por base que uma interpretação rigorosa da Constituição exigia a maioria absoluta nas eleições presidenciais.” Todavia, contrariando os ude- nistas, o Supremo Tribunal Eleitoral, em janeiro de 1951, proclamou Getúlio Vargas e Café Filho como os candidatos legalmente eleitos. Esse governo, porém, conhecido como democrático de Vargas, foi marcado por graves crises sociais, políticas e econômicas e também por uma forte oposição ao governo. Criou-se, então, uma dualidade no que diz respeito ao debate político sobre o planejamento da economia que seria colocada em prática no país. De um lado havia o grupo que sustentava uma perspectiva nacionalista, ou seja, a defesa da ausência da influência de capital ou grupos estrangeiros no país, com o planejamento da economia sendo conduzido por empresas nacionais e pelo Estado. No outro lado, havia o grupo que acreditava que as ações de empresas e grupos estrangeiros seriam boas para o país. Esse debate também chegou ao exército, que refletia as preocupações que existiam acerca do comunismo por conta do contexto internacional da Guerra Fria. Skidmore (2010) menciona que o dinheiro que a Agência Central de Inteli- gência, do inglês Central Intelligence Agency (CIA) investiu em diversas orga- nizações brasileiras teve como objetivo introduzir as noções estadunidenses no exército do Brasil. Vargas tentou equilibrar essas duas perspectivas em sua agenda de governança, mas acabou sendo muito mais nacionalista. Uma das projeções nacionalistas dentro dessa esfera foi a que envolveu a criação de instituições estatais para que o Estado explorasse matérias-primas específi- cas, como o petróleo. Nesse contexto, surgiram a Eletrobras e a Petrobras, mas isso não foi tão simples, haja vista que Vargas foi extremamente boicotado e criticado pela oposição e diversos empecilhos ficaram no caminho para que não ocorresse a criação dessas estatais. A Eletrobras e a Petrobras, segundo Schwarcz e Starling (2015), prejudicaria as indústrias de petróleo e energiaestrangeiras que estavam sendo instaladas no Brasil. Isso deixa claro que parte dos ataques dos opositores de Vargas se deu porque a perspectiva nacionalista executada por ele se opunha aos interesses internacionais que estavam em atividade no Brasil. A maioria de seus opositores, formada por políticos filiados à UDN, ar- gumentava que os projetos nacionalistas que Vargas executava no país po- deriam abrir margem para atitudes subversivas da população e, portanto, O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 7 que eles deveriam buscar uma revolução, chegando a afirmar que Vargas tinha o intuito de iniciá-la, seguindo o exemplo de Juan Domingo Perón na Argentina. Isso fez com que as classes altas ficassem agitadas e temerosas de que as políticas nacionalistas levassem o Brasil a uma revolução das classes baixas ou algo parecido. Vargas, com seu típico clientelismo e carisma, fez tentativas de apoio com alguns políticos da oposição, porém, a UDN pregava o antigetulismo e o presidente não conseguiu, portanto, o apoio que desejava, conforme D'Araujo (1992, p. 31): Todas essas questões são permeadas pelo temor ao comunismo e pela descon- fiança de que o Governo não seja capaz de fazer preservar e respeitar a ordem constitucional. A crise de desconfiança dá margem a que se explorem, de forma sensacionalista, todas as suspeitas alimentadas contra o Presidente. Amplamente divulgada, essa campanha vem abalar ainda mais a estabilidade governamental. O tensionamento social marcou profundamente e prejudicou esse governo varguista. Um dos principais fatores, nesse sentido, foi o aumento elevado das despesas básicas. Conforme aponta Skidmore (2010), por exemplo, no Rio de Janeiro, o padrão de vida aumentou de 11% em 1950 para 21% em 1952, acrescido ainda do fato de os trabalhadores não terem aumento de seus salários desde 1943, o que estava ocasionando baixo poder aquisitivo. Os sindicatos se organizaram novamente e os operários começaram a exigir melhorias salariais, e isso acarretou manifestações. Em março de 1953, em decorrência desses fatos, duas grandes manifestações ocorreram: a Marcha das Panelas Vazias e a Greve dos 300 mil. Como essas manifestações tiveram um contingente muito grande de pessoas, Vargas já estava ciente de que não tinha mais o mesmo apoio das massas e dos trabalhadores. Nesse momento, ele fez uma jogada ousada com a indicação de João Goulart para comandar o Ministério do Trabalho pelo fato de este manter uma relação boa e tranquila com os movimentos sindicalistas. João Goulart era um político de destaque do PTB. Na época, este já era bastante conhecido como Jango. Por ter uma capacidade notória de comu- nicação e negociação, Vargas via nele uma forma de tentar reaproximar o trabalhador da cidade e os operários do governo. Correspondendo às ex- pectativas de Vargas, Jango conseguiu caminhar alguns passos e organizou essa reaproximação, mas ele não era bem visto pelas classes mais altas, já que tinha fama de agitador. Isso fez com que essa classe temerosa de uma república sindicalista se afastasse mais ainda de Vargas. A imprensa, junto à UDN, começou a atacar fortemente a figura de Jango, principalmente por- que ele propôs um aumento salarial de 100% para os trabalhadores, o que O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas8 desagradou todos os grupos formados por opositores de Vargas. De acordo com D’Araujo (1992, p. 131): Para os meios conservadores, particularmente a UDN e os militares, um projeto socializante de esquerda é o que não deveria acontecer, e para tal se fazia necessário intensificar a vigilância em torno dos desvios e dos desmandos governamentais. A presença de João Goulart na pasta do Trabalho contribuía efetivamente para fortalecer as preocupações que esses setores mantinham em relação ao Governo. Alvo de freqüentes pressões, inclusive por parte de militares, João Goulart passa a ser denunciado como portador de planos secretos para transformar o Brasil numa "república sindicalista. Para tentar conter os ânimos, Vargas precisou retirar Jango do cargo e anunciou, como novo ministro, no lugar deste, um militar que era também anticomunista com o objeto de agradar a classe dos militares. Apesar disso, mesmo pressionado, ele manteve o aumento salarial de 100%. Ainda nesse contexto, outro fator demonstrou o desgaste entre Vargas e os militares, que recebeu o nome de Manifesto dos Coronéis. Segundo D'Araujo (1992, p. 178) tratava-se de uma espécie de abaixo-assinado, com a participação de 82 coronéis, que demonstrava a possibilidade eminente de um golpe por essa classe: O memorial assinado por 82 coronéis e enviado ao Ministro da Guerra e à cúpula militar, era uma denúncia contra a iminência de perda de valores fundamentais para a corporação militar e um alerta quanto ao perigo de desagregação e de infiltração de ideologias "antidemocráticas" dentro do Exército. Tinha o sentido de um apelo para que o elemento militar fosse mais valorizado e para que fossem corrigidas as desigualdades e injustiças que desmotivavam os militares em relação à carreira, impelindo-os para a vida civil. Em 1954, o cenário continuava extremamente difícil e os grupos que faziam oposição continuavam com ataques. Denúncias de tentativas de colabo- ração entre o Brasil e a Argentina, mesmo sem comprovação, fizeram com que houvesse uma tentativa de impeachment, mas este foi barrado pelo Congresso. A situação do governo atingiu o ápice de sua crise quando, em 5 agosto de 1954, ocorreu um atentado contra Carlos Lacerda, um grande expoente no movimento de oposição a Vargas. Lacerda ficou levemente fe- rido e um dos seus seguranças foi morto. A investigação chegou à conclusão que quem orquestrou o crime fora o responsável pela segurança do palácio presidencial — Gregório Fortunato. A partir disso, também descobriu-se que Fortunato mantinha relação com esquemas de corrupção, porém, na verdade se comprovou que as denúncias tinham ligação com Vargas. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 9 Após o atentado, com a situação já não se sustentando, Café Filho, vice de Vargas, rompeu a sua ligação com ele, e isso, aliado ao cenário, fez com que os militares exigissem a renúncia de Vargas. De acordo com D’Araújo (1992), como Vargas se recusou a renunciar, eles começam a arquitetar a sua derrubada por meio de imposições militares, o que resultou dois fatos totalmente imprevisíveis: o suicídio de Vargas e a reação popular em relação à sua morte (Figura 2). Figura 2. Funeral de Getúlio Vargas. Fonte: Memorial da Democracia (2018). O portal do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contem- porânea do Brasil, organizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), traz uma exposição virtual, rica em imagens e documentos, sobre a Campanha política de 1950 que levou Getúlio Vargas novamente ao poder. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas10 Historiografia em debate: o balanço da Era Vargas Como bem disse o célebre historiador brasileiro Manoel Luiz Salgado Gui- marães, na apresentação do livro Século XIX e a história: o caso de Fustel de Coulanges, de François Hartog (2003, p. 9): Cada geração reinventa o legado que deseja assumir como seu legado presente, e essa tarefa cria a necessidade de repensar a história, especialmente para aqueles que a tomaram como o exercício de um ofício, de uma profissão e de um magistério. Nesse mesmo movimento, repensam as regras de seu ofício, redefinem as práticas que viabilizam o conhecimento do passado, reinventando a própria operação his- tórica nem cenário de tensões e conflitos, a partir do qual a disputa pelo passado remete às disputas pela significação do próprio presente. Existe a necessidade, sempre presente, de voltar àquilo que já foi pesqui- sado, produzido e escrito sobre os mais diversos temas para reinterpretá-los. Nenhum tema, assunto, evento ou fato histórico está esgotado, há sempre apossibilidade de construir novas narrativas a partir de pesquisas metodica- mente guiadas com novas documentações e olhares. Conforme aponta Gui- marães (1995), buscando desfazer a noção de que o conhecimento do passado seja mera rememoração, a história da história, aliada às demandas de uma nova etapa epistemológica da disciplina, começou a se orientar sobre uma série de perguntas sobre categorias, conceitos e procedimentos que fazem com que seja possível a sua elaboração. Sendo assim, desde que começou a ser compreendida como dotada de historicidade, ou seja, condicionada pela perspectiva de seu autor, local de sua elaboração e tempo, tanto as pesquisas quanto as escritas da história passaram a demandar uma abordagem crítica das produções historiográficas. Getúlio Vargas é considerado uma das figuras mais importantes da história do Brasil. É possível ainda afirmar que Vargas pode ser considerado uma das personalidades mais controversas e difíceis de ser analisada. Para fazer um balanço historiográfico sobre o período em que governou, é preciso ponderar suas ações e projeções desde 1930, quando ocupou, pela primeira vez, o posto de líder da nação e começou a criar a sua imagem nacional pública. A cultuação personalística no Brasil é muito forte ao longo da história brasileira e isso acontece com inúmeras figuras, mas principalmente com a imagem de governantes. No caso de Vargas não é diferente. A historia- dora Hebe Mattos (2005), ao fazer uma análise da memória dos descentes de pessoas escravizadas no Brasil, relata que uma parte considerável das pessoas que entrevistou faz uma associação entre as figuras da princesa O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 11 Isabel e Vargas, apontando que ela teria dado a liberdade e ele os direitos civis. Recai sobre Vargas, portanto, a figura de um herói — figura que tem sempre muita expectativa depositada. Vargas é visto como o responsável necessário para a solução de um país com o histórico de séculos de problemas sociais, econômicos, etc. Dessa maneira, a partir disso, forjou-se a imagem de um homem mitificado, personalístico. Conforme apontamos anteriormente, ocorreram inúmeros momentos marcantes ao longo da Era Vargas. No caso específico discutido aqui em torno do governo democrático de Vargas, é possível pontuar a forte crise opositora iniciada por diversos grupos, bem como o ainda forte apoio de grande parte da população que, inclusive, deu início ao movimento queremista. Além disso, a partir do seu suicídio, houve a forte comoção social que tomou conta das pessoas e levou inclusive, a revoltas contra a UDN — partido que fazia a principal frente de oposição ao governo varguista. Em relação ao primeiro período de Vargas no poder, que vai de 1930 a 1945, podemos destacar o modo como foram tratados os movimentos operários que, pelo menos de maneira mais intensificada, desde a década de 1920, com a criação do Partido Comunista do Brasil (o PCB, mais tarde com o nome de Partido Comunista Brasileiro), faziam muitas movimentações em prol de direitos. Vargas, muito astuto, percebeu que muitas coisas precisavam ser alteradas para conseguir estabelecer algum grau de proximidade com esses trabalhadores, porém, a maneira violenta de repressão que fora utilizada nas primeiras décadas de república continuou vigente em seu governo. O movimento operário continuava sendo reprimido. Aliado a isso, havia o anti- comunismo, que deu forte munição para a perseguição, a prisão e a expulsão de inúmeras pessoas do país. Luís Carlos Prestes, por exemplo, foi preso durante esse período, além de ter a sua esposa, Olga Benário Prestes, enviada para a Alemanha e morta em um campo de concentração nazista, mas antes disso, ele teve uma filha, de nome Anita Leocádia Prestes, que não pôde ver enquanto estava preso, tudo isso sob ordens de Vargas. A criação do DIP, em 1937, foi fundamental para a criação da imagem per- sonalista de Vargas. A partir dele, como o governo de Vargas, que seguia o padrão centralizador da época, foi empreendida uma campanha muito forte de censura a tudo aquilo que fosse desfavorável ao seu governo, mas, ao mesmo tempo, usando a sua imagem de maneira positiva. Conforme aponta a professora Capelato (1998), nunca havia se visto antes na história brasileira um uso tão efetivo da propaganda por parte do Estado. Todavia, é necessário pontuar que, apesar da característica autoritária, não há como colocar no mesmo pé de igualdade o regime varguista com o nazifascismo europeu, que O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas12 vigorava na época. Segundo Capelato (1998, p. 32) “[...] a repressão foi intensa e as liberdades foram anuladas nesse período, mas não ocorreu o monopólio absoluto do Estado no plano físico, jurídico ou econômico”. Jose Honório Rodrigues (1985), intelectual carioca que atravessou grande parte da história do Brasil República e produziu muito sobre esse período, conseguiu analisar, de maneira esclarecedora, a Era Vargas. No ano de 1981, Rodrigues realizou uma palestra na Câmara dos Deputados, em decorrência das festividades do movimento que ocorreu em 1930 (o golpe que levou Vargas ao poder pela primeira vez), e já apontava, na época, os problemas que envolviam o fato de esse momento ser chamado de Revolução de 1930. Para Rodrigues (1985, p. 73): A revolução é uma mudança macro-histórica, uma ruptura do sistema, sob crescente tensão psicossocial. Daí sua incontrolabilidade. Para seu rompimento é preciso que a estrutura, isto é, o sistema econômico-social e a situação, ou seja, a crise a curto prazo dentro do sistema, com tensões de longo prazo, entrem em choque com forças sociais e econômicas e com novas aspirações. De acordo com Oliveira (2019), Rodrigues foi enfático em sua análise ao afirmar que, em relação à situação econômica em meados de 1930, Vargas manteve uma postura que aparentava ser amistoso em relação ao investi- mento de países estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos, que naquele momento ultrapassava a Grã-Bretanha, passando a ocupar um lugar de destaque no cenário econômico. Rodrigues (1970) aponta ainda que Thomas Skidmore acusava Vargas de ter se calado em relação à reforma agrária. Segundo ele (Thomas), os latifundiários e os grandes proprietários de terra que dominavam a política até 1930 continuaram no poder, mesmo com a ascensão de Vargas, na medida em que este não mudou a estrutura agrária do país. Por essa razão, não houve uma revolução (ruptura nesse evento), haja vista que não ocorreu uma ruptura social. Os trabalhadores urbanos, as classes mais baixas, os operários, entre outras classes, sempre lutaram ao longo da história do Brasil, desde os tem- pos da colônia até o momento em que Vargas presidiu o país. Eles travaram imensas lutas para que pudessem gozar de direitos trabalhistas, organizando, para tanto, sindicatos, manifestações e greves. A população se fez presente na conquista da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), porém, como ela ocorreu no governo de Vargas, o DIP usou isso para alavancar a imagem de Vargas. Em geral a participação do povo nesse processo de conquista de direitos trabalhistas é deixada de lado, mas a ênfase naquele momento, e O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 13 na maneira como se construiu a imagem de Vargas, é a de que foi ele quem deu esses direitos aos trabalhadores. Em se tratando do segundo momento de Vargas no poder (governo demo- crático), Rodrigues (1970, p. 251) aponta que “Getúlio defendia a instituição do seguro agrícola e dizia estarem adiantados os estudos da reforma agrária.” Ele afirmando que Vargas desagradava as classes dominantes, que tinham medo de uma reforma estrutural, o que corrobora aquilo discorremos ao longo deste capítulo acerca de toda a perseguição que recebeu. Para Rodrigues (1970, p. 251), “o Getúlio Vargas de 1951–1954 não é o mesmo de 1930–1945”. Rodrigues (1985) via em Vargasuma figura histórica que mantinha uma política interna e externa sempre oscilando de acordo com as condições e circunstâncias do momento e que sempre sofreu com as pressões das forças armadas e dos americanos. Para Oliveira (2019, p. 34) “Rodrigues, ao falar de Vargas, o coloca na História como uma figura realmente dupla, ora de forma positiva, ora de forma negativa”. Portanto, a maneira como foi construída a figura e a imagem de Vargas ao longo da história, bem como as considera- ções sobre as possibilidades de mais de uma interpretação e, mais que isso, a necessidade de intepretação de uma figura histórica em seu contexto, agindo de acordo com o seu tempo e as demandas que o cercam, o que os historiadores e outros pesquisadores que se debruçam sobre o tema têm buscado fazer ao longo dos anos é desmistificar as imagens unilaterais ou bilaterais que, por ventura, foram construídas sobre a imagem desse que foi uma das maiores figuras históricas da história do país. Não cabe, portanto, à historiografia fazer com que a imagem de Vargas seja a de herói ou vilão, sendo assim, é necessário que a figura de Vargas seja analisada levando em consideração toda a sua complexidade, sem que a imagem dele seja ora exaltada, ora defenestrada, deixando de lado os messianismos, bem como os mitos e as crenças. O historiador não deve demonizar ou santificar a imagem de nenhum personagem histórico. Getúlio, conforme é apresentado por Rodrigues, foi uma figura que cultivou acertos e erros ao longo de sua trajetória política, e isso deve ser levado em consideração quando estudamos e analisamos a sua história. Referências BLOCH, M. L. B. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CAPELATO, M. H. R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no pero- nismo. Campinas: Papirus, 1998. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas14 D'ARAÚJO, M. C. S. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ dspace/bitstream/handle/10438/6781/48.pdf. Acesso em: 29 out. 2020. GUIMARÃES, M. L. S. Historiografia e cultura histórica: notas para um debate. Ágora: Revista do Departamento de História e Geografia, v. 1, n. 1, 1995. HARTOG, F. 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O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas 15 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. O governo de Eurico Gaspar Dutra e o retorno de Getúlio Vargas16
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