Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
O CAFÉ Série 5,a B n A SI L IA NA Vol. 174 BIBLIOTECA PEDAGÓGICA BRASILEIRA BASíLIO DE MAGALHÃES , O. c·A F E NA :aISTÓRIA. NO FOLCLORE E NAS BELAS-ARTES SEGUMDA EDIÇÃO (a u m e n ti d a e m e I h o r a d a) 651 COMPANHIA EDITORA NACIONAL Sao Paulo - Rio - Recife - Parto-Alegre 18 3 9 DO MESMO AUTOR Nesta Série: EXPANSÃO GEOG'RAFIOA DO BRASIL OOLONIAL - Vol. 46. ESTUDOS DA IDSTóRIA ·no BRASIL - A mvolução Política do Brasil. - Vol. 171. Na "Biblioteca. de Estudos Co:inercia,!Js, e · Eoonõmicos: HISTóRIA DO COMéRCIO, INDtrSTRIA E AGRIOUI,, TURA ...,.... Vol. 6. - 2.ª edição. • · :llldloôes da COMPANHIA EJDITORA N.ACIOiNAJt. São Paulo iNDICE Prefâcio Pags. 1 . · 1) Quem era Francisco de Melo Palheta, o introdutor do cafeeiro no Brasil A na.turaUdade de Palheta 9 A expedição ,de 1722-1723 17 .O motivo da expedição . . • . . . . . . 40 A necessidade -de uma bio,grafia .do tn.troduto,r do café no Bra.sH . . . 4 3 Aconteci,mentos históri,cos . . • . . . . . 44 As Instruções da expedição ,de 1727 . . . . . 49 Regimento que ha de guar-dar o sargent,o-mór Francis- co de Melo Palheta . 50 As vistorias efetuadas nos marcos da, montanha d'Ar- gent . 58 A moda . . . . . . . . . . . . 64 Como Palhetà. obteve as sementes e m11das de café 65 As "-Memórias'' de fr. João ,de ,s. José Queir,oz 67 Mme. Clau,de d'OrvilUer.s . . • . . 68 Um simples motivo poético . . . . . 70 Como se ,d!stribu!ram as sementes e mudas 72 Que posto ocupava Palheta? 73 A pobreza de Palheta . . . . . . . • . 75 Palheta conta a história ,da introdução do café no Bra- a!I . . . . , . • . • . 7 6 Carta-régia ,de 16 de f·ev·erelro de 17,34 77 Pet!Qiio de Franc!seo ,de Melo Palheta 78 Alguns comentar!oe 79 Depois do "placet" do rei . 82 o caf.é isento ,de impostos A terra roxa . A ,onda verd,e e a negra ingraüdão Pags. 83 86 87 Il) Os caminhos antigos, pelos quais foi. o café trans• portado do interior para o Rio-de-Jan~iro e para outros pontos do litoral fluminense Primeiras expedições e caminhos ,d.e índios Roteiro do "caminho velho" "•Caminho dos paulistas" O "·caminho novo'' R,oteiro do "caminho novo" Expansão ,da cultura do café Os caminhos pa•ra Angra-d-os-,Reis Variantes e ramais ,do "camin·ho novo" O "ca,minho ,de terra" A E. F. -Mauá A Estra,da União e Industria A S. Paulo Railway Conclusão 93 96 97 97 99 103 106 107 108 111 112 113 114 III) As lendas em torno dá lavoura do café 1) O café no Iendarto oriental . 121 2) O café no lendario oddental 137 3) O café no Iendarlo americano 16 O 4) O café no lenda rio b.rast.Ieiro 16 6 a) Lendas de fundo histórico 166 b) Lendas políticas . 1 7 O e) O café na medicina e nas superstições do povo d) O ,café na poesia popular e) O café no anedo.tario brasileiro 6) Condusã,o IV) O café nas belas-artes 1 - O café na pintura, na gravura, e na caricatura a) Na arte holan,desa b) Na arte inglesa e) Na arte italiana d) Na arte francesa e) Na arte germânic~ 176 183 204 2/08' 21.6. 216 216 •• 222 226 234. f) Na arte yankee g) Na arte brasileira h) Gravuras e outras ilustraçõ,es,, em cartazes, folhetos e livros, aobre o café 2 O café na escultura 3 - O café na arquitetu,ra 4 - O café na heráldica, na n umlsmática · e na meda- lhfs tica . . . . . . . 6 - O café nas artes Industriais 6 - O café na música a) A primeira ,cançoneta sobre o café b) Uma ópera-cômica francesa sobre o café c) O café na ópera italiana d) O café na comédia co,m -ou sem mú.slca e) A mais bela composição musical sobre o café 7 - O café na poesia a) Na poesl,a estrangeira b) Na poesia brasUelra V) - Notas posfaclals VI) Apêndice O capitão Silvestre e fr. Vel-oso ou a plantaçã-0 ,do café Pags. 238 240 241 260 263 267 262 268 268 270 270 271 274 286 286 298 326 no Rio de ,Janeiro - Romance brasileiro, (fac-sf- mlle). . , . . . . . . . . . . 337 Luiz da Silva Alves de Azambuja Susano (traços blo- blbliogrãfleos por Basmo de Magalhães) 339 Prólogo . . . . . . . . . . 346 O capitão Silvestre e frei Veloso . . . 346 Elenco geográfico e histórico deste romance 380 PREFACIO Para a comemoração do segundo centenario da entrada do cafeeiro no Brasil, escrevi, - além de dois longos trabalhos bibliográficos, - as seguintes quatro memorias, destinadas ao número especial que lhe consa- grou "O Jornal" e que saiu a 15 de outubro de. 1927: /) . "Quem era Francisco de Melo Palheta, o in- trodutor do cafeeiro no Brasil"; li) "'Os caminhos antigos, pelos quais foi o café transportado do interior para o Rio-de-Janeiro e para outro, portos d o litoral fluminense"; Ili) "As lendas em tomo da lavoura do café"; IV) "O café nas belas-artes". A segunda, por espontaneo gesto do· organizador da coletanea, foi integralmente inseria, dois anos mais tarde, no volume intitulado "Minas e o bicentenario do cafeeiro no Brasil - Contribuição da Secretaria da Agricultura do Estado de Minas-Gerais" (Belo.:.Hori- zonte, Imprensa Oficial, 1929 ), pags. 228-24/. E, em 1934, tendo sido enfeixados em dois grossos volumes to- dos os trabalhos da referida edição especial de "O Jor• nal", - publicação devida ao Departamento Nacional do Café, - as minhas memorias foram assim incluídas PREFACIO nos mesmos: no vol. /, pags. 5-38, 233-249 e 368-386, "Quem era Francisco de Melo Palheta", "As lendas em tomo da lavoura do café" e "O café nas belas-artes"; no vol. li, p<tigs. 670-688, 692-732 e 777-783, "Biblio- grafia brasileira", "Bibliografia estrangeira" e "Os ca- minhos antigos, pelos quais foi o café transportado do in- terior para o Rio-de-Janeiro". Para atender a U1n honroso convite do meu ilustre confrade dr. Costa Miranda, - de ver no excelente "Bo- letim do Ministerio do Trabalho, Industria e Comercio", por ele dirigido, a minha colaboração, - reli as quatro memorias primeiramente enumeradas acima. preenchen- do-lhes algumas lacunas, expurgando-as de erros tipo1grá- ficos e acrescendo-as de novas anotações. Assim, bastan- te melhoradas, foram elas por mim oferecidas ao sobre- dito mensario, onde sairam de novo a lume, desde agosto de /935 até setembro de /936 (ns. 12 a 25). Aprovei- tando-se a composição tipográfica, fez-se uma "separa- ta" de 300 exemplares, autorizada pelo ministro Aga- menon Magalhães e precedida de benévolas palavras do dr. Miranda. Não entrou no mercado de livros ( conforme eu pró- prio lhe declarei no "Prefacio") essa reduzida tiragem, a qual, todavia, bastou a grangear para o volume, gra--)' ças á oferta deste a intelectuais do Brasil e do exterior, uma consideravel messe de. aplausos. De apreciações en- ' comiásticas, aparecidas na imprensa patrícia, muito cne envaideceram, entre outras, as de Agrippino Grieco, Mu- cio Leão, Djacir Menezes, Luis da Câmara Cascudo, Celio Lima e Valdemar Cavalcanti. Isso e o amistoso acolhimento com que me tem sem- pre distinguido a Companhia Editora Nacional anima- ram-me a preparar esta nova edição, a qual recebeu, além· de correções imprescindíveis, muitos acréscimos, particu- PREFAC[O ·" larmente eni relação á arte e á literatura do café. En- cerra lambem ela, em apêndice e acompanhado de no• tas minhas, o primeiro romance brasileiro sobre o cal é, lavra de Luiz Alves da Silva de Azambuja Susano e publicado aqui em 1847. Creio que não me serão nega- dos louvores por desentranhar eu do injusto olvido essa · pequena e curiosa novela, c&nsiderada pelo grande mes- tre Capistrano de Abreu como uma das melhores obras do século passado·, surtas em nossa pátria. Em 1934, veiu á luz em Berlim um curioso livro sobre a "coffea arabica": "Sage und Siegeszug des Kaf- fees - Die Biographie eines weltwirtschaftlichen Stof- fes'', da autoria de Heinrich Eduard Jacob. No ano se- guinte foi trasladado a inglês e reeditado nos Estados-Uni- dos (N ew-Y ork, Viking Press) e em Londres ( George Allen &- Unwin Ltd.), sob os respectivos títulos de"Coffee: the epic of a commodity" e "The saga of cof• fee". Só vim a conhecê-lo recentemente, por ter tido a fortuna de encontrá-lo na biblioteca da Universidade do Distrito-Federal, então a cargo do brilhante e operoso Gastão Cruls. Tratando-se de uma publicação já existente em nosso país e facil de ser examinada pelos conhecedores da língua inglesa, - eu bem desejara que os leitores des- ~e meu trabalho o cotejassem com o do judeu alemão. Só assim poderiam verificar que este meu livro, pelo seu co- pioso e documentado material histórico, folclórico, artí.s- üco e literario, é que é a verdadeira "saga do café". Mas o meu é escrito em português. . . E lucubrou-o um brasileiro de cultura desinteressada, o qual, .longe de visar a lucros pecuniarios com os frutos de seu espírito, tem tido sempre por mira única a grandeza e a gloria da Patria ... BASILIO DE MACAl,.HÃES Rio, dezembro de 1938. " QUEM ERA FRANCISCO DE MELO PALHETA, O INTRODUTOR DO CAFEEIRO NO BRASIL ' rancil!Co de Melo iPal-heta, o l,ntrodutor do no Braall ("Cra7on" •do ,professm- Marques JUJ1lor). A NATURALIDADE DE PALHETA Em artigo longo e interessante, com o titulo "A ori- gem do cáfé no Brasil - Como veiu ter ao Brasil a pri- meira arvore do café". dado á estampa na revista "Chá- caras e Quintais", Õ dr. Waldemar Peckolt atribuiu a Francisco de Melo Palheta a naturalidade brasileira, sem, todavia, cogitar de comprová-Ia. Não se conformou com tal asserto o major Henrique Silva. que, por outra revista, "A Informação Goiana" (número de junho de 1927), da qual era fundador e diretor, além de contes- tar fosse Francisco de Melo Palheta o introdutor do café em nosso país, ainda asseverou que "o homem era luso e por sinal que sargento-mór, patente militar que nunca existiu no exército brasileiro", Em nenhum documento se estribou o autor das "Caças e caçadas no Brasil", para ter Francisco de Melo Palheta na conta de português, e o seu argumento relativo á patente militar é de todo improcedente, pelas duas simples razões seguintes: primei- ' ra, que em 1727, data na qual Palheta já havia sido pro- movido a tal posto, não existia no Brasil senão um· exér- cito, o português; e segunda, que tanto no exército brasileiro, oriundo da elevação do Brasil, em 1815, a reino unido á monarchia autocraticamente federada, que compreendia a mais Portugal e Algarves, quanto no exér- cito brasileiro, proveniente da conquista da soberania · po- 10 BASILIO DE MAGALHÃES lítica de· 7 de setembro de 1822, ainda subsistiu o posto de sargento-mór (v. "Anais da Bibl. e Arq. Públ. do Pará", t. VIII, 1913, pag. 159; e "Uniformes do exér- cito brasileiro", Rio-Paris, 1922, pag. 33). . Antes de asseverar o dr. Waldemar Peckolt que Francisco de Melo Palheta era brasileiro, já o fizera o dr. Rodolfo Garcia ("Rev. do lnst. Hist. e Geogr. Bras.", t. 81, 1918, pag. 387), um dos mais compe- tentes, probidosos e incansayeis pesquisadores das nos- sas tradições (*) . Ao citado historiador patricio é que se devem as primeiras informações, postas em letras de imprensa, so- bre o berço e a paternidade do introdutor do café no Brasil. Com efeito, afirma ele, - e dentro em pouco direi com que elementos probantes, - que Francisco de Me- lo Palheta "era natural do Pará" e que teve por pai ao "capitão de infantaria João Rodrigues Palheta, nas- cido na vila de Serpa, provincia do Alemtejo". Encontram-se esses dados no trabalho "O Diario · do padre Samuel Fritz, com introdução e notas de Ro- dolfo Garcia", valiosa publicação que vem na dita "Re- vista", da pag. 353 á pag. 397. O sacerdote boemio- alemão, vindo para a provincia jesuítica hispano-ameri- cana de Quito em 1685 ou 1686, fez-se apóstolo dos omáguas do Amazonas, os quais, além de doutrina, ca- . <•)· AnteB -de Rodolfo Garcia, - mas sem as Informa-· çõe.e que este foi o primeiro a (P'u-hllcar, - :lã ·hruvlam acerta-da- biente atrlibuldo a Fran.cisco de Melo Palheta a naturalidade brasllelroa os seguintes escritores: o dr. Moreira de Aze,vedo, ~o Rio de Janet.ro - ,Sua historia, monumentos, homens no• tavels, usos e curiosidades" (Rio, B, L. Garnler, 1877), vol. I, pag, 12,9; e o padre Araujo Marconde·s, "0 Ca.flê" (Sã'o Paulo, Carlos Zanc·hl, 1898), pag. 11. IEtlenne BraSàll, em "La Franee au Brêsll" (iRlo, Beenard Frêres, 1920), pa,g, 148, acompa- nhou-os, O CAF:111 11 reciam de quem os defendesse dos portugueses do Pará, que frequentemente lhes invadiam as cabildas, para re- duzí-los á escravidão. Do principal aldeiamento em que arrebanhava aqueles índios, São-Joaquim, desceu ele, em fins de janeiro de 1689, á maloca central dos jurimáguas; e, ou para tratar-se de enfermidade perigosa, que o aco• metera, ou para melhor patrocinar a liberdade dos sel- vagens, aportou a Belém em 11 de setembro do mesmo ano. Governava o Estado do Maranhão, desde 1687, Artur de Sá e Meneses ( que dez anos depois veiu diri- gir a Repartição-do-Sul). Permaneceu ali o inaciano vinte e dois meses, dezoito dos quais detido no Colegio dos Jesuítas, porquanto, logo que chegou á capital pa- raense, reclamou do capitão-general "o reconhecimento dos direitos da corôa castelhana sobre os territorios onde es- tavam situadas suas missões". Consultara o governador ao soberano sobre esse alarmante caso do padre Fritz, e a resposta do rei de Portugal já alcançou ao sucessor de Artur de Sá e Meneses, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que regeu o Estado do Maranhão de 1690 a 1701 (vindo mais tarde para a capitania de São-Pau- lo-e-Minas-do-Ouro, que instalou em 1709 e superinten· deu até 1713). Reprovou d. Pedro II a detenção do loiolista e ordenou fosse o mesmo reposto, á custa da . real fazenda, no ponto das missões de que saíra, ou em Quito, se fosse preciso. Afim de cumprir tal ordem, con• sumiu o representante da metrópole tres meses. Só a 8 de julho de 1691 pôde regressar o padre, acompanhado por um cabo ("capitão"~), um alferes, sete soldados,, um cirurgião e trinta e cinco índios, estes como remeiros da flotilha de canôas. E' aí que aparece a mais antiga referencia, que se conhece em documentos de boa fonte, á atividade militai' de Francisco de Melo Palheta. De fáto, dando noticia 12 BASILIO DE MAGALHÃES da escolta, que, por mandado do monarca lusitano, ia conduzí-lo de retomo, pelo rio-mar, ás terras andinas da corôa éspanhola, disse no seu Diario o padre Samuel Fritz que só dois dos homens que a compunham "eram portugueses brancos", o cirurgião, cujo nome não decli- nou, e o soldado. Francisco Pailieta (sic). Ora, não se deve tomar á letra, na referida expressão, o gentílico "português", porque o mesmo se aplicava então, sem ri- gor etimológico, aos brancos alistados no serviço da me .. trópole. E foi precisamente anotando tal asserção do je- . suita que Rodolfo Garcia reivindicou para o introdutor do café no Brasil a natividade paraense. Como se vai ver dentro em pouco, pela relação da viagem de descobrimento do rio Madeira, chegando o ajudante da expedição, antes dos mais companheir~. á povoação de San~a-Cruz-de-Cajuvabas, perguntou-lhe o padre, superior dessa redução de índios, se era cavalhei .. ro o cabo da tropa; e o dito ajudante, referindo-se ao sargento-mór Francisco de Melo Palheta, respondeu "com a verdade de que era dos principais da 'terra na capitania do Pará". Ora, significa isso não só que Pa- lheta era, pelo seu posto, pessôa de respeitabilidade alí, como ainda que era paraense nato, porquanto, se o não fosse, não se usaria para com ele da expressão "da terra". Onde Éoi, porém, que encontrou o ex1m10 pesquisa- dor das nossas tradições os elementos de convicção para semelhante asserto, cuja relevancia é inegavel, porquan- to apraz sobremaneira ao nosso orgulho patriótico tenha sido um brasileiro nato o espontaneo e abnegado inicia- dor da nossa maior prosperidade agrícola) Foi num exemplar do "Compendio das éras da pro- vincia do Pará" (Pará, 1838), de Antonio Ladislau MonteiroBaena, e que pertenceu a Manuel Barata, vin .. do enriquecer a biblioteca do Instituto Histórico e Geo- 18 gráfico Brasileiro, á qual doou o ilustre paraense toda a sua excelente coleção de livros. O sobredito volume de Baena está repleto de observações, manuscritas á margem e devidas a Manuel Barata, que ora corrigia enganos, ora preenchia lacunas da obra daquele oficial do exér- cito português, de quem se póde dizer que se naturalizou "paraense". · · Não aproveitou . Rodolfo Garcia integralmente a nota de Manuel Barata, que tanto interessa á biografia de Francisco de Melo Palheta e que vem á pág. 109 do mencionado trabalho, quando Baena, historiando acon- tecimentos imediatamente posteriores a 1663, trata de um assalto dos índios caboquenas e guanevenas á aldêia de Saracá, "onde estava o alferes João Rodrigues Pa- lheta". Graças a Manuel Barata, - que era em tudo a personificação da probidade, principalmente nas investi• gações históricas sobre a terra natal, - fica-se sabendo que Francisco de Melo Palheta "era natural do Pará". Teve por pais a João Rodrigues Palheta ("natural da vila de Serpa, na provincia do Alemtejo", e que chegou, no Brasil, ao posto de "capitão de infantaria") e d. Ma- ria da Ressurreição de Bittencourt. Francisco de Melo Pa- lheta casou com d. Bernarda de Mendonça Furtado, a qual, pelo cognome, devia pertencer a uma das mais dis- tintas familias lusitanas. Ficam, assim, esclarecidos pon- tos que até agora jaziam na mais completa obscuridade, quanto ao introdutor do café no Brasil, faltando, ainda, infelizmente, dados fidedignos quanto ao final da sua existencia, de 1733 em deante. Sendo militar o pai, bem moço, talvez, assentou praça Francisco de Melo Palheta na tropa regula_r da guarnição portuguesa do Estado do Maranhão, o qual fôra criado a 13 de junho de 1621, abrangendo, além da capitania do Maranhão, a do Pará (a que depois se agregou a do 14 . BASILIO DE M.AiGALHÃES Rio-Negro) e a do Ceará (pouco depois desmembrada dele e incorporada no governo de Pernambuco). e. acres- cido ulteriormente da do Piauí. durou até 1775. c.om a denominação final de "Estado do Maranhão e do Grão- Pará". E' lícito presumir que Francisco de Melo Palheta tenha nascido por volta de 1670 e que em 1691. simples . soldado. contasse. pelo menos. 21 anos de idade. Saída de Belém, a 8 de j~lho de 1691. a expedição, de que Palheta fazia parte. só deixou ela o padre Samuel Fritz a 20 de outubro. na aldêia de Nossa-Senhora-das- Neves, dos jurimáguas. depois de havê-lo conduzido até á de Maiavara, ultima redução dos omáguas. E o cabo da tropa não largou o jesuita. sem que primeiro o intimas- se, - conforme ordem reservada que levava do governador do Estado do Maranhão. - a retirar-se "daquelas pro• vincias. por pertencerem á corôa de Portugal". Conta o inaciano que a dita força. além de outras coisas. fez des- monte á margem do sul. em frente á aldeia de Guapapaté. onde pôs por marco uma árvore grande. e. antevendo ou- tras proesas dos portusueses naqueles remotos rincões, in- · sinuou que os mesmos excogitavam, por ali. de "achar a porta para entrar no El-Doradõ. que sonham não estar muito distante". Este padre Samuel Fritz e mais outro colega ainda deram muito que fazer aos portugueses do Pará". em 1710 (v. "Anais da Bibl. e Arq. Púb. do Pa- rá". 1902. t. 1, pags. 132-133 e 135-136). Essa lenda do El-Dorado. criada ou derramada no . mundo por sir Walter Raleigh, em 1599. com a publicação da sua obra "The discoverie of the large. rich and beau- tiful Empire of Guiana. with a relation of the great and golden citie of Manoa ( wich the Spaniards call El Do- ra do). and the provinces Emeria. Aromaia, Amapaia, and other countries. with their rivers adioyning - Perfor•. O CAFill 16 med in the yeere 1595 ", exerceu no Brasil grande influen- cia, bem assinalada por Southey ("Historia do Brasil", trad. de L. J. de Oliveira e Castro, 1862, vol. II, pags. 32-35). Imaginando o maravilhoso reino ora na região de Nova-Granada, ora na da Guiana, Américo Vespucci, quasi um século atrás, julgara ser por ali o paraiso ter- real (~). Tal fábula, segundo o historiador inglês, custou á Espanha "mais sangue e dinheiro do que todas as suas con- · quistas do Novo-Mundo", e a ela deveu o Brasil "um lon- go periodo de tranquilidade"; porquanto os pirateadores in- gleses, e, depois deles, os flibusteiros holandeses e os aven- tureiros franceses, seduzidos pela quimera de que se servira Raleigh (~) como chamariz, foram afinal assentar-se ás (*) "E se nel mondo ê alcun paradlso terrestre, senza du- blo dee ees,er non molto lontano da questl luoghl", - ,foi e. t:rase com que Amerfoo Vesipuccl :resumiu as maravilhas que se lhe de'J)araram no Brasil e que consta de uma sua carta p-u- bUcada na Eu,ro<pa em 1504 (1v. "Le Bré,sll" ,por E. Levasseur, Parh1, 1,889, no capitulo "L'hlstolre", escrito pelo bar!Lo do Rio-Branco, ·pa,g,s, '27-2·8). (••) Sll Walter ,Ralelg,h, que, por muitos a.nos, como ex• plorador e como corsarlo, tentou em vão transformar em reali- dade o ·s,eu sonho do "El-Dorado", n!Lo sõ ,perdeu um fHho ne1W1e desvia.Irado a.fã, como de1>ols ·perdeu a 1Pro1>rla caJbeça, a lnstan-· cla.s da. ES1Pan'ha •perante Jaime da In1glaterra. Dois •caste:!hanos, Pedro da Silva e fuão Serpa, o _Primeiro com uma !flotilha de tres barcos, naufragaram ,na foz do Orlnoco, quando em ,demanda da fantá.stlca "Manôa". ·E, em melados do ,século XVLII, a,ln;da dois. ·holan'deses, Hortsman e Hundertpfundt (este 1rnr sinal que padre), aventuraram-se a procurar, pelo aranhol das floresta& e rios brasileiros, a mlr!fl.ca e enca·ntada Olfl.r, aquele pelo rio BT&nco e o outro pel'l Xi.ngü. Mais do que uma singela narra.~ ç!Lo hf.stõrlca dessas pertinazes e tresloucadas éorr&rlas em busca de uma enganosa miragem, bem merecia o "IEl-Dorado" ter servido de tema a romances, dramas e tragedlas. A em,pol- gamte lenda, criada por slr Walter Ralehglh e que maravU.hou a facll credulidade do VeLho-Mundo, onde foi tão prontamente divulgada, f~ esbanjarem-se em pura perda muitos esforços e , 18 BASILIO DE !MAGALHÃES · margens do Oiapoc e do Orinoco, em busca da encantada e falaz Manôa (~). O "El-Dorado", que, afinal, apareceu em Surinam e em Caiena, no primeiro quartel do século XVIII, era o fruto da cof/ea arabica, que Francisco de Melo Palheta, · em 1727, havia de transportar para o Brasil. Não se conhecem outros fátos concernentes á vida de Palheta no restante do século XVII e dentro da primeira década do seculo XVIII, senão o de haver ele obtido do governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará, a 7 de fevereiro de 1709, uma sesmaria no rio Ubituba, a qual lhe foi confirmada por ato régio de I O de fevereiro de 1712 (v. "Anais da Bibl. e Are. Públ. do Pará", III, 1904, pag. 55). Vê-se, por aí, que, não obstante prosse- guir na carreira militar, na qual ia ascendendo aos melho- . res postos, entendeu ele de dedicar-se tambem á agricul- tura. Já certamente em plena velhice, ainda mais se lhe acentuou o pendor, ou, quiçá, a necessidade de cfosenvol- ver a lavra de terras, pois conseguiu do governo local ou- tra sesmaria no Pará, "entre as bocas dos igarapés Ara- pijó e Guaj~rá", por alvarás de 14 de agosto· de 1731, lnQ.meras- vidas, tend" sõmen,te acarretado ao BraElll a vanta,gem de alastar da..s nossas plagae os piratas ,e cors::irlos, que t'n· cheram com as suas llfcltas audaclas tantas pá;g~nas de anais daquela.a cent1lrla.s, e· que ela atraiu para o va.sto terrltor.l'o da Guiana, onde afinal se assentaram colonizadores oriundos da1:1 tres naQões europHas, que as•saltaram e tentaram ocupar, nos seculo.s XVI e XVII, vario-a pontos do litoral da noss:1. patrla. (*) Sobre a curiosa lenda, além do •trabalho de .Adolphe Bandeller, "Th·e Golden l\lan", merecem Hdos os dois seguintes volumes: Frandsco YâSlquez - "Relaclõn de todo lo que su- c&dlõ en la jornaqa de Omagua y Dorado, hecha por el gober- nador 'Pedro de Ors1la"(MadTld, 188'1, ed. 11m1tada a 300 exs.): ·e ·Emiliano Jõs - "La expedliclõn de Ors1la ai Dorado y la re· bellõn de Lopo de .Agulrren (1l{uesca, l92'1). O OAF11 1'1 doação que lhe foi confirmada por d. João V a 20 de mar- ço de 1733 (oh. cit., id., Ioc. cit.). Como se verá mais adeante, ele próprio se entregou á cultura do cafeeiro. Os atos mais notaveis da existencia de Francisco de Melo Palheta ocorreram em 1722-1723 e· 1727. A EXAEDIÇÃO DE 1722-1723 Exatamente um centenio antes da independencia do Brasil, já ocupava ele o posto de sargento-mór ( equiva- lente ao de major atual), quando foi incumbido pelo go- vernador do Estado do Maranhão, João da Maia da Ga- ma (19 de julho de 1722), de importante missão no "far-west" brasileiro. Dessa viagem, - que, vencendo obstáculos e arrostando perigos, chegou até á redução jesuítico-espanhola de Santa-Cruz-de-Cajuvabas, estabe- lecida á margem do Mamoré e bem abaixo da confluencia deste com o Guaporé, - deram vagas notícias muitos es- critores: mas, até quasi fins do século passado, ninguem lhe conhecia o íntimo relato oficial. Tendo, porém, o falecido livreiro João Ribeiro Martins oferecido á Bi- · blioteca Nacional uma coleção de manuscritos, da mesma fazia parte ( em cópia recente, constante de um in-f alio de 35 pags., feita do original existente no t. I dos "Papeis varios" da Torre do Tombo) o dito importante documen· to, que, sob o n. 19.621, figurou na Exposição de Historia e Geografia do Brasil, realizada a 2 de dezembro de 1881 (v. "Suplemento ao Catálogo", 1883, pag. 1.657). . ~~ Eis o título do mesmo: - "Narração da viagem e descobrimento que fez o sargento-Mór Francisco de Mello Palheta no Rio da Madeira e suas vertentes, por Ordem do Senhor João da Maia da Gama do Conselho de Sua Magestade, que Deus Goarde, seu Governador e Capitam General do Estado do Maranhão cuja viagem e expedi- 18 BASlLlO DE MAGALlllES ção se fez no anno primeiro do seo governo: e se gastou nella desde 11 de Novembro de mil setecentos e vinte e dous, ,the do~ de Setembro de mil setecentos e vinte e tres", . Capistrano de Abreu - o inolvidavel mestre, cujo · luminoso espírito já foi apagado pela morte, - perceben- do-lhe a relevancia, copiou-o da dita coleção e fê-lo es- tampar na "Gazeta Literaria" ( excelente revista de efê- j mera duração, aqui dirigida por Teixeira de Melo e Vale l Cabral), ns. de 11 de outubro e 24 de novembro de 1884 ; (pags. 372-376 e 387-391 do t. 1, único publicado). E' o seguinte: "A BANDEIRA DE FRANCISCO DE MELO PALHETA AO MADEIRA EM 1722-23, SEGUN- DO UM DOS SEUS ÇOMPANHEIROS (*). Partiu a tropa da cidade de Belem, praça do Grão- Pará, a 11 de Novembro, em que veiu o mesmo general despedir ao sargento-mór e cabo, acompanhado da no- breza da terra: e já despedidos, demos uma salva geral, emproando as proas ao Norte que seguia mos Leste-oeste, nos fomos despedir de Nossa Senhora do Monte do Car- mo, a quem nos recommendamos e a tomamos por estrella e nossa advogada, para com seu patrQCinio vencermos este impossível e um descobrimento de todos tão desejado. A continuar nossa derrota se seguia a galera Santa Eufrozina e São Ignacio, em que vae o Cabo, que esta é ? a nossa capitanea; seguia-se-lhe a galeota do padre ca- :i pellão com a invocação de Santa Rita e Almas, e a esta ; a canoa São Joseph e Almas, que serve de armazem eui ,1 que vae o maior computo de soldados; a esta se seguia a · 11 . (*) Toda.s as notas, que adeante se encontrarem, são mi· n-has. Lamento que Caplstrano d·e Abreu não se houvesse l&m· brado de fazer o mesmo, pois sairia certamente melhor 11. ta.· refa da. dllucidaçã.o. C> CAF:i!: 19 ,galeota Menino Deus, em que vae o sargento com a mais infantaria, e por ultimo a galeota Sancta Rosa, em que vae o capitão de infanteria da mesma tropa, servindo de al- mirante. Fomos buscando o rio Mojú e seguindo por elle a nossa jornada até o estreito de Igarapé merim, que desem- boca no rio dos Tocantins, onde está fundada a villa de Camutá, em dois graos do sul; nesta dita villa estivemos tres dias, á espera da infantaria volante que della nos accompanhou e levamos de guarnição; e d'aqui demos ordem a partir buscando o rumo que havemos de seguir pelo grande rio das Amazonas, o qual é um dos maiores que no mundo se tem descoberto, que corre de leste a oeste; e o seguimos até embocarmgs pelo famoso rio da Madeira ( o rio V enes, que é chamado pelos Hispanhoes das fodias de Hispanha do Reino do Perú), que nelle agora descobrimos, e corre este de norte a sul, pelo qual fizemos entrada a 2 de Fevereiro de 1723, e gastamos dias de boa marcha, 17, até aonde nos aposentamos a fazer arraial em uma tapera de gentio lumas, sitio admi- ravel em tudo, assim para nossa segurança como em o necessario, no qual mandou o cabo se lhe puzesse por invocação Santa Cruz de lriumar, onde fizemos igreja, armazem, corpo da guarda e casas necessarias; aqui man• dou o cabo repartir a infantaria em duas esquadras, donde r actualmente havia uma sentinella que guardava munições ~ e fazenda real e de noite uma ronda para rondar a sen• tinella, canoas e todo o arraial. · 'li Depois de tudo assim disposto, ordenou o Cabo se .,. fizesse seis galeotas para se poder nellas passar as cachoei::. ras; o que fez pela informação que teve se não podia fa• zer entrada0 com as grandes com que nos acha vamos pela terribilidade das pedras. Feitas as ditas geleotas as preparamos de todo o ne• cessario e de quantidade de cabos para as puxarmos pelas 20 BASILIO DE MAGALHÃES cachoeiras; neste tempo se esperava já pelo soccorro da cidade, o qual chegou a 4 de Junho, e havia muito tempo que os miseraveis soldados, indios e inda o Cabo, depois das fructas do matto acabadas, comiam unicamente carne de lagartos, cameliões e capivaras, por não haver .outro mantimento, pois não tinhamos outra cousa a que nos tor~ nassemos. Com o dito soccorro tamb~m veiu o reverendo padre mestre João de São Paio, em sua galeota, e tanto que o Cabo se viu soccorrido de nosso excellentissimo general, tratou logo de se pôr a caminho, o que fez a 1 O do dito mez de Junho, com 10 canoas pequenas, que são as seis que se fizeram e quatro que tínhamos. · Antes de embarcar carregou a Lourenço de Mello o governo do arraial encommendando-lhe muito a paz, união e conservação da gente que lhe deixava, assim soldados, como índios. · Prosseguimos nossa viagem por aquelle temerario e . horrivel rio e o padre mestre João de São Paio nos acom- panhou um dia de viagem, d' onde se despediu de nós · tomando para sua missão, e nós fomos seguindo a nossa derrota até á ilha nova da Praia de Santo Antonio, onde tivemos missa no dia do dito Sancto, razão por que assim o invocámos. Aqui mandou o Cabo tirar a somma da gente com que se submettia ao seguimento d'aquelle rio e de suas vertentes e achamos por conta 118 pessoas, 30 de armas de fogo e 88 indios de frechar e com este nu- mero de gente proseguimos viagem. Chegamos ao rio lamary com 1 O dias de viagem, li e continuando para cima aos 22 do mez chegamos á ca- 1 choeira chamada Maguary, e na passagem ~lia se ala- gou Damaso Botelher em uma galeota, na qual perdeu o Cabo a sua capa, o que deu por bem empregado por ser em serviço de Sua Magestade que Deus guarde. O CAFJJJ 21 D'aqui fomos á cachoeira chamada dos laguerites, onde chegamos vesperas de S. João e nella vimos sem en- carecimento uma figura do lnfemo: porque tendo eu visto grandes cachoeiras, como são as horríveis e celebradas do rio. dos Tapajós (.Y.) todas e do rio dos Tocantins, a ltaboca e as mais que se seguem pelo rio de Araguaya e por elle até a cachoeira do Padre Raposo chamada Otim- bora, pois nenhuma iguala nem tem paridade a esta do rio da Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros de pedras e rochedos tão altos que nos pareceu impossível a passa- gem, como na realidade, pois para a passarmos foi ne- cessario fazer-se caminho, cortando uma pontade terra onde fizemos fachinas, sendo o Cabo o primeiro no tra· . balho a dar-nos exemplo, e fizemos uma boa grade de madeira por onde se puxaram as galeotas; no dito dia ainda se puxaram quatro, supposto que com muita fadiga, e já acabamos tarde; e no outro dia, que foi o do nasci- mento de S. João, se puxaram as mais e se carregaram outra vez com farinhas e munições, que as fomos comboiar mais de meia legua de caminho por terra. Daqui continuamos, nossa jornada passando cachoei- ras umas traz das outras e chegamos á quinta cachoeira, a que chamam Mamiu, que gastamos 3 dias em passar nella as galeotas á corda, não havendo excepção de pes- soa neste grande trabalho, e com tal perseguição de pragas de Piuns, que cada mordedura é uma sangria, ficamos em uma ponta aonde foi julgada que humanamente se não podia passar; e passamos as galeotas a outra banda do rio para haver de melhor passar, e o Cabo mandou puxar .. - a sua galeota por cima das lages e as duas mais pequenas (•) Note-se que quem escreve I!: um companheiro anônimo de ·palheta, e não este. Assim, não se pôde Inferir deste trecho que o militar paraense houvesse eatado ante,s em outras _entra- daa od'.lclala pelo Tapajõs e ,pelo Tocantins, 22 BASILIO DE MAGALJllES que servem de espia, e foi esperar pelas mais canoas á ilha chamada das Capivaras, e pela tardança deram bem cuidado ao Cabo até 9 horas da noite, que nos ajunctamos; e logo que amanheceu fomos seguindo nossa viagem i cachoeira chamada Apama, vespera de São Pedro: e fa- zemos f achinas egualmente soldados e índios, rompemos as mattas pela terra a dentro dois quartos de legua, em que gastamos dois dias em fazer caminho e grade, rom- pendo a golpe. de machado e alavancas grandes pedras e afastando outras aos nossos hombros com bem risco de vida. Esta cachoeira assinalada dos Apamas é tão terrivel f'l tão monstruosa e horrível, que aos mesmos naturaes de cachoeiras mette horror e faz desanimar, porque de conti- nuo está no mais violento curso de sua desatada corrente, o que não encareço por não ser suspeitoso, porém, deixo á consideração e representação dos experientes, pois por muito que dissera não dizia nem ainda a terça parte do que é, o que se póde perguntar egualmente assim ao Cabo e capitão como a todos os mais da companhia. · Aqui demos ordem a puxar as galeotas, e se puxarem tres a meio caminho, porque uma galeota botou o beque fóra cercio, desfazendo a amura e as conchas, que foi ne- cessario pÔr-lhe rodella, ao outro dia se puzeram as mais: e a 2 de Julho, depois das galeotas concertadas e breadas que se acabaram pelas 1 O cio .dia, partimos e fomos se- guindo a nossa jornada todo aquelle dia, sem acharmos porto capaz até ás 8 horas da noite, porque este rio em si está a cair toda a beirada continuamente e de tal sorte caem pedaços de terra, que deixa uma enseada feita, 11 fomos dormir a uma ilha de pedras de onde achamos boa ressaca para as galeotas se amarrarem seguras: e logo que amanheceu seguimos viagem ao porto dos Montes, onde disse o guia vira um caminho que descia ao porto que era do Gentio, que habitava naquelle logar, mas não se viu O CAF:fl 23 trilhas nem caminhos, por estar já deserto; neste dito porto fomos visitados por uma praga de abelhas, assim a quan- tidade das grandes, como a machina das pequenas, tão espessas como nuvens, buscando-nos olhos, e ouvidos e bocca, e todos enguliram bastantes, porque se as enxotas- semos das rações ficariamos destituídos de toda a limitação que temos de farinha, que é tão limitad~ a medida em que se dá, que apenas é para dois bocados de bocca, e fechada cabe em uma mão toda; logo lambem o que va- mos comendo, são cameleões e uns animaes a que cham·1m capivaras, e alguns por se não atrever a estas poucas car- nes comem só ovos dos ditos lagartos. Peixe de nenhuma casta, nem sorte se acha, que das pobres espingardas é que vamos passando a remediar a vida. O Cabo que nos rege não dorme nem socega ai.te- vendo o futuro, e por isso é tão previsto e assim vamos com muita regra com a farinha; e tornando á nossa derrota fcmos caminhando até á noite que aportamos na beirada de uma cachoeira e determinamos a passai-a no seguinte dia. Neste Jogar deu parte o Principal Joseph Aranha ao Cabo haver visto uma mui grande cobra abolada, que affirmam todos os que a viram teria de comprimento pouco menos de 40 passos e de grossura julgaram ter 15 a 17 pés; grandes monstruosidades de animaes similhantes tem este rio, porque com esta são duas que se tem visto nesta via- gem, e outras maiores immundicies se póde ver nelle, por- que não ha duvida que essas vehemencias de pedras (nas concavidades que têm) muito mais pódem criar. .. E assim que amanheceu fomos seguindo nossa jorna- da até ser horas de parar e tomamos porto pelas 11 do dia. Chegou logo o ajudante com um lote de gente onde vinha o Principal, lndio moço e mui arrogante, e é certo que chegou com mui pouca vontade porque dizem se atra- cára com um lndio nosso, mas que vendo o nosso poder 24 BASILIO DE MAGALIUES aplacara da furia, e assim solto o trouxeram á presença do nosso Cabo; acompanhavam a -este dito Principal dois mocetões, seus filhos, de pouco mais de 15 a 12 annos é duas lndias, mães dos ditos e mulheres do Principal, com mais um rapaz e uma rapariga e todos faziam computo de treze cabeças. Fez o Cabo o possivel por um lingua para os mandar practicar, mas não se achou quem os entendesse, porque falando a nossa lingua, batiam com as mãos nos ouvidos, mostrando ter sentimento de não ouvir a nossa practica, mas com grandiosos mimos e dadivas ficaram mui contentes e satisfeitos no que most_ravam. Aqui Nossa Senhora do Carmo, que não falta a seus devotos, espiritou ao lingua em fallar-lhes em lingua de outro gentio seus conhamenas, logo respondeu o Principal gentio com um agrado ao que lhe propunha o nosso lingua por cuja giria foi continuando a practica, e sobre e por razão da paz firme e valiosa que com elles pretendiamos fazer, e na mudança de vida para virem ao gremio ela igreja, avassalando-se como os mais gentios fizeram, a que respondeu estava contente e certo nas clausulas e firmeza da paz, e dizendo ao Cabo que o esperasse que o queria vir visitar da sua provincia e trazer-lhe algumas cousas em reconhecimento do bom tràcto e mimos que lhe havia dado ·se queria recolher; ao que o Cabo respondeu mandando- lhe dizer que tudo agradecia e que se fosse em paz, que sua vontade era seguir para cima o rio, fazendo pazes e descobrimento, que não vinha fazer escravos, senão ami- gavel paz com todos; e aquelles que lhe quizerem impedir sua jornada tomando armas para elle, que a estes sim lhes declararia guerra. Foi o Principal gentio em paz para a sua provinda, o qual na estatura e presença era muito bem parecido e os enfeites que trazia era uma colleira de miudas çontas de fruta do matto, muito negras e o cabello atado atraz em O CA.F:f:I 26 molho e nelle um penacho, e por diante trazia o cabello cortado, de orelha a orelha, os beiços tintos de vermelho de uma casca de páo que mordia; as ln dias cobriam o que a natureza occultar ensina com umas franjas de fio tecido, e cingiam no cinto com uma enfiada de contas das ditas fructas do matto; era para ver como festejavam os nbssos avellorios: é este gentio muito pobre; as suas redes são de casca de páo aqui chamada embira. Despedidos elles, ficamos de aposento até ao outro dia ao amanhecer, que fomos seguindo a viagem, e sendo por horas de vesperas chegamos á paragem em que o rio estava tapado com uma grande cachoeira e andamos bus- cando canal com excessivo trabalho. Começamos a pas• sar a 9 de Julho e a 12 do dito é que sahimos della, e logo avistamos o apartamento do rio que vae ao Sul, para onde seguiam os a nossa jornada, deixando o famoso rio da Madeira a Oeste, entramos pelo dito a que os Hispanhoes chamam Mamuré, e neste mesmo dia passa- mos nelle a primeira cachoeira.Sendo pela manhã no dia seguinte depois de missa partimos a passar a dita temeridade da cachoeira, e posta a galeota do Cabo para ser a primeira na passagem, não foi possível, porque assim que fomos puxando por ella, para subir um degrau, que só teria seis palmos de altura, por ser muito direita a queda que fazia a àgua com a velo- cidade que despenha a furia da correnteza, logo sem . mais tempo se foi a pique largando toda a pobreza que levava dentro em si, sem dar tempo a que lhe pudessemos ' acudir, porque inda que fossem as amarras do mais fino linho não poderiam ter mão a estas grandiosas correntes; Ficou o nosso Cabo nesta alagação destituido de tudo, que uma viagem com dois naufragios é grande per- dição, e sem poder neste certão remediar-se do preciso: aqui ia morrendo um soldado afogado se lhe não acudissem: vendo o Principal José Aranha que a primeira se afun- 26 BASILIO DE M.ArGALHÃES dava nem por isso deixou de se submetter ao perigo, e querendo passar a sua, lhe disse o Cabo repetidas vezes: quantos hoje hão de· ficar orphãos; e indo-se já puxando por duas grossas cordas, tornou a repetir o Cabo aos ln- dios que na galeota iam, que tirassem as camisas para as não perderem; não tinha bem acabado de dizer, quando logo se foi a galeota a pique arrebentando as duas cordas, e por grande diligencia do Cabo, a tiramos do fundo do mar, que já estava captiva das temerarias pedras e sober- bas ondas que faz, levantando outra vez ao alto a corren- teza que vae de riba. Aqui obrou Nossa Senhora do · Carmo um grande milagre, porque um lndio nosso chamado Martinho, por enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos paioes da canôa e escapou sem molestia quando a canôa se sub- verteu, de sorte que o susto bastava para molestar. Esti- vemos dois dias concertando as duas galeotas e no terceiro dia fomos seguindo viagem, sempre levando por prôa aquel- la machina de pedras e com o trabalho de ir puxando as nossas galeotas até o porto do gentio chamado Cavari- puna, e como os espias deram com um caminho seguido de · gentio, mandou o Cabo uma êscolta boa procurando ao Principal daquiella nação, e se recolheu a dita escolta com seis pessoas, a saber, um lndio de meia idade com dois filhos maiores, duas crianças e a lndia mãe desta familia. E vindo estes taes á presença do Cabo lhes mandou per- guntar se entre elles vinha algum Principal, ao que res- pondeu o lndio pae da familia que não, e que temido dos brancos pelos não captivar viviam separados, cada um por seu norte distinguidos, e de sua nação, solitario elle vi- via n'aquellas brenhas, mas que sabia que o Principal Capejú que da outra banda do rio vivia desejava muito de ter falia de brancos para se commerciar; ouvido pelo Cabo e certificado de seu dizer lhe perguntou que dias se gastaria a chamar o dito Principal Capejú; disse que qua- O CAF:fl 27 tro dias e que elle mesmo o iria chamar e que esperassemos depois de passada a ultima cachoeira, e que por firmeza de sua palavra deixaria na nossa companhia sua mulher e filhos; despediu o Cabo ao lndio { com dois lndios mais nossos que lhe fallavam a gíria), com bastantes mimos. de ferramentas, facas e avellorio aos 18 de Julho. Logo que amanheceu o seguinte dia nos fomos apo-, sentar na espera do gentio, onde estivemos dez dias, e como não vieram proseguimos nossa derrota até as boccas dos rios de agua branca e de agua preta, onde chegamos no 1. 0 de Agosto. Este caudaloso rio d' agua preta se aparta do rio Branco, correndo na bocca a Sueste quarta de Sul. a cujo rio chamam os Hispanhoes ltennis C-) e o dito rio Branco parte a Sueste quarta de Oeste, na entrada a que tambem os Hispanhoes chamam Mamuré. Entre estes dois rios nos aposentamos em uma longa praia de arêa e d' aqui seguimos o rio Branco por nos pare- cer mais pequeno {como é) e este declarar signaes de ha• bitado, porque não ha estalagem de gente que nelle cursa que não tenha cruz, doutrina seguida em aquella povoa- ção, já seguimos {com estes vestígios) a nossa fatal viagem com a esperança de aproveitar com fructo tanto trabalho e perigos de vida. E sendo a 6 de Agosto o sentinella que fazia o quarto da sua fallou a uma canôa que vinha rio abaixo com 1 O lndios Hispanhoes, foi o Cabo em pessoa na sua galeota tomar-Ilíes o encontro a fallar com elles, e trazen- do-os para a praia d' onde esta vamos se informou o nosso • (•) "ltênez", como se ·põde ver do "Dlclon.arlo geogrâfl• co, ·hlstõrlco e descritivo do Imperlo do Brasil" (Paris, J. t>. Alllaud, 1846, 2 vols.), de Mllllet de 1Salnt-Adolphe, é o •.nome que os Castelhanos dão commummente ao rio Guaporê, na pro• vlncla de Matto-Gros,so". Provêm, como verifiquei, dos fndlos lténea, habitantes do terrltorto sito entre o Mamoré e o Guaporê. 28 BASILIO DE MA<GALHÃES Cabo cabalmente e tomamos um guia para nos levar se- guros ao porto da grande povoação de Sancta Cruz de Cajuáva, e no seguinte dia por horas de vesperas encon- tramos cinco canôas, que iam deste rio Mamuré para o de ltennis, e assim que nos avistaram levantaram uma cruz por bandeira, e perguntando-nos si eramos christãos lhes respondemos que sim e Portuguezes, a que sorrindo-se e benzendo-se todos a um tempo: d\ristãos portuguezes? Nós o somos de S. Pedro, e f aliando com o Cabo tomamos terra, onde jantamos. Estiveram comnosco este gentio pouco mais de uma hora, e neste limitado prazo tiveram elles e tivemos nós um grande contentamento, de sorte que ficou apagando todos os trabalhos de antes; despediram-se para baixo e nós proseguimos; e já d' aqui se não vê mattos sinão tudo · campos geraes assim de uma como de outra parte do rio e pela terra a dentro. Pelas 4 horas da tarde ouvimos zurros de gado vac- cum, e ordenou o Cabo fosse o Sargento Damaso Botelher a dar a entrada e lhe recommendou a força da diligencia e manifes:ação ao regedor. D'aqui dizia o guia não che- garemos á povoação sinão amanhã, e como l~o ouvido isto, mandou o Cabo se marchasse toda a noite, e se não parasse sinão juncto da dita povoação, aonde esperaria pelo Ajudante, que enviou adeante com a embaixada de sua vinda, o qual chegado pelas 7 horas da manhã, o levaram pela povoação dentro os lndios d'ella com tal amor e cortezia que fazia admirar, e chegando á praça fallou aos Padres que estavam naquelle collegio, os quaes o receberam com tepiques de sinos e grande alvoroço d'a- quelle povo, mostrando com instrumentos de orgão, cravo e musicas e com clarins e charamellas o como nos festeja- vam alegres. A saudação que os ditos Padres fizeram ao Ajudan- te, foi beijando-lhe a mão com o nome da Santissima Trio- O. CAFifl 29 dade, Padre, Filho e Espirito Santo, e o levaram para . dentro onde estavam mais dois religiosos, dos quaes foi abraçado e o levaram para dentro porque se não enten- diam nem se podia ouvir a falia de uma pessoa a outra pelo grande rumor de muita gente que a rodeava. Chegando com os ditos Padres o Ajudante ao so- brado, onde em uma capellinha estava uma imagem do Senhor Crucificado em um grave nicho, que de uma e outra parte tinha janellas rasgadas que cabiam sobre o Jardim: aqui ajoelhou o Ajudante com uma devida re- verencia, dando graças .a Deus de haver chegado á terra de Christandade com tão bom successo depois de tantos trabalhos. Acabada a oração lhe offereceram os Padres assento e pondo-se em silencio interrompeu o nosso enviado di- zendo: "Reverendíssimos Padres, nós somos vassallos do se- nhor Rei Dom João Quinto de Portugal que Deus guarde e por noticias e signaes que se viu neste rio de muitas cru- zes se resolveu o senhor João de Maya da Gama, nosso excellentissimo Governador e Capitão General, a mandar dez galeotas armadas em guerra com infanteria de cravi- neiros a fazer descobrimento, e trazendo um Sargento Mór por Cabo da tropa, o qual me envia a dizer a Vossas Reverendíssimas que se não alterem, nem a gente d' este povo, pois que vem cóm todo o socego, paz e quietação até chegaraqui, e por razão de estado me enviou a dar parte a Vossas Reverendíssimas e ao regedor d' este povo, para que assim se não assustem com a sua ent-rada". Respondeu o Padre Miguel Sanches de Arquino que já havia muitos annos esperavam a vinda dos senhores Portuguezes a aquellas lndias, e perguntando que gente trazíamos, lhe deu por conta o nosso Ajudante que 118 pessoas; perguntou si era o Cabo cavalleiro e lhe foi res- pondido com a verdade de que era dos principaes da terra 30 BASILIO DE MkGALlilES na capitania do Pará; perguntou mais se traziamos Mis- sionario e de que religião, foi-lhe. dito que só um clerigo levavamos por capellão; perguntou mais pelos nomes, o que tudo se lhe disse, principalmente do Cabo, Capitão, Capellão e Ajudante. Então disse o Padre Miguel Sanches de Arquino que mandava ao Padre Irmão Oliberio Nogua com Sua Mercê a receber o Cabo, e que estimava muito a sua boa vinda a aquella povoação e que não só lhe mandava beijar os pés, mas offerecer-se para lhe obedecer em tudo, e que entrassem na hora de Deus, que tudo estava socega- do e nem a cortezia dos honrados e valorosos Portuguezes podia em nada alterar os corações e que o seu estava aber- to para n~lle e nos braços o receber com grande gosto; que só tinhà o pezar de ser esta vinda em anno tão esteril pela innundação do passado: tornaram a abraçar todos ao nosso· Ajudante com demonstrações de muito contenta- mento e debaixo de um chapeu de sol a uso da terra, o · qual é feito de pennas da avestruz, acompanhado do Pa- dre Irmão se foram buscando o porto do desembarque em busca do Cabo, que o estava esperando da outra parte do rio. Embareou-se o Ajudante e junctamente o Padre Ir- mão e Capitães e Alcaides e si a galera pudera com mais gente, muitos mais iriam nella a receber o Cabo, porém nas que se achavam no porto tambem se embarcaram para acompanhar ao Ajudante e dando este a senha com um tiro respondeu a tropa juncta com uma descarga ao rece- bimento do Padre Irmão, e ao salvarem-se com o Cabo outra e ultimamente a tres vivas aos Reis tres cargas, aba- lando-se as galeotas da tropa com o mesmo concerto e desfilada {seguindo ao nosso Cabo), os mais fomos apor- tar á povoação, e já no porto estariam duas mil pessas á nossa espera para nos cortejarem, e assim com este accom- O CAF:l!l 81 panhamento entramos pela povoação, e chegando o nosso Cabo áquella grande praça do Collegio, vieram os mais Padres a recebei-o; estavam as tres portas da igreja to- das abertas e os sinos se desfaziam com repiques, chara• mellas, clarins, orgão e todos os mais instrumentos de mu- sica, que fazia uma grande entoação. O altar mór da Igreja estava ornado e com seis vel- las de libra accesas, e fazendo oração o nosso Cabo e os mais de sua guarda em acção de graças entoamos a salva de Nossa Senhora com a sua ladainha e tivemos missa logo, d'onde ao levantar a Deus entoamos o "Tantum Ergo" e no fim d'ella o Bemdito, o que tudo acabado, vieram os Padres e levaram ao nosso Cabo em braço para uma grande casa, que parece é quarto feito naquelle Collegio para hospedar pessoas grandes, onde estava ornado um g~nd~ famoso bofete cheio de flores e outras delicias d'a• quellas Indias, e a um e outro lado da grande casa tambo- retes, catre e rede, á usanca da terra, ànnario com o ne- . cessario, e se puzeram os Padres a practicar com o nosso Cabo no que a cada um tocava, e sendo horas de jantar se poz a mesa onde jantou o nosso Cabo e· o Padre Ca- pellão, e os guisados que lhe puzeram passaram de trinta iguarias e não vinha vianda alguma que não viesse co- berta de flores, e assim que o nosso Cabo se poz á mesa começaram dois lridios a tocar harpa e rabeca que cer- tamente enlevavam: os lndios é que serviram a mesa sem haver descuido algum nem falta do necessario e com boa compostura e limpeza: acabado o Cabo de jantar, .se juntou na propria mesa, e acabado de comer a infanteria vieram os Padres pedir mil perdões ao nosso Cabo do pou• co com que se achavam para receber a sua pessoa e tive- · ram meio hora de conversa os PadTes com o nosso Cabo, · · e se foram recolher até ás 2 horas que tomaram a vir. A cortezia e o modo e affagos que nos fizeram, foi mais de 32 BASILIO DE MA'GALHÃES muito, e naquellas mesmas horas que nós chegamos se avi- saram todas aquellas povoações por terra e a cavallo. As- sim; logo ao outro dia pelas 9 horas chegou o Padre João Baptista de Bosson, sobrinho do Duque de Banhos, o qual é missionario da povoação de Sancta Anna, veiu a c;avallo e o acompanharam seis cavallos lndios: o modo e o cari- nho d'esta grande pessoa foi a maior coisa que vi: logo no outro dia chegou mais. o Padre Gaspar dos Prados: este Padre veiu em canôa da missão de São Miguel de Moxoquinos; neste mesmo dia chegou mais o Padre Ni- colau de Vargas da Povoação de S. Pedro dos Mo- xos {*) e si mais dias estiveramos mais Padres creio che- gariam, que a todos os grandes desejos de ver Portugue- zes, os fazia vir tão promptos e prestes, e finalmente disse o Padre Nicolau de Vargas que si nos não topasse alli havia ir rio abaixo só para nos ver e fallar; mas deste o que devia ao sangue Portuguez é que o fazia ter este gran- de desejo. No dia de São Lourenço, 10 de Agosto, can- tou o nosso Capellão a missa da terça neste sancto Colle- (•) tEstas lndlcaçõea deixam ,fõra de toda e qualquer dO· · vida -que a redução jesuftico-espanhola, ã qual -chegou a expe- dlcão da ·Palheta, devia achar-se ã margem do Mamorê, em lo· gar ,não distante do em que neste desrugOa o Yacuma, seu afluen- te da esquerda, f.sto ê, na atual "Exaltaclõn" dos mais recen- . tee mapas •bolivianos. Com erfelto, sõ a tal ponto ê que poderiam atingir, ,com um ou dois dias de vla.gem fluvial ou a cwva!o, os mlsslonarlos ·castelhanos de "Santa Ana", ju·n-to ao Yacuma, e d,e ·"San Pedro de Moxos", 1t1as ,cabeceiras de Machl,po ,e ,prõ· rima da caudal do Mamorê. Por se tratar -de terrltorlo e,stran• gel.ro, guiei-me, para esta o,b-servação, 1Pelo "Mrupa ,general de Ia RepObllca de Bollvla" (7.• ed., 1908), de- Luls Garcia Meza, na !alta de mais antl·ga e ·precisa carta geogr,Ml-ca daquela regi/lo, Pondere--se, ainda, que o topô.nlmo primitivo era "Eocaltaciõn de Santa Crmrl', comum nos Influenciados ,pelo haglo!oglo llbiê- rl,co, -e 'de1pols reduzido ao vocábulo lnlcla:l, por efeito da ,lei do menor esforço ou da preguiça. O CA,Fl!I 33· g10 de Sancta Cruz de Cajuvava {.\lo) cuja povoação está situada em 14 graus e meio ao Sul e a cidade de San- ta Cruz de Lacerda {síc) em 17 graus. O Governador desta grande cidade se chama Dom Luiz Alvares Gatto e o Bispo se chama Dom Leandro de V aldina Arcaya; este Bispo de tres em tres annos visita todos os povos que estão situados nos rios que declara o mappa incluso deste seu bispado, Da cidade de Santa Cruz de Lacerda se seguem es- tradas ao Reino do Perú, porto do mar, cuja cidade tem vice-rei, a que chamam Dom Thomaz de Espego, tem · Arcebispo e Bispo está logo a grande cidade de Lima e a cidade Joam cavelica episcopal, e outra que lhe chamam Cusco, côrte antiga das lndias, mais a cidade de La-Pás; episcopal: cuja verdadeira noticia nos deu o Padre Mes- tre João Baptista de Bosson, e além do que tenho escri- pto, me deu a saber o rio Sará, que fica Leste-Oeste com a cidade de Lima, e que a agua d' aquelle rio é tão grossa que coalha e faz formar tijolos e que em fôrmas as deixam congelar da sorte que querem, e que tomava a côr parda, mui forte para limpar ferro e muito leve no peso {.\lo""). ( •} At?'âs, .M. escr-eveu o expedlclonar.to "Sancta Oruz de Caju!va". Mas a fôrma "Cajuv!va" é a que mais se aproxima da denominação castelha.na "Cayuvalbas" (v. o citado "Mapa" de Luis Gilrcla :Meza), ailnda hofo da;da ·pelos lbollv.lanos aos tn- dlos O'cu,pante,s das terras· entre ·o Yacuma e o Yruyan1, a.fluentes da margem esquerda no Mamo·rié. São e-stes selv-lco.Jas os me·smos ~Cayoibás" (evidente erro grá;f:lco d,e tônica, ,pois A ipag_ 236estã a fôrma exata "cayoã,ba "), de um dos quaes colheu o dr, João Severiano da Fonseca o peq-ueno vocabularlo, Inserto Â.s pa,gs. •2-39-12·40 do 'VOI. li da sua 'Pre:elosa "Viagem ao redor Ido Brasu - 1875-1878" (Rio, 1880-1,881), <••) o leitor Inteligente corrlglrã, com fa.c!Udade, oa dispa- rates grMlcos de "Sancta Cruz de Lacerda", em lo·gar de "San- ta Cruz de la Slerra", e de "Joam cavellca", em vez de "Huan- ca.v,e.Hca", assim como o que veni no iparé,grafo seguinte, ,fã com 34 BASILIO DE MAGALHÃES E perguntando-lhe si seria esta a que cá lhe chama• mos pedra pomes. me disse que a pedra pomes era uma · serraria ou montes que todos os annos arde e arrebenta com a força do incendio. o qual se achava em um lago d~onde acaba o rio Nagú. donde com a cheia vinham pelo rio abaixo. mas que esta pedra que da dita agua se con• gela servia para edifícios e portaes; tambem me disse que pelo grande rio de Xirigu~nnas ha viboras. que engolem uma besta inteira e que o gentio d' elle lhe fazem guerra com tropas de cavallos; tambem me affirmou que o anno de 1722 com uma innundação se fôra a pique uma ilha chamada Chamayca ("sic") com 200 navios que estavam ao redor d' ella ancorados. e que esta tal ilha era povoada da nação ingleza. Os cannaviaes em Santa Cruz de Lacerda e nestas povoações duram 60 annos e até aqui onde chegamos du· ram 20 e 30 annos, cujas cannas são todas umas no cum• primento e grossura. e a calda mui forte que tudo é assu· car, como o experimentamos por ver: estas terras dão aça· um ale de Caa,lstrano: "Chamayca", 'P·or "Jamaica". Não deixa de ser curioso o boato, que em 17,23 correu pelos sertões c·a,stelha• nos da América-do-Sul, do desaparecimento da Ilha Inglesa da America-Central, de mais a mais tida como tragada pelo mar ".c·om 200 navios, que esta,vam ao redor <dela ancorados". Exa- gero.s da sempre cê.lida imaglnacão espanhola, ainda mesmo quando saturada da doutrina de Santo Ignacio de Loiola ..• Quanto a "Guaman,ga", não passa de corruptela fônlca da "Huaman,ga", primitivo nome da atual "Ayacucho". O vice.rei do Per1i, ao tempo em que Palheta expedlclonou pelo Madeira e ,pelo Mamo.rê, era d. frei Diego Morclllo Rublo de Auf\õn, arce- bispo de Charcas, que ocupou aquele cargo desde 26 de janeiro de 1720 atê 14 de marco de 1724, como se vê na obra "Gober- nadores y vlrreyes del Peru - 1153·2-1824" (Barcelona, 1'909 ), llU;bHca<d,a 'POT Domlng-os <de Vl,vero e D. J. A. de Lavalle (,vol. I, pags. 129-131). Quanto ao mlnerlo, atrlbuldo é. agua coalhada e congelai!a, deve ser· a obsldlana (,feldspato potâsslco de ort· gem vulcânica), tam·bem chamada "espelho dos Inca.a". O CAF:li 86 frão, que é o contracto d' estes lndios, cera branca, pannos acolchoados e bordados que fazem, e ha lndios que têm 100 bestas suas e mui bem ensinadas para vaquejar e 3 a 4 mil cabeças de gado que cada um tem e ha outros lndios que têm muito mais. Estes lndios de natureza são mui curiosos, tocam muito harpa, orgão, rabecas e cantam missa, são musicoa de côro, e varios sabem lêr, e são pintores e com boas acções e melhor sombra, o oleo com que pintam é leite de vaccas, são bordadores imminentissimos, que nos sus• penderam admirados ver tres casullas, uma capa de as• perge, dalmaticas, estollas e manipulas, bolsas, palas, veu, frontaes, pannos de pulpitos, tudo bordado com as mais galhardas flores e ramos, tudo em sua ordem e tão bem matizado que não é possivel encarecer. Tambem vimos um tapete muito grande, que esten- dido do altar mór chegava aos degraus abaixo confrontei- ro as portas da sacristia, com tão admiraveis lavores que enlevavam os olhos. Do altar mór para cima d' elles, uma estante doura- da, um missal com chapadura de prata todo aberto ao bu- ril por matiz e capa de velludo carmezim, um calix dou• rado, uma patena fatal e as galhetas que teriam um coito de altura, uma salva que serve de prato d' elles e todas estas tres peças de prata dourada, a sacra e o Evangelho de S. João com molduras douradas, seis castiçaes de pra- · ta de boa altura, logo o throno ou camarim dourado por dentro com uma invenção para encerrar, casa boa 0), o retabulo obra miuda, mas inda estava dourado. .. O governo d'este povo é na fórma seguinte: tem dois regedores e estes dois capitães e os capitães têm dois alcai- des, e quando quer um d' aquelles indios colher as suas sementeiras ou plantar as suas roças vai á casa do rege- dor dizer-lhe que tem este ou aquelle trabalho que fazer, este manda ao capitão lhe dê gente e o alcaide os vai 36 BASILIO DE MAGALHÃES avisar aquella que é necessario · para fazer aquelle traba- · lho e lhe assignam dia certo, no qual não faltam á porta do lavrador, e acabado o trabalho se paga a todos os que ajudaram e assim observam geralmente, por isso to-· dos têm e são ricos; os padres que ali assistem são como vigarios d'este povo, e lhes pagam os moradores, fóra as premicias das novidades, e elles não fazem mais que admi- nistrar-lhes os sacramentos. · Em tudo que é necessario para a igreja concorre' o povo, uns com dinheiro, outros com tapetes, gados, cera branca, arroz, milho, fio, pannos e tudo remettem por cor- recção á cidade de Santa Cruz de Lacerda, aonde tudo se lhes vende e lhes vem o necessario. Esta povoação tem quatro sinos grandes e dois pequenos, fóra garridas e ro- das de campainhas,. e são estes indios tributarios a seu rei. Depois das tres badalladas da madrugada se ajun- ctam todos á porta da Igreja para ouvirem missa onde resam o rosario de Nossa Senhora com tal devoção que, nomeando o nome de Jesus, dão junctos um ai, batendo no peito: ao levantar da hostia tocam orgão e cantam o "Te Deum laudamus" e no fim da missa tocam chara• mellas e com baixões entoam o bemdicto; e acabado cada um vai para o seu trabalho. Ao meio dia nas badalladas rezam de joelhos; de manhã, dizem: "Sanctos dias dê Deus a Vossa Mercê"; á tarde dizem: "Sanctas tardes lhe dê Deus". Pelas 4 da tarde se ajunctam todos assim homens como mulheres, rapazes, raparigas e meninos, ao redor da cruz que está na praça a resar o rosario de Nos- se Senhora em voz alta, e tanto que o Padre vê terem acabado os mysterios dolorosos, antes dos gloriosos, se che- ga e ajoelha com o povo junctamente e offerece; no fim resam o Acto de contrição e ali mesmo resam as trinda• des; vi neste povo todo o genero de Officios, O 9AF:fl 8T Sendo aos 11 do mez de Agosto nos despedimos, por- que o nosso Cabo disse aos Padres que lhe não permittia mais o seu regimento que tres dias de hospede, bem con- tra vontade dos religiosos, que seus desejos mostravam que estivessemos mais alguns dias com elles: antes d'esta des• pedida havia ordenado o nosso Cabo que todos geralmen• te se confessassem, pois tornavamos a vir passar as terri- bilidades e riscos de vida nas cachoeiras: o que todos as• sim fizeram. Pelas 3 horas da tarde nos ajunctamos todos na igre- ja por ordem do Cabo, para depois de orarmos, b~ijar- mos o sancto lenho e alcançarmos a benção papal, que aquélles Padres, com grandes indulgencias, concedem por privilegio particular: o que feito nos despedimos d'aquel- la boa companhia, que até ao embarcar do Cabo nos esti- veram abraçando e pedindo muitos perdões e mostrando- se mais agradecidos á cortezia, urbanidade e tracto do Cabo, pois tão cabalmente se soube haver com elles. Propoz de novo o nosso Cabo a estes Padres publica• mente, recommendando e requerendo da parte do nosso excellentissimo General, em virtude do tractado feito en- tre os nossos reis e pela conservação dos povos, que lhe assignalava de hoje por diante não passassem para baixo da bocca dos rios Mamuré e ltennis, nem interessassem d' ahi para baixo gentilidade alguma, por estes pertence- rem ao·serenissimo senhor Rei de Portugal, pois desde 1639 que senhoriava o rio das Amazonas até a laguna onde se achavam os marcos pertencentes á corôa de Portugal e 400 leguas da bocca do rio Madeira até o dito marco· comodiz o padre Acuiía no seu livro Maranhão, e quan• do excedam, fazendo o contrario do requerimento, que inda Sua Magestade que Deus guarde tinha poderes nes- . te Estado para fazer entregar e repôr tudo o que tocasse a seus dominios e senhorios; e com estas mesmas clausulas · 38 BASILIO DE MAGALHÃES faríamos de nossa parte, o que ouvido pelos ditos Padres prometteram cumprir e guardar tudo acima requerido. D'esta povoação partimos buscando o rumo do norte e gastamos rio abaixo dois dias e duas noites ás boccas dos ditos rios consignados, e no dia seguinte emboccamos o rio ltennis. Este corre de leste a oeste, aonde faz o seu apartamento, e vai caminhando para as grandes povoa- ções dos Baures e Moxos. Seguimos este rio 6 dias acima e demos nos curraes da criação de infinito gado e bestas; e fallamos com índios da nação ltennis, pertencente á povoação de São Miguel; disse o Cabo lhe não permit- tia o seu regimento a que se estendesse mais, d' onde fi- zemos a volta para baixo; e vespera de S. Bartholomeu levantamos ferro já de rota batida, deixando aquelles deli- ciosos ares e climas mui differentes e terra tão abundante de toda a criação e plantas f.erteis e campos aprazíveis. Chegamos a paragem dos nossos enviados índios da chãinada do Principal Capejú a 25 de Agosto, e avista- mos que no meio do rio nos vinham a encontrar 3 T apu- y;;· em uma limitada casca de pau; chegaram á galeota ·do Cabo, a quem disseram que ali estavam promptos co- mo se lhe tinha mandado, e que suas vontades era serem compadres e amigos dos brancos com a lealdade de vas- sallos á corôa de Portugal; estimou muito o Cabo esta re- · solução para a mudança de vida e sujeição ao gremio da igreja, fazendo serviço a Deus e a Sua Magestade que Deus guarde. Decidiram todos se queriam baptizar, ao que o nosso Cabo lhes disse, aprendessem primeiro a doutrina christã, para o que lhes deixava um indio catechista; isso sim, se baptizaram os filhos menores por serem crianças, e o mesmo Sargento Mór que é o dito nosso Cabo e o Capi- tão foram padrinhos daquelles innocentes, O CAF:IIJ 89 Este gentio fíca descido e domestico e são da nação Cavaripunnas, e dois dias que estivemos na sua aposenta- doria, sitio que o Cabo lhes consignou para aldea, só a dormir se apartavam de nós, satisfaziam-se olhando para nós e vendo o nosso tracto; ás tardes, quando rezavamos as ladainhas de Nossa Senhora ( que temos por devoção), se ajunctava toda aquella familia e nos rodeavam de joelhos até acabarmos de rezar, porque o que vêm fazer, fazem. O indio a quem o Cabo encarregou lhes ensinasse a doutrina se chama Manuel Camacho, o qual é de boas practicas f: muito fiel aos brancos, a quem deixamos com este gentio e com ferramentas bastantes para ensinar tam- bem a fazer roças e plantar, na fórma dos indios de baixo e em toda a America se practica. T ambem fica practicado para se descerem os da na- ção Apamás e Amatirís, cujas povoações são cunhame- nas desta nação Cavaripunnas, e agora já estarão jun- ctos e descidos, para roçarem sobre o ri<>, que são confi- nantes umas ás outras, a quem tambem o nosso Cabo man• dou dar ferramentas e outros mimos. Chegamos ao nosso arraial em 8 de setembro com- feliz successo, sem nos adoecer ninguem da companhia, nem nos morrer nenhum, graças ao bemdicto Deus e á sua Santissima Mãe N. S. do Carmo, é certo que com grandes perdas pelas alagações que tivemos como fica dito. Vinte e tres cachoeiras se contam no rio da Madeira, das quaes dez se não podem passar, por nenhum meio, porque são impossiveis, e as passamos cortando pontas de terra em secco, cujos caminhos ficam feitos para quem vier atraz. Neste nosso arraial achamos a falta de tres soldados volantes ou aventureiros, que trouxemos na companhia, os, BASILIO DE MAGALHÃES quaes desertaram atraz de nós, e finalmente chegamos a esta cidade em setembro de 1723" ("). · O MOTIVO DA EXPEDIÇÃO O motivo que levou João da Maia da Gama a ar- mar essa expedição, que, sob pretexto de descobrimento (•) Dessa expedição de Palheta apenas se ocuparam, em mln,guadas linhas, A. L. Monteiro Baena, no seu "Ensaio co- rográfico sobre a 'Provlncla do iParA" (BeMm, 118319), A pag. 517, e J. S. da Fonseca, em sua já citada "V'iagem ao redor d'o Brasil - 187,5-1878H, vol. II, pag. 274. Menciona. o primeiro uma Incursão an.terlor, slmp,les ,bat1da aos in'<lios tura\s, rea- llz·ada pelo cap.ltão_-mõr do ParA, João de Barros da Guerra, que -em 1716 iga]jgou o Madeira atê á "r,iobanc-elra vermellha. acima do la·go ManicorlêH e distante "70 l&guas da emlbocadura do Madeira", e aBs-im relata a entrada de Palheta ,pelo m&s- mo rio: "A primeira ex·pedlcão, que co.nsta ee flzes,se e. erplorar e-ste rio, .foi a de Franci-sco de MellÓ Palheta, mandado em l:723 pelo General Governador do ParA João da :Mala da Gama, !Por haver tido noticia de alguns Contratadores de Gen- tios do Madeira que acima das suas cachoeiras havlão habl- tacoens de gente Europea, sem se saiber ao certo se de Por- tuguezes ou Hespanhões. O dito eX:plorador, acompanhado .te uma tropa, navegando a parte su,perior das cachoeiras, encon- trou perto da foz do Mamorê uma canoa de Indlos ·castelha- nos go-verinada •por um Ml.stiç'D: este o guiou â Aldea da i©xal- tação de Santa Cruz das Cajuba-bas, alta n_a. marg-ém occlden- tal do Mamorê, entre os r.ios Irulname e Man!rq,ue: na qual fallou com os Missionarlos, e regressou ao ParA, onde, dando noticia do que achou, nada disse do Beny, que havia de en- · contrar entre as caohoelra.s, nem do Guaporê, que, tanto na entrada •como na sruhioda do Mamorê, não 1pod1la deixar de vêr". O segundo, certamente ln1flu-enclado pelos enganos de Bae- na (que no seu caõtico trabalho nem .sempre se pr.eocupou com o exame potamogrAflco da região a que e.ludla, como ê o caso da. sobredita redução, a qual, desd-e que foi fundada, fica entre os rios E:xaltaclõn e Yacume., conforme os mãpas bo- livianos), che,ga a duvidar da realidade da expedição de 17'22· 1723, ante_ a estranheza de que_ 0 comandante dela, "·de volta O CAF:dl u do rio Madeira e das suas nascentes, ia realmente em busca de novos caminhos fluviais que facilitassem as co- municações entre o Pará e as possessões espanholas do Perú (ainda não existia a Bolívia, formada depois por Simón Bolivar em terras do alto Perú), cujas inexgota- veis minas de prata eram, a esse tempo, causa de não pequena inveja da metrópole portuguesa, - não o ex- planou Capistrano de Abreu, nem serei eu quem o revele com irretorquivel certeza. Parece-me, contudo, que a via- ao Pari!., nada dissesse sobre o Bênl e o Gua'Por,ê, que, tanto na Ida, como na desci'la, não pod'lam •passar-lhe des1perce1bldos1• • . Ora, se a alegação lê procedente em relação 11.quela caudal, não o é no tocante I!. llltlma. Qua<D.to ao Guapore, acha-se citado multas veiz.e.s no relato da ex.pedlgão, com o nome castelhano de Iténes, que ainda hoje lhe ê dado pelos bolivianos; e pelo Mamor-é subiram Palheta e os seus companhe!.ros, durante seis dias de nav-egação, atê perto da aldêla de São Ml,guel, o que Importa dizer que lhe cortaram as l!.guas por mais de 100 kll0· metros; e, qua.nto ao Bênl, é multo provave1 que Palheta nem sequer o tenha visto, 'Porque, 'Para evitar a cachoeira "iMa• delra", que lhe .fica junto I!. foz, consumiu quatro dias (de 9 a 12 de julho) na paElli!agem, atê entrar no Mamol'lê, e, avistando logo adeante a embocadura do Yata, talvez presumisse tosse tudo aquilo um "paranl!.", comum naquele,s rincões. Do que escreveram Baena e J. s. da Fonaeca, deduz-se que nenhum deles leu o relatorlo da entrada de 172'2-1723, o qual. não obstante certos dlspauterlos que encerra, particularmente no que concerne AB ln,formagões colhidas o• ad oa dos rnle- slonarlos espanhóis, é, em tudo mais, veroslmll e verfdlco. Palheta contribuiu, em parte, com o seu depolm8'Ilto pessoà.l, para confirmar a noticia escrita por um dos eeus companheiros daquela ex·pedlção,- como se pôde ver da '.Petição que dl'rlglu a d, João V em 1733 (documento que adeante vae inte,gral- mente reproduzido no texto). Acredito, porem, que em tal peça houve um erro do copista, que põa "Cidade de Santa Cruz• onde devera estar "Aldêla de Santa Cruz", equivoco de patente gravidade, porque, no primeiro caso, permitiria supor-se, pela própria aeserção do comandante da entrada, tlv.esse · chegado esta at~ San ta-Cruz-de-la-Bierra. BASILIO DE MAGALHÃES . . gem de Palheta deve ter sido determinada por duas or- dens régias, datadas ambas de 25 de março de 1722 ("Anais da Bibl. e Arq. Públ. do Pará", 1902, t. I, pags. 196-197) e expedidas por d. João V ao referido governador, que as trouxe consigo de Lisbôa, visto como só se empossou do cargo a 19 de julho do dito ano, e envidou logo os melhores esforços para cumpri-las. A pri- meira referia-se á probabilidade de haver prata em algu- mas serras do sertão dos dominios portugueses no Brasil; e a segunda ás vantagens de abrir-se comercio com os castelhanos de Quito, pois por esse meio se poderia tirar "alguma prata", o que redundaria em beneficio do Esta- do do Maranhão e do próprio reino metropolitano. Pelo contexto delas, verifica-se que resultaram de representa- ções de João da Maia da Gama. E' provavel tam- bem que, resolvendo fazer seguir Francisco de Melo Pa- lheta pela via do Madeira, que não pela bem conhecida do Amazonas, que o referido militar já cursara com a recondução do padre Samuel Fritz, cogitasse o governa- dor do Estado do Maranhão de verificar se por ali po- deriam ser estabelecidas comunicações com as regiões auríferas de Goiáz e Mato-Grosso, cuja fama, por certo, já deveria ter chegado a Belém-do-Pará. Um aventurei- ro, português nato, Manuel Felix de Lima, foi quem, em 1742-1743, saindo, com o seu pequeno bando, do far-wesl brasileiro, atingiu, por varias correntes fluviais, entre as quais a do Madeira, á capital paraense. Celebrou Sou- they (oh. cit., t. V, pags. 398-448) essa façanha do lusi- tano (mercê do manuscrito deste, que o historiador in- glês leu e aproveitou) e ao mesmo atribuiu a primaciali- . dade no descobrimento do grande rio, isso porque não viu o documento acima transcrito, pelo qual semelhante gloria cabe a Francisco de Melo Palheta. Mais tarde, sobretudo logo depois da aventurosa viagem de Manuel F elix de Lima, foi que se. preocupou o governo da me- ,O CAFfl 43 trópole, a instancias dos seus representantes no Estado do Maranhão, com o tráfego comercial entre este e as terras, opulentas de ouro, de Goiás e Mato-Grosso, já erigidas em capitanias desde 1744 e 1748, permitindo-lhes as co· municações "sómente pelo rio da Madeira e Guaporé, e não por algum outro", conforme a ordem régia de 14 de novembro de 1752 (v. "Rev. do lnst. Hist. e Geog. Bras.", t. 90, 1925,-pag. 172). A NECESSIDADE DE UMA BIOGRAFIA DO INTRODUTOR DO CAFE: NO BRASIL Como bem ponderou Capistrano de Abreu, nas pou- cas linhas com que lhe explicou a origem e a importan- cia, não se sabe quem escreveu esse relatorio, "e não é facil concluir do contexto". E acrescentou: _..:.., "E', po- rém, evidente, que era pessôa de poucas habilitações Ii- terarias, pois são muitos os erros e a ortografia é extraor- dinariamente caprichosa". , Antes de concluir as suas observações com o voto de que - "fôra muito para desejar que se achassem outros documentos sobre esta e outras bandeiras de Palheta, que tomem afinal possivel escrever a biografia do introdutor do café no Brasil", fizera o doutíssimo investigador e lu- minar das nossas tradições uma afirmação digna de re- paro e é a seguinte: - "Não era esta a primeira expe- dição em que tomara parte: estivera no rio Tapajós e pro- vavelmente no Cuiabá, cujas minas já descobrira Pas- coal Moreira Cabral, com seus companheiros". . Capistrano não se arrojava a asserções sem funda- mento. A primeira parte da sua proposição é verdadeira, porquanto Palheta fizera parte da escolta que, com en- . cargo político clandestino, reconduzira o padre Samuel Fritz ás terras missioneiras espanholas da provincia de BASILIO DE MAGALHÃES Quito. Mas do documento acima reproduzido não se p6de deduzir que estivera ele no rio Tapajós. lnsinúa ainda o insigne historiador, embora dubitativamente, que o sol• dado paraense chegara ao arraial aurífero fundado pelos paulistas em Mato-Grosso. Que impreenchivel falta a do egregio pesquisador, o qual, se fôra vivo, com certeza diria onde colhera os motivos de tal suposição. Rodolfo Garcia tambem faz referencia a essa vía~ gem de Palheta, numa das stias substanciosas monografias insertas no "Dicionario histórico, geografico e etnográfi. co do Brasil" (vol. 1, pag. 369). ACONTECIMENTOS HISTóRICOS Para que se compreenda claramente a missão de Francisco de Melo Palheta á Guiana em 1727, - da qual resultou a introdução do cafeeiro no Brasil, - é mistér uma rápida sinopse dos acontecimentos históricos que a determinaram.· · Ocuparam os franceses, pela primeira vez, terras de Caiena, tomando-as aos castelhanos, em 1635; mas fo. ram dali expulsos, anos depois, pelos holandeses, que se apoderaram da região do Surinam em 1667. Colbert, que parecia nutrir aspirações gigantescas para a sua pa• tria com relação á América-do-Sul, fez explorar clandes- tinamente o hinterland da Guiana, em 1674, por dois je. suitas (Gillet e Bechamel), e, á vista das fascinantes in• formações desses seus emissarios tonsurados, resolveu con- quistar definitivamente Caiena, - o que foi realizado a 31 de dezembro de 1676 pela forte armada do vice-almi- rante Jean d'Estrées (v. Léon Guérin, "Histoire mari- time de France'', 1851, t. 111, pags. 300-304). Apesar de haver a metrópole procurado assegurar o seu dominio sobre a Guiana brasileira, transformada a 14 de junho de 1636 em capitania do Cabo-do-Norte, O CAFlfl • que foi doada por Filipe IV a Bento Maciel Parente, - cogitaram sempre os franceses, após a vitoria da expe• dição d'Estrées, de estender a sua posse até á margem do Amazonas. Missionarios e aventureiros, vindos de Caie- na, fizeram por ali muitas incursões, até que o governa• dor daquela colonia francesa, o marquês de F erroles, ten- tando pôr em execução os planos de Colbert, se apoderou, em maio de 1687, dos fortes portugueses de Araguarí, T oerê, Desterro e Maca pá, arrasando os três primeiros e conservando o último. Apressou-se o governador do Esta• do do Maranhão, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, a expedir contra os invasores uma força mi- litar, a qual retomou Macapá a 28 de junho daquele mesmo ano. . Pedro II, rei de Portugal, talvez deslumbrado pelo "roi-soleil", ainda fazia do berço de Afonso Henriques um satélite da política da França. Por isso, não hesitou em celebrar com Luiz XIV o tratado provisional de 4 de março de 1700, pelo qual se obrigava a evacuar e demo- lir os fortes construidos pelos portugueses á margem aqui- lonar do Amazonas, desde o cabo do Norte ao rio Oiapoc ou de Vicente-Pinzón. E esse pacto foi ainda renovado pelo art. XV do tratado de aliança, que os mesmos sobe- ranos realizaram a 18 de julho de 1701 (v. Carlos Cal- vo, "Colección completa de los tratados ... ", 1862, t. II, pag. 43). Mas a guerrá de sucessão de Espanha, - que havia de encher no mundo ocidental todo o começo do século XVIII, - trouxe no bojo grandes surpresas. Não foi a menor delas a conquista de Portugal, feita pela habili- dade da política inglesa. E o mesmo Pedro II, - para quem já as convenções diplomáticas não passavam de farrapos de papel, - celebrou com a Inglaterra o trata- do de 1703, denominado tratado de "Methuen" (do nome do embaixador britânico John Methuen), pc;lo qual 46 BASILIO DE MAGALHÃES • repudiou a aliança francesa, entregando Portugal de pés e mãos amarrados á poderosa Albion. E' verdade, con- tudo, que a paz de Utrecht foi duplamente favoravel á nossa metrópole ibérica, quanto ás pretenções da França e da Espanha sobre terras do Brasil. Pelo
Compartilhar