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- HISTORIA GERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS POR ANTÓNIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA 4 6 8 4 Revisto e anotado POR MANUEL ALVES DA CUNHA T (°) \{ f } | | | AGÊNCIA GERAL DAS COLÓNIAS / MCMXLII HISTÓRIA GERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS RE PÚBLICA PORTUGUESA MINISTÉRIO DAS COLÓNIAS HISTÓRIA GERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS POR ANTÓNIO DE OLIVEIRA DE CA D O RN E G A Capitão reformado e cidadão de S. Paulo da Assunção, natural de Vila Viçosa 4 6 8 4 Revisto e anotado POR MANUEL ALVES DA CUNHA TOM O III DIVISÃO DE PUBLICAÇÕES E BIBLIOTECA A GÊNCIA GERAL DAS COLÓNIAS I 9 4 2 Esta publicação foi determinada por despacho de S. Evº o Ministro das Colónias, de 13 de Maio de 1939 TXT" 8ô2 Cub v. 3 NOTA PRÉVIA O falecido Cónego J. M. Delgado, que profi ciente e laboriosamente corrigiu e emendou muitos erros de datas e factos, correntes na história de Angola, e anotou, com a transcrição e citação das fontes documentais dos nossos ricos arquivos, o 1.° tômo e o 2.° da História General das Guerras Ango lanas, não chegou a fazer o trabalho de correcção e anotação do 3.° tômo. Apesar do que diz no pre fácio do 1.° tómo, não foi encontrada a lista alfabé tica das palavras duvidosas e antiquadas e das ti radas do kimbundu ou congo, quer para o 3.° tómo, quer mesmo para o 2º. Éste estudo sôbre o 3.° vo lume teve que ser agora feito e é bastante desenvol vido, visto no português angolense empregado por Cadornega no século XVII, quási um crioulo, gira rem muitos termos dos dialectos indígenas ou apor tuguesados, além dos vocábulos antiquados ou espa nhóis. Havia necessidade de confrontar a cópia do Manuscrito da Biblioteca de Paris, que serviu de VII base à presente edição, com o autógrafo existente na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (Ms. n.º 78, cór vermelha), e mesmo com a cópia, feita em princípios do século passado, e recente mente aparecida, arquivada na mesma Academia (Ms. n.° 645, côr azul); e por êste motivo aparece o 3.° tómo muito depois dos dois primeiros, todos louvàvelmente editados pela Agência Geral das Colónias. • Fêz-se êsse confronto, reviu-se o manuscrito e fizeram-se várias anotações, tudo da minha respon sabilidade, salvo muito poucas notas deixadas pelo falecido Cónego. Foi muito valiosa, e por isso aqui a agradeço, a colaboração prestada, na busca dos arquivos e no confronto com o autógrafo, pelo Rev." P. António Brásio, S. Sp. O mesmo agradecimento tributo aos esclarecimentos prestados pelos Srs. Drs. Bagôrro Sequeira, F. Frade, naturalista do Museu Bocage, e F. Mendonça, do I. B. de Coimbra; Gastão Sousa Dias; P. Ruela Pombo; e Junta das Missões Geo gráficas e de Investigações Coloniais do Ministério das Colónias. Por conveniência da edição sai o 3.° tômo com o mesmo título de História Geral das Guerras Ango lanas. Na realidade êste tômo não é de história, mas principalmente de geografia descritiva e de etno grafia de Angola e Congo, misturando o Autor, com a descrição geográfica, a flora, a fauna e a etno grafia, algumas divagações históricas, e muitas crendices e ingenuidades, segundo a predilecção, colorido e prolixidade do seu feitio literário. Nas legendas das diferentes partes dêste tómo, VIII VO{ISITIOSVIONJIOSVCIVIJNICIVOVVCISJNOCI— *IOLOVOCIViVIOOLÍTVVIOLVNISSVVNOOONOLIOCIVIRIOLVOICITOVCIHTIVISOVI |-………zzzzz…….….; ……….……>>>>>>>%"2"2? -#####……Y2/**?tº1/ ………………………2/****** 2422******2%"g->%…*# -22"zzzzz…*3*2**2372"2…3…?2***12" #…………………………"22%"% ……………………………2"2"#223º%"4 ………2*2*29.…#23º*2*%*>.*** *****………….….……2.2% >X<>>>2******2*<2?…:29%.25 …………………….…..…; 2">";2222**º*?"…;2**22**?<")22 ………………………/……"?"% 2…3…2****%@**/ %72222 ***********:*"…………?2#222 ……………………….……………%2 %,…2x225°72%22"vºz"%2"> …….…………2…}º%"…%"…º*g;%*/ …2"É……?273%%%. E…%2…3………*#**2<Z"22">"; %_>|-%227 < \, |…………%%%.*%2%, ***…………………… | • |- - /** ……………… …" - |- #" - o Autor chama-lhe História de Angola ou História Geral Angolana. Publicam-se nos seus lugares as estampas que ilustram o original dêste volume. São as do autó grafo da Academia das Ciências, e, para confronto, as correspondentes da cópia do Ms. de Paris, de que lemos no frontispício do 1.° tômo o nome de Rochefort como presumível autor. Faltam no autó grafo a estampa referente à palmeira, que dali foi arrancada, e a referente ao peixe mulher. A esta iconografia angolana, que revela no Au tor «facilidade de pintor e perfeito conhecimento dos usos e costumes locais», se refere com elogios Fer dinand Denis; assim o declara no estudo àcêrca das iluminuras dos Mss. portugueses, que precede a re produção cromo-litográfica do precioso Missal ilu minado de Estevão Gonçalves, da Academia das Ciências de Lisboa, reprodução existente na Biblio teca Nacional de Lisboa e oferecida a El-Rei D. Fernando (1879). Postas de lado as suas deficiências, êste tra balho de Cadornega tem real merecimento para o conhecimento regional de Angola e para a sua geografia no século XVII. A curiosidade do Autor levou-o a dar relações ou pautas, como lhe chama, das diferentes províncias de Angola, Congo e Ben guela, e das denominações e lotações dos seus nu merosos sobas, que assim fixou na sua época, muito pormenorizadas e completas, como também da or ganização social e maneira de viver de muitas tríbus indígenas. A localização é feita pelo Autor sem referência aos pontos cardeais. Insere uma nota marginal na IX 3° parte, em que, com tôda a simplicidade, diz: «Não me meto com Norte e Sul, nem de Leste a Oeste, por ser coisa que não entendo, que é só re servado aos cosmógrafos, que o aprenderam e ensinam». Pela diversidade dos assuntos de que dá noti cia sôbre as terras ardentes de Angola, a que pito rescamente chama «esta Adusta Etiópia Ociden tal», colocada no «Calcanhar do Mundo»; pela maneira como o faz e pelas singularidades que descreve; não hesitamos em classificar êste com pêndio do curioso escritor seiscentista, — bene mérito obreiro da historiografia angolense,— como o mais interessante dos três volumes do pai da his tória de Angola. Compõem-se em tipo itálico muitos nomes geo gráficos, os vocábulos dos dialectos vernáculos e dos aportuguesamentos empregados pelo Autor, assim como muitos termos da fauna e flora e vocá bulos espanhóis. No autógrafo é tudo escrito em caligrafia seguida, de leitura bastante difícil. Para se ver essa caligrafia publica-se o fac-simile da de dicatória do 1.° tômo com a assinatura autógrafa do Autor. Para facilitar a consulta juntam-se no fim da obra: os quadros alfabéticos dos nomes geográficos e dos nomes das pessoas: as coordenadas aproxi madas dos pontos mais importantes mencionados por Cadornega; e um índice das matérias das quatro partes. O onomástico é bastante desenvolvido; serve também no quadro discritivo, em grande parte, para as figuras dos tomos 1.° e 2°. O esbôço geográfico X —Carta Geográfica da Costa Occidental da África —é o desenhado por L. C. C. Pinheiro Furtado em 1786; embora distanciado um século, pode ser de uti lidade para a geografia angolana da época do Autor. XI AO MUIITO ALTO E MUIITO PODEROSISSIMO PRINCIPE DOM PEDRO, NOSSO SENHOR, OFFE RECE A SEUS REAIS PÉS ESTA HISTORIA DE ANGOLA ANTONIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA, CAPI TÃO REFORMADO E CIDADÃO DE SÃO PAULO DA ASSUMPÇÃO, NATURAL DE VILLA-VIÇOZA. TOMO TERCEIRO ESCRIPTO NO ANNODE 1681(*) (*) Esta dedicatória e título está entre a estampa do rei do Congo e a do rei de Angola. (É o frontispício do III tômo). __*_ … a/%……………… Átº."####""" Aa}{e fez 24%%" |- … 24 tev& - > # ##### • 4444 #4… 4a 24,24%" }a…/… REPRODUÇÃO DO ROSTO DO III TOMO. — DO MS DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS, DE LISBOA | . 4º maua. 4% ………"… |- _%"# Zen 2/, º |- /* 42" </en/ar ^>// C* à …… "aza/** /a/a/ __ O | .%……… ?>.………… | , Zuenia 2… 04ver… 2. …) } C // ornºga ·.……… … 4. {*** 2… Zºo }e. | , / '2 / } * / /g,.45% /* / 4………. %goa" 2. %% "… * 4) zºmº várzzzzo 4 |-\ é,1/07/* /z/1 . 4 no 2 REPRODUÇÃO DO FÓLIO A DO MS DA BIBLIOTECA NACIONAL DE PARIS (F. PORTUG. 4) AO BENEVOLO E CUIRIOZO LEITOR da minha pessoa em descrever particularmente todas as couzas destes Reinos de Angola, que á minha no ticia vierão, por dar comprimento ao que prometti em a minha Historia das Guerras Angolanas; e digo mais risco T… vez me torno a metter com muito mais risco por me pôr em escrever, e fazer descripção desta Cidade de São Paulo da Assumpção, de seu porto, grandeza, no breza, e territorio da Villa da Victoria de Masangano, e sua basta Capitania, e das mais Fortalezas da Conquista, e suas Capitanias mores; e do mais provido pello Principe, nosso Senhor, e seu Governador e Capitão Geral; hindo pello potente, e caudalozo Rio Coamza acima relatando suc cessos estravagantes e admiraveis, nelle acontecidos; suas abundantes agoas, e ferteis margens, em que se cultivão numerozas searas, com abundancia de caça, e ferozes ani mais, assim em mar como em terra; que mar se pode cha mar por sua espaçoza grandeza; tendo e criando em si immenso pescado de diversas castas; navegando por sua ribeira abaixo e acima muitas embarcaçõens, pataxos de cuberta, lanchas, canoas possantes, com o negocio da Con quista destes Reinos, tudo dos Vassalos Portuguezes da Coroa de Portugal de sua Alteza que Deus guarde; dando noticia do que comprehende o Reino de Angola e suas pro vincias; Reino de Dongo, o que era de sua jurisdição; da cidade São Phelippe do Reino de Benguella, e o que domina; da basta Provincia do Lubolo, e das mais suas confinantes: tocando em o opulento Reino do Congo, seus grandes e poderozos vassallos, os rios caudalozos, que o rodeão e com quem confina seus limites este dilatado Reino: sem embargo de haver dado de tudo noticia em a nossa Historia Angolana, em o primeiro e segundo tomo della, em os governos que houve nestes Reinos, desde sua primeira conquista até o tempo prezente: alem de dar ditas noticias ao mundo, e lhe fazer notorio todos os successos que houve nas guerras Angolanas, em o discurso de tantos annos, em tão traba lhoza e arriscada conquista, por serviço de seu Principe, e exaltação da santa fé catholica, referimos também em este nosso terceiro tomo alguns cazos admiraveis, succedidos nes tes bastos e dilatados reinos, tão populozos da immensi dade de vassallos ethiopes occidentaes, mettendo-se o Autor entre tantos animaes ferozes, e bichos peçonhentos, confiado em que suas ferocidades o não offenderão, nem tão pouco suas mordeduras peçonhentas, hindo armado de tão singu lares contras (*), e do mayor antidoto, que he serem estas suas obras, e trabalho e desvello, que com ellas teve, dedi cadas e offerecidas aos Reaes pés de sua Alteza, o podero sissimo Principe Dom Pedro, nosso Senhor, que muitos annos nos viva, e prospere Deus com toda a Caza Real, como seus humildes e leaes vassallos lhe dezejamos, e ha vemos mister. (*) O Autor emprega muitas vezes esta palavra no sentido de con traveneno, remédio contra qualquer cousa. TERCEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL AN GOLANA ESCRIPTA POR ANTONIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA CAPITÃO REFORMADO E CI DADÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO DA ASSUIM PÇÃO, NATURAL DE VILLA-VIÇOZA CAPITULO PRIMEIRO DA PRIMEIRA PARTE (2) começando esta nossa historia pelo grandiozo e se E guro Porto da Cidade de São Paulo da Assumpção que em sua bondade pode fazer comparação a todos os que há no discuberto, sito entre a barra da Coamza, e Curimba, que estão a barlavento costa acima delle; dis tando o da Coamza algumas quatorze legoas; ao da Curimba fazem tres, e tres á barra do rio Bengo, a seu sotavento, e do rio Dande e sua barra oito, a este dito Porto. Entre estes rios e suas barras está este aprazivel Porto, que por ser tão capaz e seguro dos combates das ondas e furor dos ventos, foi escolhido pelos antigos, e primeiro con quistador Paulo Dias de Novaes (º) para refugio e amparo (*) O Autor não dividiu este terceiro tômo da sua história em capítulos, como fêz no primeiro e segundo. Apenas se encontra aqui esta referência «capitulo primeiro», mas não tem depois seguimento. A subdivisão da matéria contida nas diferentes partes é feita ou por meio de notas marginais ou então pelos títulos com que encima as dife rentes descrições. A presente edição respeita, como é natural, o que o Autor fêz. (*) O govêrno de Paulo Dias de Novaes foi de 11 de Fevereiro de nossos navios; e ser em si capaz de estarem dentro delle muitas armadas; porto quieto ao furor do mar, e vento, por ter uma Ilha em frente que lhe serve de trincheira e reparo a todos os seus impetos, tendo uma barra e entrada para elle, tão espaçoza da ponta da Ilha ao morro das Lagostas, terra firme, da largura de duas legoas pouco mais ou menos. Para defença do qual porto e cidade tem na marinha a fortaleza ou forte da Casomdama, sitio mais condenado a alguma invazão inimiga; o qual se vê artilhado com muros e cubellos (*), plataforma frente ao mar que nele bate; e passado algum rochedo se dá em huma praya a modo de cotovello, ou enseada espaçoza a que chamão a Casomdama, de quem a fortaleza tomou o appelido (º); desta praya onde acaba a montanha se acha um fortim com artelharia assim para defença d'aquelle desembarcadouro como para guarda de um caminho, e subida áquellas alturas, hindo correndo huma trincheira ou valle de terra com sua cava, caminho distante até quasi ás trincheiras de pedra e cal, á praya da Cidade, ficando em meyo o penedo, onde houve forte dentro no mar que o Flamengo desmantelou, e o tempo consumio, de que se vê ainda seus vestigios. Vai correndo a Igreja de Nossa Senhora de Nazareth, e junto a ella huma trincheira de pedra e cal que atraveça até aos altos, e por diante o forte a que chamão da Forca, por ali a haver, que neste tempo serve de estrebaria á caval de 1575, data em que chegou à Ilha de Luanda, a 9 de Maio de 1589, data em que faleceu em Massangano. A data da chegada foi rectificada pelo Revºº Padre Francisco Rodrigues, S. J., em vez da de 20 de Fevereiro, que era geralmente a indicada. (História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, tômo 2º, vol. II, pág. 510 e nota 6). (*) Baluartes. (*) Aqui se construíu mais tarde a fortaleza de S. Pedro da Barra, hoje em reconstrução, classificada há anos monumento nacional. laria, hindo correndo uma trincheira de pedra e cal, que cinge toda a praya da Cidade beira mar, de atrechos (º) seus fortins da mesma materia, para descortinar de hum ao outro até frente da fortaleza de Nossa Senhora da Guia (*), sita ao pé do morro de São Paulo, em cuja fartaleza, fechada com portas, cava, e ponte levadiça estão os almazens reaes de polvora, armas e mais muniçoens com boa cazaria asso bradada e terreas para todos os sobresellentes; tendo dentro huma cisterna que toma bastante agoa, muito bem artilhada com bastante guarnição de infantaria e artilheiros, com offi ciaes, capitão, alferes, sargento, cabo de esquadra que tem dita fortaleza a seu cargo e homenagem; e a feituria e alma zens á ordem dos offciaes Reaes de sua Alteza, tendo de baixo de chaves a boa prevenção e cuidado que não haja descaminhos; toda a frente desta fortaleza bate o mar ao pé della, mas com pouco combate, por ser de mar morto, amparado da Ilha que está fronteira. No alto da montanha se acha o forte de São Miguel do morro de São Paulo, onde se tem por tradição fez o pri meiro Conquistador o valeroso e bemafortunado Paulo Dias de Novaes, o primeiro forte e povoação, em que se fez Igreja a Deus e a Sua Sacratissima May, em que tiverão os Revºº Padres da Companhia de Jesus, filhos daquelle grande pa triarca santo Ignacio de Loyola, caza e collegio como o tes tificavão pessoas antigas daquele tempo (º); e o certificou agora neste, abrindose a cava á sua fortificação, novamente feita, em o governo de Aires de Saldanha de Menezes e (*) Atrechos— de distância em distância. (') Já não existe há muitos anos. (*) Chamando-seo Collegio de São Paulo da Loanda, como ainda hoje tem esse appelido o em que hoje estão. E de todos os Santos. (Nota marginal do Autor). Souza, darem com alicerces grossos, de pedra e cal que bem demonstrava o que tinha sido pelo antigo. Este dito forte (º) tem em si hum famozo e espaçozo baluarte já em defença, todo de pedra e cal com cantaria pelos cantos, de grossura á prova de canhão, com grande altura do muro já terraplanado, com recinto e cornicha, e pioens nos cantos de boa pedra para cubellos ou guaritas, em forma que se pode já delle fazer boa defença, que o cui dado e desvello do Governador Francisco de Tavora deixou naquelle estado que se vê, tendo mui boa artilharia de bronze e ferro de bastante calibre com artilheiros e capitão de arte lharia e capitão de guarnição, que dá homenagem delle nas mãos do Governador e Capitão Gº. Em frente deste forte ha huma vista pela praya acima. a que chamão do Bispo, por sobre ella haver tido seu palla cio episcopal, que o Hollandez arruinou, quando foi esta Cidade occupada por elle na Era de quarente e hum em o mez de Agosto, vespora do Apostolo São Bartolameu; está a fortaleza ou forte de Santo Amaro (º), que se lhe deo este nome por naquelle tempo ter naquelle sitio sua Ermida, que despois se fez, junto a elle, o qual pela banda do mar, de sua eminencia domina quasi toda aquella espaçoza praya, e pela banda da terra defende as casimas (*) ou poços da Maian ga, de onde se prové de agoa a mayor parte desta Cidade; he fortaleza fechada com bastante muralha e cubellos, fosso proporcionado com boa e bastante artilharia, casa de muni çoens e quarteis de soldados, artilheiros necessarios, solda (*) A Fortaleza de S. Miguel é actualmente o Museu de Angola. criado e mandado ali instalar em 1938 pelo Senhor Ministro das Coló nias, F. J. Vieira Machado, ao tempo de passagem em Luanda. (*) Fabricou-se este forte no governo de Luiz Martins de Souza Chichorro. (Nota marginal do Autor). (*) Do kimbundu, kixima, ixima— poço, poços. dos que a guarnecem com Capitão pago que nelle mora com os mais Officiaes; e só este Capitão recebe soldo da fazenda Real de sua Alteza, e não os mais capitaens, que se hão nomeado, dos fortes e fortalezas; o que se tirou aos mais por parecer que convinha, que tal vez a emulação o fez fazer dos mesmos habitantes, que em toda a parte do mundo ha estas carcomas, e querem todos terem huma mes ma igualdade, não vendo que aquelles que tem trabalhado no serviço Real de seu Principe tem o primeiro lugar e por essa cauza são gratificados com estes e outros acrescenta mentos para que tenhão, com que passar o restante de sua vida pois a gastarão toda em servir e arriscar em muitas occazioens, o que não hão feito aquelles que se lhes querem igualar. Em os baixos onde ha as casimas de agoa se vê huma cazamata que serve tambem de sua defença, e dahi vai cor rendo trincheira de terra com sua cava para o mais alto, que chamão a Engombota até o forte chamado de Dom Affonso Mendes (*) pelo haver feito, que é da mesma materia de taypa de pilão; e dahi vão correndo trincheiras, cortinas, travezes, e baluartes com sua cava, grande distancia que chegão a descubrir as barranceiras e praya da Casomdama, com o que fica fazendo cordão a toda esta Cidade e seu (*) Não sabemos ao certo quem seria este D. Afonso Mendes. Houve o sargente mor Afonso Mendes, que serviu em Angola e dei xou um caderno que trata das ervas, raízes e outras cousas descober tas em Angola, com várias virtudes; este Ms, existe na B. N. de Lis boa, Reservados, n. 6196, e foi publicado na revista Diogo Cão, e em separata da mesma revista, Lisboa, 1935. Será talvez o fundador do forte a que se refere o Autor. Nada existe dêste forte. Cadornega refe re-se várias vezes no tômo II a um sargento mor, Afonso Mendes de Moura, no tempo do governador Luiz Martins de Souza Chichorro (1654-1658). arrabalde; o que se obrou em tempo do Governador André Vidal de Negreiros, como se relatou no tempo de seu go verno em o segundo tomo da nossa Historia General das Guerras Angolanas; e hoje se vé esta fortificação hum pouco danificada, a qual se fez quando teve novas que vinha a Armada Castelhana a infestar este Reino. Até agora anda mos por fora da Cidade, entremos para dentro della. Estão em sua praça as cazas e Pallacio dos Governado res e Capitaens Geraes destes reinos e suas conquistas com honrada e sumptuoza morada, e em frente o corpo da guarda principal, onde todos os dias entra hum capitão com sua companhia de guarda, e se despede outro para o corpo da guarda da praya, com Mestre de Campo com seu terço, tenente general, sargento mor e capitaens, e mais Officiaes todos de militar disciplna e larga experiencia no serviço do Principe nosso Senhor. Está logo o Paço Episcopal em que rezide o ilustrissimo senhor Bispo Dom Frey Manoel da Natividade (**), dignis simo desta e de outras prelasias mayores por suas Letras e virtude, sito em frente da Igreja Matriz desta Cidade, em cuja parochia assiste de rezidencia o cabido da Sé do Congo onde de manhãa e tarde louvão a Deus rezando em coro as horas canonicas, assistindo a este santo exercicio as dignidades de deão, chantre, arcediago, mestre escola, e thezoureiro mor com o numero dos mais conegos que lhe he dado, recebendo suas ordinarias da fazenda Real de sua Alteza, sendo esta Igreja Matriz do padroado da Ordem de nosso Senhor Jesus Christo, tendo vigario provido pela Meza da Consciencia, com cura, coadjutor e sanchristão tam (*) Bispo do Congo e Angola (1675-1685), em cujo govêrno dio cesano se fixou em Luanda, onde sempre residiu, a sede do bispado, transferida assim, de facto, do Congo. 10 bem pagos da real fazenda, com custozos acrescentamentos de obras, como se ha relatado em a nossa Historia General Angolana; feita huma capella particular para o Santissimo Sacramento mandada fazer pelo Governador e Capitão Ge ral Aires de Saldanha de Menezes e Souza, e também huma via sacra para o cruzeiro, mandando acabar o forro do tecto da igreja em quarteis com paineis divididos, e seus floroens nOS remateS. E o Prelado, por seu vigario geral e provizor deão da Sé Manoel Fernandes Curado, mandado fazer o retabolo do frontispicio da capella mor, onde a Senhora da Concei ção prezide, como patrona que he desta Cidade, em seu bizarro trono e nicho, que a devoção de seus mordomos man dou esculpir e dourar; e pelos lados se vêm, em seus nichos e cazas, São Pedro e São Paulo; com seu camarim em todo o cima, com seu trono, que a devoção do juiz e mordomos da confraria do Senhor mandou fazer para se expor a nosso Senhor nas endoenças, e em suas festividades; e fica ser vindo de porta para o mais do tempo hum fermozo painel do Apostolo Africano e Evangelista (**), que foi mandado obrar por quem deo ordem ao retabolo; tambem se fez o bautisteiro de aboboda com muita perfeição e custo, obra tambem do Prelado e de seu Vigario Geral. A Senhora da Conceição de quem asima falamos, he a que se achou milagrosamente em Masangano, quando foi da tomada desta terra pelo Hollandez, a qual esteve por emprestimo em a nossa fortaleza de Muchima; e nella estava no cerco que nella teve o Hollandez com toda a provincia (*) A igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, que era a paroquial da cidade alta e foi Catedral do bispado, ficava onde é hoje o Observatório. Deixou de estar ao culto em 1818, tendo-se desmoro nado. Dela resta a tôrre, que é a do Observatório. (*) S. Mateus. 11 do gentio da Quisama em seu favor, e foi sustentada a ta manha oppozição milagrosamente, e descercada pellas armas portuguesas mui inferiores a tanta multidão inimiga, como o havemos relatado em o primeiro tomo da nossa Historia General, cujos milagres se autenticarão por pessoa devota desta Senhora May de Deos, e amparo dos peccadores. Tem esta cidade que himos descrevendo quatro conven tos, igrejas, e dormitorios de custo e importancia, principal mente o collegioda Companhia de Jesus (**), fabrica muito magnifica, que pudera sua igreja ter lugar entre as sumptuo zas da Europa em grandeza, ornato de capellas, pinturas, e retabolos dourados, mui ricos ornamentos, alampadarios e castiçaes de prata em que têm estes exemplares Religiozos todo o desvello e cuidado, que tudo o que têm e possuem he para grandeza e ornato da sua igreja e collegio, tendo as Missoens, que vêm do Reino, de tão dignos sugeitos com petencia, a qual ha de fazer mais, e o deixar mais engran decido. Tem grandes e dilatados dormitorios, muitas officinas e dous claustros assobradados e terreos que fazem huma dilatada quadra, e huma galaria novamente feita que faz frente á praça, e a autoriza de muitas janellas, sancristia custoza, e portaria com ornato de pinturas, tudo feito com perfeição; o frontispicio de fora da Igreja novamente feito de colunas e cornichas, tudo mui aprazivel, com o Salvador (*) Éste colégio é actualmente a residência episcopal e seminário diocesano, tendo sido restaurado em princípios dêste século. A igreja está em ruínas e sem culto desde fins do século XVIII. Êste colégio e igreja, em substituição do que primeiro tiveram no môrro de S. Paulo, foram construídos nos terrenos doados à Companhia por Paulo Dias de Novais em 1584; as obras iniciaram-se em 1607 e levaram anos a concluir-se; o local chamava-se então a praça da Feira. (Pº Francisco Rodrigues, ob. cit., pág. 568-569). 12 do mundo de vulto em seu nicho, ficando fazendo frente por igual com a primeira torre dos sinos, portaria e galaria, e a torre com bastantes sinos de boa grandura. Tem tres classes onde se lêm cazos; a segunda, e pri meira, de latim, donde tem sahido com ensino toda a clere zia com que hoje estes reinos se achão, que he muita, e passa de um cento, que o dignissimo Prelado Dom Manoel da Natividade tem ordenado; não entrando aqui os do tem po do virtuozo Bispo Dom Francisco do Soveral (**), que são pessoas de idade e respeito; e muitos têm sido vigarios gerais, vizitadores da conquista e mais reinos, todos com o leite e ensino dito, com escola em que ensinão a ler, escre ver e contar aos rapazes e meninos que são muitos, instrui dos em a doutrina christã; sahindo o reitor com seu com panheiro todos os domingos em doutrina, com os estudantes e rapazes em procissão, cantando a ladaynha de nossa Se nhora com seus pendoens e insignias a lugar publico da Ci dade, donde dizem seus capitulos e oraçoens, dando pre mios aos que melhor rezão e respondem ao que lhes per guntam dos misterios da nossa santa fé, que deve saber todo o christão, em que entrão de mistura alguns negrinhos que tambem apprendem a ler, escrever, e as oraçoens; e alguns, que são forros de sua nascença, seguem os estudos, e se vêem hoje sacerdotes com pretexto de hirem como naturaes da terra ás capellas do sertão dentro; o que neste minister e exerci cio fazem estes bons religiozos servos de Deos muito serviço a Deos em bem das almas christaãs, estando todos os reli giozos deste collegio prontos a tudo o que os occupão os fieis christãos, assim com as pregaçõens, como confissoens, e assistir aos enfermos moribundos, ajudandoos a bem mor (") Bispo da diocese do Congo e Angola (1628-1642; residiu em Luanda, e morreu em Massangana durante a invasão dos holandeses. 13 rer, com zello pio e catholico, que nesta sagrada religião he bem conhecido; e he muito para louvar a Deos em estas partes tão remotas de tanta gentilidade haver tão bons e au torizados religiozos que dão tão bom exemplo, trabalhando tanto na vinha do Senhor por seu amor. Ha na sua igreja a confraria do Senhor que servem os mais autorizados cidadoens e moradores com a invocação do Corpo de Deos do collegio, onde fazem as endoenças em camarim que tem no alto do frontispicio do altar mor, com porta em famozo retabolo, tudo dourado, que o fecha o mais do tempo do ano hum painel da Circuncizão feito por aquelle antigo e afamado pintor Simão Ro driguez em que fazem os reverendos padres com muito gasto de cera, grandeza e dispendio; tendo outra confraria da Senhora do Socorro, em que estão no seu livro de irman dade assentados quasi todo a gente branca que ha nestes reinos e suas conquistas, homens, mulheres, e meninos vi vos e defuntos, por gozarem todos de tantas graças e indul gencias concedidas pelo Summo Pontifice, mandandose dizer muitas missas por vivos e defuntos; há outra de São Francisco Xavier onde são tambem irmãos a mayor parte da gente desta cidade, tendo missa cantada e ladaynha de Nossa Senhora todas as seistas feiras do anno, em que está em altar particular a imagem do Santo Apostolo do Oriente, onde se tem e venera um braço de prata e nelle sua Relli quia (*), que no primeiro e ultimo dia de sua novena se dá a beijar a todo o povo, acudindo grande concurso, e até (*) Este Relicário do braço de prata pertence hoje ao tesouro da Sé de Luanda, que foi herdeira de muitas pratas do Colégio. Há a tradição que foi trazido na armada de Salvador Correia em 1648, tradição que Cadornega não abona na sua descrição, como se vê, apesar de contemporâneo da Reconquista. 14 muito do gentio bautizado, dizendose todos os domingos missa pelos irmãos defuntos. Os estudantes administrão tambem em dito collegio a confraria das onze mil Virgens com sua generalissima Santa Ursula, sendo sua capella particular com seu retabolo e ima gem de vulto (*), com seu juiz e mordomos, que fazem sua celebridade com grande gasto e festa, fazendo alardos, mascaras, encamizadas, luminarias e fogo do ar, estando nosso Senhor exposto com gasto de muita cera, sermão e missa cantada, muitas danças, e estancias, a Igreja muito ornada. E para acabarmos com a grandeza e magnificencia deste Collegio, diremos em como até os negros, forros e escravos de seu dominio têm a sua confraria da Senhora do Rosario, em capella particular, em que fazem sua festividade accom panhando as confrarias dos brancos com seus pendoens, tendo sermão, missa cantada, com o Senhor exposto, com gasto de cera, danças dos mesmos pretos, e suas estancias, por onde dá volta a procissão. O convento da Ordem Terceira do seraphico Padre São Francisco, com a invocação do Pay putativo de Christo Senhor nosso o gloriozo São Joseph (º), he tambem de bastante fabrica, Igreja e dormitorio, altos, e baixos, caza particular com sua capella para a Congregação dos Ter ceiros seculares, em que assistem e servem muitos principaes (*) Ainda existe na capela do actual Paço de Luanda um grande quadro, pintura em cobre, representando Santa Ursula e suas compa nheiras, possivelmente o retábulo a que se refere o Autor. (*) Era o convento de S. José, que já não existe; ficava onde é actualmente o Hospital Central de Luanda. Estes religiosos vieram para Luanda em 1604, no primeiro govêrno do governador Manuel Cerveira Pereira, e instalaram-se junto da Ermida de S. José, que já existia naquele mesmo local, 15 cidadoens e moradores que por seus officiaes dispoem e or denão todos os annos a procissão dos Terceiros de quarta feira de cinza, com muitas imagens de santos de vulto que florecerão na dita Ordem, a qual se faz com dispendio, gran deza e devoção, mostrando a esta gentilidade para sua con fuzão, e os metter por dentro á perfeição e devoção com que se empregão os Portugueses em o culto divino, gas tando sua fazenda com tanta liberalidade; havendo sempre em dito convento sugeitos dignos de respeito, muito bons pulpitos, e mui diligentes em acudirem ao bem das almas catholicas, quando são chamados; tendo em seu convento a confraria da Immaculada Conceição, a quem festejão com muita devoção, e dispendio dos mordomos, como as mais festividades de sua Ordem, principalmente a do Patriarcha São Francisco e São Joseph, como a orago do seu convento. O convento e hospicio de Santo António dos Capuchinos Italianos e Missionarios Apostolicos (*) he de mui grande devoção, onde achão todos naquelles servos deDeos a con solação corporal e espiritual, estando sempre com os braços abertos para tudo o que he do serviço de Deos, com a pre gação gratuita, assim como as confissoens nas festividades e quaresmas como para algum enfermo a todo o tempo e horas a que são chamados; estando a sua pobreza e virtude mettendo por dentro, cauzando devoção a todos os que os communicão, expondose aos rigores do sertão, sacrificando (*) Nada existe dêste Hospício, que ficava onde é actualmente o jardim da cidade alta de Luanda. Os Capuchinhos estabeleceram-se nesta cidade em Dezembro de 1649, vindos do Congo, a pedido dos morado res de Luanda e de Salvador Correia. No Congo iniciaram o seu fe cundo apostolado em 1645, no Zaire, em S. Salvador e no interior. Em Luanda se fixou pouco depois a sede da Prefeitura Apostólica do Congo, em 1654 ou princípios de 1655; e ali continuou sempre, confiada aos Capuchinhos, até à retirada do último religioso em 1835, 16 suas vidas pelo serviço de Deos em bem das almas desta gentilidade, tendo em seu convento a confraria de nossa Senhora do Rozario dos brancos, onde tres dias na semana se reza o terço do Santissimo Rozario; a de Santo Antonio que he a invocação do Convento; a congregação dos caza dos das Chagas de nosso Senhor Jesus Christo; a dos sol teiros do seraphico São Boaventura, a qual servem com muita devoção e dispendio, tendo em andores todos os passos da paixão de nosso Senhor Jesus Christo, sahindo todas as seistas feiras da quaresma em procissão accompanhados de muitos irmãos vestidos de suas vestias de penitencia, des calços, com muitas lanternas com astias (*) altas que vão allumiando, hindo com muita devoção correndo os passos com musica, cantando a ladaynha dos Santos, e alguns mo tetes ao ajoelhar; e ao recolher no convento, há pratica e disciplina, como têm huma e outra couza todas as quartas feiras do anno, e na ultima seista feira o descendimento da Cruz, em que prega hum dos melhores sugeitos, e sahem no fim em procissão com todos os andores, com os passos da paixão de nosso Senhor Jesus Christo, accompanhados de toda a irmandade e congregação, vestidos de vestias roxas e brancas, com cara cuberta e pés descalços, excepto os officiaes que vão compondo a procissão com suas vestias de tafetá roxo e muitos anjos vestidos e ornados com suas tunicas do mesmo, com todos os martirios; desta sorte cor rem os passos com muita devoção, cantando os muzicos aos andores as ladaynhas dos Santos, com seus motetes a todos os passos a que ajoelhão, com o Senhor morto em bem con certado andor e a Senhora atraz de vulto, levando as escadas com que se fez o descendimento, as figuras dos santos ve lhos Nicodemos, e abre Mathias, levando muitas luzes de (*) Astias — hastes. 17 lanternas, e de cantidade de cera, dispendida pela clerezia que accompanha, muitos delles irmãos, e mais irmandade; e ao recolher já de noite no convento se acha o pregador no pulpito, e faz o sermão da Soledade; não se pode encarecer a grandeza desta devota procissão, fabrica e grandeza de seu ornato, que he de muito custo. Têm tambem estes exemplares religiozos em o altar mor hum santuario de dous corpos de Santos, e outras muitas reliquias que trouxerão de Roma com que ornão tambem os altares collateraes, em seus cofres e braços dourados e pin tados, com suas vidraças patentes a todos, com o Santo Le nho em sua cruz de prata; e têm a este Reino enriquecido com muitas santas reliquias, camandolas, e medalhas de grandes indulgencias. O convento dos Padres Marianos descalços, filhos da sem par santa Thereza de Jesus de Ávilla (*) reformadora de taes filhos, não se pode relatar sua virtude e zello que têm no serviço de Deos, e bem das almas christaãs; pois com seu exemplo têm mostrado o serem filhos reformados por tal May, não fallando na antiguidade de sua religião; pois a todos he notoria vem do Monte Carmelo, e dos Pro phetas Elias e Elizeu, que assim como seu progenitor foi arrebatado naquelle carro de fogo, os coraçoens de seus fi lhos o estão sempre nas divinas contemplaçoens offerecidos a tudo aquilo que os fieis christãos os hão mister, para suas consolaçoens espirituaes, prègando a palavra de Deos com grande espirito, geraes (**) a todos nas confissoens, assim em seu convento como a todos os que os chamão para lhes assistirem em suas enfermidades, com bom exemplo e pala (*) Santa Teresa de Jesus instituíu a reforma em Ávila. Os Padres Marianos são os Carmelitas descalços de Santa Teresa. (*) Patentes. 18 vras consoladoras, mostrandolhes o caminho da salvação, assistindo até os ultimos bocejos aos que estão em passa mento; os quaes por tão conhecidos na virtude, santa pobreza e caridade com que em tudo obrão, forão mandados a este reino e cidade pela Rainha May a Senhora Serenissima Dona Luiza de Guzman, fundar este convento, para o que lhe mandou dar toda ajuda e favor da sua real fazenda para o augmento desta fabrica; e em quanto viveo se alem brou delles; mandandolhes do Reino grandiozas esmolas, em todas as monçoens, de pão e vinho e azeite, e o mais neces sario para ajuda de seu sustento, com o que a fundação (*) Igreja, dormitorios e mais officinas, ajudados da caridade christãa dos cidadoens e moradores; em breve tempo tive rão igreja e convento em boa forma (*), para nelle mora rem, em que se celebrão os divinos officios com grande de voção e aceyo; tendo sua irmandade e confraria da S." do Monte do Carmo, com juiz e officiaes, que fazem sua festi vidade, como tambem a festa da Madre Santa Thereza, e de Santo Elias, e agora novamente a de São João da Cruz, em cuja canonização se fizerão grandes festas com muito gasto dos mordomos, e fieis devotos que derão suas esmo las, para ajuda de se louvar a Deos, e a seu santo; fazendo tambem todos os annos nas endoenças bastante gasto. Estes são os quatro conventos com que esta cidade he enno brecida. A Santa Caza da Mizericordia que formou o Bispo Go (*) Com o que começaram a fundação da igreja, etc. (*) Os Carmelitas descalços vieram para Luanda em 1659. O con vento e igreja foram-se construindo desde Janeiro de 1660, na encosta e local onde está actualmente a igreja de Nossa Senhora do Carmo, que é a mesma igreja do primitivo convento e agora paroquial da freguesia do Carmo da cidade, desde 1907, e onde de há muito está erecta a V. O. Terceira de S. Francisco da Penitência. 19 vernador Dom Frey Simão Mascarenhas (*), e hospi tal (**) que fundou o zelo e piedade do virtuozo e carita tivo Prelado Dom Francisco do Soveral, Bispo de Congo e Angola, e fabrica sumptuosa, como já o Autor tem feito menção na sua Historia General do primeiro tomo, em que dá noticia da virtude exemplar deste bom prelado; sua Igreja se acabou neste nosso tempo de reedificar, como tambem o tem escripto no segundo tomo da nossa historia em o go verno de Aires de Saldanha de Menezes e Souza; e, como se descreve particularmente as grandezas desta populoza cidade, he força fazermos outra vez menção; sua Igreja se acabou neste tempo, que dizemos, com a assistencia e desvello do provedor Antonio de Buiça, e seus officiaes e mezas, servindo em dito cargo tres annos arreyo (*), vo tando sempre os eleitores nelle, em as eleiçoens que se fi zerão, em os dias que he costume, de Santa Izabel ou da Vizitação, só afim de se dar fim a obra tão magnifica e sumptuosa, dezejada de todos, ficando muito mais augmen tada, e com mayor augmento do que era; com teto todo pintado e dourado, com hum throno na capella mor de mui tos degraos, muito bem esculpidos, todo dourado, em o mais alto, a modo de camarim espaçozo para se expor a nosso Senhor pelas endoenças, e em as mais festividades da caza, e diante um painel da Vizitação, que fica todo o mais do anno servindo de porta ao camarim; e no frontispicio de todo o cima hum quadro de nossa Senhora do Amparo, e (*) Bispo do Congo e Angola (1623-1624) e governador de An gola até 22 de Junho de 1624. Faleceu emS. Salvador do Congo em 13 de Outubro seguinte. (*) O hospital já existia, como foi anotado no tômo I desta his tória, no govêrno do Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas, Naturalmente o Bispo Soveral desenvolveu-o e protegeu-o. (*) Arrego— seguidos, empregado adverbialmente. 20 nas ilhargas os afamados medicos em saber e santidade Cosme e Damião, e o altar mor em baixo com dourado e fermozo Sacrario, com mais dous (altares) collateraes aos lados, hum do Bom Jesus, e outro de Santo Thomas, Arce bispo de Cantuaria; e pelos altos, pelas bandas do corpo da Igreja vão correndo tribunas ou janellas, e entre huma e outra entalhados ricos quadros, de boas e finas pinturas, até o coro, da Raynha Santa Izabel, da de Ungria, de São João de Deos, de São Martinho partindo a capa com os pobres, e de outros Santos que forão esmoleres, e derão tudo pelo amor de Deos. No hospital se curão mais de quatrocentas pessoas todos os annos, e não he muito para a calamidade da terra, dandose a muitos delles o azougue, em que se faz muito gasto e dispendio, vizitando a muita gente pobre honrada todos os mezes (ºº), com bastante sustento, para passarem, defendendo por lettrado e solicitador assalariados muitas cauzas de prezos dezemparados, sustentandoos na prizão, e mordomo das cadeias, que attende e procura seus livra mentos; pagando capelão, coadjutor, e sancristão, medico e cirurgião, com tudo o que he necessario da botica, tendo enfermeiros bastantes e escravos do hospital para assisti rem ao serviço dos enfermos, e enfermeiros, tendo barbeiro branco em caza dentro a que se paga e negro escravo do mesmo genero para acudir em falta; muitas e boas cozinhei ras que fazem o comer dos enfermos com aceyo e limpeza, sendo providas de todo o necessario; há alguns settenta irmãos desta Santa Caza, os mais nobres da cidade, e offi ciaes honrados que fazem com muita devoção a procissão (*) E há annos que vão ao hospital mais de seiscentos enfermos, conforme os mezes de Mayo que são muito doentios nesta cidade quan do chove muito. (Nota marginal do Autor). 21 dos Passos com sermão ao sahir e recolher; e a de quinta feira de endoenças á noite, com grande quietação e silencio, levando todas as insignias da Paixão de Christo nosso Se nhor, tudo em boas ordem, correndo as Igrejas com muitas luzes de lanternas, e fugareos, assim os que vão em as tias (*), como postos por toda a parte, por onde dá volta esta procissão tão devota. Tendo esta Santa Caza duzentos mil reis de ordinaria da fazenda real de sua Alteza, e não tendo outras rendas particulares, gasta todos os annos na cura dos enfermos com os salarios que paga e mais gastos, outo e dez mil cru zados; e são alguns annos tão generozas e pias as esmollas dos fieis christãos, que fica o mais dos annos a carga pela despeza, e alguns sobeja para os que de novo entrão; pre zandose o que lhe toca servir de provedor, que sempre he dos mais possantes, e principaes cidadoens e moradores, de deixarem a despença bem provida de todo o necessario, principalmente de assucar, azeite, vinho, e vinagre, marme lada e dos mais doces de Portugal, biscouto, farinha mi moza, bejus (*), maça ou milho, e miudo para ração da escravaria da caza, farinha de guerra, tudo com grande dis pendio; e he para dar graças a Deus em terras tão remotas do nosso Portugal haver tanto zelo, devoção e caridade para com os pobres. A freguezia da Praya se foi acabando neste tempo a sua fabrica, que he tambem do padroado; com ordinaria o vigario, cura, e sancristão da fazenda Real, dando tambem para vinho e hostias. Edificio sumptuozo de boa fabrica, confraria e irmandade do Corpo de Deos, e a invocação (*) Astias — as hastes das lanternas. (*) Beiju era têrmo brasileiro dado a um preparado feito com a tapioca ou a mandioca ralada e que depois era assado. 22 de nossa Senhora dos Remedios (*) que servem os cida doens e moradores com muito dispendio de suas fazendas, havendo capellas do Bom Jesus, das Almas, e de São Lou renço, a que tudo assistem, celebrando suas festividades. Tendo outra igreja, sita na mesma Praya, dos marean tes, com a invocação do Corpo Santo e São Frey Pedro Gonçalves (**), que servem os homens do mar, fazendoselhe sua festividade, cuja fabrica se deve á assistencia e dispen dio de Manoel Correa, homem possante e hoje cazado e cidadão, que a poz no estado que se vê; igreja bastante obrada com aceyo e perfeição. Na mesma conformidade se fez e fabricou a Igreja do Precursor de Christo, São João Bautista (**), com desvello (*) A freguesia da Praia, a segunda paróquia da cidade, foi fun dada pelo Bispo, D. Fr. Francisco do Soveral, em 1628, que a erigiu na primitiva ermida do Corpo Santo da Praia de Luanda, separando assim esta jurisdição paroquial da freguesia da igreja matriz da Con ceição da cidade alta. Para esta separação e erecção teve autorização régia que havia pedido antes da sua chegada ao bispado, como consta do Alvará com o valor de Carta, datado de 15 de Abril de 1628. (Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, Chancelaria de Filipe III, Hº 22, fl. 86). A freguesia mudou-se mais tarde para a nova igreja de N. Sra. dos Remédios, que foi benzida, antes de estar acabada, em 29 de Julho de 1679, como refere Cadornega no cap. 10.º da 4.º pºº do II tômo da sua história. É actualmente paroquial dos Remédios e sé catedral do arcebispado, canònicamente erecta. (*) A invocação do Corpo Santo não se refere ao Corpo de Deus, como pode parecer à primeira vista, mas ao corpo de S. Pedro Gon çalves, que é S. Telmo. Sempre que nas Chancelarias régias aparece a designação de confraria do Corpo Santo, invariàvelmente se refere à confraria de S. Pedro Gonçalves. Nesta igreja era florescente esta confraria, pela devoção dos mareantes dos quais era padroeiro S. Telmo. (*) Esta igreja, como as da Madalena, Sº Amaro, N. Sra. do Rosário dos pretos e Corpo Santo, já não existem há muito. As de S. João e do Corpo Santo foram demolidas em 1906, já em ruínas. 3 23 e dispendio dos homens de negocio assistentes e forasteiros; e ultimamente teve seu fim sua vistoza e aceada fabrica, com a assistencia e desvello de João Rodrigues Carneiro, que entre os mais servio com particular devoção; he obra custoza em que se fez muito dispendio, e está sua benta caza, não em o dezerto onde fez este gloriozo santo peni tencia, se não na praça e melhor sitio desta cidade, fron teira ao collegio da Companhia de Jesus. A caza com invocação Nossa Senhora de Nazareth, sita entre a Cidade e Casomdama, sitio em que esteve pelo an tigo a fortaleza de Santa Cruz (**), que o Hollandez e tempo desbaratou, que como teve aquelle singular appellido, era digna aquella paragem de que tivesse em seu lugar hum tão excellente templo com tão devota invocação; que, se a fortaleza servia de defença ao canal que por ali passa para a cidade, serve também esta santa caza de defença ás inva zoens inimigas, pois a sua invocação, que se appellidou da May de Deos, Senhora de Nazareth, foi a principal cauza do vencimento de huma tão grande e assignalada victoria, qual foi a do poderozo Rey do Congo (*), como já have (*) A fortaleza de Santa Cruz foi construída pelo governador Fernão de Sousa, em 1624, pouco depois de iniciado o seu govêrno. Fazia parte do sistema defensivo da cidade e da praia, por êle man dado levantar, para segurança contra as arremetidas dos holandeses. Assim o diz nos seus relatórios manuscritos existentes na Biblioteca da Ajuda. (*) Referência do Autor à Batalha de Ambuíla. A Ermida da Na zaré tem nas paredes da capela mor quadros em lindos azulejos, alusi vos a êste glorioso sucesso das armas portuguesas. Foi há anos clas sificada como monumento nacional por portaria do Govêrno Geral de Angola. Esta Ermida já existia antes da batalha; tem sôbre a porta princi pal uma lápide em pedra, na qual se lê que foi construída pelo gover nador Negreiros, em 1664. Mas foi logo aproveitada para comemorar aquela batalha(29-10-1665). 24 mos referido em o segundo tomo da nossa Historia General das Guerras Angolanas em o Governo de André Vidal de Negreiros; e serve no dia de hoje de louvar a Deos, e a sua May Santissima, e a seus Santos, fazendolhe festivi dades; e para os gastos ordinarios de cera, azeite, ornamen tos, sustento do ermitão, deixou a caridade e devoção do Governador, hum curral de gado vacum com seus pastores negros, como padroeiro que foi desta fabrica, o qual gado pasta nos arredores de sua igreja, onde mandou fazer ca sima de pedra e cal, como poço com seu tanque, em que tem o gado onde beber, mandandolhe tambem fazer sua alameda de coqueiros e tamarinheiros, para frescura e som bra dos que vão áquella romagem, que he mui frequentada do concurso dos fieis christãos, principalmente todos os sa bados; e vão muitos sacerdotes a dizerlhe missa, por sua devoção e fazer novenas; e he a sahida mais vistoza que tem esta cidade, e segura de doença; mas como tem a con fraria dos Santos Cosmes, com juiz e mordomos, será o preservativo para ella. Na eminencia do alto, está a caza ou ermida de Santa Maria Magdalena, que com ser tamanha santa, permitte estar fora da cidade, como quem ainda faz penitencia fora do concurso das gentes, para com mais quietação alcançar graça de Deos para os peccadores, que a ella se encom mendão; em o seu dia (**) tem sua festividade de sermão e missa cantada; com seu capellão que aos domingos e dias santos lhe vay dizer missa, e ermitão que tem cuidado da limpeza de sua Igreja, e de dar as sepulturas a toda a gente nova que morre aos armadores negociantes, que vai ali a enterrar, por ser cemiterio no campo ao redor da Ermida, concignado e bento para isso, de que se paga áquelle er (*) 22 de Julho. 25 mitão, por cada cova, duas macutas de libongos (*), que valem hum tostão de bom dinheiro, a cincoenta reis cada huma, que serve para ajuda de seu sustento, com as es mollas que tira pela cidade; assistindo ao mais dispendio do anno o juiz e mais mordomos que são eleitos para ser virem a Peccadora santa, Tendo esta cidade em seu contorno e á sua vista a igreja e ermida do gloriozo Sº Amaro, que vem humas e outras a servirlhe de cordão, como sentinellas ganhadas e não per didas que a livrem de invazoens inimigas, ficando para me |lhor dizer servindo em sua eminencia de atalayas; nesta er mida ha todo o anno muita romagem, huns que vão a ella pella saude espiritual, e outros pela corporal, tendoo por sahida ao campo e passatempo, em que se derramarão muitas lagrimas, humas que sahem do coração devoto, e outras que entrão a allegralo; festeja-se seu dia com muita solemnidade, tendo capellão, juiz e mordomos; e como he ermida não lhe deve de faltar o que nas mais ha, que he ermitão, com sermão e missa cantada, e curioza e fresca armação; e o mesmo se faz a São Gonçalo que está na mesma ermida, que se não está ao longo do rio, se acha sobre o mar, e junto aos poços da agoa da Maianga. E porque se não quei xem os pretos que se passa por elles em silencio, têm sua igreija particular muito linda e bem acabada, da invocação da Senhora do Rozario, mui bem ornada com bons fron taes, pulpito, coro, e sancristia, tudo feito com perfeição, que o juiz que então era da Irmandade dos pretos, o Revº (*) As macutas que em Angola corriam como dinheiro eram, na época do Autor, os paninhos de palha a que se chamava libongos, que o gentio fabricava para servir de moeda. Só mais tarde, em fins do século XVII, foi para Luanda a pri meira moeda de cobre, no tempo do governador Henrique Jaques de Magalhães, em 1694. 26 padre Diogo Rodriguez da Silva, que assistio emquanto durou sua fabrica com seu dispendio, ajudado das esmollas dos fieis christãos, a poz no estado que se vê, tendo alem da imagem da S." do Rozario de vulto, outras, como são a de S. Bento, São Domingos, nos altares collateraes; e no da mão esquerda o Santo que, ainda que foi preto nas côres, foi mui branco nas obras, da religião dos menores do Pa triarca São Francisco, São Benedito de Palermo, Cabeça do Reino de Sicilia, onde floresceo em virtude e santidade; e não faltão Autores que digão fora natural da adusta Ethio pia, que fôra sua may natural deste reino de Angola da provincia da Quisama, que o cativarão pequeno (º); a quem festeja a gente preta, e particularmente a S." do Rozario (*), a segunda dominga de Outubro; porque em (*) É um pouco obscura a origem de S. Benedito, preto, leigo professo da Ordem dos Franciscanos reformados. Alguns Autores lhe chamaram o Mouro, dizendo-o filho de pais mouros, de ascendência africana, pretos, que viviam na Sicília e eram escravos cristãos. Apa rece nos agiológios com a denominação de «S. Benedito de S. Fila delfo», localidade da Sicília, onde nasceu em 1524, e de «S. Benedito de Palermo», onde viveu em comunidade no convento franciscano e floresceu em virtudes. Faleceu a 4 de Abril de 1589, com 65 anos de idade. Foi beatificado por Bento XIV em 1743 e solenemente canoni zado em 1807 por Pio VII. Celebra-se a sua festa no dia 3 de Abril. Logo desde o falecimento foi venerado como santo. Em Portugal tem culto desde 1600, com confrarias, imagens nos altares e festas. Não encontramos nos Autores referência à tradição da origem da Quissama para os seus pais ou avós. O nascimento do santo não chega a meio século depois do descobrimento marítimo da costa angolana. (Vies des Pères, Martyrs et autres principaux saints, edição de P. F.X. de Ram, Bruxelas, 1847, t. II, pág. 243 e seg.; The Ca:4olic Encyclopedia, Nova York, 1913, vol. II, pág. 472; Flos Sanctorum, de P. Diogo do Rosário, edição do P. Conceição Vieira, Lisboa, 1870, vol. IV, pág. 43 e seg.). (*) A devoção do Rozario começou em Bolonha por hum mara vilhozo milagre que a Senhora obrou por hum seu devoto, como o traz 27 a primeira faz a sua festividade a gente branca, em memoria da glorioza victoria que alcançou a Liga Catholica da Ar mada do Grão Turco em o Golfo de Lepanto, sendo della general Dom João de Austria, filho do invicto Emparador Carlos Quinto; que tambem era bom que os pretinhos, como naturaes da terra, tivessem sua igreja, e o seu dia, o que em toda a parte lhe he dado, em que concorre innumeravel gentio que se pode avaliar em mais de vinte mil almas, todos assistentes nesta cidade, os mais delles cazados, e de comu nhão, a mayor parte escravaria, e alguns forros, que estão acostados aos moradores desta opulenta e nobre cidade (**). Ennobrecea o ser cabeça de toda esta Ethiopia Occiden tal, sogeita ao muito alto e poderozissimo Principe Dom Pe dro, nosso Senhor, o Senado da Camara, cidadoens princi paes e moradores antigos de alguns cem cazaes de que têm produzido abundozas familias com cazas e edifícios de custo zas e sumptuozas fabricas, que a faz mais ennobrecida, os mais delles gente branca do nosso Reino de Portugal, filhos e netos daquelles primeiros capitaens mores, e conquista dores antigos, que com seu valor e á custa de seu sangue derramado estenderão a conquista destes reinos pelo sertão dentro desta Ethiopia, como o havemos relatado em a pri meira e segunda parte do nosso primeiro tomo dos princi pios das Guerras Angolanas: por cujo respeito e seus leaes e continuados serviços, se vêem hoje alguns honrados da em seu Sermão o Padre Francisco de Mendonça na sua segunda parte, (Nota marginal do Autor). (*) Foi no tempo do Bispo D. Frei Francisco do Soveral, em 1628, que se ordenou a confraria de N. Sra. do Rosário dos pretos. A igreja desta invocação era uma espécie de paroquia dos pretos; o capelão era obrigado a confessá-los e a acompanhá-los à sepultura e a fazer a catequese na língua indígena. (Biblioteca da Ajuda, códice 51-VIII-31, fl. 19-29, vol. 2º dos relatórios do governador Fernão de Sousa). 28 Real e grandioza mão de sua Alteza, com insignias nos peitos das tres ordens militares; e para ser esta cidade mais ennobrecida, lhe fez mercê do foral da cidade do Porto paraseus cidadoens gozarem de seus privilegios e izençoens, por attender a seus serviços e lealdade (**). Há outros moradores, que fazem avultar o povo com muita gente moça, principalmente mulherio, que he o que neste reino se conserva melhor, que como não experimentão ao calamidades do sol, e rigores do sertão, se guarecem (*) melhor, e, quando morrem algumas femeas, se faz disso grande espanto, ainda que a todos lhe chega a sua hora, a huns mais tarde e a outros mais cedo, conforme de Deos está determinado; e o que faz esta cidade mais opulem: a he o terço da infantaria com seu mestre de campo, tenente general, sargento mor, capitaens, e mais officiaes; hum terço, já se sabe o que lhe he dado de gente paga, huma vez mais e outra menos, conforme as enchentes ou vazantes, que con somme o clima deste reino muito, hum capitão de cavallos com seu tenente, alferes, e furriel, com huma companhia de cincoenta cavallos, montados de vistozos e destros soldados, todos armados de cravinas e pistolas, com tenente general da artelharia, com capitão, que a sabe mandar, e maneiar; capitão de fogo, ajudantes, condestables, e artilheiros, gente bastante para aquelle minister, todos pagos da fazenda real de sua Alteza, excepto o tenente general, que tambem se restrangio o soldo, com capitão enginheiro, que comia boa porção. • (*) A Provisão régia que fêz a concessão à cidade de Luanda dos privilégios da cidade do Pôrto foi publicada pela Câmara Muni cipal de Luanda e consta do seu relatório editado no folheto O Muni cípio de Luanda, Luanda, I. N., 1918, pág. 33. (*) Guarecer— defender. 29 Tem seu coronel da gente da ordenança, com sargento mor, capitaens dos moradores, estravagantes, e gente do mar; o dos moradores he sempre hum dos principaes da ci dade; esta gente avulta muito, que faz bom numero, e não se especifica, porque ora he menos, ora he mais. Em quanto à de mar em fora, há muita producção que cauza a Infan taria e outra gente particular, em falta das damas brancas, nas negras damas, de que há muitos mulatos e pardos, filhos deste genero que são grandes soldados, principalmente em as guerras do sertão contra o gentio delle: soffredores dos trabalhos, e passão com qualquer couza de sustento; e pouco calçado; delles se fazem grandes homens; e no principio da conquista destes reinos, todos ou dos mais autorizados que vierão a conquistar, excepto alguns cazaes, todos os de mais se accommodarão com mulatas, filhas de homens de bem, conquistadores, havidas em suas escravas, e outras em negras forras; e ainda hoje há descendencia muito hon rada e nobre, que em seu tanto se pode comparar com a India, e estado do Brazil, quando o grande Affonço de Albuquerque fez aquelles cazamentos em a cidade de Goa (**), cabeça daquelle imperio indiano, para assim am plificar aquella populoza cidade, e estado, cazando a muitos principaes que levava em sua companhia, com a gente femi nina daquelle Oriente, de quem hoje se vê mui fidalga ge ração; o Brazil de camarus e mamalucos (**), Angola com mulatos e pardos, que estes vêm a ser os naturais destas terraS. (*) Nas Décadas de João de Barros se vê isto muito claro; e no Epitome de Manoel de Faria e Souza. (Nota marginal do Autor). (*) Deve ser — Caramurús. Os Mamelucos do Brasil são os indivíduos provenientes dos cruza mentos de europeu com mulher aborígene Ameríndia (índios da Amé rica). Também são chamados Cabôcos ou Caboclos. 30 Há muitos homens de negocio, huns que estão de assento e outros que fazem suas viagens, alguns delles de grosso cabedal, muita producção, e gente maritima que vem em navios ao trato do negocio das peças; e se achão continua mente no porto desta cidade passante de vinte navios, huns possantes, artilhados, e outros de menor, todos mercantis; e hum anno por outro, se despachão para as praças do Estado do Brazil, e outros portos, outo e dez mil cabeças de escra vos, entre grandes e pequenos, que passão algumas por crias (**), de que se pagão os direitos aos officiaes reaes, para a fazenda de sua Alteza, de cada peça quatro mil reis e do direito novo tres, que fazem sete, e mil reis ao subsidio para satisfação do imposto do dote da Serenissima Senhora Rainha de Inglaterra (**) e paz de Hollanda (**), de que coube por repartição a estes reinos trezentos e sessenta mil cruzados, que com dito subsidio se vai satisfazendo; os direi tos novos cobra o Senado da Camara por seu procurador do conselho, que neste tempo veyo ordem real para o cobrar o feitor da Real Fazenda, e só lhe ficou a cobrança do subsidio por ser imposto do Senado da Camara ao povo para a dita contribuição e satisfação; e com o direito novo dos tres mil .reis em cada peça se ajuda a pagar a infantaria, primeira plaina desta praça, fortalezas da conquista, e reino de Ben guela, e ordinarias ecclesiasticas, e o mais a que se paga. (") Assim se chamava às crianças filhas de escravos, na lingua gem da época do tráfico da escravatura. (*) D. Catarina de Bragança, filha de El-Rei D. João IV, que casou com Carlos II, Rei de Inglaterra, em 1662. (*) O tratado com a Holanda foi assinado em 6 de Agosto de 1661, entre El-Rei D. Afonso VI e os Estados Gerais. As despesas para pagamento do dote da Raínha e da contribuíção a satisfazer à Holanda pela paz, foram rateadas entre a metrópole e as suas coló nias, cabendo a Angola o encargo a que se refere o Autor. 31 Os pataxos de cuberta que saem deste porto ao res gate (º) são muitos, huns para barlavento costa acima para o reino de Benguela, porto de Maniquicombo, Benguela a Velha, onde resgastão peças e marfim, e tambem zimbo que em Benguela se pesca, que he a moeda que corre no reino de Congo; e outros vêm carregados de sal daquelas abun dozas salinas da jurisdição do dito reino, e para sotavento costa abaixo ao porto de Pinda (*), e reino de Loango (*); e passão alguns á Ilha de São Thomé, e dahi vão tambem alguns com permissão avençados como é estillo, com os officiaes reaes della a buscar panaria de resgate á Ilha do Principe e Costa de Guiné, e chegando alguns á Mina, fortaleza de São Jorge, que trazem della algum pó, não de barro ou de terra, se não do metal que a fortuna a tantos nega (*). Outros navegão o rio Coamza entrando sua barra até á villa da Victoria de Masangano, rio acima distante qua renta legoas desta cidade, a buscar bastimentos, peças e marfim, e outras muitas couzas; outros a carregar madeira de mangue para suas fabricas, sumacas, embarcaçoens ala gadas, que entram a barra do Bengo, a encher de agoa doce (*) O significado histórico dêstes têrmos — resgate e resgatar— é, através da época do tráfico da escravatura, a operação mercantil do comércio dos escravos, da compra de negros. Em vez de se empregar a palavra própria, usava-se, na linguagem oficial e particular, dêste curioso eufemismo, como se se tratasse sempre de prisioneiros que, por humanidade, se resgatavam do captiveiro e assim se subtraíam à morte! Resgate do escravo, a que a terminologia da mesma época cha mava sempre peça. (*) Na foz do rio Zaire, hoje Santo António do Zaire. (*) O zimbo que vem de Benguela he reputado por melhor, dez mil zimbos he um Lifuco. (Nota marginal do Autor). (*) Dizemos costa abaixo por ser a sotavento dêste porto, sendo que he costa acima para a da Guiné. (Nota marginal do Autor). 32 para as agoadas dos navios dos escravos que vão mar em fóra; outras que vão ao Dande entrando tambem sua barra a carregar de lenha e madeiras, e ao rio Lifuni (*) para gasto da cidade e apresto dos navios; outras que andam á cal e pedra; e algumas champranas, que carregão pedras grossas para portaes, e cunhaes, e muitas, que entrão a barra do rio, buscar aos arimos do Bengo todo o genero de mantimento, o que se não pode esmar (º) com facilidade; isto de canoas, he huma immensidade, muitas dellas de bas tante carga. Esta he a opulencia e dispozição do porto desta Cidade, de suas fortificaçoens, seus templos e conventostão sum ptuozos, e de tanta grandeza e magnificencia, ennobrecida sempre com illustres Governadores e Capitaens Geraes, assistida de um Prelado tão virtuozo, caritativo, e exemplar; accompanhada de hum Cabido de tanto cuidado e zelo no exercicio das horas canonicas e louvar a Deos; provida de tão nobres cidadoens e moradores, e seu magnifico Senado honrado e engrandecido por sua Alteza o Principe nosso Senhor; defendida de hum terço de infantaria portugueza e bellicoza, com officiaes mayores e menores da experiencia e militar disciplina, com hum coronel e seu terço de gente auxiliar e ordenança com officiaes mayores e menores, tudo de gente veterana e experimentada nas armas; vizitada em seu porto de tantos navios mercantis; abundoza de todo o necessario para o passar da vida humana; frequentada com tantos homens de negocio, estravagantes e gente maritima; provida, por suas numerozas embarcaçoens, de todos os bas timentos, com feiras, a que chamão quitandas, cotidianas de pescado, frutas, e verdura que deleitão a vida humana; e (*) Hoje— rio Lifune. (*) Esmar— avaliar. 33 toda a mais droga do nosso Portugal se acha a vender nellas a troco da moeda que corre. Estas são as couzas que se encerrão em esta nobre e populosa cidade de São Paulo da Assumpção, chamada pelo antigo de Loanda, cabeça destes reinos e senhorios de Angola; e se o Autor que a descreve andou curto em seus louvores, ainda poderá haver alguma penna mais bem aparada e esquadrinhadora, que descubra com melhor estillo, relatando sua grandeza; e porque lhe falta ao Autor dar noticia de seu districto e commarca, con fiado na benevolência do discreto Leitor que por novidade quizer ler estas couzas, que em si enserrão estas partes tão remotas do nosso Reino de Portugal, hirá por diante, até dar fim a este seu terceiro tomo da Historia Geral Ango lana. E por ser a couza mais proxima a esta nobre Cidade a Ilha chamada da Loanda, por sua antiguidade e estar frente a ella, a qual divide um braço de mar morto, como atraz dissemos, que terá quasi huma legoa de largura, e por ser de tanta consequencia á Cidade a seu sustento, começamos por ella que he digna de se fazer particular menção. DESCREVE-SE A ILHA DA LOANDA Esta tão proveitoza Ilha tem doze legoas de comprido, começando de sua ponta que faz porto, e serve de seu am paro ás influencias do vento e furor do mar, tendo seus limites até donde chamão o Tampo, e a barra da Curimba, que está quasi em meyo, sete, e de largo meya legoa, pouco mais ou menos. Tem em si tres igrejas e huma ermida ou capella dos Reverendos Padres da Companhia de Jesus, a Igreja, invo cação nossa Senhora do Cabo, por estar sua fundação mais 34 chegada á ponta, Cabo, ou começo da Ilha, conforme o qui zerem chamar, assistida de seu capellão e ermitão, que tem o primeiro cuidado de dizer missa, e da limpeza das ima gens, e aceio dos altares, vindo o ermitão á cidade cada se mana a pedir esmolla para ajuda do seu sustento; tendo juiz e mordomos que fazem huma vez no anno sua festividade com toda a solemnidade, freguezia muito necessaria naquella paragem a respeito da muita gente forasteira e do mar que ali assiste com suas armaçoens e navios, que em descarre gando no porto sua carga, os mais possantes vão vazios para aquella banda, até lhe chegar a sua vez, principalmente os que estão a caber (º) a seu despacho, e ser ali onde se vay a fazer pelos officiaes reaes, e ouvem todos missa, que concorre numeroza gente, o dia que a ha; e vão tambem os catequizadores assistir a elles, por se acaso por descuido falta alguma gente do gentio que se embarca por bautizar, e a instruillos nos mysterios da nossa santa fé, que deve saber todo o christão; onde há poços de agoa doce, como os há em toda a distancia desta Ilha, que tomada em boa conjunção de maré serve para o gasto e para fazerem agoada para o mar, que para tudo he boa, e he huma providencia grande de Deos, que sendo esta ilha tão baixa que quasi se igualla com o livel (*) do mar, em qualquer parte que abrem naquella areia poço, se acha agoa mui clara, e he para notar e admirar esta maravilha que estando a maré pleamar, he mais doce que em outra conjuncção: mas que muito vem a ser isto, quando a divina Providencia sustenta a mais mi nima formiga, como nolo ensina aquelle douto Frey Luis de Granada em o Simbolo da fé, nós que somos criados á sua (*) Estar a caber — esperar entrada ou admissão. (*) Livel— o mesmo que «nível», mais usado do que o primeiro vocábulo. 35 imagem e semelhança, nos não ha de faltar com o sustento espiritual e corporal, este para o corpo, e o outro para a alma. Tem, distante da que se tem relatado, a igreja e fre guezia chamada de São João da Cazanga, com seu capellão e confrarias em que se faz muita festividade; e além dos freguezes, que na Ilha morão em suas quintas e fazendas, vai muita gente da Cidade por devoção, e recreio; e he das boas sahidas que há pela frescura e deleitação que nella achão, de frescas sombras, de coqueiros, tamarinheiros, e tamareiras, que enredadas as suas ramas humas com outras, evitão o rigor das influencias do sol desta zona torrida, e serve este seu amparo aos romeiros de fazerem seus magus tos sem serem de castanhas, se não de muitos e bons pre suntos e payos, e se são de Lamego os estimão mais, que os do nosso Alemtejo, por serem mais carnudos, e terem mais que comer, entrando outros bons bocados com o licor prezado que vem da Madeira, ou de Caparica, e se he de barra a barra, muito melhor e mais fresco, que sem elle não têm allegria aquellas deleitozas sombras, que se ellas re creão a vista, este rubricondo licor allegra o coração e o fortifica, quando se não vay muito atraz delle, e se uza com temperança; como nestas occasioens e romarias succede, vai pregador desta cidade a fazer as predicas e toda a mu sica e capella com grande regozijo. Em meyo das duas nomeadas, está a igreja, invocação a Senhora do Desterro, fabrica no seu tanto e grandura muito curioza, que a perfeição com que he obrada pudera ter lugar em toda a parte, assim em a devota imagem da May de Deos do Desterro, como o curiozo de Santa Maria Madalena em paçamento, de baixo do altar mor, os nichos pello acima das paredes das bandas, de Santo Antão, e Santo Onofre, e outros Santos que fizerão vida eremitica nos 36 dezertos. O zimborio do meyo, o pintado da capella e pare des, dourado de toda ella, a modo oitavada toda a fabrica, com sancristia, casas e varandas pelos lados; a portada prin cipal e frontispicio corresponde com o mais, ornamentos e aceio do altar e seu alampadario, e formoza e aprazível entrada do mar por huma ponte, parte de madeira por onde se communica, o mar por de baixo, e em maré vazia fica fazendo huma gamboa do mar que ali empoça, onde fica e se está vendo muito peixe que, com facilidade se pesca com cana ou tarrafa, sendo a pescaria certa e não duvidoza; que succedeo algumas vezes estarse pescando, frigindo, assando e comendo; he por fóra um paiz de Flandes em verdura de diversa casta de arvoredo, e de muitas romeiras, figueiras, e algumas parreiras, arvores de espinho, laranjas, limas, cidras e toranjas, guaveiras (*), araçazeiros (º) e pi tangas, muitas ervas cheirozas, como são mangericoens, man jarona, alecrim, e segurelha, cravos girvafanos, e alguns da Rochella, perpetuas, e outras boninas, muita salsa, e toda a hortaliça, couves, alfaces, rabos e nabos, sinouras, coentro e ortelaã, sebollas não têm limite, ainda que de pequena cabeça, e para adubar tudo isto que dito temos, muitos e bons meloens de boa casta, e ricas melancias. O dispendio de hum cidadão authorizado, por nome Bal thezar Figueira Borges, quiz por sua devocção deixar esta lembrança para os vindouros, fazendo na dita Igreja ca pella concignandolhe terras e fazenda para sua sustentação e do capellão; e a muita curiozidade do Padre Manoel Ro drigues, insigne pintor, e bastantemente afazendado, ambosde mão commua, se empregarão nesta santa e magnifica obra, o que na outra vida terião ambos o galardão de quem (*) GoLABEIRAs, fruto, a goiaba, Psidium Guayava Raddi. (*) ARAÇAZEIRO, fruto, o araçaz, Psidium littorale Raddi. 37 sabe tambem premiar, o que se obra em seu santo serviço e de sua Sacratissima May e seus Santos; todos os annos no dia da celebridade do Desterro, vai a mulher do dito cidadão e bemfeitor por nome Maria da Cunha, dona viuva, pessoa authorizada, filha do nosso Reino, e da mui nobre cidade de Elvas, a fazer sua festa, com todo o gasto e dispendio, levando desta cidade pregador para o sermão e a capella da musica para se cantar a missa, a que acode muita gente da cidade que vão de romaria e tem o mesmo gosto e recreyo como os que se tem dito; acodem á festivi dade de São João da Cazanga que estará distante huma da outra huma boa legoa; e em o discurso do anno se fazem para ali muitas sahidas, hindo em suas embarcaçoens li geiras que he sitio mui deleitozo e aprazivel, como se tem dito. A capella dos Reverendos Padres da Companhia de Jesus, que têm a sua quinta dos Coqueiros, frente a esta Cidade, paragem bem conhecida da gente maritima, prin cipalmente dos que vêm nas naos do nosso Reino, pois á sua vista dão todos as suas salvas de artelharia á cidade, e abatem suas bandeiras; esta dita capella serve de dizerem missa os Padres Mestres dos estudos e classes, que nos dias de sueto vão esparecer e ter seu recreyo como tambem os mais padres que como têm assistido a trabalhos da qua resma, acudindo a sermoens e confissoens, têm na dita quinta boas cazas com suas varandas ao redor, que dellas descobrem aquella Ilha e o mar de huma e outra banda, com jogo de truco (º) para seu dezenfado, em que ganhão suas coroas e veronicas, que até os seus jogos são para Deus; e têm tambem livros espirituaes em que meditão e rezão, (º) Truco— o mesmo que truque, jôgo de cartas entre dois ou quatro parceiros; ou jôgo de bolas. 38 que em toda a parte são os seus melhores passatempos; e para a sua hora de divertir, têm muitos mercurios e gazetas, e relaçoens dos sucessos das guerras das nossas fronteiras; e não são sós os religiozos que gozão este recreyo, porque quando lá não assistem, vái alguma gente principal da ci dade a passarem lá o dia com seus jantares, tendo uma es paçoza cerca com frescas sombras de coqueiros e tamari nheiros, arvores muito grandes, e copadas de grande fres quidão, que a folha e fructo he muito medicinal; e com a mais fructa, boninas e hortaliça de que havemos feito menção. Muitos dos moradores da cidade têm tambem nesta fresca Ilha suas quintas com cazas de recreação, e o mesmo que se tem dito, em que vão assistir alguns mezes do anno com suas familias, por ser aquelle mar de huma e outra banda mui abastado de bom peixe; e têm suas criaçoens para o sustento e regalo da vida, onde têm tambem seu grangeio com os xallos de cal que fazem, e salga de peixe para as armaçoens dos escravos que se embarcão de mar em fora, e fazem resgate de zimbo com a gente mixiloandas, moradores da Ilha; tendo seu capitão, alferes e mais offi ciaes da Milicia que governa a gente branca, moradora della; e tambem havia antes desta terra tomada pelo Hol landez, capitão da barra e fortaleza da Curimba, com offi ciaes, artelharia, e infantaria, que o inimigo desmantelou e arrazou, com que de então a esta parte, ficou distinguido (*). Tem tambem hum fidalgo descendente dos que o erão del rey de Congo, o qual tem nome de Governador da Ilha e gentio mixiloanda, por nome Dom Ambrozio, com outros que o accompanhão, do seu toque e fidalguia, pessoa de res peito, vestido á portuguesa, com insignia de bastão que go (*) Distinguido por extinto. 39 verna aquella nação, e obedecem a seus mandados, e elles aos do Governador e Capitão Geral, como vassallos que são do Principe nosso Senhor: he gentio numerozo, bautizados, su geitos ao jugo do santo matrimonio, e de acudirem á sua freguezia, a ouvir missa, confessar, e commungar; e quando são necessarios para o real serviço de sua Alteza, assim para embarcaçoens, que são grandes pilotos e marinheiros, ou para outro qualquer serviço, passa hum sargento á Ilha a dar recado ao negro Governador para que ordene e mande a seus subditos fação o que lhe for mandado pello Governador branco e officiaes reaes; e se não dá a expedição que he necessaria, o mandão chamar á Cidade, dar razão ou descarga, a não dar execução o que lhe foi mandado: humas vezes passa com reprezentação, e outras chegão com elle á prizão honrada, que todo este gentio se não governa, Anem obedece por amor, se não com puro rigor. São estes Mixiloandas, naturaes desta Ilha, bons pesca dores, e salgão muito peixe que vendem aos armadores com seu comado, para o sustento de suas armaçoens; e no tempo do casibo, que he frio, e verão deste reino, que vêm então arribaçoens de peixes azeites, que são como atuns e can tidade de quelmes que são cassoens, salgão muito deste ge nero, e são tantos, que dos figados fazem azeites, de que enchem muitas pipas e barris, que serve para as querenas dos navios, e mais embarcaçoens, e allumiar; ainda que tem seu fedor, he muito medicinal principalmente para curar fe ridas frescas, e mordeduras de cachorros, ou de outro qualquer bicho, escaldada a parte leza com elle faz grande effeito. As mulheres e filhas desta gente tratão de pescaria do zimbo, em que são mui destras; e já havemos relatado em o segundo tomo da nossa Historia das Guerras Ango lanas, o como se pesca, e valor que têm estes como cora çoens em o reino de Congo, razão porque se não escreve 40 novamente; he moeda de grande consequencia para aquelle reino (*). Há nesta Ilha, e nos areaes que a vazante da maré des cobre, huma casta de amegoas, a que chamão mabangas, de mayor grandura, com casca grossa, a qual se ajunta com xicacas, ou sestos que são muito bastas, e se fazem monte (º) e enchem embarcaçoens; de que (*) se fazem muitos xalos de cal, e em mayor parte da Ilha, e campo, os quaes se formão da feição de piramidas, redondas, fazendo-se-lhe o pé da largura que cada hum pode e quer, conforme sua pos sibilidade, com settenta e outenta pés de circunferência e fun damento, e se vai entrechaçando camada de lenha, camada de mabanga, levando em cada carreira sua diminuição; su bindo nesta conformidade a grande altura, que são necessa rias escadas para o hirem compondo em cima, e vem a acabar em dez ou quinze pés, conforme seu fundamento; e despois de estar em proporção lhe mettem ao redor muita palha e cha miça, e lhe dão fogo em tempo que não haja viração, para que tome fogo, e arde por igual, porque havendo vento rijo, arde mais de huma parte que da outra, e he prejudicial para não ficar bem queimado, e ter bom cozimento; desta sorte está ardendo muitos dias, até que aquella piramida ou xalo se vá por si desfazendo, e abatendo, e consome a lenha em cinzas com que se formou e misturou aquella materia; e primeiro que esfrie, despois de bem queimado, passante muitos dias, e estando já em modo de se poder tirar a cal, se vai tirando aos poucos caldeandoa com agoa doce; e há xalos destes que (*) Hum lifuco são dez mil zimbos ou coraçoens. Esta pescaria do zimbo tem seu risco, porque a muitas destas negras comem os tuba rões e tintureiras. (Nota marginal do Autor). (*) Põem em monte. (*) Isto é, das ditas mabangas. Xicaca era um pequeno cesto. Xalo era a pirâmide de mabanga ou cal. 41 bota quinhentos e seicentos moyos de cal, e outros menos, conforme seu tamanho e se carrega em lanchas, e canoas para a cidade, e val o moyo a dous mil reis, posto na sua praça; e se no xallo, a mil e quinhentos, de peça ou lettra. Vem a ser isto huma grande providencia de Deos que na casca deste marisco puzesse tal virtude para este minister, e se lhe fazerem nestas partes tão remotas tão sumptuozos tem plos, onde seu santo nome he tão louvado, e venerado; e ainda o peixe que deste
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