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O CAFÉ 
Série 5,a B n A SI L IA NA Vol. 174 
BIBLIOTECA PEDAGÓGICA BRASILEIRA 
BASíLIO DE MAGALHÃES 
, 
O. c·A F E 
NA :aISTÓRIA. NO FOLCLORE E NAS BELAS-ARTES 
SEGUMDA EDIÇÃO 
(a u m e n ti d a e m e I h o r a d a) 
651 
COMPANHIA EDITORA NACIONAL 
Sao Paulo - Rio - Recife - Parto-Alegre 
18 3 9 
DO MESMO AUTOR 
Nesta Série: 
EXPANSÃO GEOG'RAFIOA DO BRASIL OOLONIAL -
Vol. 46. 
ESTUDOS DA IDSTóRIA ·no BRASIL - A mvolução 
Política do Brasil. - Vol. 171. 
Na "Biblioteca. de Estudos Co:inercia,!Js, e · Eoonõmicos: 
HISTóRIA DO COMéRCIO, INDtrSTRIA E AGRIOUI,, 
TURA ...,.... Vol. 6. - 2.ª edição. • · 
:llldloôes da 
COMPANHIA EJDITORA N.ACIOiNAJt. 
São Paulo 
iNDICE 
Prefâcio 
Pags. 
1 
. · 1) Quem era Francisco de Melo Palheta, o introdutor 
do cafeeiro no Brasil 
A na.turaUdade de Palheta 9 
A expedição ,de 1722-1723 17 
.O motivo da expedição . . • . . . . . . 40 
A necessidade -de uma bio,grafia .do tn.troduto,r do café 
no Bra.sH . . . 4 3 
Aconteci,mentos históri,cos . . • . . . . . 44 
As Instruções da expedição ,de 1727 . . . . . 49 
Regimento que ha de guar-dar o sargent,o-mór Francis-
co de Melo Palheta . 50 
As vistorias efetuadas nos marcos da, montanha d'Ar-
gent . 58 
A moda . . . . . . . . . . . . 64 
Como Palhetà. obteve as sementes e m11das de café 65 
As "-Memórias'' de fr. João ,de ,s. José Queir,oz 67 
Mme. Clau,de d'OrvilUer.s . . • . . 68 
Um simples motivo poético . . . . . 70 
Como se ,d!stribu!ram as sementes e mudas 72 
Que posto ocupava Palheta? 73 
A pobreza de Palheta . . . . . . . • . 75 
Palheta conta a história ,da introdução do café no Bra-
a!I . . . . , . • . • . 7 6 
Carta-régia ,de 16 de f·ev·erelro de 17,34 77 
Pet!Qiio de Franc!seo ,de Melo Palheta 78 
Alguns comentar!oe 79 
Depois do "placet" do rei . 82 
o caf.é isento ,de impostos 
A terra roxa . 
A ,onda verd,e e a negra ingraüdão 
Pags. 
83 
86 
87 
Il) Os caminhos antigos, pelos quais foi. o café trans• 
portado do interior para o Rio-de-Jan~iro e para 
outros pontos do litoral fluminense 
Primeiras expedições e caminhos ,d.e índios 
Roteiro do "caminho velho" 
"•Caminho dos paulistas" 
O "·caminho novo'' 
R,oteiro do "caminho novo" 
Expansão ,da cultura do café 
Os caminhos pa•ra Angra-d-os-,Reis 
Variantes e ramais ,do "camin·ho novo" 
O "ca,minho ,de terra" 
A E. F. -Mauá 
A Estra,da União e Industria 
A S. Paulo Railway 
Conclusão 
93 
96 
97 
97 
99 
103 
106 
107 
108 
111 
112 
113 
114 
III) As lendas em torno dá lavoura do café 
1) O café no Iendarto oriental . 121 
2) O café no lendario oddental 137 
3) O café no Iendarlo americano 16 O 
4) O café no lenda rio b.rast.Ieiro 16 6 
a) Lendas de fundo histórico 166 
b) Lendas políticas . 1 7 O 
e) O café na medicina e nas superstições do 
povo 
d) O ,café na poesia popular 
e) O café no anedo.tario brasileiro 
6) Condusã,o 
IV) O café nas belas-artes 
1 - O café na pintura, na gravura, e na caricatura 
a) Na arte holan,desa 
b) Na arte inglesa 
e) Na arte italiana 
d) Na arte francesa 
e) Na arte germânic~ 
176 
183 
204 
2/08' 
21.6. 
216 
216 
•• 222 
226 
234. 
f) Na arte yankee 
g) Na arte brasileira 
h) Gravuras e outras ilustraçõ,es,, em cartazes, 
folhetos e livros, aobre o café 
2 O café na escultura 
3 - O café na arquitetu,ra 
4 - O café na heráldica, na n umlsmática · e na meda-
lhfs tica . . . . . . . 
6 - O café nas artes Industriais 
6 - O café na música 
a) A primeira ,cançoneta sobre o café 
b) Uma ópera-cômica francesa sobre o café 
c) O café na ópera italiana 
d) O café na comédia co,m -ou sem mú.slca 
e) A mais bela composição musical sobre o café 
7 - O café na poesia 
a) Na poesl,a estrangeira 
b) Na poesia brasUelra 
V) - Notas posfaclals 
VI) Apêndice 
O capitão Silvestre e fr. Vel-oso ou a plantaçã-0 ,do café 
Pags. 
238 
240 
241 
260 
263 
267 
262 
268 
268 
270 
270 
271 
274 
286 
286 
298 
326 
no Rio de ,Janeiro - Romance brasileiro, (fac-sf-
mlle). . , . . . . . . . . . . 337 
Luiz da Silva Alves de Azambuja Susano (traços blo-
blbliogrãfleos por Basmo de Magalhães) 339 
Prólogo . . . . . . . . . . 346 
O capitão Silvestre e frei Veloso . . . 346 
Elenco geográfico e histórico deste romance 380 
PREFACIO 
Para a comemoração do segundo centenario da 
entrada do cafeeiro no Brasil, escrevi, - além de dois 
longos trabalhos bibliográficos, - as seguintes quatro 
memorias, destinadas ao número especial que lhe consa-
grou "O Jornal" e que saiu a 15 de outubro de. 1927: 
/) . "Quem era Francisco de Melo Palheta, o in-
trodutor do cafeeiro no Brasil"; 
li) "'Os caminhos antigos, pelos quais foi o café 
transportado do interior para o Rio-de-Janeiro e para 
outro, portos d o litoral fluminense"; 
Ili) "As lendas em tomo da lavoura do café"; 
IV) "O café nas belas-artes". 
A segunda, por espontaneo gesto do· organizador 
da coletanea, foi integralmente inseria, dois anos mais 
tarde, no volume intitulado "Minas e o bicentenario do 
cafeeiro no Brasil - Contribuição da Secretaria da 
Agricultura do Estado de Minas-Gerais" (Belo.:.Hori-
zonte, Imprensa Oficial, 1929 ), pags. 228-24/. E, em 
1934, tendo sido enfeixados em dois grossos volumes to-
dos os trabalhos da referida edição especial de "O Jor• 
nal", - publicação devida ao Departamento Nacional 
do Café, - as minhas memorias foram assim incluídas 
PREFACIO 
nos mesmos: no vol. /, pags. 5-38, 233-249 e 368-386, 
"Quem era Francisco de Melo Palheta", "As lendas em 
tomo da lavoura do café" e "O café nas belas-artes"; 
no vol. li, p<tigs. 670-688, 692-732 e 777-783, "Biblio-
grafia brasileira", "Bibliografia estrangeira" e "Os ca-
minhos antigos, pelos quais foi o café transportado do in-
terior para o Rio-de-Janeiro". 
Para atender a U1n honroso convite do meu ilustre 
confrade dr. Costa Miranda, - de ver no excelente "Bo-
letim do Ministerio do Trabalho, Industria e Comercio", 
por ele dirigido, a minha colaboração, - reli as quatro 
memorias primeiramente enumeradas acima. preenchen-
do-lhes algumas lacunas, expurgando-as de erros tipo1grá-
ficos e acrescendo-as de novas anotações. Assim, bastan-
te melhoradas, foram elas por mim oferecidas ao sobre-
dito mensario, onde sairam de novo a lume, desde agosto 
de /935 até setembro de /936 (ns. 12 a 25). Aprovei-
tando-se a composição tipográfica, fez-se uma "separa-
ta" de 300 exemplares, autorizada pelo ministro Aga-
menon Magalhães e precedida de benévolas palavras do 
dr. Miranda. 
Não entrou no mercado de livros ( conforme eu pró-
prio lhe declarei no "Prefacio") essa reduzida tiragem, 
a qual, todavia, bastou a grangear para o volume, gra--)' 
ças á oferta deste a intelectuais do Brasil e do exterior, 
uma consideravel messe de. aplausos. De apreciações en- ' 
comiásticas, aparecidas na imprensa patrícia, muito cne 
envaideceram, entre outras, as de Agrippino Grieco, Mu-
cio Leão, Djacir Menezes, Luis da Câmara Cascudo, 
Celio Lima e Valdemar Cavalcanti. 
Isso e o amistoso acolhimento com que me tem sem-
pre distinguido a Companhia Editora Nacional anima-
ram-me a preparar esta nova edição, a qual recebeu, além· 
de correções imprescindíveis, muitos acréscimos, particu-
PREFAC[O ·" 
larmente eni relação á arte e á literatura do café. En-
cerra lambem ela, em apêndice e acompanhado de no• 
tas minhas, o primeiro romance brasileiro sobre o cal é, 
lavra de Luiz Alves da Silva de Azambuja Susano e 
publicado aqui em 1847. Creio que não me serão nega-
dos louvores por desentranhar eu do injusto olvido essa 
· pequena e curiosa novela, c&nsiderada pelo grande mes-
tre Capistrano de Abreu como uma das melhores obras 
do século passado·, surtas em nossa pátria. 
Em 1934, veiu á luz em Berlim um curioso livro 
sobre a "coffea arabica": "Sage und Siegeszug des Kaf-
fees - Die Biographie eines weltwirtschaftlichen Stof-
fes'', da autoria de Heinrich Eduard Jacob. No ano se-
guinte foi trasladado a inglês e reeditado nos Estados-Uni-
dos (N ew-Y ork, Viking Press) e em Londres ( George 
Allen &- Unwin Ltd.), sob os respectivos títulos de"Coffee: the epic of a commodity" e "The saga of cof• 
fee". Só vim a conhecê-lo recentemente, por ter tido a 
fortuna de encontrá-lo na biblioteca da Universidade do 
Distrito-Federal, então a cargo do brilhante e operoso 
Gastão Cruls. 
Tratando-se de uma publicação já existente em 
nosso país e facil de ser examinada pelos conhecedores 
da língua inglesa, - eu bem desejara que os leitores des-
~e meu trabalho o cotejassem com o do judeu alemão. Só 
assim poderiam verificar que este meu livro, pelo seu co-
pioso e documentado material histórico, folclórico, artí.s-
üco e literario, é que é a verdadeira "saga do café". 
Mas o meu é escrito em português. . . E lucubrou-o 
um brasileiro de cultura desinteressada, o qual, .longe de 
visar a lucros pecuniarios com os frutos de seu espírito, 
tem tido sempre por mira única a grandeza e a gloria da 
Patria ... 
BASILIO DE MACAl,.HÃES 
Rio, dezembro de 1938. 
" 
QUEM ERA FRANCISCO DE MELO PALHETA, 
O INTRODUTOR DO CAFEEIRO NO BRASIL 
' 
rancil!Co de Melo iPal-heta, o l,ntrodutor do no Braall 
("Cra7on" •do ,professm- Marques JUJ1lor). 
A NATURALIDADE DE PALHETA 
Em artigo longo e interessante, com o titulo "A ori-
gem do cáfé no Brasil - Como veiu ter ao Brasil a pri-
meira arvore do café". dado á estampa na revista "Chá-
caras e Quintais", Õ dr. Waldemar Peckolt atribuiu a 
Francisco de Melo Palheta a naturalidade brasileira, 
sem, todavia, cogitar de comprová-Ia. Não se conformou 
com tal asserto o major Henrique Silva. que, por outra 
revista, "A Informação Goiana" (número de junho de 
1927), da qual era fundador e diretor, além de contes-
tar fosse Francisco de Melo Palheta o introdutor do café 
em nosso país, ainda asseverou que "o homem era luso 
e por sinal que sargento-mór, patente militar que nunca 
existiu no exército brasileiro", Em nenhum documento se 
estribou o autor das "Caças e caçadas no Brasil", para 
ter Francisco de Melo Palheta na conta de português, 
e o seu argumento relativo á patente militar é de todo 
improcedente, pelas duas simples razões seguintes: primei- ' 
ra, que em 1727, data na qual Palheta já havia sido pro-
movido a tal posto, não existia no Brasil senão um· exér-
cito, o português; e segunda, que tanto no exército 
brasileiro, oriundo da elevação do Brasil, em 1815, a 
reino unido á monarchia autocraticamente federada, que 
compreendia a mais Portugal e Algarves, quanto no exér-
cito brasileiro, proveniente da conquista da soberania · po-
10 BASILIO DE MAGALHÃES 
lítica de· 7 de setembro de 1822, ainda subsistiu o posto 
de sargento-mór (v. "Anais da Bibl. e Arq. Públ. do 
Pará", t. VIII, 1913, pag. 159; e "Uniformes do exér-
cito brasileiro", Rio-Paris, 1922, pag. 33). . 
Antes de asseverar o dr. Waldemar Peckolt que 
Francisco de Melo Palheta era brasileiro, já o fizera o 
dr. Rodolfo Garcia ("Rev. do lnst. Hist. e Geogr. 
Bras.", t. 81, 1918, pag. 387), um dos mais compe-
tentes, probidosos e incansayeis pesquisadores das nos-
sas tradições (*) . 
Ao citado historiador patricio é que se devem as 
primeiras informações, postas em letras de imprensa, so-
bre o berço e a paternidade do introdutor do café no 
Brasil. Com efeito, afirma ele, - e dentro em pouco direi 
com que elementos probantes, - que Francisco de Me-
lo Palheta "era natural do Pará" e que teve por pai 
ao "capitão de infantaria João Rodrigues Palheta, nas-
cido na vila de Serpa, provincia do Alemtejo". 
Encontram-se esses dados no trabalho "O Diario 
· do padre Samuel Fritz, com introdução e notas de Ro-
dolfo Garcia", valiosa publicação que vem na dita "Re-
vista", da pag. 353 á pag. 397. O sacerdote boemio-
alemão, vindo para a provincia jesuítica hispano-ameri-
cana de Quito em 1685 ou 1686, fez-se apóstolo dos 
omáguas do Amazonas, os quais, além de doutrina, ca-
. <•)· AnteB -de Rodolfo Garcia, - mas sem as Informa-· 
çõe.e que este foi o primeiro a (P'u-hllcar, - :lã ·hruvlam acerta-da-
biente atrlibuldo a Fran.cisco de Melo Palheta a naturalidade 
brasllelroa os seguintes escritores: o dr. Moreira de Aze,vedo, 
~o Rio de Janet.ro - ,Sua historia, monumentos, homens no• 
tavels, usos e curiosidades" (Rio, B, L. Garnler, 1877), vol. I, 
pag, 12,9; e o padre Araujo Marconde·s, "0 Ca.flê" (Sã'o Paulo, 
Carlos Zanc·hl, 1898), pag. 11. IEtlenne BraSàll, em "La Franee 
au Brêsll" (iRlo, Beenard Frêres, 1920), pa,g, 148, acompa-
nhou-os, 
O CAF:111 11 
reciam de quem os defendesse dos portugueses do Pará, 
que frequentemente lhes invadiam as cabildas, para re-
duzí-los á escravidão. Do principal aldeiamento em que 
arrebanhava aqueles índios, São-Joaquim, desceu ele, em 
fins de janeiro de 1689, á maloca central dos jurimáguas; 
e, ou para tratar-se de enfermidade perigosa, que o aco• 
metera, ou para melhor patrocinar a liberdade dos sel-
vagens, aportou a Belém em 11 de setembro do mesmo 
ano. Governava o Estado do Maranhão, desde 1687, 
Artur de Sá e Meneses ( que dez anos depois veiu diri-
gir a Repartição-do-Sul). Permaneceu ali o inaciano 
vinte e dois meses, dezoito dos quais detido no Colegio 
dos Jesuítas, porquanto, logo que chegou á capital pa-
raense, reclamou do capitão-general "o reconhecimento dos 
direitos da corôa castelhana sobre os territorios onde es-
tavam situadas suas missões". Consultara o governador 
ao soberano sobre esse alarmante caso do padre Fritz, e 
a resposta do rei de Portugal já alcançou ao sucessor de 
Artur de Sá e Meneses, Antonio de Albuquerque Coelho 
de Carvalho, que regeu o Estado do Maranhão de 1690 
a 1701 (vindo mais tarde para a capitania de São-Pau-
lo-e-Minas-do-Ouro, que instalou em 1709 e superinten· 
deu até 1713). Reprovou d. Pedro II a detenção do 
loiolista e ordenou fosse o mesmo reposto, á custa da . 
real fazenda, no ponto das missões de que saíra, ou em 
Quito, se fosse preciso. Afim de cumprir tal ordem, con• 
sumiu o representante da metrópole tres meses. Só a 8 
de julho de 1691 pôde regressar o padre, acompanhado 
por um cabo ("capitão"~), um alferes, sete soldados,, 
um cirurgião e trinta e cinco índios, estes como remeiros da 
flotilha de canôas. 
E' aí que aparece a mais antiga referencia, que se 
conhece em documentos de boa fonte, á atividade militai' 
de Francisco de Melo Palheta. De fáto, dando noticia 
12 BASILIO DE MAGALHÃES 
da escolta, que, por mandado do monarca lusitano, ia 
conduzí-lo de retomo, pelo rio-mar, ás terras andinas da 
corôa éspanhola, disse no seu Diario o padre Samuel 
Fritz que só dois dos homens que a compunham "eram 
portugueses brancos", o cirurgião, cujo nome não decli-
nou, e o soldado. Francisco Pailieta (sic). Ora, não se 
deve tomar á letra, na referida expressão, o gentílico 
"português", porque o mesmo se aplicava então, sem ri-
gor etimológico, aos brancos alistados no serviço da me .. 
trópole. E foi precisamente anotando tal asserção do je- . 
suita que Rodolfo Garcia reivindicou para o introdutor 
do café no Brasil a natividade paraense. 
Como se vai ver dentro em pouco, pela relação da 
viagem de descobrimento do rio Madeira, chegando o 
ajudante da expedição, antes dos mais companheir~. á 
povoação de San~a-Cruz-de-Cajuvabas, perguntou-lhe o 
padre, superior dessa redução de índios, se era cavalhei .. 
ro o cabo da tropa; e o dito ajudante, referindo-se ao 
sargento-mór Francisco de Melo Palheta, respondeu 
"com a verdade de que era dos principais da 'terra na 
capitania do Pará". Ora, significa isso não só que Pa-
lheta era, pelo seu posto, pessôa de respeitabilidade alí, 
como ainda que era paraense nato, porquanto, se o não 
fosse, não se usaria para com ele da expressão "da 
terra". 
Onde Éoi, porém, que encontrou o ex1m10 pesquisa-
dor das nossas tradições os elementos de convicção para 
semelhante asserto, cuja relevancia é inegavel, porquan-
to apraz sobremaneira ao nosso orgulho patriótico tenha 
sido um brasileiro nato o espontaneo e abnegado inicia-
dor da nossa maior prosperidade agrícola) 
Foi num exemplar do "Compendio das éras da pro-
vincia do Pará" (Pará, 1838), de Antonio Ladislau 
MonteiroBaena, e que pertenceu a Manuel Barata, vin .. 
do enriquecer a biblioteca do Instituto Histórico e Geo-
18 
gráfico Brasileiro, á qual doou o ilustre paraense toda a 
sua excelente coleção de livros. O sobredito volume de 
Baena está repleto de observações, manuscritas á margem 
e devidas a Manuel Barata, que ora corrigia enganos, 
ora preenchia lacunas da obra daquele oficial do exér-
cito português, de quem se póde dizer que se naturalizou 
"paraense". · 
· Não aproveitou . Rodolfo Garcia integralmente a 
nota de Manuel Barata, que tanto interessa á biografia 
de Francisco de Melo Palheta e que vem á pág. 109 do 
mencionado trabalho, quando Baena, historiando acon-
tecimentos imediatamente posteriores a 1663, trata de um 
assalto dos índios caboquenas e guanevenas á aldêia de 
Saracá, "onde estava o alferes João Rodrigues Pa-
lheta". 
Graças a Manuel Barata, - que era em tudo a 
personificação da probidade, principalmente nas investi• 
gações históricas sobre a terra natal, - fica-se sabendo 
que Francisco de Melo Palheta "era natural do Pará". 
Teve por pais a João Rodrigues Palheta ("natural da 
vila de Serpa, na provincia do Alemtejo", e que chegou, 
no Brasil, ao posto de "capitão de infantaria") e d. Ma-
ria da Ressurreição de Bittencourt. Francisco de Melo Pa-
lheta casou com d. Bernarda de Mendonça Furtado, a 
qual, pelo cognome, devia pertencer a uma das mais dis-
tintas familias lusitanas. Ficam, assim, esclarecidos pon-
tos que até agora jaziam na mais completa obscuridade, 
quanto ao introdutor do café no Brasil, faltando, ainda, 
infelizmente, dados fidedignos quanto ao final da sua 
existencia, de 1733 em deante. 
Sendo militar o pai, bem moço, talvez, assentou praça 
Francisco de Melo Palheta na tropa regula_r da guarnição 
portuguesa do Estado do Maranhão, o qual fôra criado 
a 13 de junho de 1621, abrangendo, além da capitania do 
Maranhão, a do Pará (a que depois se agregou a do 
14 . BASILIO DE M.AiGALHÃES 
Rio-Negro) e a do Ceará (pouco depois desmembrada 
dele e incorporada no governo de Pernambuco). e. acres-
cido ulteriormente da do Piauí. durou até 1775. c.om a 
denominação final de "Estado do Maranhão e do Grão-
Pará". 
E' lícito presumir que Francisco de Melo Palheta 
tenha nascido por volta de 1670 e que em 1691. simples 
. soldado. contasse. pelo menos. 21 anos de idade. 
Saída de Belém, a 8 de j~lho de 1691. a expedição, 
de que Palheta fazia parte. só deixou ela o padre Samuel 
Fritz a 20 de outubro. na aldêia de Nossa-Senhora-das-
Neves, dos jurimáguas. depois de havê-lo conduzido até á 
de Maiavara, ultima redução dos omáguas. E o cabo 
da tropa não largou o jesuita. sem que primeiro o intimas-
se, - conforme ordem reservada que levava do governador 
do Estado do Maranhão. - a retirar-se "daquelas pro• 
vincias. por pertencerem á corôa de Portugal". Conta o 
inaciano que a dita força. além de outras coisas. fez des-
monte á margem do sul. em frente á aldeia de Guapapaté. 
onde pôs por marco uma árvore grande. e. antevendo ou-
tras proesas dos portusueses naqueles remotos rincões, in- · 
sinuou que os mesmos excogitavam, por ali. de "achar a 
porta para entrar no El-Doradõ. que sonham não estar 
muito distante". Este padre Samuel Fritz e mais outro 
colega ainda deram muito que fazer aos portugueses do 
Pará". em 1710 (v. "Anais da Bibl. e Arq. Púb. do Pa-
rá". 1902. t. 1, pags. 132-133 e 135-136). 
Essa lenda do El-Dorado. criada ou derramada no . 
mundo por sir Walter Raleigh, em 1599. com a publicação 
da sua obra "The discoverie of the large. rich and beau-
tiful Empire of Guiana. with a relation of the great and 
golden citie of Manoa ( wich the Spaniards call El Do-
ra do). and the provinces Emeria. Aromaia, Amapaia, 
and other countries. with their rivers adioyning - Perfor•. 
O CAFill 16 
med in the yeere 1595 ", exerceu no Brasil grande influen-
cia, bem assinalada por Southey ("Historia do Brasil", 
trad. de L. J. de Oliveira e Castro, 1862, vol. II, pags. 
32-35). Imaginando o maravilhoso reino ora na região de 
Nova-Granada, ora na da Guiana, Américo Vespucci, 
quasi um século atrás, julgara ser por ali o paraiso ter-
real (~). Tal fábula, segundo o historiador inglês, custou á 
Espanha "mais sangue e dinheiro do que todas as suas con- · 
quistas do Novo-Mundo", e a ela deveu o Brasil "um lon-
go periodo de tranquilidade"; porquanto os pirateadores in-
gleses, e, depois deles, os flibusteiros holandeses e os aven-
tureiros franceses, seduzidos pela quimera de que se servira 
Raleigh (~) como chamariz, foram afinal assentar-se ás 
(*) "E se nel mondo ê alcun paradlso terrestre, senza du-
blo dee ees,er non molto lontano da questl luoghl", - ,foi e. 
t:rase com que Amerfoo Vesipuccl :resumiu as maravilhas que se 
lhe de'J)araram no Brasil e que consta de uma sua carta p-u-
bUcada na Eu,ro<pa em 1504 (1v. "Le Bré,sll" ,por E. Levasseur, 
Parh1, 1,889, no capitulo "L'hlstolre", escrito pelo bar!Lo do 
Rio-Branco, ·pa,g,s, '27-2·8). 
(••) Sll Walter ,Ralelg,h, que, por muitos a.nos, como ex• 
plorador e como corsarlo, tentou em vão transformar em reali-
dade o ·s,eu sonho do "El-Dorado", n!Lo sõ ,perdeu um fHho ne1W1e 
desvia.Irado a.fã, como de1>ols ·perdeu a 1Pro1>rla caJbeça, a lnstan-· 
cla.s da. ES1Pan'ha •perante Jaime da In1glaterra. Dois •caste:!hanos, 
Pedro da Silva e fuão Serpa, o _Primeiro com uma !flotilha de 
tres barcos, naufragaram ,na foz do Orlnoco, quando em ,demanda 
da fantá.stlca "Manôa". ·E, em melados do ,século XVLII, a,ln;da 
dois. ·holan'deses, Hortsman e Hundertpfundt (este 1rnr sinal que 
padre), aventuraram-se a procurar, pelo aranhol das floresta& 
e rios brasileiros, a mlr!fl.ca e enca·ntada Olfl.r, aquele pelo rio 
BT&nco e o outro pel'l Xi.ngü. Mais do que uma singela narra.~ 
ç!Lo hf.stõrlca dessas pertinazes e tresloucadas éorr&rlas em 
busca de uma enganosa miragem, bem merecia o "IEl-Dorado" 
ter servido de tema a romances, dramas e tragedlas. A em,pol-
gamte lenda, criada por slr Walter Ralehglh e que maravU.hou 
a facll credulidade do VeLho-Mundo, onde foi tão prontamente 
divulgada, f~ esbanjarem-se em pura perda muitos esforços e 
, 
18 BASILIO DE !MAGALHÃES · 
margens do Oiapoc e do Orinoco, em busca da encantada 
e falaz Manôa (~). 
O "El-Dorado", que, afinal, apareceu em Surinam 
e em Caiena, no primeiro quartel do século XVIII, era o 
fruto da cof/ea arabica, que Francisco de Melo Palheta, · 
em 1727, havia de transportar para o Brasil. 
Não se conhecem outros fátos concernentes á vida de 
Palheta no restante do século XVII e dentro da primeira 
década do seculo XVIII, senão o de haver ele obtido 
do governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, 
a 7 de fevereiro de 1709, uma sesmaria no rio Ubituba, 
a qual lhe foi confirmada por ato régio de I O de fevereiro 
de 1712 (v. "Anais da Bibl. e Are. Públ. do Pará", III, 
1904, pag. 55). Vê-se, por aí, que, não obstante prosse-
guir na carreira militar, na qual ia ascendendo aos melho-
. res postos, entendeu ele de dedicar-se tambem á agricul-
tura. Já certamente em plena velhice, ainda mais se lhe 
acentuou o pendor, ou, quiçá, a necessidade de cfosenvol-
ver a lavra de terras, pois conseguiu do governo local ou-
tra sesmaria no Pará, "entre as bocas dos igarapés Ara-
pijó e Guaj~rá", por alvarás de 14 de agosto· de 1731, 
lnQ.meras- vidas, tend" sõmen,te acarretado ao BraElll a vanta,gem 
de alastar da..s nossas plagae os piratas ,e cors::irlos, que t'n· 
cheram com as suas llfcltas audaclas tantas pá;g~nas de anais 
daquela.a cent1lrla.s, e· que ela atraiu para o va.sto terrltor.l'o 
da Guiana, onde afinal se assentaram colonizadores oriundos 
da1:1 tres naQões europHas, que as•saltaram e tentaram ocupar, 
nos seculo.s XVI e XVII, vario-a pontos do litoral da noss:1. patrla. 
(*) Sobre a curiosa lenda, além do •trabalho de .Adolphe 
Bandeller, "Th·e Golden l\lan", merecem Hdos os dois seguintes 
volumes: Frandsco YâSlquez - "Relaclõn de todo lo que su-
c&dlõ en la jornaqa de Omagua y Dorado, hecha por el gober-
nador 'Pedro de Ors1la"(MadTld, 188'1, ed. 11m1tada a 300 exs.): 
·e ·Emiliano Jõs - "La expedliclõn de Ors1la ai Dorado y la re· 
bellõn de Lopo de .Agulrren (1l{uesca, l92'1). 
O OAF11 1'1 
doação que lhe foi confirmada por d. João V a 20 de mar-
ço de 1733 (oh. cit., id., Ioc. cit.). Como se verá mais 
adeante, ele próprio se entregou á cultura do cafeeiro. 
Os atos mais notaveis da existencia de Francisco de 
Melo Palheta ocorreram em 1722-1723 e· 1727. 
A EXAEDIÇÃO DE 1722-1723 
Exatamente um centenio antes da independencia do 
Brasil, já ocupava ele o posto de sargento-mór ( equiva-
lente ao de major atual), quando foi incumbido pelo go-
vernador do Estado do Maranhão, João da Maia da Ga-
ma (19 de julho de 1722), de importante missão 
no "far-west" brasileiro. Dessa viagem, - que, vencendo 
obstáculos e arrostando perigos, chegou até á redução 
jesuítico-espanhola de Santa-Cruz-de-Cajuvabas, estabe-
lecida á margem do Mamoré e bem abaixo da confluencia 
deste com o Guaporé, - deram vagas notícias muitos es-
critores: mas, até quasi fins do século passado, ninguem 
lhe conhecia o íntimo relato oficial. Tendo, porém, o 
falecido livreiro João Ribeiro Martins oferecido á Bi- · 
blioteca Nacional uma coleção de manuscritos, da mesma 
fazia parte ( em cópia recente, constante de um in-f alio 
de 35 pags., feita do original existente no t. I dos "Papeis 
varios" da Torre do Tombo) o dito importante documen· 
to, que, sob o n. 19.621, figurou na Exposição de Historia 
e Geografia do Brasil, realizada a 2 de dezembro de 1881 
(v. "Suplemento ao Catálogo", 1883, pag. 1.657). . 
~~ Eis o título do mesmo: - "Narração da viagem e 
descobrimento que fez o sargento-Mór Francisco de Mello 
Palheta no Rio da Madeira e suas vertentes, por Ordem 
do Senhor João da Maia da Gama do Conselho de Sua 
Magestade, que Deus Goarde, seu Governador e Capitam 
General do Estado do Maranhão cuja viagem e expedi-
18 BASlLlO DE MAGALlllES 
ção se fez no anno primeiro do seo governo: e se gastou 
nella desde 11 de Novembro de mil setecentos e vinte e 
dous, ,the do~ de Setembro de mil setecentos e vinte e 
tres", 
. Capistrano de Abreu - o inolvidavel mestre, cujo 
· luminoso espírito já foi apagado pela morte, - perceben-
do-lhe a relevancia, copiou-o da dita coleção e fê-lo es-
tampar na "Gazeta Literaria" ( excelente revista de efê- j 
mera duração, aqui dirigida por Teixeira de Melo e Vale l 
Cabral), ns. de 11 de outubro e 24 de novembro de 1884 ; 
(pags. 372-376 e 387-391 do t. 1, único publicado). 
E' o seguinte: 
"A BANDEIRA DE FRANCISCO DE MELO 
PALHETA AO MADEIRA EM 1722-23, SEGUN-
DO UM DOS SEUS ÇOMPANHEIROS (*). 
Partiu a tropa da cidade de Belem, praça do Grão-
Pará, a 11 de Novembro, em que veiu o mesmo general 
despedir ao sargento-mór e cabo, acompanhado da no-
breza da terra: e já despedidos, demos uma salva geral, 
emproando as proas ao Norte que seguia mos Leste-oeste, 
nos fomos despedir de Nossa Senhora do Monte do Car-
mo, a quem nos recommendamos e a tomamos por estrella 
e nossa advogada, para com seu patrQCinio vencermos 
este impossível e um descobrimento de todos tão desejado. 
A continuar nossa derrota se seguia a galera Santa 
Eufrozina e São Ignacio, em que vae o Cabo, que esta é ? 
a nossa capitanea; seguia-se-lhe a galeota do padre ca- :i 
pellão com a invocação de Santa Rita e Almas, e a esta ; 
a canoa São Joseph e Almas, que serve de armazem eui ,1 
que vae o maior computo de soldados; a esta se seguia a · 11 
. (*) Toda.s as notas, que adeante se encontrarem, são mi· 
n-has. Lamento que Caplstrano d·e Abreu não se houvesse l&m· 
brado de fazer o mesmo, pois sairia certamente melhor 11. ta.· 
refa da. dllucidaçã.o. 
C> CAF:i!: 19 
,galeota Menino Deus, em que vae o sargento com a mais 
infantaria, e por ultimo a galeota Sancta Rosa, em que vae 
o capitão de infanteria da mesma tropa, servindo de al-
mirante. 
Fomos buscando o rio Mojú e seguindo por elle a 
nossa jornada até o estreito de Igarapé merim, que desem-
boca no rio dos Tocantins, onde está fundada a villa de 
Camutá, em dois graos do sul; nesta dita villa estivemos 
tres dias, á espera da infantaria volante que della nos 
accompanhou e levamos de guarnição; e d'aqui demos 
ordem a partir buscando o rumo que havemos de seguir 
pelo grande rio das Amazonas, o qual é um dos maiores 
que no mundo se tem descoberto, que corre de leste a 
oeste; e o seguimos até embocarmgs pelo famoso rio da 
Madeira ( o rio V enes, que é chamado pelos Hispanhoes 
das fodias de Hispanha do Reino do Perú), que nelle 
agora descobrimos, e corre este de norte a sul, pelo qual 
fizemos entrada a 2 de Fevereiro de 1723, e gastamos 
dias de boa marcha, 17, até aonde nos aposentamos a 
fazer arraial em uma tapera de gentio lumas, sitio admi-
ravel em tudo, assim para nossa segurança como em o 
necessario, no qual mandou o cabo se lhe puzesse por 
invocação Santa Cruz de lriumar, onde fizemos igreja, 
armazem, corpo da guarda e casas necessarias; aqui man• 
dou o cabo repartir a infantaria em duas esquadras, donde 
r actualmente havia uma sentinella que guardava munições 
~ e fazenda real e de noite uma ronda para rondar a sen• 
tinella, canoas e todo o arraial. · 
'li Depois de tudo assim disposto, ordenou o Cabo se 
.,. fizesse seis galeotas para se poder nellas passar as cachoei::. 
ras; o que fez pela informação que teve se não podia fa• 
zer entrada0 com as grandes com que nos acha vamos pela 
terribilidade das pedras. 
Feitas as ditas geleotas as preparamos de todo o ne• 
cessario e de quantidade de cabos para as puxarmos pelas 
20 BASILIO DE MAGALHÃES 
cachoeiras; neste tempo se esperava já pelo soccorro da 
cidade, o qual chegou a 4 de Junho, e havia muito tempo 
que os miseraveis soldados, indios e inda o Cabo, depois 
das fructas do matto acabadas, comiam unicamente carne 
de lagartos, cameliões e capivaras, por não haver .outro 
mantimento, pois não tinhamos outra cousa a que nos tor~ 
nassemos. 
Com o dito soccorro tamb~m veiu o reverendo padre 
mestre João de São Paio, em sua galeota, e tanto que o 
Cabo se viu soccorrido de nosso excellentissimo general, 
tratou logo de se pôr a caminho, o que fez a 1 O do dito 
mez de Junho, com 10 canoas pequenas, que são as seis 
que se fizeram e quatro que tínhamos. · 
Antes de embarcar carregou a Lourenço de Mello o 
governo do arraial encommendando-lhe muito a paz, união 
e conservação da gente que lhe deixava, assim soldados, 
como índios. · 
Prosseguimos nossa viagem por aquelle temerario e . 
horrivel rio e o padre mestre João de São Paio nos acom-
panhou um dia de viagem, d' onde se despediu de nós 
· tomando para sua missão, e nós fomos seguindo a nossa 
derrota até á ilha nova da Praia de Santo Antonio, onde 
tivemos missa no dia do dito Sancto, razão por que assim 
o invocámos. Aqui mandou o Cabo tirar a somma da 
gente com que se submettia ao seguimento d'aquelle rio 
e de suas vertentes e achamos por conta 118 pessoas, 30 
de armas de fogo e 88 indios de frechar e com este nu-
mero de gente proseguimos viagem. 
Chegamos ao rio lamary com 1 O dias de viagem, li 
e continuando para cima aos 22 do mez chegamos á ca-
1 
choeira chamada Maguary, e na passagem ~lia se ala-
gou Damaso Botelher em uma galeota, na qual perdeu 
o Cabo a sua capa, o que deu por bem empregado por ser 
em serviço de Sua Magestade que Deus guarde. 
O CAFJJJ 21 
D'aqui fomos á cachoeira chamada dos laguerites, 
onde chegamos vesperas de S. João e nella vimos sem en-
carecimento uma figura do lnfemo: porque tendo eu visto 
grandes cachoeiras, como são as horríveis e celebradas 
do rio. dos Tapajós (.Y.) todas e do rio dos Tocantins, a 
ltaboca e as mais que se seguem pelo rio de Araguaya e 
por elle até a cachoeira do Padre Raposo chamada Otim-
bora, pois nenhuma iguala nem tem paridade a esta do rio 
da Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros de pedras 
e rochedos tão altos que nos pareceu impossível a passa-
gem, como na realidade, pois para a passarmos foi ne-
cessario fazer-se caminho, cortando uma pontade terra 
onde fizemos fachinas, sendo o Cabo o primeiro no tra· 
. balho a dar-nos exemplo, e fizemos uma boa grade de 
madeira por onde se puxaram as galeotas; no dito dia 
ainda se puxaram quatro, supposto que com muita fadiga, 
e já acabamos tarde; e no outro dia, que foi o do nasci-
mento de S. João, se puxaram as mais e se carregaram 
outra vez com farinhas e munições, que as fomos comboiar 
mais de meia legua de caminho por terra. 
Daqui continuamos, nossa jornada passando cachoei-
ras umas traz das outras e chegamos á quinta cachoeira, 
a que chamam Mamiu, que gastamos 3 dias em passar 
nella as galeotas á corda, não havendo excepção de pes-
soa neste grande trabalho, e com tal perseguição de pragas 
de Piuns, que cada mordedura é uma sangria, ficamos em 
uma ponta aonde foi julgada que humanamente se não 
podia passar; e passamos as galeotas a outra banda do 
rio para haver de melhor passar, e o Cabo mandou puxar .. 
- a sua galeota por cima das lages e as duas mais pequenas 
(•) Note-se que quem escreve I!: um companheiro anônimo 
de ·palheta, e não este. Assim, não se pôde Inferir deste trecho 
que o militar paraense houvesse eatado ante,s em outras _entra-
daa od'.lclala pelo Tapajõs e ,pelo Tocantins, 
22 BASILIO DE MAGALJllES 
que servem de espia, e foi esperar pelas mais canoas á 
ilha chamada das Capivaras, e pela tardança deram bem 
cuidado ao Cabo até 9 horas da noite, que nos ajunctamos; 
e logo que amanheceu fomos seguindo nossa viagem i 
cachoeira chamada Apama, vespera de São Pedro: e fa-
zemos f achinas egualmente soldados e índios, rompemos 
as mattas pela terra a dentro dois quartos de legua, em 
que gastamos dois dias em fazer caminho e grade, rom-
pendo a golpe. de machado e alavancas grandes pedras 
e afastando outras aos nossos hombros com bem risco 
de vida. 
Esta cachoeira assinalada dos Apamas é tão terrivel 
f'l tão monstruosa e horrível, que aos mesmos naturaes de 
cachoeiras mette horror e faz desanimar, porque de conti-
nuo está no mais violento curso de sua desatada corrente, 
o que não encareço por não ser suspeitoso, porém, deixo 
á consideração e representação dos experientes, pois por 
muito que dissera não dizia nem ainda a terça parte do 
que é, o que se póde perguntar egualmente assim ao Cabo 
e capitão como a todos os mais da companhia. · 
Aqui demos ordem a puxar as galeotas, e se puxarem 
tres a meio caminho, porque uma galeota botou o beque 
fóra cercio, desfazendo a amura e as conchas, que foi ne-
cessario pÔr-lhe rodella, ao outro dia se puzeram as mais: 
e a 2 de Julho, depois das galeotas concertadas e breadas 
que se acabaram pelas 1 O cio .dia, partimos e fomos se-
guindo a nossa jornada todo aquelle dia, sem acharmos 
porto capaz até ás 8 horas da noite, porque este rio em si 
está a cair toda a beirada continuamente e de tal sorte 
caem pedaços de terra, que deixa uma enseada feita, 11 
fomos dormir a uma ilha de pedras de onde achamos boa 
ressaca para as galeotas se amarrarem seguras: e logo que 
amanheceu seguimos viagem ao porto dos Montes, onde 
disse o guia vira um caminho que descia ao porto que era 
do Gentio, que habitava naquelle logar, mas não se viu 
O CAF:fl 23 
trilhas nem caminhos, por estar já deserto; neste dito porto 
fomos visitados por uma praga de abelhas, assim a quan-
tidade das grandes, como a machina das pequenas, tão 
espessas como nuvens, buscando-nos olhos, e ouvidos e 
bocca, e todos enguliram bastantes, porque se as enxotas-
semos das rações ficariamos destituídos de toda a limitação 
que temos de farinha, que é tão limitad~ a medida em 
que se dá, que apenas é para dois bocados de bocca, e 
fechada cabe em uma mão toda; logo lambem o que va-
mos comendo, são cameleões e uns animaes a que cham·1m 
capivaras, e alguns por se não atrever a estas poucas car-
nes comem só ovos dos ditos lagartos. Peixe de nenhuma 
casta, nem sorte se acha, que das pobres espingardas é 
que vamos passando a remediar a vida. 
O Cabo que nos rege não dorme nem socega ai.te-
vendo o futuro, e por isso é tão previsto e assim vamos com 
muita regra com a farinha; e tornando á nossa derrota 
fcmos caminhando até á noite que aportamos na beirada 
de uma cachoeira e determinamos a passai-a no seguinte 
dia. 
Neste Jogar deu parte o Principal Joseph Aranha ao 
Cabo haver visto uma mui grande cobra abolada, que 
affirmam todos os que a viram teria de comprimento pouco 
menos de 40 passos e de grossura julgaram ter 15 a 17 
pés; grandes monstruosidades de animaes similhantes tem 
este rio, porque com esta são duas que se tem visto nesta via-
gem, e outras maiores immundicies se póde ver nelle, por-
que não ha duvida que essas vehemencias de pedras (nas 
concavidades que têm) muito mais pódem criar. .. 
E assim que amanheceu fomos seguindo nossa jorna-
da até ser horas de parar e tomamos porto pelas 11 do dia. 
Chegou logo o ajudante com um lote de gente onde 
vinha o Principal, lndio moço e mui arrogante, e é certo 
que chegou com mui pouca vontade porque dizem se atra-
cára com um lndio nosso, mas que vendo o nosso poder 
24 BASILIO DE MAGALIUES 
aplacara da furia, e assim solto o trouxeram á presença 
do nosso Cabo; acompanhavam a -este dito Principal dois 
mocetões, seus filhos, de pouco mais de 15 a 12 annos é 
duas lndias, mães dos ditos e mulheres do Principal, com 
mais um rapaz e uma rapariga e todos faziam computo 
de treze cabeças. 
Fez o Cabo o possivel por um lingua para os mandar 
practicar, mas não se achou quem os entendesse, porque 
falando a nossa lingua, batiam com as mãos nos ouvidos, 
mostrando ter sentimento de não ouvir a nossa practica, 
mas com grandiosos mimos e dadivas ficaram mui contentes 
e satisfeitos no que most_ravam. 
Aqui Nossa Senhora do Carmo, que não falta a seus 
devotos, espiritou ao lingua em fallar-lhes em lingua de 
outro gentio seus conhamenas, logo respondeu o Principal 
gentio com um agrado ao que lhe propunha o nosso lingua 
por cuja giria foi continuando a practica, e sobre e por 
razão da paz firme e valiosa que com elles pretendiamos 
fazer, e na mudança de vida para virem ao gremio ela 
igreja, avassalando-se como os mais gentios fizeram, a que 
respondeu estava contente e certo nas clausulas e firmeza 
da paz, e dizendo ao Cabo que o esperasse que o queria 
vir visitar da sua provincia e trazer-lhe algumas cousas em 
reconhecimento do bom tràcto e mimos que lhe havia dado 
·se queria recolher; ao que o Cabo respondeu mandando-
lhe dizer que tudo agradecia e que se fosse em paz, que 
sua vontade era seguir para cima o rio, fazendo pazes e 
descobrimento, que não vinha fazer escravos, senão ami-
gavel paz com todos; e aquelles que lhe quizerem impedir 
sua jornada tomando armas para elle, que a estes sim lhes 
declararia guerra. 
Foi o Principal gentio em paz para a sua provinda, 
o qual na estatura e presença era muito bem parecido e os 
enfeites que trazia era uma colleira de miudas çontas de 
fruta do matto, muito negras e o cabello atado atraz em 
O CA.F:f:I 26 
molho e nelle um penacho, e por diante trazia o cabello 
cortado, de orelha a orelha, os beiços tintos de vermelho 
de uma casca de páo que mordia; as ln dias cobriam o que 
a natureza occultar ensina com umas franjas de fio tecido, 
e cingiam no cinto com uma enfiada de contas das ditas 
fructas do matto; era para ver como festejavam os nbssos 
avellorios: é este gentio muito pobre; as suas redes são 
de casca de páo aqui chamada embira. 
Despedidos elles, ficamos de aposento até ao outro 
dia ao amanhecer, que fomos seguindo a viagem, e sendo 
por horas de vesperas chegamos á paragem em que o rio 
estava tapado com uma grande cachoeira e andamos bus-
cando canal com excessivo trabalho. Começamos a pas• 
sar a 9 de Julho e a 12 do dito é que sahimos della, e 
logo avistamos o apartamento do rio que vae ao Sul, 
para onde seguiam os a nossa jornada, deixando o famoso 
rio da Madeira a Oeste, entramos pelo dito a que os 
Hispanhoes chamam Mamuré, e neste mesmo dia passa-
mos nelle a primeira cachoeira.Sendo pela manhã no dia seguinte depois de missa 
partimos a passar a dita temeridade da cachoeira, e posta 
a galeota do Cabo para ser a primeira na passagem, não 
foi possível, porque assim que fomos puxando por ella, 
para subir um degrau, que só teria seis palmos de altura, 
por ser muito direita a queda que fazia a àgua com a velo-
cidade que despenha a furia da correnteza, logo sem 
. mais tempo se foi a pique largando toda a pobreza que 
levava dentro em si, sem dar tempo a que lhe pudessemos 
' acudir, porque inda que fossem as amarras do mais fino 
linho não poderiam ter mão a estas grandiosas correntes; 
Ficou o nosso Cabo nesta alagação destituido de 
tudo, que uma viagem com dois naufragios é grande per-
dição, e sem poder neste certão remediar-se do preciso: aqui 
ia morrendo um soldado afogado se lhe não acudissem: 
vendo o Principal José Aranha que a primeira se afun-
26 BASILIO DE M.ArGALHÃES 
dava nem por isso deixou de se submetter ao perigo, e 
querendo passar a sua, lhe disse o Cabo repetidas vezes: 
quantos hoje hão de· ficar orphãos; e indo-se já puxando 
por duas grossas cordas, tornou a repetir o Cabo aos ln-
dios que na galeota iam, que tirassem as camisas para as 
não perderem; não tinha bem acabado de dizer, quando 
logo se foi a galeota a pique arrebentando as duas cordas, 
e por grande diligencia do Cabo, a tiramos do fundo do 
mar, que já estava captiva das temerarias pedras e sober-
bas ondas que faz, levantando outra vez ao alto a corren-
teza que vae de riba. 
Aqui obrou Nossa Senhora do · Carmo um grande 
milagre, porque um lndio nosso chamado Martinho, por 
enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos paioes 
da canôa e escapou sem molestia quando a canôa se sub-
verteu, de sorte que o susto bastava para molestar. Esti-
vemos dois dias concertando as duas galeotas e no terceiro 
dia fomos seguindo viagem, sempre levando por prôa aquel-
la machina de pedras e com o trabalho de ir puxando as 
nossas galeotas até o porto do gentio chamado Cavari-
puna, e como os espias deram com um caminho seguido de · 
gentio, mandou o Cabo uma êscolta boa procurando ao 
Principal daquiella nação, e se recolheu a dita escolta com 
seis pessoas, a saber, um lndio de meia idade com dois 
filhos maiores, duas crianças e a lndia mãe desta familia. 
E vindo estes taes á presença do Cabo lhes mandou per-
guntar se entre elles vinha algum Principal, ao que res-
pondeu o lndio pae da familia que não, e que temido dos 
brancos pelos não captivar viviam separados, cada um 
por seu norte distinguidos, e de sua nação, solitario elle vi-
via n'aquellas brenhas, mas que sabia que o Principal 
Capejú que da outra banda do rio vivia desejava muito 
de ter falia de brancos para se commerciar; ouvido pelo 
Cabo e certificado de seu dizer lhe perguntou que dias se 
gastaria a chamar o dito Principal Capejú; disse que qua-
O CAF:fl 27 
tro dias e que elle mesmo o iria chamar e que esperassemos 
depois de passada a ultima cachoeira, e que por firmeza 
de sua palavra deixaria na nossa companhia sua mulher 
e filhos; despediu o Cabo ao lndio { com dois lndios mais 
nossos que lhe fallavam a gíria), com bastantes mimos. 
de ferramentas, facas e avellorio aos 18 de Julho. 
Logo que amanheceu o seguinte dia nos fomos apo-, 
sentar na espera do gentio, onde estivemos dez dias, e 
como não vieram proseguimos nossa derrota até as boccas 
dos rios de agua branca e de agua preta, onde chegamos 
no 1. 0 de Agosto. 
Este caudaloso rio d' agua preta se aparta do rio 
Branco, correndo na bocca a Sueste quarta de Sul. a cujo 
rio chamam os Hispanhoes ltennis C-) e o dito rio Branco 
parte a Sueste quarta de Oeste, na entrada a que tambem 
os Hispanhoes chamam Mamuré. 
Entre estes dois rios nos aposentamos em uma longa 
praia de arêa e d' aqui seguimos o rio Branco por nos pare-
cer mais pequeno {como é) e este declarar signaes de ha• 
bitado, porque não ha estalagem de gente que nelle cursa 
que não tenha cruz, doutrina seguida em aquella povoa-
ção, já seguimos {com estes vestígios) a nossa fatal viagem 
com a esperança de aproveitar com fructo tanto trabalho e 
perigos de vida. 
E sendo a 6 de Agosto o sentinella que fazia o 
quarto da sua fallou a uma canôa que vinha rio abaixo 
com 1 O lndios Hispanhoes, foi o Cabo em pessoa na sua 
galeota tomar-Ilíes o encontro a fallar com elles, e trazen-
do-os para a praia d' onde esta vamos se informou o nosso • 
(•) "ltênez", como se ·põde ver do "Dlclon.arlo geogrâfl• 
co, ·hlstõrlco e descritivo do Imperlo do Brasil" (Paris, J. t>. 
Alllaud, 1846, 2 vols.), de Mllllet de 1Salnt-Adolphe, é o •.nome 
que os Castelhanos dão commummente ao rio Guaporê, na pro• 
vlncla de Matto-Gros,so". Provêm, como verifiquei, dos fndlos 
lténea, habitantes do terrltorto sito entre o Mamoré e o Guaporê. 
28 BASILIO DE MA<GALHÃES 
Cabo cabalmente e tomamos um guia para nos levar se-
guros ao porto da grande povoação de Sancta Cruz de 
Cajuáva, e no seguinte dia por horas de vesperas encon-
tramos cinco canôas, que iam deste rio Mamuré para o 
de ltennis, e assim que nos avistaram levantaram uma cruz 
por bandeira, e perguntando-nos si eramos christãos lhes 
respondemos que sim e Portuguezes, a que sorrindo-se e 
benzendo-se todos a um tempo: d\ristãos portuguezes? Nós 
o somos de S. Pedro, e f aliando com o Cabo tomamos 
terra, onde jantamos. 
Estiveram comnosco este gentio pouco mais de uma 
hora, e neste limitado prazo tiveram elles e tivemos nós 
um grande contentamento, de sorte que ficou apagando 
todos os trabalhos de antes; despediram-se para baixo e 
nós proseguimos; e já d' aqui se não vê mattos sinão tudo 
· campos geraes assim de uma como de outra parte do rio e 
pela terra a dentro. 
Pelas 4 horas da tarde ouvimos zurros de gado vac-
cum, e ordenou o Cabo fosse o Sargento Damaso Botelher 
a dar a entrada e lhe recommendou a força da diligencia 
e manifes:ação ao regedor. D'aqui dizia o guia não che-
garemos á povoação sinão amanhã, e como l~o ouvido 
isto, mandou o Cabo se marchasse toda a noite, e se não 
parasse sinão juncto da dita povoação, aonde esperaria 
pelo Ajudante, que enviou adeante com a embaixada de 
sua vinda, o qual chegado pelas 7 horas da manhã, o 
levaram pela povoação dentro os lndios d'ella com tal 
amor e cortezia que fazia admirar, e chegando á praça 
fallou aos Padres que estavam naquelle collegio, os quaes 
o receberam com tepiques de sinos e grande alvoroço d'a-
quelle povo, mostrando com instrumentos de orgão, cravo 
e musicas e com clarins e charamellas o como nos festeja-
vam alegres. 
A saudação que os ditos Padres fizeram ao Ajudan-
te, foi beijando-lhe a mão com o nome da Santissima Trio-
O. CAFifl 29 
dade, Padre, Filho e Espirito Santo, e o levaram para 
. dentro onde estavam mais dois religiosos, dos quaes foi 
abraçado e o levaram para dentro porque se não enten-
diam nem se podia ouvir a falia de uma pessoa a outra 
pelo grande rumor de muita gente que a rodeava. 
Chegando com os ditos Padres o Ajudante ao so-
brado, onde em uma capellinha estava uma imagem do 
Senhor Crucificado em um grave nicho, que de uma e 
outra parte tinha janellas rasgadas que cabiam sobre o 
Jardim: aqui ajoelhou o Ajudante com uma devida re-
verencia, dando graças .a Deus de haver chegado á terra 
de Christandade com tão bom successo depois de tantos 
trabalhos. 
Acabada a oração lhe offereceram os Padres assento 
e pondo-se em silencio interrompeu o nosso enviado di-
zendo: 
"Reverendíssimos Padres, nós somos vassallos do se-
nhor Rei Dom João Quinto de Portugal que Deus guarde 
e por noticias e signaes que se viu neste rio de muitas cru-
zes se resolveu o senhor João de Maya da Gama, nosso 
excellentissimo Governador e Capitão General, a mandar 
dez galeotas armadas em guerra com infanteria de cravi-
neiros a fazer descobrimento, e trazendo um Sargento 
Mór por Cabo da tropa, o qual me envia a dizer a Vossas 
Reverendíssimas que se não alterem, nem a gente d' este 
povo, pois que vem cóm todo o socego, paz e quietação 
até chegaraqui, e por razão de estado me enviou a dar 
parte a Vossas Reverendíssimas e ao regedor d' este povo, 
para que assim se não assustem com a sua ent-rada". 
Respondeu o Padre Miguel Sanches de Arquino que 
já havia muitos annos esperavam a vinda dos senhores 
Portuguezes a aquellas lndias, e perguntando que gente 
trazíamos, lhe deu por conta o nosso Ajudante que 118 
pessoas; perguntou si era o Cabo cavalleiro e lhe foi res-
pondido com a verdade de que era dos principaes da terra 
30 BASILIO DE MkGALlilES 
na capitania do Pará; perguntou mais se traziamos Mis-
sionario e de que religião, foi-lhe. dito que só um clerigo 
levavamos por capellão; perguntou mais pelos nomes, o 
que tudo se lhe disse, principalmente do Cabo, Capitão, 
Capellão e Ajudante. 
Então disse o Padre Miguel Sanches de Arquino 
que mandava ao Padre Irmão Oliberio Nogua com Sua 
Mercê a receber o Cabo, e que estimava muito a sua boa 
vinda a aquella povoação e que não só lhe mandava 
beijar os pés, mas offerecer-se para lhe obedecer em tudo, 
e que entrassem na hora de Deus, que tudo estava socega-
do e nem a cortezia dos honrados e valorosos Portuguezes 
podia em nada alterar os corações e que o seu estava aber-
to para n~lle e nos braços o receber com grande gosto; 
que só tinhà o pezar de ser esta vinda em anno tão esteril 
pela innundação do passado: tornaram a abraçar todos 
ao nosso· Ajudante com demonstrações de muito contenta-
mento e debaixo de um chapeu de sol a uso da terra, o · 
qual é feito de pennas da avestruz, acompanhado do Pa-
dre Irmão se foram buscando o porto do desembarque em 
busca do Cabo, que o estava esperando da outra parte 
do rio. 
Embareou-se o Ajudante e junctamente o Padre Ir-
mão e Capitães e Alcaides e si a galera pudera com mais 
gente, muitos mais iriam nella a receber o Cabo, porém 
nas que se achavam no porto tambem se embarcaram para 
acompanhar ao Ajudante e dando este a senha com um 
tiro respondeu a tropa juncta com uma descarga ao rece-
bimento do Padre Irmão, e ao salvarem-se com o Cabo 
outra e ultimamente a tres vivas aos Reis tres cargas, aba-
lando-se as galeotas da tropa com o mesmo concerto e 
desfilada {seguindo ao nosso Cabo), os mais fomos apor-
tar á povoação, e já no porto estariam duas mil pessas á 
nossa espera para nos cortejarem, e assim com este accom-
O CAF:l!l 81 
panhamento entramos pela povoação, e chegando o nosso 
Cabo áquella grande praça do Collegio, vieram os mais 
Padres a recebei-o; estavam as tres portas da igreja to-
das abertas e os sinos se desfaziam com repiques, chara• 
mellas, clarins, orgão e todos os mais instrumentos de mu-
sica, que fazia uma grande entoação. 
O altar mór da Igreja estava ornado e com seis vel-
las de libra accesas, e fazendo oração o nosso Cabo e os 
mais de sua guarda em acção de graças entoamos a salva 
de Nossa Senhora com a sua ladainha e tivemos missa logo, 
d'onde ao levantar a Deus entoamos o "Tantum Ergo" 
e no fim d'ella o Bemdito, o que tudo acabado, vieram os 
Padres e levaram ao nosso Cabo em braço para uma 
grande casa, que parece é quarto feito naquelle Collegio 
para hospedar pessoas grandes, onde estava ornado um 
g~nd~ famoso bofete cheio de flores e outras delicias d'a• 
quellas Indias, e a um e outro lado da grande casa tambo-
retes, catre e rede, á usanca da terra, ànnario com o ne- . 
cessario, e se puzeram os Padres a practicar com o nosso 
Cabo no que a cada um tocava, e sendo horas de jantar 
se poz a mesa onde jantou o nosso Cabo e· o Padre Ca-
pellão, e os guisados que lhe puzeram passaram de trinta 
iguarias e não vinha vianda alguma que não viesse co-
berta de flores, e assim que o nosso Cabo se poz á mesa 
começaram dois lridios a tocar harpa e rabeca que cer-
tamente enlevavam: os lndios é que serviram a mesa sem 
haver descuido algum nem falta do necessario e com boa 
compostura e limpeza: acabado o Cabo de jantar, .se 
juntou na propria mesa, e acabado de comer a infanteria 
vieram os Padres pedir mil perdões ao nosso Cabo do pou• 
co com que se achavam para receber a sua pessoa e tive- · 
ram meio hora de conversa os PadTes com o nosso Cabo, · · 
e se foram recolher até ás 2 horas que tomaram a vir. A 
cortezia e o modo e affagos que nos fizeram, foi mais de 
32 BASILIO DE MA'GALHÃES 
muito, e naquellas mesmas horas que nós chegamos se avi-
saram todas aquellas povoações por terra e a cavallo. As-
sim; logo ao outro dia pelas 9 horas chegou o Padre João 
Baptista de Bosson, sobrinho do Duque de Banhos, o qual 
é missionario da povoação de Sancta Anna, veiu a c;avallo 
e o acompanharam seis cavallos lndios: o modo e o cari-
nho d'esta grande pessoa foi a maior coisa que vi: logo 
no outro dia chegou mais. o Padre Gaspar dos Prados: 
este Padre veiu em canôa da missão de São Miguel de 
Moxoquinos; neste mesmo dia chegou mais o Padre Ni-
colau de Vargas da Povoação de S. Pedro dos Mo-
xos {*) e si mais dias estiveramos mais Padres creio che-
gariam, que a todos os grandes desejos de ver Portugue-
zes, os fazia vir tão promptos e prestes, e finalmente disse 
o Padre Nicolau de Vargas que si nos não topasse alli 
havia ir rio abaixo só para nos ver e fallar; mas deste o 
que devia ao sangue Portuguez é que o fazia ter este gran-
de desejo. No dia de São Lourenço, 10 de Agosto, can-
tou o nosso Capellão a missa da terça neste sancto Colle-
(•) tEstas lndlcaçõea deixam ,fõra de toda e qualquer dO· · 
vida -que a redução jesuftico-espanhola, ã qual -chegou a expe-
dlcão da ·Palheta, devia achar-se ã margem do Mamorê, em lo· 
gar ,não distante do em que neste desrugOa o Yacuma, seu afluen-
te da esquerda, f.sto ê, na atual "Exaltaclõn" dos mais recen-
. tee mapas •bolivianos. Com erfelto, sõ a tal ponto ê que poderiam 
atingir, ,com um ou dois dias de vla.gem fluvial ou a cwva!o, os 
mlsslonarlos ·castelhanos de "Santa Ana", ju·n-to ao Yacuma, 
e d,e ·"San Pedro de Moxos", 1t1as ,cabeceiras de Machl,po ,e ,prõ· 
rima da caudal do Mamorê. Por se tratar -de terrltorlo e,stran• 
gel.ro, guiei-me, para esta o,b-servação, 1Pelo "Mrupa ,general de Ia 
RepObllca de Bollvla" (7.• ed., 1908), de- Luls Garcia Meza, na 
!alta de mais antl·ga e ·precisa carta geogr,Ml-ca daquela regi/lo, 
Pondere--se, ainda, que o topô.nlmo primitivo era "Eocaltaciõn 
de Santa Crmrl', comum nos Influenciados ,pelo haglo!oglo llbiê-
rl,co, -e 'de1pols reduzido ao vocábulo lnlcla:l, por efeito da ,lei 
do menor esforço ou da preguiça. 
O CA,Fl!I 33· 
g10 de Sancta Cruz de Cajuvava {.\lo) cuja povoação 
está situada em 14 graus e meio ao Sul e a cidade de San-
ta Cruz de Lacerda {síc) em 17 graus. O Governador 
desta grande cidade se chama Dom Luiz Alvares Gatto e 
o Bispo se chama Dom Leandro de V aldina Arcaya; 
este Bispo de tres em tres annos visita todos os povos que 
estão situados nos rios que declara o mappa incluso deste 
seu bispado, 
Da cidade de Santa Cruz de Lacerda se seguem es-
tradas ao Reino do Perú, porto do mar, cuja cidade tem 
vice-rei, a que chamam Dom Thomaz de Espego, tem · 
Arcebispo e Bispo está logo a grande cidade de Lima e 
a cidade Joam cavelica episcopal, e outra que lhe chamam 
Cusco, côrte antiga das lndias, mais a cidade de La-Pás; 
episcopal: cuja verdadeira noticia nos deu o Padre Mes-
tre João Baptista de Bosson, e além do que tenho escri-
pto, me deu a saber o rio Sará, que fica Leste-Oeste com 
a cidade de Lima, e que a agua d' aquelle rio é tão grossa 
que coalha e faz formar tijolos e que em fôrmas as deixam 
congelar da sorte que querem, e que tomava a côr parda, 
mui forte para limpar ferro e muito leve no peso {.\lo""). 
( •} At?'âs, .M. escr-eveu o expedlclonar.to "Sancta Oruz de 
Caju!va". Mas a fôrma "Cajuv!va" é a que mais se aproxima 
da denominação castelha.na "Cayuvalbas" (v. o citado "Mapa" 
de Luis Gilrcla :Meza), ailnda hofo da;da ·pelos lbollv.lanos aos tn-
dlos O'cu,pante,s das terras· entre ·o Yacuma e o Yruyan1, a.fluentes 
da margem esquerda no Mamo·rié. São e-stes selv-lco.Jas os me·smos 
~Cayoibás" (evidente erro grá;f:lco d,e tônica, ,pois A ipag_ 236estã a fôrma exata "cayoã,ba "), de um dos quaes colheu o dr, 
João Severiano da Fonseca o peq-ueno vocabularlo, Inserto Â.s 
pa,gs. •2-39-12·40 do 'VOI. li da sua 'Pre:elosa "Viagem ao redor Ido 
Brasu - 1875-1878" (Rio, 1880-1,881), 
<••) o leitor Inteligente corrlglrã, com fa.c!Udade, oa dispa-
rates grMlcos de "Sancta Cruz de Lacerda", em lo·gar de "San-
ta Cruz de la Slerra", e de "Joam cavellca", em vez de "Huan-
ca.v,e.Hca", assim como o que veni no iparé,grafo seguinte, ,fã com 
34 BASILIO DE MAGALHÃES 
E perguntando-lhe si seria esta a que cá lhe chama• 
mos pedra pomes. me disse que a pedra pomes era uma 
· serraria ou montes que todos os annos arde e arrebenta 
com a força do incendio. o qual se achava em um lago 
d~onde acaba o rio Nagú. donde com a cheia vinham pelo 
rio abaixo. mas que esta pedra que da dita agua se con• 
gela servia para edifícios e portaes; tambem me disse que 
pelo grande rio de Xirigu~nnas ha viboras. que engolem 
uma besta inteira e que o gentio d' elle lhe fazem guerra 
com tropas de cavallos; tambem me affirmou que o anno 
de 1722 com uma innundação se fôra a pique uma ilha 
chamada Chamayca ("sic") com 200 navios que estavam 
ao redor d' ella ancorados. e que esta tal ilha era povoada 
da nação ingleza. 
Os cannaviaes em Santa Cruz de Lacerda e nestas 
povoações duram 60 annos e até aqui onde chegamos du· 
ram 20 e 30 annos, cujas cannas são todas umas no cum• 
primento e grossura. e a calda mui forte que tudo é assu· 
car, como o experimentamos por ver: estas terras dão aça· 
um ale de Caa,lstrano: "Chamayca", 'P·or "Jamaica". Não deixa de 
ser curioso o boato, que em 17,23 correu pelos sertões c·a,stelha• 
nos da América-do-Sul, do desaparecimento da Ilha Inglesa da 
America-Central, de mais a mais tida como tragada pelo mar 
".c·om 200 navios, que esta,vam ao redor <dela ancorados". Exa-
gero.s da sempre cê.lida imaglnacão espanhola, ainda mesmo 
quando saturada da doutrina de Santo Ignacio de Loiola ..• 
Quanto a "Guaman,ga", não passa de corruptela fônlca da 
"Huaman,ga", primitivo nome da atual "Ayacucho". O vice.rei 
do Per1i, ao tempo em que Palheta expedlclonou pelo Madeira 
e ,pelo Mamo.rê, era d. frei Diego Morclllo Rublo de Auf\õn, arce-
bispo de Charcas, que ocupou aquele cargo desde 26 de janeiro 
de 1720 atê 14 de marco de 1724, como se vê na obra "Gober-
nadores y vlrreyes del Peru - 1153·2-1824" (Barcelona, 1'909 ), 
llU;bHca<d,a 'POT Domlng-os <de Vl,vero e D. J. A. de Lavalle (,vol. I, 
pags. 129-131). Quanto ao mlnerlo, atrlbuldo é. agua coalhada 
e congelai!a, deve ser· a obsldlana (,feldspato potâsslco de ort· 
gem vulcânica), tam·bem chamada "espelho dos Inca.a". 
O CAF:li 86 
frão, que é o contracto d' estes lndios, cera branca, pannos 
acolchoados e bordados que fazem, e ha lndios que têm 
100 bestas suas e mui bem ensinadas para vaquejar e 3 
a 4 mil cabeças de gado que cada um tem e ha outros 
lndios que têm muito mais. 
Estes lndios de natureza são mui curiosos, tocam 
muito harpa, orgão, rabecas e cantam missa, são musicoa 
de côro, e varios sabem lêr, e são pintores e com boas 
acções e melhor sombra, o oleo com que pintam é leite 
de vaccas, são bordadores imminentissimos, que nos sus• 
penderam admirados ver tres casullas, uma capa de as• 
perge, dalmaticas, estollas e manipulas, bolsas, palas, veu, 
frontaes, pannos de pulpitos, tudo bordado com as mais 
galhardas flores e ramos, tudo em sua ordem e tão bem 
matizado que não é possivel encarecer. 
Tambem vimos um tapete muito grande, que esten-
dido do altar mór chegava aos degraus abaixo confrontei-
ro as portas da sacristia, com tão admiraveis lavores que 
enlevavam os olhos. 
Do altar mór para cima d' elles, uma estante doura-
da, um missal com chapadura de prata todo aberto ao bu-
ril por matiz e capa de velludo carmezim, um calix dou• 
rado, uma patena fatal e as galhetas que teriam um coito 
de altura, uma salva que serve de prato d' elles e todas 
estas tres peças de prata dourada, a sacra e o Evangelho 
de S. João com molduras douradas, seis castiçaes de pra- · 
ta de boa altura, logo o throno ou camarim dourado por 
dentro com uma invenção para encerrar, casa boa 0), o 
retabulo obra miuda, mas inda estava dourado. .. 
O governo d'este povo é na fórma seguinte: tem dois 
regedores e estes dois capitães e os capitães têm dois alcai-
des, e quando quer um d' aquelles indios colher as suas 
sementeiras ou plantar as suas roças vai á casa do rege-
dor dizer-lhe que tem este ou aquelle trabalho que fazer, 
este manda ao capitão lhe dê gente e o alcaide os vai 
36 BASILIO DE MAGALHÃES 
avisar aquella que é necessario · para fazer aquelle traba- · 
lho e lhe assignam dia certo, no qual não faltam á porta 
do lavrador, e acabado o trabalho se paga a todos os 
que ajudaram e assim observam geralmente, por isso to-· 
dos têm e são ricos; os padres que ali assistem são como 
vigarios d'este povo, e lhes pagam os moradores, fóra as 
premicias das novidades, e elles não fazem mais que admi-
nistrar-lhes os sacramentos. 
· Em tudo que é necessario para a igreja concorre' o 
povo, uns com dinheiro, outros com tapetes, gados, cera 
branca, arroz, milho, fio, pannos e tudo remettem por cor-
recção á cidade de Santa Cruz de Lacerda, aonde tudo 
se lhes vende e lhes vem o necessario. Esta povoação tem 
quatro sinos grandes e dois pequenos, fóra garridas e ro-
das de campainhas,. e são estes indios tributarios a seu 
rei. 
Depois das tres badalladas da madrugada se ajun-
ctam todos á porta da Igreja para ouvirem missa onde 
resam o rosario de Nossa Senhora com tal devoção que, 
nomeando o nome de Jesus, dão junctos um ai, batendo 
no peito: ao levantar da hostia tocam orgão e cantam o 
"Te Deum laudamus" e no fim da missa tocam chara• 
mellas e com baixões entoam o bemdicto; e acabado cada 
um vai para o seu trabalho. Ao meio dia nas badalladas 
rezam de joelhos; de manhã, dizem: "Sanctos dias dê 
Deus a Vossa Mercê"; á tarde dizem: "Sanctas tardes 
lhe dê Deus". Pelas 4 da tarde se ajunctam todos assim 
homens como mulheres, rapazes, raparigas e meninos, ao 
redor da cruz que está na praça a resar o rosario de Nos-
se Senhora em voz alta, e tanto que o Padre vê terem 
acabado os mysterios dolorosos, antes dos gloriosos, se che-
ga e ajoelha com o povo junctamente e offerece; no fim 
resam o Acto de contrição e ali mesmo resam as trinda• 
des; vi neste povo todo o genero de Officios, 
O 9AF:fl 8T 
Sendo aos 11 do mez de Agosto nos despedimos, por-
que o nosso Cabo disse aos Padres que lhe não permittia 
mais o seu regimento que tres dias de hospede, bem con-
tra vontade dos religiosos, que seus desejos mostravam que 
estivessemos mais alguns dias com elles: antes d'esta des• 
pedida havia ordenado o nosso Cabo que todos geralmen• 
te se confessassem, pois tornavamos a vir passar as terri-
bilidades e riscos de vida nas cachoeiras: o que todos as• 
sim fizeram. 
Pelas 3 horas da tarde nos ajunctamos todos na igre-
ja por ordem do Cabo, para depois de orarmos, b~ijar-
mos o sancto lenho e alcançarmos a benção papal, que 
aquélles Padres, com grandes indulgencias, concedem por 
privilegio particular: o que feito nos despedimos d'aquel-
la boa companhia, que até ao embarcar do Cabo nos esti-
veram abraçando e pedindo muitos perdões e mostrando-
se mais agradecidos á cortezia, urbanidade e tracto do 
Cabo, pois tão cabalmente se soube haver com elles. 
Propoz de novo o nosso Cabo a estes Padres publica• 
mente, recommendando e requerendo da parte do nosso 
excellentissimo General, em virtude do tractado feito en-
tre os nossos reis e pela conservação dos povos, que lhe 
assignalava de hoje por diante não passassem para baixo 
da bocca dos rios Mamuré e ltennis, nem interessassem 
d' ahi para baixo gentilidade alguma, por estes pertence-
rem ao·serenissimo senhor Rei de Portugal, pois desde 1639 
que senhoriava o rio das Amazonas até a laguna onde 
se achavam os marcos pertencentes á corôa de Portugal 
e 400 leguas da bocca do rio Madeira até o dito marco· 
comodiz o padre Acuiía no seu livro Maranhão, e quan• 
do excedam, fazendo o contrario do requerimento, que 
inda Sua Magestade que Deus guarde tinha poderes nes-
. te Estado para fazer entregar e repôr tudo o que tocasse 
a seus dominios e senhorios; e com estas mesmas clausulas · 
38 BASILIO DE MAGALHÃES 
faríamos de nossa parte, o que ouvido pelos ditos Padres 
prometteram cumprir e guardar tudo acima requerido. 
D'esta povoação partimos buscando o rumo do norte 
e gastamos rio abaixo dois dias e duas noites ás boccas 
dos ditos rios consignados, e no dia seguinte emboccamos 
o rio ltennis. Este corre de leste a oeste, aonde faz o seu 
apartamento, e vai caminhando para as grandes povoa-
ções dos Baures e Moxos. Seguimos este rio 6 dias acima 
e demos nos curraes da criação de infinito gado e bestas; 
e fallamos com índios da nação ltennis, pertencente á 
povoação de São Miguel; disse o Cabo lhe não permit-
tia o seu regimento a que se estendesse mais, d' onde fi-
zemos a volta para baixo; e vespera de S. Bartholomeu 
levantamos ferro já de rota batida, deixando aquelles deli-
ciosos ares e climas mui differentes e terra tão abundante 
de toda a criação e plantas f.erteis e campos aprazíveis. 
Chegamos a paragem dos nossos enviados índios da 
chãinada do Principal Capejú a 25 de Agosto, e avista-
mos que no meio do rio nos vinham a encontrar 3 T apu-
y;;· em uma limitada casca de pau; chegaram á galeota 
·do Cabo, a quem disseram que ali estavam promptos co-
mo se lhe tinha mandado, e que suas vontades era serem 
compadres e amigos dos brancos com a lealdade de vas-
sallos á corôa de Portugal; estimou muito o Cabo esta re- · 
solução para a mudança de vida e sujeição ao gremio da 
igreja, fazendo serviço a Deus e a Sua Magestade que 
Deus guarde. 
Decidiram todos se queriam baptizar, ao que o nosso 
Cabo lhes disse, aprendessem primeiro a doutrina christã, 
para o que lhes deixava um indio catechista; isso sim, 
se baptizaram os filhos menores por serem crianças, e o 
mesmo Sargento Mór que é o dito nosso Cabo e o Capi-
tão foram padrinhos daquelles innocentes, 
O CAF:IIJ 89 
Este gentio fíca descido e domestico e são da nação 
Cavaripunnas, e dois dias que estivemos na sua aposenta-
doria, sitio que o Cabo lhes consignou para aldea, só a 
dormir se apartavam de nós, satisfaziam-se olhando para 
nós e vendo o nosso tracto; ás tardes, quando rezavamos 
as ladainhas de Nossa Senhora ( que temos por devoção), 
se ajunctava toda aquella familia e nos rodeavam de 
joelhos até acabarmos de rezar, porque o que vêm fazer, 
fazem. O indio a quem o Cabo encarregou lhes ensinasse 
a doutrina se chama Manuel Camacho, o qual é de boas 
practicas f: muito fiel aos brancos, a quem deixamos com 
este gentio e com ferramentas bastantes para ensinar tam-
bem a fazer roças e plantar, na fórma dos indios de baixo 
e em toda a America se practica. 
T ambem fica practicado para se descerem os da na-
ção Apamás e Amatirís, cujas povoações são cunhame-
nas desta nação Cavaripunnas, e agora já estarão jun-
ctos e descidos, para roçarem sobre o ri<>, que são confi-
nantes umas ás outras, a quem tambem o nosso Cabo man• 
dou dar ferramentas e outros mimos. 
Chegamos ao nosso arraial em 8 de setembro com-
feliz successo, sem nos adoecer ninguem da companhia, 
nem nos morrer nenhum, graças ao bemdicto Deus e á 
sua Santissima Mãe N. S. do Carmo, é certo que com 
grandes perdas pelas alagações que tivemos como fica 
dito. 
Vinte e tres cachoeiras se contam no rio da Madeira, 
das quaes dez se não podem passar, por nenhum meio, 
porque são impossiveis, e as passamos cortando pontas de 
terra em secco, cujos caminhos ficam feitos para quem 
vier atraz. 
Neste nosso arraial achamos a falta de tres soldados 
volantes ou aventureiros, que trouxemos na companhia, os, 
BASILIO DE MAGALHÃES 
quaes desertaram atraz de nós, e finalmente chegamos a 
esta cidade em setembro de 1723" ("). 
· O MOTIVO DA EXPEDIÇÃO 
O motivo que levou João da Maia da Gama a ar-
mar essa expedição, que, sob pretexto de descobrimento 
(•) Dessa expedição de Palheta apenas se ocuparam, em 
mln,guadas linhas, A. L. Monteiro Baena, no seu "Ensaio co-
rográfico sobre a 'Provlncla do iParA" (BeMm, 118319), A pag. 517, 
e J. S. da Fonseca, em sua já citada "V'iagem ao redor d'o 
Brasil - 187,5-1878H, vol. II, pag. 274. Menciona. o primeiro 
uma Incursão an.terlor, slmp,les ,bat1da aos in'<lios tura\s, rea-
llz·ada pelo cap.ltão_-mõr do ParA, João de Barros da Guerra, 
que -em 1716 iga]jgou o Madeira atê á "r,iobanc-elra vermellha. 
acima do la·go ManicorlêH e distante "70 l&guas da emlbocadura 
do Madeira", e aBs-im relata a entrada de Palheta ,pelo m&s-
mo rio: 
"A primeira ex·pedlcão, que co.nsta ee flzes,se e. erplorar 
e-ste rio, .foi a de Franci-sco de MellÓ Palheta, mandado em 
l:723 pelo General Governador do ParA João da :Mala da 
Gama, !Por haver tido noticia de alguns Contratadores de Gen-
tios do Madeira que acima das suas cachoeiras havlão habl-
tacoens de gente Europea, sem se saiber ao certo se de Por-
tuguezes ou Hespanhões. O dito eX:plorador, acompanhado .te 
uma tropa, navegando a parte su,perior das cachoeiras, encon-
trou perto da foz do Mamorê uma canoa de Indlos ·castelha-
nos go-verinada •por um Ml.stiç'D: este o guiou â Aldea da i©xal-
tação de Santa Cruz das Cajuba-bas, alta n_a. marg-ém occlden-
tal do Mamorê, entre os r.ios Irulname e Man!rq,ue: na qual 
fallou com os Missionarlos, e regressou ao ParA, onde, dando 
noticia do que achou, nada disse do Beny, que havia de en- · 
contrar entre as caohoelra.s, nem do Guaporê, que, tanto na 
entrada •como na sruhioda do Mamorê, não 1pod1la deixar de vêr". 
O segundo, certamente ln1flu-enclado pelos enganos de Bae-
na (que no seu caõtico trabalho nem .sempre se pr.eocupou 
com o exame potamogrAflco da região a que e.ludla, como ê o 
caso da. sobredita redução, a qual, desd-e que foi fundada, fica 
entre os rios E:xaltaclõn e Yacume., conforme os mãpas bo-
livianos), che,ga a duvidar da realidade da expedição de 17'22· 
1723, ante_ a estranheza de que_ 0 comandante dela, "·de volta 
O CAF:dl u 
do rio Madeira e das suas nascentes, ia realmente em 
busca de novos caminhos fluviais que facilitassem as co-
municações entre o Pará e as possessões espanholas do 
Perú (ainda não existia a Bolívia, formada depois por 
Simón Bolivar em terras do alto Perú), cujas inexgota-
veis minas de prata eram, a esse tempo, causa de não 
pequena inveja da metrópole portuguesa, - não o ex-
planou Capistrano de Abreu, nem serei eu quem o revele 
com irretorquivel certeza. Parece-me, contudo, que a via-
ao Pari!., nada dissesse sobre o Bênl e o Gua'Por,ê, que, tanto 
na Ida, como na desci'la, não pod'lam •passar-lhe des1perce1bldos1• • 
. Ora, se a alegação lê procedente em relação 11.quela caudal, não 
o é no tocante I!. llltlma. Qua<D.to ao Guapore, acha-se citado 
multas veiz.e.s no relato da ex.pedlgão, com o nome castelhano 
de Iténes, que ainda hoje lhe ê dado pelos bolivianos; e pelo 
Mamor-é subiram Palheta e os seus companhe!.ros, durante seis 
dias de nav-egação, atê perto da aldêla de São Ml,guel, o que 
Importa dizer que lhe cortaram as l!.guas por mais de 100 kll0· 
metros; e, qua.nto ao Bênl, é multo provave1 que Palheta nem 
sequer o tenha visto, 'Porque, 'Para evitar a cachoeira "iMa• 
delra", que lhe .fica junto I!. foz, consumiu quatro dias (de 9 a 
12 de julho) na paElli!agem, atê entrar no Mamol'lê, e, avistando 
logo adeante a embocadura do Yata, talvez presumisse tosse 
tudo aquilo um "paranl!.", comum naquele,s rincões. 
Do que escreveram Baena e J. s. da Fonaeca, deduz-se que 
nenhum deles leu o relatorlo da entrada de 172'2-1723, o qual. 
não obstante certos dlspauterlos que encerra, particularmente 
no que concerne AB ln,formagões colhidas o• ad oa dos rnle-
slonarlos espanhóis, é, em tudo mais, veroslmll e verfdlco. 
Palheta contribuiu, em parte, com o seu depolm8'Ilto pessoà.l, 
para confirmar a noticia escrita por um dos eeus companheiros 
daquela ex·pedlção,- como se pôde ver da '.Petição que dl'rlglu 
a d, João V em 1733 (documento que adeante vae inte,gral-
mente reproduzido no texto). Acredito, porem, que em tal peça 
houve um erro do copista, que põa "Cidade de Santa Cruz• 
onde devera estar "Aldêla de Santa Cruz", equivoco de patente 
gravidade, porque, no primeiro caso, permitiria supor-se, pela 
própria aeserção do comandante da entrada, tlv.esse · chegado 
esta at~ San ta-Cruz-de-la-Bierra. 
BASILIO DE MAGALHÃES . 
. gem de Palheta deve ter sido determinada por duas or-
dens régias, datadas ambas de 25 de março de 1722 
("Anais da Bibl. e Arq. Públ. do Pará", 1902, t. I, 
pags. 196-197) e expedidas por d. João V ao referido 
governador, que as trouxe consigo de Lisbôa, visto como 
só se empossou do cargo a 19 de julho do dito ano, e 
envidou logo os melhores esforços para cumpri-las. A pri-
meira referia-se á probabilidade de haver prata em algu-
mas serras do sertão dos dominios portugueses no Brasil; 
e a segunda ás vantagens de abrir-se comercio com os 
castelhanos de Quito, pois por esse meio se poderia tirar 
"alguma prata", o que redundaria em beneficio do Esta-
do do Maranhão e do próprio reino metropolitano. Pelo 
contexto delas, verifica-se que resultaram de representa-
ções de João da Maia da Gama. E' provavel tam-
bem que, resolvendo fazer seguir Francisco de Melo Pa-
lheta pela via do Madeira, que não pela bem conhecida 
do Amazonas, que o referido militar já cursara com a 
recondução do padre Samuel Fritz, cogitasse o governa-
dor do Estado do Maranhão de verificar se por ali po-
deriam ser estabelecidas comunicações com as regiões 
auríferas de Goiáz e Mato-Grosso, cuja fama, por certo, 
já deveria ter chegado a Belém-do-Pará. Um aventurei-
ro, português nato, Manuel Felix de Lima, foi quem, em 
1742-1743, saindo, com o seu pequeno bando, do far-wesl 
brasileiro, atingiu, por varias correntes fluviais, entre as 
quais a do Madeira, á capital paraense. Celebrou Sou-
they (oh. cit., t. V, pags. 398-448) essa façanha do lusi-
tano (mercê do manuscrito deste, que o historiador in-
glês leu e aproveitou) e ao mesmo atribuiu a primaciali-
. dade no descobrimento do grande rio, isso porque não 
viu o documento acima transcrito, pelo qual semelhante 
gloria cabe a Francisco de Melo Palheta. Mais tarde, 
sobretudo logo depois da aventurosa viagem de Manuel 
F elix de Lima, foi que se. preocupou o governo da me-
,O CAFfl 43 
trópole, a instancias dos seus representantes no Estado do 
Maranhão, com o tráfego comercial entre este e as terras, 
opulentas de ouro, de Goiás e Mato-Grosso, já erigidas 
em capitanias desde 1744 e 1748, permitindo-lhes as co· 
municações "sómente pelo rio da Madeira e Guaporé, 
e não por algum outro", conforme a ordem régia de 14 
de novembro de 1752 (v. "Rev. do lnst. Hist. e Geog. 
Bras.", t. 90, 1925,-pag. 172). 
A NECESSIDADE DE UMA BIOGRAFIA DO 
INTRODUTOR DO CAFE: NO BRASIL 
Como bem ponderou Capistrano de Abreu, nas pou-
cas linhas com que lhe explicou a origem e a importan-
cia, não se sabe quem escreveu esse relatorio, "e não é 
facil concluir do contexto". E acrescentou: _..:.., "E', po-
rém, evidente, que era pessôa de poucas habilitações Ii-
terarias, pois são muitos os erros e a ortografia é extraor-
dinariamente caprichosa". , 
Antes de concluir as suas observações com o voto de 
que - "fôra muito para desejar que se achassem outros 
documentos sobre esta e outras bandeiras de Palheta, que 
tomem afinal possivel escrever a biografia do introdutor 
do café no Brasil", fizera o doutíssimo investigador e lu-
minar das nossas tradições uma afirmação digna de re-
paro e é a seguinte: - "Não era esta a primeira expe-
dição em que tomara parte: estivera no rio Tapajós e pro-
vavelmente no Cuiabá, cujas minas já descobrira Pas-
coal Moreira Cabral, com seus companheiros". . 
Capistrano não se arrojava a asserções sem funda-
mento. A primeira parte da sua proposição é verdadeira, 
porquanto Palheta fizera parte da escolta que, com en-
. cargo político clandestino, reconduzira o padre Samuel 
Fritz ás terras missioneiras espanholas da provincia de 
BASILIO DE MAGALHÃES 
Quito. Mas do documento acima reproduzido não se p6de 
deduzir que estivera ele no rio Tapajós. lnsinúa ainda o 
insigne historiador, embora dubitativamente, que o sol• 
dado paraense chegara ao arraial aurífero fundado pelos 
paulistas em Mato-Grosso. Que impreenchivel falta a do 
egregio pesquisador, o qual, se fôra vivo, com certeza 
diria onde colhera os motivos de tal suposição. 
Rodolfo Garcia tambem faz referencia a essa vía~ 
gem de Palheta, numa das stias substanciosas monografias 
insertas no "Dicionario histórico, geografico e etnográfi. 
co do Brasil" (vol. 1, pag. 369). 
ACONTECIMENTOS HISTóRICOS 
Para que se compreenda claramente a missão de 
Francisco de Melo Palheta á Guiana em 1727, - da 
qual resultou a introdução do cafeeiro no Brasil, - é 
mistér uma rápida sinopse dos acontecimentos históricos 
que a determinaram.· · 
Ocuparam os franceses, pela primeira vez, terras de 
Caiena, tomando-as aos castelhanos, em 1635; mas fo. 
ram dali expulsos, anos depois, pelos holandeses, que se 
apoderaram da região do Surinam em 1667. Colbert, 
que parecia nutrir aspirações gigantescas para a sua pa• 
tria com relação á América-do-Sul, fez explorar clandes-
tinamente o hinterland da Guiana, em 1674, por dois je. 
suitas (Gillet e Bechamel), e, á vista das fascinantes in• 
formações desses seus emissarios tonsurados, resolveu con-
quistar definitivamente Caiena, - o que foi realizado a 
31 de dezembro de 1676 pela forte armada do vice-almi-
rante Jean d'Estrées (v. Léon Guérin, "Histoire mari-
time de France'', 1851, t. 111, pags. 300-304). 
Apesar de haver a metrópole procurado assegurar o 
seu dominio sobre a Guiana brasileira, transformada a 
14 de junho de 1636 em capitania do Cabo-do-Norte, 
O CAFlfl • 
que foi doada por Filipe IV a Bento Maciel Parente, 
- cogitaram sempre os franceses, após a vitoria da expe• 
dição d'Estrées, de estender a sua posse até á margem do 
Amazonas. Missionarios e aventureiros, vindos de Caie-
na, fizeram por ali muitas incursões, até que o governa• 
dor daquela colonia francesa, o marquês de F erroles, ten-
tando pôr em execução os planos de Colbert, se apoderou, 
em maio de 1687, dos fortes portugueses de Araguarí, 
T oerê, Desterro e Maca pá, arrasando os três primeiros e 
conservando o último. Apressou-se o governador do Esta• 
do do Maranhão, Antonio de Albuquerque Coelho de 
Carvalho, a expedir contra os invasores uma força mi-
litar, a qual retomou Macapá a 28 de junho daquele 
mesmo ano. . 
Pedro II, rei de Portugal, talvez deslumbrado pelo 
"roi-soleil", ainda fazia do berço de Afonso Henriques 
um satélite da política da França. Por isso, não hesitou 
em celebrar com Luiz XIV o tratado provisional de 4 de 
março de 1700, pelo qual se obrigava a evacuar e demo-
lir os fortes construidos pelos portugueses á margem aqui-
lonar do Amazonas, desde o cabo do Norte ao rio Oiapoc 
ou de Vicente-Pinzón. E esse pacto foi ainda renovado 
pelo art. XV do tratado de aliança, que os mesmos sobe-
ranos realizaram a 18 de julho de 1701 (v. Carlos Cal-
vo, "Colección completa de los tratados ... ", 1862, t. II, 
pag. 43). 
Mas a guerrá de sucessão de Espanha, - que havia 
de encher no mundo ocidental todo o começo do século 
XVIII, - trouxe no bojo grandes surpresas. Não foi a 
menor delas a conquista de Portugal, feita pela habili-
dade da política inglesa. E o mesmo Pedro II, - para 
quem já as convenções diplomáticas não passavam de 
farrapos de papel, - celebrou com a Inglaterra o trata-
do de 1703, denominado tratado de "Methuen" (do 
nome do embaixador britânico John Methuen), pc;lo qual 
46 BASILIO DE MAGALHÃES • 
repudiou a aliança francesa, entregando Portugal de pés 
e mãos amarrados á poderosa Albion. E' verdade, con-
tudo, que a paz de Utrecht foi duplamente favoravel á 
nossa metrópole ibérica, quanto ás pretenções da França 
e da Espanha sobre terras do Brasil. Pelo

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