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INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE PÓS GRADUAÇÃO EM ARTETERAPIA RENATA DE OLIVEIRA MENEZES O MOVIMENTO DA ARTETERAPIA A LIBERDADE DO CORPO, DA ARTE E DO SER. SÃO PAULO 2018 RENATA DE OLIVEIRA MENEZES O MOVIMENTO DA ARTETERAPIA A LIBERDADE DO CORPO, DA ARTE E DO SER. Projeto de Pesquisa apresentado ao Curso de Pós Graduação do Instituto Sedes Sapientiae como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Arteterapia. Orientador(a): SÃO PAULO 2018 RENATA DE OLIVEIRA MENEZES O MOVIMENTO DA ARTETERAPIA A LIBERDADE DO CORPO, DA ARTE E DO SER. Projeto de Pesquisa apresentado ao Curso de Pós Graduação do Instituto Sedes Sapientiae como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Arteterapia. Aprovado em _______ de ___________________ de ______ BANCA EXAMINADORA ___________________________________ PROF. INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE ORIENTADOR ___________________________________ PROF. INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE ___________________________________ PROF. INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE Agradeço à todas circunstâncias da vida que me trouxeram até aqui, para esta realização profissional e pessoal. Agradeço, igualmente, aos familiares, amigos e professores que apoiaram esta jornada e estiveram ao meu lado durante estes anos de descobertas. Dedico este trabalho a mim mesma. Às minhas conquistas, minha entrega e a confiança que adquiri em ser quem sou. “E era bom. “Não entender” era tão vasto que ultrapassa qualquer entender - entender era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez. Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o bastante para pelo menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível. E todas as vezes que pensara que se compreenderá era por ter compreendido errado. Compreender era sempre um erro - preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era não entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana. No entanto às vezes adivinhar eram manchas cósmicas que substituirão o entender.” Clarice Lispector RESUMO Este trabalho visa expor a função e a importância da Arteterapia como meio de caminhar em si mesmo para encontrar quem se é. A união entre artes plásticas unidas à prática corporal é o caminho que escolhi para esta investigação por considerá-lo uma das expressões conscientes ou não de quem sou. A partir de uma revisão bibliográfica defenderei a liberdade de criar e se movimentar como forma de ser e estar no mundo e como objeto de observação para a desconstrução e construção da individualidade. O resultado será uma conclusão bibliográfica a fim de compreender que a Arteterapia é uma imprescindível ferramenta para reestruturação do indivíduo, transformação pessoal e autoconhecimento. Palavras-chaves: arteterapia, autoconhecimento, corpo, movimento, estética, arte, abstrato. LISTA DE FIGURAS Figura 1:. 64 Figura 2:. 65 Figura 3:. 66 Figura 4:. 67 LISTA DE GRÁFICOS Anexo A:. 68 Anexo B:. 68 Anexo C:. 69 Anexo D:. 69 Anexo E:. 70 Anexo F:. 70 Anexo G:. 71 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 1.1. Justificativa ………..…………………………………………………………….… 11 1.2. Objetivos …………..…………………………………………………………….… 12 2. O MOVIMENTO DA ARTETERAPIA 2.1. Definindo a Arteterapia ……..………………………………………………….… 13 2.2. Pioneiras da Arteterapia: história e caminhos ……...……………………….… 15 2.2.1. Margareth Naumburg: o resultado como foco ………....…………….… 16 2.2.2. Edith Kramer: o processo como foco …………..……....…………….… 17 2.2.3. Janie Rhyne e a unificação dos conceitos: processo e resultado em foco …………...…………..……………………………………………………………...… 19 2.2.4. Selma Ciornai: Arteterapia no Brasil ………..………………………...… 20 2.3. Intersecções com linguagens expressivas … .……………………………...… 23 3. O MOVIMENTO DO CORPO-CARNE-MUNDO 3.1. Corpo ….……..……………………………………………………………………. 25 3.2. Carne ….……..……………………………………………………………………. 25 3.3. Mundo ….……..…………………………………………………………………… 27 3.4. Pensamento ….……..……………..……………………………………………… 29 3.5. Espontaneidade, liberdade na dança ….……..……………..……………….… 32 3.6. A coragem de dançar ….……..……..…………………………………………… 33 3.7. A estética do movimento ….……..……..……………………………………….. 34 4. O MOVIMENTO DA IMAGEM-SÍMBOLO-FORMA 4.1. Imagem ….……..……..…………………………………………………………... 36 4.2. Símbolo ….……..……..…………………………………………………………... 37 4.3. Forma …....……..……..…………………………………………………………... 38 4.4. Abstração ……....……..…………………………………………………………... 40 4.5. Espontaneidade, liberdade na arte …………………………………………….. 44 4.6. A coragem de criar ....……..……………………………………....……………... 45 5. O MOVIMENTO PARA A CONCLUSÃO 5.1. Estética da arte ....……..……………………………………....………………... 48 5.2. A busca da autenticidade da forma própria na Arteterapia ..………………... 49 5.3. O uso do corpo e da música na Arteterapia: intersecções a contínua expansão do ser ……………………………………………..…………....……………... 52 5.4. O movimento de finalização e o desencontro com minha forma ………….... 58 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS 1. INTRODUÇÃO 1. Justificativa O interesse para estudar o movimento e o ato de criar como ferramenta de autoconhecimento e libertação do indivíduo que somos surgiu, principalmente, no final do curso após participar de diversas vivênciasem Arteterapia nas quais aproximei-me de quem sou: meu corpo, minha história, meus ideais, iniciando um processo de empoderamento sobre quem sou, quem posso e quem quero ser. Após dois anos envolvida com artes através da pós-graduação e da maternidade, conquistei a liberdade em me expressar corporalmente e transformar essa expressão, esse movimento, essa energia em arte plástica. Os movimentos, as intenções e as emoções do momento tornaram-se quadros na parede de minha sala. Foram momentos de conexão e liberdade. Perder-me no tempo, no espaço e me permitir a entrega de energias, sensibilidades, emoções e pensamento ao universo que estava ali ao meu redor e ao universo que há dentro de mim. Não foi somente o fazer arte que me trouxe o autoconhecimento, mas também a observação de como a arte era realizada e o que surgiu como resultado. Iniciei o processo artístico com uma ideia na cabeça, arrumei o espaço, os pincéis, as tintas, uma música de fundo. Escolhi uma cor, fiz um traço. Começou a tocar outra música. Outro traço. Mistura tinta, lava pincel e percebi que não estava dando certo, não estava fluindo. Desisto, guardo tudo, deixa pra outro dia. O outro dia logo chega. Outra música, outros sentimentos, outras necessidades, porém tudo da mesma forma: iniciei com a mesma ideia na cabeça, arrumei um espaço, os pincéis, as tintas, uma música de fundo. Escolhi uma cor, fiz um traço. Começou a tocar outra música. Outro traço. Misturei tintas e deixei o pincel lá no copo. Escolhi uma cor, peguei o pote de tal cor e passei o dedo. Na cor, na tela. Ainda não estava certo. Peguei o mesmo pote, mais um dedo. Mais um. A mão inteira no pote, na cor, na tela. Fluiu. A cor, a música de fundo tão presente, as emoções, as sensações, a energia de tal momento de tal dia ilustrados agora aqui, ao meu lado para me lembrar de me entregar a mim mesma (figura 01 e 02). A ideia de trabalhar o corpo neste trabalho é feito, portanto, com a intenção de liberar os movimentos de possíveis amarras, entender este corpo como corpo vibrátil, que sente, que quando em contato com outro ser mobiliza afetos, expande-se em sua expressão mais individual e busca espaço para expressar-se como vivo, real e ativo. O espaço encontrado é na tela, na argila, no tecido ou na linha: a arte se torna resultado de uma expressão do movimento e da liberdade. Nesta minha experiência encontrei-me com a tela, com o contato direto com a tinta guache que traduziu-se em formas inicialmente abstratas que se moldaram no decorrer da experiência criando formas familiares, transformando a ideia inicial; ou seja, libertei-me da necessidade de uma estética agradável para conseguir uma conexão real com o que queria expressar e assim as cores e formas fluíram para o resultado final no qual é possível sentir a presença do meu eu nesta totalidade do quadro. A Arteterapia se insere nesse tema por ter sido, pessoalmente, o ponto inicial que gerou esta possibilidade de me entregar ao momento e aos sentimentos presentes. O curso tornou-se um processo de entrar em contato com quem sou, o que penso e o que sinto sem usar de escapismos, mas com coragem de olhar em meus olhos, encarar-me. Do lado mais teórico, a Arteterapia auxilia este processo ao proporcionar o resgate da flexibilidade do corpo, bem como das interações psicológicas, emocionais e sensoriais do indivíduo; a busca da sincronicidade e da ressonância entre o corpo físico, o corpo de memórias e a requalificação do potencial do ser humano a partir do autoconhecimento, da expansão da consciência e da capacidade imaginativa. .1.2. Objetivos A vivência desta experiência de entrega me fez refletir a potencialidade da Arteterapia para o autoconhecimento pleno, sendo um caminho de desconstrução de ideias e conceitos que adquirimos no decorrer da vida advindos de diversas formas e lugares. O objetivo deste trabalho é, portanto, refletir sobre a possibilidade desta desconstrução e busca pelos verdadeiros princípios através das vivências em Arteterapia, discorrendo sobre a libertação dos movimentos do corpo físico assim como a iniciativa de se fazer arte livre de preocupações estéticas para, por fim, conciliar a unicidade do sujeito com a criação de uma estética autêntica. Com o intuito de apresentar uma reflexão válida busquei referenciais teóricos das áreas de Arteterapia, Psicologia, Arte Educação e Artes Visuais, Filosofia, entre outros e os unifiquei conforme a leitura de um se complementava com outra. Por fim, compactei as ideias em três capítulos: No primeiro capítulo dediquei-me a apresentar e definir a Arteterapia baseando-me em livros indicados no decorrer do curso, comentando sobre o surgimento desta àrea de atuação, sua chegada ao Brasil e a ligação que há entre as diversas modalidade das artes com o papel terapêutico. O segundo capítulo incentivou um estudo a mais nas áreas de Psicologia e Filosofia por observar o corpo como passível de influências externas, sendo o mesmo uma expressão de quem nos tornamos a partir destas interferências. Os movimentos que realizamos no dia-a-dia e/ou em um momento de expressão corporal transparece o que somos, o que sentimos em determinado momento e trago a reflexão sobre a quebra destas interferências para que o corpo seja livre em sua expressão, assim como assinalo a importância de nos conhecermos para compreender as motivações de nossos movimentos. A partir da explicação quanto aos nossos movimentos para a liberdade caminho ao terceiro capítulo refletindo sobre a expressão dos pensamentos, emoções e memórias nas artes, considerando igualmente o movimento da construção e desconstrução de ideias e conceitos adquiridos externa, cultural e socialmente, demonstrado a partir da limitação da forma. Busco, portanto, a liberdade desta forma e encontro a arte abstrata como caminho para se chegar a criação de uma forma que externalize a expressão única de cada indivíduo. Para concluir, considero o trabalho bibliográfico realizado e pontuo sobre a coragem de permitir-se movimentar, abrir, descobrir e reconstruir quem se é dentro do ateliê terapêutico ao comprovar que a Arteterapia favorece o processo de individualização do ser humano ao proporcionar tal movimento e a criação artística como meio de autoconhecimento, levando o indivíduo a encontrar e respeitar sua estética e suas particularidades. O estudo e as experiências pessoais comprovaram que os objetivos do trabalho foram atendidos. Verificou-se através da leitura que a potência da Arteterapia unida ao contato com o corpo favorece o autoconhecimento, que a arte abstrata é um meio de tornar-se sem formas definidas para que o indivíduo encontre a melhor forma que o expresse. 2. O MOVIMENTO DA ARTETERAPIA A Arteterapia veio até mim durante uma busca sobre a expressão infantil através das artes plásticas e suas possibilidades de significações por, durante o trabalho como professora de educação infantil, perceber nos desenhos a expressão de vivências e sensibilidades das crianças. Com o intuito deconseguir desmistificar o que havia por trás dos traços dos desenhos, iniciei a pós-graduação no Instituto Sedes Sapientiae e fui descobrindo, ao longo dos dois anos de curso, das vivências arteterapêuticas, das leituras e dos estágios, o que é, por fim, a Arteterapia. Considero importante, porém, ainda ser conduzida por minhas mestras para definir e explanar o que é Arteterapia e, para isto, uso dos primeiros livros por elas indicados: a série do “Percursos em Arteterapia”, organizado por Selma Ciornai, sendo três livros no total visando, além da comemoração dos 15 anos de percurso da formação de arteterapeutas no Instituto, a divulgação da atuação do profissional assim como experiências práticas e as teorias que o fundamentam. 2.1. Definindo a Arteterapia Aos ouvirmos o termo “Arteterapia” nos vem à mente o ato de empregar recursos artísticos em contextos terapêuticos, porém esta é uma definição ampla por não contemplar que o fazer artístico possui potencial de cura a partir do momento em que o indivíduo é acompanhado pelo arteterapeuta e com ele cria uma relação que contribui com a ampliação da consciência e do autoconhecimento, possibilitando mudanças na vida interna e externa. A palavra “arte” remete às diversas linguagens artísticas, contudo “arteterapia” está relacionado ao “trabalho de profissionais que utilizam preponderantemente as artes plásticas como recurso terapêutico” (CIORNAI, p. 08, vl. 62), o uso das diferentes linguagens artísticas ficou associado ao termo “terapias expressivas” ou “artes em terapia”. A Arteterapia não é um despretensioso encontro dos conhecimentos de teorias e práticas da arte com a psicologia. Para se tornar um arteterapeuta, portanto, “não basta ser psicólogo e “gostar de arte” ou ser artista/arte-educador e “gostar de trabalhar com pessoas co dificuldades especiais” (...). A formação em arteterapia, além das matérias de arte e psicologia necessárias, compreende também um corpo teórico e metodológico próprios, que abrange conhecimentos da história da arteterapia e dos autores pioneiros e contemporâneos de maior proeminência na área, conhecimento dos processos psicológicos gerados tanto no decorrer da atividade artística como na observação de trabalhos de arte, conhecimento das relações entre processos criativos, terapêuticos e de cura, conhecimento das propriedades terapêuticas dos diferentes materiais e técnicas, conhecimento dos fundamentos teóricos e metodológicos da abordagem, estudo de pesquisas e trabalhos já realizados por arteterapeutas em diversos campos de atuação, vivência pessoal e prática supervisionada por profissionais com experiência na área”. (CIORNAI, 2004, p. 08, vl. 62; grifos do autor). A formação em Arteterapia no Brasil é uma área de especialização, ou seja, um complemento para cada profissional inserir as teorias e práticas aprendidas durante o curso na sua área da habilitação profissional (seja na psiquiatria, psicoterapia, psicopedagogia, fonoaudiologia, arte-educação, entre outros). Esta formação possui uma ampla abertura de campos de atuação e pode ser desenvolvida em diversos contextos terapêuticos como decorrência das prévias orientações teóricas do arteterapeuta, assim como das práticas em aulas e das práticas supervisionadas. A Arteterapia possui princípios básicos mas há, também, uma flexibilidade que permite sua inserção nas distintas maneiras de lidar com o outro, adequando-se nos diversos contextos profissionais. A Associação Americana de Arteterapia exemplifica nos textos abaixo este discurso que diz respeito ao trabalho do arteterapeuta, e, em seguida, quanto aos indivíduos que buscam esta forma alternativa de terapia: “Arteterapeutas são profissionais com treinamento tanto em arte como em terapia. Têm conhecimento sobre desenvolvimento humano, teorias psicológicas, prática clínica, tradições espirituais, multiculturais e artísticas e sobre o potencial curativo da arte. Utilizam a arte em tratamentos, avaliações e pesquisas, oferecendo consultoria a profissionais de áreas afins. Arteterapeutas trabalham com pessoas de todas as idades, indivíduos, casais, famílias, grupos e comunidades. Oferecem seus serviços individualmente e como parte de equipes profissionais, em contextos que incluem saúde mental, reabilitação, instituições médicas, legais, centros de recuperação, programas comunitários, escolas, instituições sociais, empresas, ateliês, e prática privada.” (AATA, 2003) “A arteterapia baseia-se na crença de que o processo criativo envolvido na atividade artística é terapêutico e enriquecedor da qualidade de vida das pessoas. Arteterapia é o uso terapêutico da atividade artística no contexto de uma relação profissional por pessoas que experienciam doenças, traumas ou dificuldades na vida, assim como por pessoas que buscam desenvolvimento pessoal. Por meio do criar em arte e do refletir sobre os processos e trabalhos artísticos resultantes, pessoas podem ampliar o conhecimento de si e dos outros, aumentar sua auto estima, lidar melhor com sintomas, estresse e experiências traumáticas, desenvolver recursos físicos, cognitivos e emocionais e desfrutar do prazer vitalizador do fazer artístico.” (AATA, 2003) 2.2. Pioneiras da Arteterapia: história e caminhos O caminho percorrido pela Arteterapia até que a mesma fosse vista como profissão e como um conhecimento a ser estudado, aprimorado e apreciado pode-se considerar iniciado na Idade Média na qual os seres humanos desenvolveram o uso do desenho como forma de “representar, organizar, significar e assenhorear-se do mundo em que viviam”, como diz Selma Ciornai (2004, p. 21, vl. 62), continuando sua fala complementa ao relembrar que recursos expressivos existem desde tempos dos quais não houve possibilidade de registro, afinal, ainda assim havia a prática das “danças, cantos, tatuagens e pinturas em rituais de cura, de poder e de invocação às forças da natureza” (CIORNAI, 2004, p. 21, vl. 62), ou seja, temos aqui a defesa de que o uso inicial das artes como forma terapêutica atribui-se às antigas civilizações. A Arteterapia como profissão e a visão da mesma como uma área peculiar quanto o conhecimento que a baseia e a atuação que realiza será concebida após a Primeira Guerra Mundial. Para compreender efetivamente este processo da validação da Arteterapia, Selma Ciornai nos contextualiza ao explicar que “Nas últimas décadas do século XIX, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, iniciava-se, em paralelo, um movimento importante de mudanças, cuja origem encontra-se na “crise da ciência e da verdade” (Barbosa, 1979, VII) e na busca por outros parâmetros norteadores e de compreensão do ser humano, além da lógica e do pensamento racional. A Teoria da Relatividade de Einstein e às demais descobertas da física moderna alavancaram e deram fundamento a uma transformação de paradigmas que ainda hoje revoluciona a cultura ocidental” (CIORNAI, 2004, p. 22, vl. 62) Ciornai segue associando a história da Arteterapia com a Psicologia ao relembrar o conceito de inconsciente esclarecidopor Freud e definindo-o como aquilo “que influi e pesa nas escolhas humanas, mas não obedece às leis do pensamento cartesiano, lógico e racional” (CIORNAI, 2004, p. 22, vl. 62). Não somente a importância do inconsciente foi descrita, mas também a importância da subjetividade e o uso das imagens, sendo elas vindas de sonhos ou transformadas em artes, com um aspecto de auxílio ao diagnóstico e que se tornou um aspecto assíduo nas pesquisas e trabalhos de psiquiatras em sua maioria europeus que possuíam interesse em estudar a produção artísticas de seus pacientes, como ocorreu com Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Selma Ciornai também realiza uma associação com a História da Arte ao notar que “os movimentos da arte das duas últimas décadas do século XIX às primeiras do século XX, que são caracterizados pelas mesmas preocupações. Em vez da percepção acurada e naturalista da realidade, o que vem à tona com o Expressionismo é a busca da emoção e da subjetividade humana; no Dadaísmo a busca da criança interna e o nonsense como estratégias de contraposição à lógica social burguesa (...); no Cubismo, o reconhecimento de que todo fenômeno pode ser visto de ângulos diversos; no Surrealismo (...) e no “teatro do absurdo” a busca do inconsciente, do imaginário e da percepção particular da realidade. E, com esses movimentos, a aceitação da assimetria, do exagero, da incongruência, da deformação, da coexistência de diferentes perspectivas e da multidimensionalidade como linguagens artísticas. Todos esses movimentos trazem a proposta de novas perspectivas para a compreensão do universo humano.” (CIORNAI, 2004, p. 22, vl. 62) A necessidade destas novas perspectivas ressoou também na área da educação por decorrência de pensadores e educadores como “Piaget, Dewey e Montessori - que se dedicaram ao estudo do desenvolvimento infantil concebendo a educação como processo de cultivo e incentivo ao desenvolvimento da criança em sua totalidade, como ser no mundo” (CIORNAI, 2004, p. 23, vl. 62). Porém os pioneiros da arte na educação foram Viktor Lowenfeld e Florence Cane por defenderem que o currículo escolar carecia de exercícios para a criatividade e para a linguagem das artes “como caminho para tornar viável o desenvolvimento integrado do conjunto de diversas potencialidades da criança: cognitiva, afetivas, motoras e criativas.” (CIORNAI, 2004, p. 23, vl. 62). Guiada por estas ideias surgiu, portanto a Arte-educação e, sustentada pelas mesmas inquietações e propósitos, surge também a Arteterapia. 2.2.1. Margareth Naumburg: o resultado como foco Margareth Naumburg nasceu em 1890 em Nova York, Estados Unidos, cidade na qual chegou a ser reconhecida dentro do meio artístico e literário nas décadas de 1920 e 1930 como artista plástica. Formada em psicologia pela Universidade de Colúmbia (Estados Unidos) tornou-se educadora após ir à Inglaterra realizar estudos na área e, em seguida, foi à Roma onde, através de um curso, conheceu o método de Maria Montessori para a educação infantil que veio influenciá-la profissionalmente ao voltar para o Estados Unidos chegando a fundar a escola Walden com o intuito de defender “a importância da expressão dos conteúdos e motivações inconscientes para a educação e o desenvolvimento da personalidade. essa escola inovou os currículos escolares tradicionais da época implementando atividades livres e a prática da expressão artística espontânea em sua metodologia educacional” (CIORNAI, p. 24, vl. 62). Após dez ano como diretora desta escola, Naumburg escreveu A criança e o mundo (1928) em que “advogava uma nova filosofia educacional com ênfase na expressão criativa e imaginativa de cada aluno.” (Ciornai, p. 25, vl. 62). Ao não deixar de lado seus conhecimentos da psicoterapia, Naumburg entrelaçou tais linhas de pensamentos e começou a realizar palestras em instituições de educação, psicologia e psiquiatria. “Em suas palavras: “A convicção de que a expressão livre na arte é uma forma simbólica de linguagem nas crianças, básica a toda educação, cresceu através dos anos. Concluí que esta expressão espontânea na arte poderia ser básica também ao tratamento psicoterápico Naumburg, 1966, p.30)” (Ciornai, p. 25, vl. 62) O primeiro livro sobre Arteterapia foi escrito por ela em 1947 sendo uma pesquisa sobre o papel da arte no trabalho com crianças que possuíam distúrbios de comportamento. Inicialmente foi chamado de “Estudos sobre a expressão ‘livre’ na arte de crianças e adolescentes com problemas de comportamento por meio de diagnóstico e terapia” e sendo republicado em 1973 com o título de Introdução à arteterapia. Em seguida vieram mais três de Margaret Naumburg: Arte esquizofrênica: seu significado em psicoterapia (1950), Arte psiconeurótica: sua função em psicoterapia (1935) e Arteterapia de orientação analítica: princípios e práticas (1966). A Arteterapia já era um termo utilizado nos Estados Unidos, porém Naumburg ficou reconhecida como a “mãe” por ter sido a pioneira em diferenciar a Arteterapia “como um campo de conhecimento específico, estabelecendo os fundamentos teóricos sólidos para seu desenvolvimento” (CIORNAI, p; 25, vl. 62). A Arteterapia, porém, também é vista com dois olhares diferentes: há a “arte em terapia” e a “arte como terapia”. Naumburg é reconhecida como quem liderou a orientação de “arte em terapia”, isto é, seu foco se consolidava no conteúdo inconsciente que era expresso na arte realizada pelo indivíduo e em como ocorria a “compreensão do significado simbólico implícito nas imagens produzidas, (Naumburg) solicitava e incentivava associações livres do paciente buscando promover a obtenção de insights sobre a imagética e o conteúdo simbólico dos conflitos inconscientes ali projetados” (CIORNAI, p; 26, vl. 62) 2.2.2. Edith Kramer: o processo como foco Edith Kramer se evidenciou por conduzir uma segunda vertente para a Arteterapia: aquele no qual o foco central se dá no “valor terapêutico do processo criativo e do fazer artístico em si” (CIORNAI, p.. 27, vl. 62), ou seja, na “arte em terapia”. Nascida na Austrália em 1916, Kramer estudou desenhos, escultura e pintura sendo influenciada pelo método de ensino de desenvolvimento das artes pela escola Bauhaus, escola de artes alemã que a “auxiliou em sua formação e crescimento artístico sendo um elemento essencial para a compreensão de Kramer sobre as artes visuais. No entanto, seu estilo permaneceu consistentemente representativo. A expressão pessoal permaneceu subordinada à tarefa de interpretar o sujeito com uma compreensão respeitosa.” 1 Kramer, já consolidada como artista e arte-educadora, iniciou na década de 1930 aulas de artes em Praga para filhos de refugiados, impressionando-se ao observar o valor terapêutico das atividades artísticas realizada neste espaço. Em 1938 emigrou-se para os Estados Unidos onde teve a oportunidade de publicar seus livros: Arteterapia em uma comunidade de crianças (1958) e Arte como terapia comcrianças (1971), e outros artigos condizentes com o valor da arte, da arte-educação e da arteterapia voltada à infância. (Ciornai, 2004, vl. 62). “Combinando sua vivência e os conhecimentos e habilidades em arte e arte-educação com seus estudos de psicanálise, Kramer sublinhava a importância da arteterapia nos processos de organização e maturação psíquica, assim como nos processos sublimatórios e de fortalecimento do ego. Como Naumburg, tinha também uma acentuada preocupação social, acreditando que o ensino da arte e da expressão livre de estereótipos poderiam potencialmente ser agentes promotores da saúde coletiva.” (CIORNAI, p. 28, vl. 62) Considero importante, ainda, citar a perspectiva de Kramer sobre a diferenciação de arteterapia com a psicoterapia, retirando o trecho a seguir do livro Percursos em Arteterapia (vl. 62, 2004, vl. 62) no qual Selma Ciornai condensa a explicação de Kramer, a partir de seu livro Arte como terapia para crianças (1971): “Meu ponto de vista é o de uma educadora e artista que combina habilidades profissionais no campo das artes com um conhecimento geral de normalidade e patologia em crianças. A fundamentação teórica de minha compreensão da patologia infantil é baseada principalmente no pensamento analítico freudiano. Porém, a ênfase é na ideia de “arte como terapia” em vez de uma psicoterapia que utiliza arte como instrumento. (...) Arteterapia é concebida primariamente como um meio de fortalecer o ego, desenvolver o senso de identidade e o amadurecimento de forma geral. Sua função básica é vista no poder da arte de contribuir para o desenvolvimento de uma organização psíquica capaz de funcionar sob pressão sem fragmentar-se ou 1trecho traduzido livremente retirado do site oficial da Edith Kramer recorrer a medidas defensivas nefastas. Assim concebida, a arteterapia torna-se um componente essencial do contexto terapêutico e uma forma de terapia, que complementa ou apóia a psicoterapia mas não a substitui (1971, p. xii, xiv.)” (CIORNAI, p 28, vl. 62) 2.2.3. Janie Rhyne e a unificação dos conceitos: processo e resultado em foco Janie Rhyne manifestou-se sobre as argumentações quanto ao princípio da Arteterapia e trouxe um novo pensar: “a arte como e em terapia”, ou seja, Rhyne considerava que “o valor terapêutico da atividade artística está tanto no processo de criação quanto nas possíveis reflexões e elaborações posteriores sobre os trabalhos realizado” (CIORNAI, p. 29, vl. 62). Nascida em 1913 na Flórida, Estados Unidos. Em 1935 finalizou seus estudos acadêmicos na Universidade do Estado da Flórida, obtendo um diploma de Bacharel em Artes com dupla especialização: em arte e ciências sociais. Em seguida continuou estudando, de maneira autodidata, sobre pintura, psicologia e relações pessoais e sociais, sendo uma fase fundamental para que tenha se tornado terapeuta. Iniciou 1956 um mestrado interdisciplinar na Universidade da Flórida sobre Arte e Antropologia, “desenvolvendo um trabalho em antropologia cultural com ênfase na relação entre etnologia e expressão artística.” (CIORNAI, p. 29, vl. 62). Rhyne recebeu seu diploma de mestrado vinte anos depois e foi, em seguida, viver em comunidades de artistas da Espanha e do México, conforme nos conta Selma Ciornai, exaltando sua ida também ao Canadá e seu retorno para São Francisco, no qual realizou trabalhos em diversos ambientes e, quanto a isso, Rhyne escreveu: “Ensinei arte em vários contextos - com crianças problemáticas, em um hospital da Marinha, em um centro comunitário, no meu próprio estúdio. Meu caminho ia e vinha em ziguezague, aparentemente ao sabor dos ventos; mas eu estava buscando maneiras de usar recursos artísticos como modo de dar um significado maior e melhor ao sentido de viver (Rhyne, 1977, p. 85)” (CIORNAI, p.30, vl. 62) Com o intuito de conhecer Fritz Perls, gestalt-terapeuta que tinha “por objetivo ajudar às pessoas a descobrir seu “eu mais autêntico”, procurando contribuir para a construção de uma “nova era” a partir de transformações individuais e sociais” (CIORNAI, p. 30, vl. 62), em 1965 Janie Rhyne passou a frequentar a cidade de Esalen iniciando um processo intensivo de psicoterapia e treinamento com Perls no qual inseriu seus desenhos com o intuito de explorá-los com o olhar terapêutico. O interesse na relação da arte com a terapia cresceu como área de estudo e pesquisa para Perls que, por sua vez, pediu para que Rhyne realizasse experimentos de arte nos grupos que conduzia em Esalen. Janie então passou a trabalhar e estudar com Pearls ao mesmo tempo em que, em São Francisco, “conduzia grupos de autoconhecimento utilizando a arte a abordagem gestáltica. Eram os “Art Experience” workshops. Em suas palavras: “A Experiência de Arte Gestáltica é dirigida à autodescoberta, ao crescimento, ao enriquecimento - todas as coisas desejadas pelos que se engajam no desenvolvimento de seu potencial de forma auto-escolhida e mais ou menos autodirigida. A experiência de arte gestáltica apresenta o uso de materiais artísticos, em workshops e/ou grupos de longa duração, geralmente numa atmosfera aberta, em que a exploração descompromissada tem precedência sobre metas terapêuticas óbvias (Rhyne, 1978)” (CIORNAI, p; 31, vl. 62; grifos do autor) Em 1969, em São Francisco, Janie Rhyne e mais dois colegas fundaram o Instituto de Gestalt de São Francisco. O espaço utilizava o próprio ateliê de Rhyne e por lá trabalhou como professora de terapeutas. Seu primeiro e único livro foi publicado em 1973 e intitulado como “Arte e Gestalt: padrões que convergem”, escrito ao mesmo tempo em que ingressava em seu doutorado em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz. Ao terminar de escrever tal livro Rhyne não possuía conhecimento da Arteterapia como profissão, o que ocorreu após a Associação Americana de Arteterapia (AATA) enviar uma carta convidando-a a se unir à instituição. “Desde então Janie participou ativamente dos congressos anuais da AATA e de várias de suas comissões (de educação, de pesquisa etc.), publicando vários artigos e resenhas em revistas da área, recebendo também, em 1980, o título de membro honorário vitalício da Associação”. (CIORNAI, p. 31, vl. 62) O ano de 1980 também foi o período no qual Rhyne mudou-se para Iowa com o intuito principal de ficar perto de sua filha, porém acabou filiando-se à Associação Americana de Psicologia na qual foi nomeada para o comitê de Psicologia da Arte, o que se tornou um motivo de orgulho pois considerava que no decorrer de muitos anos os arteterapeutas eram criticados por psicólogos devido a uma aparente ausência de fundamentação teórica quanto aos conhecimentos da psicologia. “Nos quinze anos que se sucederam, (Rhyne) lecionou em várias universidades dos Estados Unidos e do Canadá. Seu espírito sagaz e inquieto a fazia sempre buscar novas fronteiras. Em 1993, na XXIV Conferência Anual da AATA, com 80 anos, apresentou o que antevia como novas perspectivas para a Arteterapia, trazendo contribuições dos campos dafilosofia, da psicologia, da história da arte, da biologia, da antropologia e até da paleontologia e da cibernética (Lusebrink, 1995)” (CIORNAI, p. 34, vl. 62) 2.2.4. Selma Ciornai: Arteterapia no Brasil Após usar seu nome como citação de outras arteterapeutas indispensáveis para a história desta profissão, citarei a história Selma Ciornai pela sua importância em conduzir os conhecimentos de Arteterapia para que chegassem ao Brasil, incluindo a idealização, elaboração e concretização da atual Pós-Graduação em Arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae. Selma Ciornai formou-se em Artes Criativas e Sociologia/Antropologia na Universidade de Haifa, Israel em 1975, mesmo ano em que deteve do primeiro contato com a Arteterapia nesta mesma Universidade ao frequentar um curso do programa de pós-graduação em Educação Especial concedido pelo Prof. Peretz Hess, que a ensinou os tópicos fundamentais de uma abordagem fenomenológica em Arteterapia - sendo que estes tópicos “até hoje norteiam e caracterizam a abordagem dos cursos que damos no Sedes” (CIORNAI, p. 10, vl. 62). Retornou ao Brasil em 1976 e iniciou um trabalho no Rio de Janeiro como professora de artes, assim como ministrava aulas de Psicologia da Criatividade na Universidade Gama Filho e coordenava trabalhos de Arteterapia no Cape-Leblon (centro de atendimento vinculado à Unesco destinado às crianças pré-escolares carentes). Sua estadia por aqui, porém, foi breve. Logo em 1978 Selma viajou para os Estados Unidos para realizar seu mestrado em Arteterapia pela Universidade do Estado da Califórnia, formando-se em 1980. Ciornai considerou que os conhecimentos adquiridos neste período trouxeram um novo aspecto do trabalho arteterapêutico, diferente daquele aprendido com o Prof. Hesse por possuírem uma “abordagem psicanalítica com ênfase no aspecto diagnóstico da Arteterapia” (CIORNAI, p.10, vl. 62). Ainda sim, no mesmo ano de 1978, Ciornai conheceu Janie Rhyne no IX Congresso da AATA em Los Angeles. Após alguns contatos, como diz, Selma foi para Louisville para estudar com Rhyne cursando seu programa intensivo de pós-mestrado durante o verão. “Em sua forma de pensar e trabalhar em Arteterapia, encontrei um prolongamento da abordagem fenomenológica que eu havia aprendido com o prof. Hesse, integrada à perspectiva e à metodologia da Gestalt-terapia.” (CIORNAI, p.11, vl. 62) Neste curso havia também o aprendizado quanto ao ETC - Expressive Therapies Continuum (Continuum das Terapias Expressivas) - sendo este definido como “um modelo de pensamento para a utilização e indicação terapêutica de técnicas e materiais em Arteterapia” (CIORNAI, p. 11, vl. 62) que é, inclusive, uma das principais bases teóricas do atual curso de Pós-Graduação. Aproveitando sua estadia no exterior, Selma iniciou seu doutorado em Psicologia Clínica no Saybrook Institute, ao mesmo tempo em que também iniciava uma formação em Gestalt-terapia no San Francisco Gestalt Institute. Sobre estes anos fora do Brasil, ela comenta: “Nos cinco anos que morei nos Estados Unidos participei também de vários congressos e workshops intensivos com profissionais de Arteterapia (...) o que me mostrou uma oportunidade de conhecer estilos e abordagens diversos em Arteterapia (junguiana, transpessoal etc.) que enriqueceram meu conhecimento da área -, e trabalhei por dois anos em atendimento individual, familiar, grupal e comunitário em uma clínica dirigida à população latina de baixa renda, no qual pude ampliar minha prática como Gestalt-terapeuta e arteterapeuta ” (CIORNAI, p.11, vl. 62) 1983 foi o ano em que Ciornai volta ao Brasil e recebe o ATR (Arteterapeuta Registrada), ou seja, regressou possuindo o título de credenciamento da Associação Americana de Arteterapia que a permitiu, através do reconhecimento profissional, sua capacitação para o ensino de Arteterapia e para a supervisão também na àrea. Com este novo olhar profissional Ciornai ministrava cursos para professores da educação especial na Universidade Federal do Rio de Janeiro e o curso de expansão “Introdução à Arteterapia” na PUC-SP, fazendo esta ponte aérea com frequência durante um ano até 1984 quando, através do convite por Therese Tellegen, “passei a integrar a equipe docente do curso de especialização em Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae, onde trabalhei por mais de dez anos - o que me fez decidir ficar em São Paulo. (...) Foi só em 1989 que propus à diretoria do Sedes um curso de expansão em arteterapia, convidando João Augusto Frayse-Pereira (professor de Psicologia da Arte da USP) para dar aulas comigo. Então, por solicitação de um grupo de alunas, organizei no semestre seguinte um módulo avançado que, em 1990, se transformou no atual curso de especialização em Arteterapia ” (CIORNAI, p. 12, vl. 62). O caminho que se segue até o curso ser como é atualmente sucedeu-se pelo esforço e união de alunas que vinham ao Sedes em busca de novas informações e formações profissionais. A segunda turma da pós-graduação já contava com ex-alunas, formadas na primeira turma, para ministrar aulas sobre os conhecimentos que haviam pré e pós a formação em Arteterapia. “Professoras com conhecimento e/ou estudos em andamento em outras abordagens, além da Gestalt-terapia (psicanálise, abordagem junguiana, dinamica energética do psiquismo, transpessoal etc.), foram paulatinamente integrando seus conhecimentos às matérias que passaram a ensinar, sem perder, porém, o eixo comum: a base fenomenológico-existencial. Assim, a equipe de professores foi crescendo, fortalecendo-se e, com entusiasmo, contribuindo de maneira decisiva para que o curso tivesse sua forma atual, com ramificações e ampliações, mas mantendo seu eixo” (CIORNAI, p. 12, vl. 62) São diversos os profissionais que buscam a Arteterapia como formação - seja como complementação, seja como busca de uma nova profissão -, assim como também é diverso os locais de atuação do arteterapeuta e com o objetivo de acolher tais diferenciados aspectos da profissão, este curso de especialização do Instituto Sedes possui a preocupação de uma “formação consistente em três áreas: a de arte - que inclui tanto prática de ateliê como fundamentos da arte-educação, teorias da criatividade e história da arte; a terapêutica - que inclui a fundamentação filosófica e psicológica que dá base ao trabalho do arteterapeuta, como o aprendizado da nossa postura, da conduta e do pensar terapêutico; e da arteterapia propriamente dita, que diz respeito a sua história, a seu corpo teórico e metodológico e à prática supervisionada.” (CIORNAI, p. 13, vl. 62, grifos do autor) 2.3. Intersecções com linguagens expressivas A Arteterapia têm inserido em seu meio às linguagens expressivas: o uso do corpo, da mente e das artes como meio de expressão. Estes três aspectos são estudados, também, por cada área citada: a arte, a psicologia, a própria arteterapia como forma de unir e elevar cada maneira de lidar com cada parte do nosso ser. Eloisa Quadros Fagali em seu artigo “Integrando Trabalhos Plásticose Linguagens Expressivas” comenta sobre seu trabalho realizado com diversas 2 formas de manifestação artísticas e defende seus motivos “(...) Tenho desenvolvido projetos educacionais e terapêuticos que enfatizam a utilização das diferentes formas de expressão: musical, visual plástica, corporal, literária e psicodramática. À medida que transitamos de uma linguagem a outra, descobrimos novos sentidos e novos ângulos da realidade. (...) Em minhas práticas educacionais e terapêuticas com crianças, adolescentes, adultos e instituições, percebo quanto esse transitar pelas diferentes expressões artísticas e formas de contato flexibiliza o indivíduo, um grupo ou uma instituição, e leva-os a descobrir novos caminhos, novas identidades e valores, ampliando sua consciência diante dos conflitos e das estagnações.” (CIORNAI, p. 226, vl. 63) Considero os instrumentos destas linguagens expressivas como sendo a música, as artes plásticas, teatrais e a expressão corporal. Concordo com Fagali quando comenta sobre o poder de cura de tais manifestações artísticas: cura pela capacidade do indivíduo em entrar em contato consigo e revelar suas sensações, percepções e sentimentos, construindo um potencial de se libertar dos aprisionamentos aos quais nós nos limitamos, da rigidez à qual somos condicionados, da superação de tais enrijecimentos buscando as possibilidades de seu ser, o encontro pleno consigo, o autoconhecimento. 2publicado no livro “Percursos em Arteterapia” (vol. 63, 2004, p. 219, organização por Selma Ciornai), A expressão através da arte traz esta possibilidade de entrar em contato consigo, pois torna-se um momento de aprofundamento em nosso interior favorecendo maior consciência da nossa individualidade e da nossa ligação com o mundo exterior. Iraci Saviani discorre sobre esta perspectiva no livro Percursos em Arteterapia (vl. 63, 2004), defendendo o trabalho com a arte “(...) de forma abrangente, abrindo caminhos para o experimento que leva a múltiplas possibilidades e à diversidade de materiais, transformando elementos internos e externos em atitudes que facilitam o contato com a natureza criativa e divina de cada ser” (CiORNAI, p.51, vl.63) Estar em contato com a criatividade é estar aberto para entrar em contato, também, com nossos sentimentos mais profundos, pois os símbolos se materializam na arte sendo guiados por nossas sensações, emoções e memórias. Uma vez que há o contato, há um novo olhar, uma nova percepção para tais sensações, emoções e memórias internalizadas. O pensar criativamente é um processo de desconstrução e construção, de dar forma e tornar-se abstrato, de contactar a intuição e a subjetividade para encontrar o “eu” legítimo. Assim vamos caminhando para o entendimento do papel terapêutico da arte: utilizando as sensações para criar, para se expressar através de uma multiplicidade de recursos artísticos com o propósito de ressignificar o uso de materiais conhecidos ou de explorar novos havendo a possibilidade de escolha para fazer o que se quer e ser quem se é. Ana Beatriz Toledo de Almeida, Regina Fiorezzi Chiesa e Walter Müller nos questiona: “Se em nosso estados mais primitivo e indiferenciado de sujeito/objeto somos permeados de sons, imagens e luminosidade, cores e formas, cheiros e movimentos e nos impregnamos deles antes mesmo que das palavras, não seriam esses mesmos códigos altamente respeitáveis, tão profundos e muitíssimo mais primitivos? Não podem eles alcançar esse inominado que a palavra trai?” (CIORNAI, p. 84, vl, 63) Estes três atores observaram que na terapia verbal há “defesas e resistências” fazendo tal terapia chegar a um limite racional de nossas questões, não havendo, portanto, tamanha profundidade ao eu primitivo e sensitivo para que se consiga uma transformação e ressignificação das questões apresentadas, conforme Fayga Ostrower confirma: “Ao criar, o artista não precisa teorizar a respeito de suas vivências, traduzir os pensamentos e às emoções em palavras. Ele tem mesmo que viver a experiência e incorporá-la em seu ser sensível, conhecê-la por dentro. Daí, espontaneamente lhe virá a capacidade de chegar a uma síntese dos sentimentos - naquilo que a experiência contém de mais pessoal e universal - de transpor esta síntese de linguagem adequando às formas ao conteúdo” (CIORNAI, p. 85, vl, 63) Com o intuito de viver a essência de ser quem se é, foquei meu trabalho nesta libertação dos conceitos concebidos externamente, de forma social e cultural, que foram internalizados sem uma pré reflexão sobre se tal conceito se sincroniza com os reais ideais do indivíduo. Assim, proponho o estudo do corpo e da arte como uma prática de expressão capaz de desconstruir e reconstruir o indivíduo de acordo com seu eu verdadeiro, autêntico. 3. O MOVIMENTO DO CORPO-CARNE-MUNDO 3.1. Corpo “O corpo é o inconsciente visível. É o nosso texto mais concreto, nossa mensagem mais primordial, a escritura de argila que somos. É também o templo onde outros corpos mais sutis se abrigam” Reich O corpo é composto por um sistema biológico, um conjunto de complexos mecanismos fisiológicos e de hormônios que consistem numa forma física que se movimenta pelo espaço. A apreensão do conceito de corpo se focaliza nos termos biológicos incluso a anatomia, a antropometria e a fisiologia, ou seja, dividimos o indivíduo em partes: músculos, órgãos, ossos, células e químicas que se unem neste organismo material. Porém no estudo sobre o corpo, no convívio com o meu, e no observar os outros corpos, compreendo que não podemos ignorar que somos, também, seres que se movimentam e se expressam - inclusive nas sutilezas dos gestos, das dores e incômodos, das sensibilidades do contato. A visão fragmentada do ser humano induz a uma medicina atual voltada à cura de sintomas e desconsidera o indivíduo como um todo. Esta visão, porém, não se sintoniza com a minha. Neste trabalho considero o corpo como um todo no sentido de que o corpo é composto por um universo de sensações, de emoções, de memórias, consciência e de inconsciência que forma uma totalidade. O corpo registra nossas experiências psicológicas, emocionais, sociais e físicas; manifesta sensações, emoções por intermédio de movimento, da linguagem verbal e não-verbal e nos constitui como ser humano. Tendo isto em vista, o corpo possui limites, possibilidades e contornos próprios. Em resumo, digo que o corpo é o lar de memórias que vivemos, é o aspecto físico de nossa personalidade assim como o movimento dessa personalidade caminha em direção à constante evolução da consciência. 3.2. Carne A razão, por vezes, me parece ser a faculdade que nossa alma tem de nada entender de nosso corpo. Valéry O corpo é uma representação material do complexo ser físico, psíquico e social que somos, ou seja, por ser carne; é por estas características influenciado e modificado. Um machucado físico pode deixar cicatrizes; uma alergia pode surgir a partir de somatização, ou seja, ter uma origem emocional na qual não é encontradauma explicação patológica; e o convívio social pode modificar como nos relacionamos conosco e com os outros. Citando Moshe Feldenkrais, criador do Método Feldenkrais e um dos inovadores no campo do mecanismo do corpo, da terapia física e da cura, considerei observar o ser humano em sua totalidade ao concebê-lo como composto por três estruturas: “o sistema nervoso, que é o núcleo; o corpo - esqueleto, vísceras e músculos -, que é o envelope; e o meio ambiente, que é o espaço, a gravidade e a sociedade” (Feldenkrais, 2010, p. 32). Compreendendo estes itens, Mary Whitehouse, bailarina profissional, professora e terapeuta junguiana, desenvolveu o Movimento Autêntico a partir de análises pessoais e estudos que envolviam a teoria de Carl Gustav Jung com a dança, afirmando em seu artigo “Reflexões sobre uma Metamorfose” (1968) que “Foi importante o dia que me dei conta que não ensinava dança, ensinava a pessoas… Indicava a possibilidade de que meu interesse principal podia ter haver com o processo e não com os resultados, que não era somente pela arte que eu estava buscando e sim por um desenvolvimento humano.” Conforme a citação apresentada e sua constatação em desenvolvermos uma consciência cinestésica - uma consciência corporal que desperte nossa consciência ao observarmos como e de que maneira nos movemos (lento ou rápido, pesado ou leve, entre outros) e nos leve a uma percepção que será transferida ao reconhecimento da nossa personalidade e ao uso diário e habitual do nosso corpo. Assim, adquirimos uma consciência de que, aquilo que chamamos de corpo é, também, meu eu. Aqui iremos usar o conceito de corpo-mente de Chaiklin, membro fundadora da American Dance Therapy Association (ADTA), que assim o define: O conceito corpo-mente realiza uma volta completa. Todos os elementos e componentes do humano são um conjunto de sistemas relacionados. A mente é parte necessária do corpo e o corpo afeta a mente. (...) Quando falamos do corpo, nós não estamos apenas descrevendo os aspectos funcionais do movimento, mas como nossa psique e emoções são afetadas pelo nosso pensamento e como o movimento em si efetua mudança neles (p. 5). (FARAH, 2016, p. 544) Em sua tese de doutorado, Hélia Maria Borges (2009), ensina que que “cada corpo constrói sua forma de existir e que a força de sua permanência no mundo depende de seus encontros e da possibilidade de manifestar as misturas singulares oriundas desses encontros” (p. 17). Esta afirmação se harmoniza com o presente trabalho ao propor refletir sobre o movimento como manifestação do “corpo-carne-mundo” e as consequências resultantes de sua inserção numa cultura que interfere nos ritmos regulares dos corpos, silenciando as “turbulências intensivas necessárias à manutenção da vida, gerando sujeitos apáticos, envergonhados, deprimidos que, indiferentes, se tornam impotentes em fabricar-se nos encontros com o mundo, erotizando-os” (p. 20). 3.3. Mundo “Os sentidos, as experiências que se dão por meio das sensações, dos órgãos perceptivos, impregnam o sentido de cada coisa no mundo. Esses sentidos estão sempre mergulhados na forma como os objetos e suas implicações são apropriados por cada cultura e relativos a cada momento histórico (...) assim, como diz Dastur (2001): “o corpo de carne se abre à carne universal do mundo”. (BORGES, 2009, p. 35) Para adentrar a concepção do corpo no mundo precisamos compreender que nosso corpo é impregnado do conjunto de forças do coletivo. Mas o corpo não é apenas receptáculo. O corpo, por sua vez, acaba exteriorizando as forças do coletivo. Refletindo sobre este corpo ativo, produtivo e manifestante, precisamos nos aproximar do momento histórico e político no qual está inserido. Peter Pelbart defende que, na sociedade vigente, nossos corpos, inteligência, imaginação estão sendo constantementes interferidos pelos saberes e poderes da ciência, do Estado, do capital e da mídia. Nesse sentido, Hélia Maria Borges observa que nossas vidas privadas e nosso inconsciente “vão sendo invadidos, produzindo como efeito um esvaziamento da capacidade humana de crítica, inventiva, intuitiva (...) (por uma) política exercida como um fluxo contínuo que expropria a vida em sua qualidade de existente, esvaziando, a todo mundo, as referências subjetivas conquistadas” (BORGES, p. 36). A conscientização de nossa autonomia e identidade contraria o fluxo dominante e há de ser feita a partir da apropriação do nosso ser interior - estarmos em controle de quem somos nos diversos aspectos: biologicamente, ideologicamente, emocionalmente, sensorialmente. Assim entendemos que os mecanismos do biopoder, via práticas individuais disciplinares e via práticas do corpo coletivo de controle populacional de saúde e doenças através de estatísticas e estudos epidemiológicos, de intervenções biomédicas na população pela medicalização, atua por dois caminhos: a negação da diferença das formas particulares de ser e existir suscita reações, em nosso ver, prejudiciais à coletividade. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc. (FOUCAULT, 1999, p. 291). A ignorância e a negação do ser como indivíduo acarreta em prejuízos à comunidade ao nos depararmos com uma dificuldade em aceitar o outro em suas particularidades, sendo causa de atos de racismo, homofobia, machismo, feminicídio, xenofobia, entre outros crimes de ódio que, de acordo com um estudo 3 da Universidade Estadual da Califórnia, em San Bernardino, houve um aumento de cerca de 5% de tais crimes entre 2015 e 2016 somente nos Estados Unidos (ver quadro 01, anexo). No Brasil a ONG SaferNet disponibiliza dados decorrentes de crimes de ódio via internet através de denúncias diretas, parcerias com iniciativas privadas, autoridades policiais e judiciais e suporte governamental. A partir destes dados vemos o aumento de denúncias por ano, de 2007 até 2017, havendo uma estagnação entre 2016 e 2017 (quadro 02). Quanto ao crimes cometidos fora das redes sociais temos os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que esclarecem uma baixa no número de homicídios entre 2013 e 2015, conforme mostra quadro 03. Porém, entre 2015 e 2016 observamos um aumento no número de mortes violentas intencionais (quadro 04), bem como, no número de homicídios de mulheres (quadro 05) e de pessoas de cor preto-parda (quadro 06). Os dados quanto ao homicídio de pessoas de cor não preto-parda (quadro 07) confirma a existência de crimes de conotação racista ao mostrar que,neste ítem, não houve aumento, mas uma leve baixa dos homicídios. Retomando as relações do biopoder, agora no aspecto individual, consideramos o aumento de apatias, estados depressivos, de pânico, crises de ansiedades, anorexias, bulimias, entre outras psicopatologias ao se impossibilitar e ameaçar a manifestação singular do ser humano. A Organização Mundial de Saúde publicou em 2017 dados referentes aos brasileiros quanto suas questões psicológicas e constatou que 9,3% dos brasileiros têm algum transtorno de ansiedade e a depressão afeta 5,8% da população. No cenário mundial, conta-se 322 milhões de pessoas com depressão, sendo 4,4% da população e 18% a mais do que há dez anos. Quanto à ansiedade são 264 milhões de pessoas que apresentam este transtorno, uma média de 3,6%, o que representa uma alta de 15% em comparação à 2015. A depressão, segundo a OMS, é a principal causa de mortes decorrentes de suicídio, sendo estes cerca de 800 mil casos por ano. Considerando que há causas para tal aumento da violência e sendo uma delas a limitação da visão do ser humano como ser individual, constatamos a 3 São entendidos como crimes de ódio todos os crimes contra as pessoas motivados pelo pelo facto de a vítima pertencer a determinada raça, etnia, cor, origem nacional ou territorial, sexo, orientação sexual, identidade de género, religião, ideologia, condição social, física ou mental. necessidade da busca por tal individualidade para que, como resultado, se tenha o autoconhecimento e respeito consigo e com o próximo. A tentativa de evadir-se de quem somos, por esta ignorância e negação de nossa personalidade, está em contato com a culpa da impossibilidade de sermos outro além deste que aprendemos a ser. Ao inibir nossas manifestações singulares para adentrarmos ao modelo que esperam que sejamos fortalecemos as forças de controle biopolíticas do Estado e nos enfraquecemos ao incitar uma busca e devoção à um princípio científico e estético, tomado por modelos de saúde e beleza pós-moderna inconcebíveis de tornar real, impedindo o reconhecimento de si e tornando irrisório a potência dos fenômenos individuais do corpo e da consciência. Para que seja possível o retorno da individualidade do ser vemos a necessidade da auto empatia, de solidarizar-se consigo mesmo, visando que não há como escapar e ignorar quem se é, no entanto, há como empenhar-se e apropriar-se de si. “Se na nudez, sentimos vergonha é porque não podemos esconder o que gostaríamos de subtrair ao olhar, porque o impulso irrefreável de fugir de si mesmo encontra seu paralelo na impossibilidade, igualmente certa, de evadir-se.” (AGAMBEN, 2008, p. 107). É esta individuação que pretendemos retomar através da ação de voltar à si e da reflexão sobre quem se é, fortalecendo o autoconhecimento, criando barreiras para que este esvaziamento da nossa individualidade não se avance e, por fim, possamos desconstruir e reconsiderar o que já foi internalizado, além de externalizar as múltiplas expressões que somos capaz de revelar. 3.4. Pensamento Ao iniciar esta busca por métodos de resistência aos controles exercidos pelas estratégias do biopoder sobre os corpos, procuro compreender o corpo como movimento de início para apropriação de si e encontrar novos desvios para alcançar seu objetivo. Eugenio Barba (1995), autor, pesquisador e diretor de teatro Italiano, discorre sobre a ideia de corpo dilatado apoiando-se na apuração das múltiplas possibilidades do existir através das experimentações sensoriais que são convocadas para desestabilizar o conhecido provocando intensidade no corpo, dilatando-o. Esse procedimento é o aquecimento para se chegar, no que Barba chama, ao corpo-pensamento sendo resultado do deslocamento, do estranhamento e da ruptura de sentidos. O corpo dilatado só é possível ao se conseguir um pensamento dilatado, pois como já esclarecemos o corpo também é pensamento e o pensamento é movimento que se expressa no movimento do corpo. Sendo assim “As ações físicas não estão separadas das ações mentais e a forma de se movimentar no espaço irá revelar as forças que atravessam este corpo-pensamento.” (BORGES, 2009). A dilatação corpo e pensamento ocorre a partir de um trabalho laborioso de desconstrução das organizações subjetivas e materiais do corpo, trazendo à tona a assimetria e aleatoriedade da vida autêntica, orgânica. Para destruir os automatismos do corpo e abri-lo para novos sentidos é necessário estar presente no ato da criação, trabalhar sobre as repetições involuntárias decorrentes das obsessões e fixações culturais e buscar novas percepções através das oposições e da diferenciação. No intuito de refletir acerca destas percepções utilizamos como referência Antoine Marie Joseph Artaud (1995), artista teatral cujo pensamento propõe uma regeneração dos corpos esvaziados de sua própria potência e incitando uma intensidade feroz capaz de aguçar a sensibilidade dos corpos. Ele apresenta a quebra da intenção lógica e discursiva da linguagem verbal por haver a racionalidade antes da fala, e a substitui com gestos, ruídos e mímicas para sustentar e nutrir este novo corpo, novo pensar. Esta sensibilidade será capaz de afetar inicialmente o corpo pela base orgânica das emoções e pela materialidade das ideias ao reduzir ao máximo a intenção lógica e discursiva do corpo, pois é ela quem assegura sua transparência racional ao encobrir o corpo pela remissão do sentido. O sentido oculta o que constitui o âmago do corpo, o grito que a lógica do sentido ainda não calou totalmente. Aquilo que, em todo corpo, ainda resta de gesto oprimido . 4 O corpo neste trabalho é capaz de agir de duas maneiras: abraçar as experiências e a transformação ou encontrar resistência pela racionalidade do pensamento-corpo, daquele pensamento que está enraizado e que em seu movimento característico se envolve com o comunitário a partir da própria existência. Há a resistência, portanto, em se abrir às forças criativas que concede potência à a vida, assim como no viver coletivo ao ir em contramão às forças do biopoder. “um corpo que resiste a ser despossuído em sua carne, invadido em sua vitalidade pelos processos de purificação é, assim, é capaz de se contrapor às formações de poder contemporâneas.” (BORGES, 2009, p. 53) A criatividade se contrapõe às forças do poder atual por este, cotidianamente, utilizar da economia das forças na relação entre energia usada e resultado obtido, sendo o extracotidiano, o abrir-se para processos criativos e de autoconhecimento, estar em presença ((BARBA, 1995) e torna-se uma obra de arte (Foucault 1984/2004) é uma ação vista como excesso, como desperdício de energia. O coletivo é o território que se constrói o corpo-pensamento, onde pode-se experimentar a excitabilidade, a sensibilidade corpórea de seu ser, se dirigindo novamente em contraposição a produção estética moderna que se desapropria dos corpos e suas singularidades resultando numa anestesia da experiência sensível do 4 Artaud esteve fortemente ligado ao teatro (foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista ediretor),e por isso sua escrita está direcionada ao corpo e à linguagem. No entanto assumo a liberdade em utilizar sua fala substituindo o termo “palavra” por “corpo”. corpo que podemos observar no “espaço, no tempo, nos modos de ver e ser visto, na circulação e reprodução dos corpos e das populações.” (BORGES, 2009). A resistência é uma característica do modo de se permitir concentrar a sensibilidade e “poder então resgatar uma capacidade crítica em relação ao modo como vivemos, como sentimos, como nos aproximamos do outro.” (BORGES, 2009). A desconstrução do que já está internalizado advém pelas zonas de indiscernibilidade, pela capacidade de elaboração de se ver como indivíduo, e favorece o nascimento de novos olhares distintos pela possibilidade que surgiu na aptidão e perseverança em sustentar o próprio paradoxo da existência. A partir de então iremos pensar o corpo em seus movimentos e na liberação das articulações nas quais experiências paradoxais de consistência e inconsistência expõem o impossível, o irreal e utópico como parte da realidade e como ato de criação. Há então a manifestação da metamorfose e do infinito considerando que o olhar e o pensamento não possuem uma origem ou uma finalidade em si, somente movimentação contínua que decorre para que os “órgãos deixam de funcionar como organismos e nas suas misturas e trocas de valência transmutam-se.” (BORGES, 162). A pergunta que fazemos agora é: como encontrar movimento quando se está estagnado? Consideramos que o corpo está sempre em movimento mesmo quando automático e também, ser possível sair da imobilização e ir para um movimento de transformação no qual o corpo será explorado em seus detalhes, articulação por articulação, pensamento por pensamento, iniciando-se com uma imagem fixa e sua densidade, que se desloca desde o interior, passando a explorar o tridimensional com um movimento imperceptível e que alcança a profundidade da imagem-corpo. Há, então, o início do trabalho com o movimento a partir da pesquisa do corpo em seus deslocamentos e ritmos. Neste contexto, julgamos essencial a busca por áreas distintas do conhecimento como “filosofia, fisiologia, anatomia, arte, entre outros, tornam-se ferramentas para dar consistência e sustentar a retransmissão não apenas das vivências corporais, mas visando à inscrição de um corpo-pensamento” (BORGES, 2009). Paul Valéry, em seu livro Degas Dança Desenho, expõe que o contato com a intimidade do corpo “captura, por vezes, pela sutileza de seus meios ou pela audácia da execução, algumas presas muito preciosas: estados muito complexos ou muito efêmeros, valores irracionais, sensações em estados nascente, ressonâncias, correspondências, pressentimentos de uma profundidade instável. (VALÉRY, 2003, p. 147). O exercício com o pensamento-corpo é um ato de desconstruir e construir enquanto se atua. O agir é tido como beneficiado pela potência dinâmica do espaço-tempo em detrimento da lógica: ou seja, o corpo não possui mais uma origem em si, mas é um continuum fazer-se, processo e impermanência. É isto que queremos enfatizar aqui: o corpo é cheio de possibilidades e ansiamos pela recuperação destas que se tornaram atrofiadas após repetições mecanizadas. 3.5. Espontaneidade e liberdade na Dança “Na constatação de que um corpo são muitos corpos, a dança realizada a partir da conscientização do movimento não se ajusta a padrões preestabelecidos; busca em cada corpo seu próprio modo de dançar; conjuga-se com uma operação que significa sair da via expressiva ou mimética característica de uma certa leitura da dança para um fazer estético pautado na sensação, no estiramento da sensação. O caminho utilizado é o movimento, estar atento aos micromovimentos dos corpos nas dobras nas contraturas, nas tensões nos intervalos, alongando através do espaço e do tempo, através do ritmo vivido nos deslocamentos do corpo, na expansão e no recolhimento.” Hélia Borges O movimento é aqui definido como produtor de novos mundos possíveis. O conjunto de movimentos provoca o transparecer da dimensão do ser humano que ultrapassa o adequado, o racional: cria-se a dança. O estar entregue ao movimento, ao fluxo natural e ao ritmo do corpo é dito por Helen Maria como o “vazio da expressão”: Neste sentido, o processo que antecede aos símbolos, que exterioriza o conteúdo e o torna presente para ser criado. Na arte pictórica temos a fala de Borges refletindo sobre o pensamento de Bacon para ilustrar tal processo ao considerar que “não é a representação figurativa que produz a sensação, mas o traço (que) coloca em evidência a ideia do traço como portador de uma zona de indiscernibilidade” (BORGES, p. 24. grifos do autor). A zona de indiscernibilidade consiste na ideia de estarmos inseridos no mundo e dele fazermos parte ativamente e presencialmente através de experiências sensoriais que ignoram a lógica proporcionando um amplo espaço para o sentir, que liberta as emoções para que estas fluam e assim possamos apreender os estados de imersão e intensidade dos seres naturais do mundo através da arte. A arte pictórica, segundo Bacon, permite através do traço do pincel o acesso à zona de intensidades presentes no movimento e no ritmo a serem impressos na tela. Assim também Borges pensa na dança, mais especificamente a dança contemporânea por ser uma manifestação projetada no espaço através do gesto dançado em uma busca de novos arranjos espontâneos, uma vez que o sentido antecipado, a coreografia lógica, perdeu seu lugar. “É precisamente este o contexto que nos aproxima desta noção de inconsciente, corpo coletivo, tomada na sua materialidade.” (BORGES, p.25). “Compor com o corpo um novo campo de imagens para novos sentidos, deixando que o caos inscreva sua presença no movimento. Desamparar o corpo de seus conhecidos; livrá-lo de seus organismos” (ARTAUD, 1983; DELEUZE, 1997). “Eis o que nos aproxima desta noção de inconsciente, corpo coletivo, tomada na sua materialidade invisível.” (BORGES, p. 25) 3.6. A coragem de dançar “Criem uma dança. Mas, se não der, pelo menos percam a compostura elegantemente - e com mais frequência”. Wayne McGregor Karina de Almeida defende em sua tese de Pós-Graduação em Artes que a cultura corporal é a compreensão dos movimentos que marcam nossos corpos em seus aspectos biológicos, genéticos ou cotidianos (posturas, hábitos, etc.), enquanto a cultura da dança vem a ser sua presença no cotidiano como manifestação social ou inserida num ritual na qual os corpos se movimentam de formas particulares de seu determinado grupo, tribo ou região. A união dos elementos técnicos e poéticos do dançar se mantém criativo quando pensamos no corpo como um processo constante de criação, desconstrução, intensificação e libertação desse próprio corpo, transcendendo a dualidade objetivo/subjetivo. “Esvaziar-se, desfazer-se dos modelos estabelecidos, desafiar-se a entrar nas frestas quase inacessíveis dos clichês, deixar que o corpo esteja verdadeiramente num espaço de experimentação, tudo
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