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CARLOS HENRIQUE CARVALHO FERREIRA JUNIOR COMO TUDO VIROU CIDADE ─ uma contribuição à história do Planejamento Urbano e Regional a partir do municipalismo na Revista Brasileira dos Municípios ─ Rio de Janeiro 2019 CARLOS HENRIQUE CARVALHO FERREIRA JUNIOR COMO TUDO VIROU CIDADE ─ uma contribuição à história do Planejamento Urbano e Regional a partir do municipalismo na Revista Brasileira dos Municípios ─ Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadora: Profa. Dra. Fania Fridman Rio de Janeiro 2019 CIP - Catalogação na Publicação Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283. F383c Ferreira Junior, Carlos Henrique Carvalho Como tudo virou cidade: uma contribuição à história do Planejamento Urbano e Regional a partir do municipalismo na Revista Brasileira dos Municípios / Carlos Henrique Carvalho Ferreira Junior. -- Rio de Janeiro, 2019. 255 f. Orientadora: Fania Fridman. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, 2019. 1. Instituições Municipais. 2. Governo Local. 3. Administração Pública. 4. Cidade. 5. Vila. I. Fridman, Fania, orient. II. Título. AGRADECIMENTOS À professora Fania Fridman, pela paciência, gentileza e generosidade. A Lucas de Melo Prado, Ana Paula de Oliveira Sciamarella, Scott Elliot Adams, Sérgio Gondim, Margareth Hisse, Ricardo Dias e, Rafael Barcellos Santos, pelas palavras e gestos de apoio e incentivo. Às professoras e ao professor membros da banca, pela solicitude ao aceitarem o convite para avaliar esta tese. Aos professores e professoras do IPPUR dos quais guardo preciosas lições. À(o)s colegas de turma, corpo técnico do IPPUR e companheiros(as) de trabalho e estudos. Ao CNPQ, pelo apoio financeiro indispensável à realização desta tese. A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas.1 1 Benedictus Spinoza. Ethica - II Sobre a Natureza e a Origem da Mente; Proposição VII) RESUMO O objetivo desta tese foi recuperar, no debate municipalista, o processo histórico de definição das instituições municipais. Partiu-se das seguintes premissas 1) as instituições são resultado de processos históricos e, 2) a influência da diversidade espacial brasileira nesse processo e nas instituições municipais criadas. O objeto de análise é o debate do municipalismo sobre a organização do país a partir dos municípios na Revista Brasileira dos Municípios, publicada entre 1948 e 1968. A relevância do documento está na pluralidade de posições que apresenta e por ter funcionado como um indexador de informações sobre matérias pertinentes ao municipalismo como Direito, Geografia, História, Urbanismo e Planejamento. Adotando a semiologia política, a noção de espaço da geografia e as palavras vila, cidade e metrópole, o foco da pesquisa foi analisar a intepretação do espaço pelo municipalismo. Constatou-se, entre outras ideias, a prevalência do Planejamento como instrumento privilegiado de organização do espaço para cumprir com um programa voltado ao desenvolvimento e ocupação do território. Findas as condições que deram possibilidade à existência da Revista e do debate, o municipalismo entrou em declínio, não sem deixar marcas nas ações de governo e estrutura do Estado. Algumas ideias do municipalismo prevaleceram como a adoção dos planos diretores, mas outras não, como a fixação do homem no campo. Assim todas as atenções se voltaram às cidades, lugar dos problemas e da disputa pela representação política necessária ao controle do Planejamento. Palavras-chave: Municipalismo. Cidades e Vilas. Planejamento Urbano e Regional. Revista Brasileira dos Municípios. Ciência Política. ABSTRACT This thesis meant to recover, in the municipalism debate, the historical process of municipal institutions definition. The research adopted the following hypothesis: 1) institutions are the result of historic processes, 2) the Brazilian spatial diversity has an influence on this process and in the municipal institutions created. The object of analysis is the debate of municipalism on the organization of the country from the municipalities in the Revista Brasileira de Municípios (Brazilian Journal of Municipalities), published between 1948 and 1968. The relevance of the document lies in the plurality of positions it presents and for having functioned as an indexer of information on pertinent subjects to the municipalism as Law, Geography, History, Urbanism and Planning. Adopting the political semiology, the geography notion of space and the words village, city and metropolis, the research focus was to analyse the interpretation of space by municipalism. Among other ideas Planning is adopted as a privileged instrument for organizing space to comply with a program focused on the development and occupation of the territory. After the conditions that made possible the existence of the Journal and the debate, municipalism declined, but not without leaving marks on the actions of government and State structure. Some ideas of municipalism prevailed as the adoption of master plans, but not others, such as the fixation of man in the countryside. Thus, all the attention turned to the cities, place of the problems and the dispute for the political representation necessary for the control of the Planning. Key words. Municipalism. Cities and Towns. Urban and Regional Planning. Revista Brasileira dos Municípios. Political Science. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Detalhe do Mapa do Município Neutro. 31 Figura 2 Vista da Fazenda Boa Vista em Banal (SP). 47 Figura 3 Plano de Villa Bella da Santíssima Trindade. 47 Figura 4 Reprodução de fachadas. Vila Particular Economizadora Paulista. 48 Figura 5 Mapa 1.10 Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas no Ceará. 71 Figura 6 Região de Influência Fortaleza (CE) - Metrópole (1C) 71 Figura 7 Quadro Comparativo dos Territórios e Número de Habitantes entre os Municípios de São Paulo e Rio de Janeiro e os Estados. 72 Figura 8 Capa da RBM v.1, n.1-2 jan./jun. 1948. 110 Figura 9 Brasil em Revista – Sobral. 116 Figura 10 Vida Municipal. 117 Figura 11 Capa da RBM v.11, n. 43-44 jul./dez. 1958 118 Figura 12 Capa da RBM v. 21 n 83-84 de 1968. 119 Figura 13 Topologia Municipal. 133 Figura 14 Ilustração - Engenho Cana Brasil séc. XVIII 145 Figura 15 Llantwit Major Roman villa, The Vale of Glamorgan. 145 Figura 16 Cidades e vilas do Brasil 153 Figura 17 Convenções Mappa do Município Neutro. 158 Figura 18 Anotações Mapa Theberge Ceará 1861 159 Figura 19 Carta Topographica e administrativa das províncias do Rio Grande do Norte e Parahiba. 159 Figura 20 Plano Segadas Viana Com Modificações de Teixeira de Fretias. 197 Figura 21 Plano Segadas Viana Com Modificações de Teixeira de Freitas. 198 LISTA DE ABREVIATURAS ABCP Associação Brasileira de Cimento Portland ABM Associação Brasileira dos Municípios ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade ARENA Aliança Renovadora Nacional CNE Conselho Nacional de Estatística CNG Conselho Nacional de Geografia CRFB Constituição da República Federativa do Brasil DASP Departamento Administrativo do Serviço Público EBAP Escola Brasileira de Administração Pública ELSP Escola Livre de Sociologia e Política FGV FundaçãoGetúlio Vargas IBAM Instituto Brasileiro de Administração Municipal IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IGHM Instituto de História e Geografia Militar IHGB Instituto Histórico e Geográfico do Brasil INEP Instituto Nacional de Pedagogia PSD Partido Social Democrático PTB Partido Trabalhista Brasileiro RBG Revista Brasileira de Geografia RBM Revista Brasileira dos Municípios REGIC Regiões de Influências das Cidades SPQR Senatus Populusque Romanus STF Supremo Tribunal Federal UDN União Democrática Nacional UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UNB Universidade de Brasília USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13 2 OS GOVERNOS LOCAIS EM ESTUDO ................................................................ 18 2.1 Revisão de literatura: teses e dissertações tendo o município ou aspectos dos governos locais como objeto ......................................................................... 18 2.2 Outra perspectiva para os estudos do Estado-local ...................................... 26 2.2.1 Município, o que é isto?.................................................................................... 26 2.2.2 Definição de uma questão ................................................................................ 32 3 UM PLANO PARA A ANÁLISE ............................................................................. 36 3.1 Municipiologia: uma proposta de análise a partir da semiologia política .... 41 3.1.1 Do estudo das palavras / signos do município ................................................. 42 3.1.2 Do estudo dos enunciados e discursos do município ....................................... 54 3.2 O espaço constituído-constituinte: uma noção de espaço ........................... 63 3.3 A escala do local ............................................................................................... 69 3.3.1 Local enquanto expressão normativa ............................................................... 74 3.3.2 O local político e social: governo local.............................................................. 74 3.4 Morfologia, memória e representação ............................................................. 87 4 O MUNICIPALISMO: MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO ............................................................................................................ 91 4.1 O IHGB como percursor de uma tradição de fóruns para “pensar o país” .. 92 4.2 Antecedentes do municipalismo ..................................................................... 98 4.3 O Municipalismo pela Associação Brasileira dos Municípios - ABM entre 1948 e 1968 ............................................................................................................ 103 4.3.1 Associação Brasileira dos Municípios - ABM ................................................. 103 4.3.2 A Revista Brasileira dos Municípios – RBM ................................................... 111 4.4 Estereótipos e enunciados do municipalismo na RBM ............................... 120 5. O MUNICÍPIO E AS CATEGORIAS VILA, CIDADE E METRÓPOLE ................ 134 5.1 A vila ................................................................................................................. 135 5.1.1 Arquétipo do espaço de produção e colonização ........................................... 139 5.1.2 Unidade básica de planejamento e administração ......................................... 146 5.2 A cidade ........................................................................................................... 154 5.2.1 Civitas, instituição política, sede da ação ....................................................... 155 5.2.2 Urbe complexa, multiescalar, objeto de planejamento ................................... 165 5.3 A metrópole ..................................................................................................... 176 5.3.1 Hierarquia das capitais ................................................................................... 177 5.3.2 Fenômeno urbano e desafio à organização municipal ................................... 183 5.4 Esboços e projetos municipalistas ............................................................... 187 5.4.1 As ideias e projetos de Teixeira de Freitas ..................................................... 188 5.4.2 Outras ideias subsidiárias para o município ................................................... 198 6 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 204 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 212 Legislação e Jurisprudência ................................................................................ 224 Documentos ........................................................................................................... 225 ANEXOS ................................................................................................................. 235 ANEXO A – Municipalistas e autores citados na RBM ............................................ 235 ANEXO B – Biografias de líderes e autores de referência do Municipalismo ......... 240 ANEXO C – Lei Pró-Município ................................................................................ 244 13 1 INTRODUÇÃO [...]Ideias se convertem em práticas, que se congelam em instituições, e que, por costume e rotina, adquirem a inércia da objetividade1 Na televisão, no jornal e nas conversas, todos nos referimos a qualquer lugar habitado como cidade. A palavra de contraste à cidade é o “interior”, seja para designar uma “cidade” longe da capital ou para tratar de um lugar qualquer que não seja essa mesma “cidade-não-capital”. Em um país cuja urbanização é recente, é intrigante esse conceito de cidade. Isso se reflete em instrumentos legais como o Estatuto das Cidades voltado para o planejamento das cidades com mais de 20.000 habitantes. Estaria aí um critério legal de cidade? Não. Um decreto da década de 1930 determina que toda sede de município tenha os foros de cidade independentemente do número de habitantes. Por imposição legal, tanto faz 50 casas em 3 ruas de um povoado ou os milhares de edifícios de Salvador, ambos os lugares, desde que sedes de um município são cidades. Por metonímia, passamos a chamar todo o território dos municípios também de cidade, aí incluídas áreas de florestas, fazendas, aldeias, quilombos etc. Isso não parece fazer sentido. Assumindo que não é provável que todos vivamos em cidades, talvez não se enxergue a não cidade, portanto a diversidade do espaço existente nos próprios municípios. Essa inquietação empírica me levou a esta pesquisa de tese. Um segundo ponto de partida tem origem ainda na monografia de conclusão do curso de Direito, na Universidade Federal do Ceará, sobre os instrumentos de democracia participativa e o município na Constituição Federal de 1988. O tema foi parcialmente retomado na dissertação de mestrado tratando a democracia participativa como direito fundamental nas constituições sul-americanas no período de redemocratização. Os caminhos escolhidos na formação em Direito contribuíram para reforçar a inquietação sobre essa diversidade espacial. O intercâmbio no curso de Administração Pública na Universidade de Coimbra e o posterior mestrado em Direito na Universidade do Vale do Itajaí, com passagem pela Universidade de Alicante na 1 Santos, Wanderley Guilherme dos. Interlúdio sobre a Profissão Terrestre. in: Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 7. 14 Espanha, trouxeram o contato com outras formasde organização do Estado, e sobretudo, outros espaços ainda mais diversos. No esforço de conciliar a formação com a inquietação empírica, colocou-se a questão: como pode um “jurista” ler o espaço? A resposta está nas instituições de Estado que regulam a produção desse espaço. O campo escolhido por mim para a discussão foi o Planejamento Urbano e Regional. Dada sua interdisciplinaridade, o campo permite a articulação de diferentes áreas do conhecimento sobre o mesmo objeto o espaço. O curso de Especialização em Política e Planejamento Urbano e Regional contribuiu para a tradução da percepção empírica em um problema acadêmico. O contato com a geografia crítica e a economia permitiram compreender os processos de produção do espaço e o papel do Estado na sua regulação. Duas constatações resultaram na monografia de conclusão do curso: a) o espaço é produzido por um processo histórico desigual; b) há disputas por trás do processo de espacialização. A desigualdade espacial reflete-se em assimetrias ou desigualdades entre os municípios na capacidade de exercerem suas competências. As linhas de pesquisa sobre essa questão convergem para os temas da federação e da centralização – descentralização do governo e administração. Tais estudos abordam as relações entre os entes federativos (União, estados e municípios) no sentido vertical (entes distintos) e horizontal (entes das mesmas categorias). Outro tipo de abordagem relaciona-se às respostas das instituições municipais às demandas sociais sobre um determinado tema ou política. A revisão de literatura presente no Capítulo 2 revela que os estudos concluem pela limitação ou insuficiência dos municípios em cumprirem suas atribuições constitucionais ou atenderem satisfatoriamente reclames democráticos da população. As explicações recorrem à base econômica fraca, à captura do Estado por grupos de interesses específicos e, a fatores de viés político e cultural. Por outro lado, a análise da centralização político-administrativa aponta que esta não tem vantagens quanto à produção de melhores resultados no atendimento de demandas públicas. Sendo assim, por que não tomar o componente político-institucional e questionar a própria formação do Estado e seus objetivos na produção do espaço? 15 Partindo desses pressupostos, adoto as seguintes premissas: as instituições municipais são o resultado de um processo histórico; e a diversidade espacial brasileira influenciou esse processo refletindo-se nas estruturas criadas. Assim o objetivo desta pesquisa de tese é recuperar nesse processo as definições para o espaço e como sua diversidade foi objeto de consideração na construção dasfra instituições do município. Na busca por referências sobre a formação das instituições municipais, a pesquisa se deparou com a categoria municipalismo no artigo “Municipalismo, nation- building e a modernização do Estado no Brasil” de Marcus André Melo. Essa categoria foi fundamental para a determinação do recorte temporal e a base de dados desta tese. A partir dela cheguei à Associação Brasileira dos Municípios (ABM) e à Revista Brasileira dos Municípios (RBM). O municipalismo também serviu para identificar uma série de agentes que, através de ensaios, discursos e teses debatidas em congressos e publicados na Revista, elaboraram propostas para o município a serem efetivadas pelo Estado brasileiro. Enfatizo que as ideias municipalistas guardam em comum pensar a organização do Estado desde a base municipal e o reconhecimento da diversidade geográfica, aí incluídas as características sociais e econômicas. Assim, identifiquei o objeto desta tese com o debate do municipalismo sobre a organização do Estado e, na RBM, a fonte material da pesquisa. Dediquei o Capítulo 3 ao desenvolvimento dos principais referenciais teóricos adotados. O primeiro é a semiologia política, utilizado para a leitura dos textos da Revista. Trata-se de um recurso analítico do campo do Direito que busca identificar, nos agentes e no contexto em que os discursos são enunciados, os sentidos possíveis para as palavras que empregam, assim pretendo situar as ideias sobre o município no recorte temporal e ao contexto de quem as produziu. Outra importante referência para esta tese é a noção de espaço da geografia que o entende como um conjunto de ações e objetos mediados pela técnica, no qual a história se dá. A RBM publicada por 20 anos, entre 1948 e 1968, deu o recorte temporal que implicou em um afastamento histórico. Ainda no Capítulo 3, tomo a ideia de longa- duração que explica a noção de processos/estruturas da Escola dos Annales. Essa concepção serve para desenvolver a hipótese das instituições municipais como parte 16 de um longo processo histórico que pode ser recuperado através de fontes documentais. Para identificar a diversidade espacial nos textos da RBM, escolhi indicadores adotando o conceito de morfologia da sociologia. Esse conceito expressa tanto uma forma de organização política quanto um arranjo específico de atividades e objetos no espaço. Assim, cheguei a três palavras, além do municipalismo, enunciando o espaço a partir dos textos da Revista, são elas vila, cidade e metrópole. Os resultados são apresentados a partir do Capítulo 4, onde situo o municipalismo como expressão do pensamento político brasileiro, recuperando a tradição histórica de intuições de produção de discursos sobre o país como o IHGB. Neste sentido, é abordada a formação da ABM como um ente de intermediação entre Estado e sociedade civil. Aponto também para a importância da Revista como documento enquanto indexadora de informações sobre o debate de formação do próprio país. Ainda neste capítulo abordo os múltiplos sentidos admitidos pelo municipalismo como fórum, movimento político e ideia de organização político- administrativa. No capítulo seguinte, apresento os resultados da pesquisa utilizando os sinais vila, cidade e metrópole. Esses resultados traduzem a compreensão de espaço assumida pelos municipalistas analisada em mais de 80 textos de diversas autores e áreas, abordando uma ampla variedade de assuntos, publicados nos 20 anos da Revistas. Os textos revelam também as propostas municipalistas a partir do território brasileiro e para esse mesmo território. Os resultados apontam que ABM propiciou a criação de um verdadeiro fórum cívico de discussão, composto por indivíduos de índoles políticas bastante contrastantes, desde membros do Partido Comunista Brasileiro a integralistas, passando pelas correntes intermediárias de sociais democratas, liberais, trabalhistas e até a velha oligarquia agrária com quem o municipalismo sempre foi associado. Mais do que isso, instaurou-se uma esfera pública, ainda que de acesso condicionado, onde se debateu sobre a melhor forma de Estado para acomodar os interesses e problemas de um espaço tão diverso como o brasileiro. O Planejamento que, na época era visto como a melhor técnica de intervenção no espaço, foi adotado pelo discurso do municipalismo cujas teses acabaram por contribuir para a difusão e aperfeiçoamento do próprio Planejamento no Brasil. 17 Com o fim das condições democráticas nas quais o fórum municipalista fora criado, o debate é abruptamente interrompido em 1968. Neste sentido, a alteração da lógica das relações entre metrópoles, cidades e vilas, objeto de considerações municipalistas, deixa de ser questionada, e alguns de seus prognósticos se confirmam. Os campos se esvaziam e as cidades “incham”, fazendo com que cada vez mais as atenções se voltem para as cidades, abandonado as demais categorias. Esse resultado me levou a elaborar a provocação no título desta tese “(Como) tudo virou cidade”. Os prognósticos e planos dos municipalistas apontavam para outro quadro na espacialização brasileira. Além das conclusões, outros três produtos foramgerados pela pesquisa e encontram-se nos Anexos A, B e C. Em A está a lista de todos os autores citados na RBM, municipalistas ou não, e de envolvidos nas atividades da ABM, organizada em ordem cronológica. Também trago um resumo contendo informações sobre as atuações de cada pessoa listada. Em B, apresento biografias resumidas de personagens representativos do movimento municipalista e de intelectuais com trabalhos tomados como referência pelo movimento. O último anexo contém transcrição de parte da Lei Pró Município, o projeto mais representativo das ideias do municipalismo para a organização do país. Algumas notas formais sobre a organização do texto. Fez-se necessário adotar alguma forma que distinguisse o texto analisado no documento (RBM) e as demais referências. A solução foi adaptar as regras da ABNT. No elemento pós-textual, há uma seção Documentos, contendo as referências de todos os textos citados da RBM, organizados em ordem cronológica de publicação. Até a data de conclusão da tese, os números encontravam-se disponíveis na biblioteca digital do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 18 2 OS GOVERNOS LOCAIS EM ESTUDO [...] o problema não é mais a tradição e o rastro, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos. (FOUCAULT, 2008, p. 6) O que estudar tomando município como referência? Neste capítulo, recuperam- se trabalhos acadêmicos que o tomam como categoria ou palavra-chave. O objetivo é situar o objeto analisado nesta tese dentro do contexto em que se desenvolve. Trata- se do próprio debate sobre a definição das instituições e características funcionais do município no Estado brasileiro. O capítulo conclui-se apontando a linha de investigação adotada pela tese. Essa linha conduz para outro momento no qual o município foi tema de intensa produção, se não acadêmica, discursiva, retórica e política, com uma profusão de artigos, pareceres e sobretudo propostas que, em alguns casos, se traduziram em projetos publicados principalmente em revistas especializadas. Essa linha é que terminou por condicionar a adoção da perspectiva histórica. 2.1 Revisão de literatura: teses e dissertações tendo o município ou aspectos dos governos locais como objeto Os acervos digitais, públicos, disponíveis na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, na Universidade de São Paulo – USP e na Fundação Getúlio Vargas – FGV foram as bases consultadas. A USP e a FGV contam com trabalhos desde 1940, já a CAPES disponibiliza teses e dissertações defendidas a partir de 2013. A busca para selecionar teses e dissertações, nas áreas de Administração Pública, Direito, Ciência Política, Urbanismo, Geografia, além do Planejamento Urbano e Regional, foi realizada inserindo a palavra município no campo “palavra-chave” dos formulários de busca. Desconsiderando os trabalhos que tomam o município como delimitação geográfica ou topônimo2, ou seja, sem tratar o município instituição como objeto de estudo, encontraram-se 17 trabalhos (teses e dissertações) dos últimos 23 anos (1994 – 2017) elaboradas nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. As pesquisas foram desenvolvidas em 5 instituições de ensino superior: Universidade de Brasília, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2 Por exemplo: Articulações entre governo local e sociedade civil em torno do desenvolvimento da pesca artesanal: estudo de caso no município de Ubatuba-SP (Ribeiro, Gabriel Martim Jacintho, 2017) 19 Universidade Federal do ABC, Universidade de São Paulo, e a Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro e São Paulo). Os programas de pós-graduação envolvidos são das áreas de Geografia (USP), Ciência Política (USP), Administração Pública (FGV), Direito (UNB) e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Sobre o conteúdo, as investigações questionam o desempenho e a adequação das soluções político-jurídicas e administrativas para os problemas envolvendo o município. As obras selecionadas incorrem em algumas linhas estruturantes para suas hipóteses, como a centralização versus descentralização, autonomia política e autonomia fiscal e financeira. Comum aos estudos, está o objetivo de verificar a eficiência na realização de atribuições municipais, por vezes não muito bem fundamentadas para além de uma norma ou sua interpretação, porém defendidas em pelas pesquisas como as mais adequadas conforme um determinado referencial de administração. Há também outras hipóteses que evocam argumentos técnicos para propor aperfeiçoamentos aos referidos modelos administrativos. Tomando o tipo de problemas abordados pelos trabalhos, foi possível organizá-los em três grupos não estanques. O primeiro agrupamento é composto por trabalhos de revisão das instituições e seus fundamentos jurídicos, políticos e sociológicos. Nesse grupo, destaca-se a tese sobre a difusão de modelos gerenciais pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (SILVA JR., 2014). O trabalho reafirma que muitos dos temas e soluções adotados pelas correntes municipalistas brasileiras desde os anos 1940 estão pautadas por uma agenda internacional, particularmente pan-americanista, de difusão de práticas e modelos de administração do espaço local voltadas para determinados interesses de agentes econômicos. Tal ideário tem, segundo a tese, reflexos também no campo acadêmico e na produção teórica sobre administração pública, pois contribuíram para a construção das noções de desenvolvimento territorial e econômico, organização social, além referenciar quais as funções e quais resultados esperar das administrações locais. Esses propósitos aparecem também em Orozco (1994), ao reproduzir muitas das ideias de seu orientador, um destacado estudioso municipalista, Diogo Lordello de Mello, um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Administração Municipal e dos primeiros brasileiros a ter formação em administração pública nos Estados Unidos pela Universidade da Califórnia - Los Angeles (UCLA). O trabalho restringe-se à 20 questão municipalista tradada como um problema de autonomia e de descentralização de funções públicas, resolvido com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que fora alçado a ente federado. Restando, portanto, apenas a tarefa de aperfeiçoar os instrumentos de administração das competências recém adquiridas e os termos de cooperação entre os entes federativos. Grin (2016) e Pinto (2007) produzem teses sobre questões federativas e aspectos institucionais na gênese das atribuições dos municípios. Para discutir sobre as capacidades estatais e a eficiência da gestão local, no caso das regiões metropolitanas. A questão metropolitana e a busca pela solução que melhor defina os arranjos interfederativos refletem o aspecto multiescalar que o estudo dos governos locais suscita. Garcia (2006), por sua vez, descreve o funcionamento das relações políticas dentro das próprias instituições municipais, analisando a formação de coalizões entre Executivo e Legislativo e a composição das câmaras de vereadores. No entanto, esse estudo não questiona o próprio formato institucional, nem de que modo ele interage com o espaço no qual se constitui. Essa perspectiva é contraposta pelo argumento de que se trata de uma aceitação acrítica de um modelo de representação política que, como referido em Silva Jr. (2014), não é necessariamente uma solução democrática. Para Orozco (1994), trata-se de uma adaptação e até mesmo imposição desde fora e de cima, sob o argumento de uma suposta racionalidade instrumental facilitadora das relações burocráticas. Ainda, essa racionalidade estaria pouco preocupada com a legitimação das instituições de governo do território local.3 Continuando com os trabalhos tematizandoas instituições locais, Cavellani (2015) disserta sobre requisitos territoriais para a criação de municípios. Há o objetivo de compatibilizar suas funções político-administrativas, bem como suas atribuições quanto ao provimento de bens e serviços públicos, com o território efetivamente agenciado pela população. O geógrafo entende que os problemas para a boa administração dos serviços de caráter local são os municípios cujos territórios sejam demasiadamente grandes ou cujas sedes, onde se concentram as atividades de 3 A democracia dos modelos – ou modelos para a democracia – é objeto de Santos Jr. (2000) e Arenas (2014), agrupados no terceiro eixo, abordado mais adiante. 21 interesse público, estejam inconvenientemente posicionadas em relação ao território e às demais sedes mais bem estruturadas. Essa perspectiva não é de todo inédita, entretanto traz dados empíricos e continua uma discussão feita ainda nos anos 19504. Desse rol de teses e dissertações sobre a organização institucional, a questão levantada por Benício (2016) é a que mais se aproxima de um dos pressupostos desta tese: a de que há uma diversidade fática das construções espaciais em relação às suas características sociais, políticas e materiais. O jurista, tratando da autonomia e interdependência dos municípios em matéria de ordenamento territorial urbano ante os demais entes, reconhece a assimetria dos municípios brasileiros. Esse tema é recorrente nos estudos federativos no país. Arretche (2012) é uma das investigadoras que mais recentemente o vem estudando. Essa assimetria é objeto de reflexão das discussões municipalistas presentes nas fontes pesquisadas, sendo inclusive apontada como a condição de partida e variável importante dos problemas identificados. Para Benício a política de ordenamento territorial, tal como outras políticas setoriais, como saúde, assistência social, proteção e licenciamento ambiental, deve configurar um sistema nacional. Esses sistemas têm níveis de autonomia e gestão galgados através da certificação da capacidade técnica e material dos municípios para realizar os respectivos serviços. Essa certificação é feita por agências reguladoras dos Estados e da União. Essa ideia é semelhante às discussões de Arretche (2011) no sobre o tratamento dos problemas causados pela centralização de políticas públicas na organização de um sistema nacional de proteção social. Sistema esse que poderia vir a incluir um subsistema de habitação (ordenamento territorial?), que nos anos 1990, enfrentou – e ainda enfrenta no século XXI – os desafios decorrentes da descentralização após a Constituição de 1988. O que difere essa posição dos demais estudos é a constatação de que [...] a verdadeira autonomia municipal pressuporia adequação à realidade de fato, o que não pode ser antecipado, de modo geral e abstrato, segundo um modelo único de gestão aplicável nacionalmente (BENÍCIO, 2016, p. 192). A conclusão de Benício (op. cit.) assume que não se pode julgar um modelo pelo que poderia ou deveria ser, sem considerar como efetivamente funciona uma vez 4 A exemplo do ensaio O Município e Seus Problemas: Gênese, Estrutura e Destino (RBM v21 n.55- 56 jul./dez. 1961). 22 aplicado e como possa ser modificado pela prática. Contudo, o tema não é desenvolvido, havendo apenas a citação, em nota de rodapé, quanto à sugestão de permitir que os municípios tenham maior liberdade para escolher seus modelos de organização, tal como nos EUA, reproduzindo alguns exemplos da variedade de arranjos lá existente Não são mencionadas, por exemplo, as bases de formação dos entes político-administrativos locais dos EUA que se dão em mais níveis de atribuições e autonomia do que no Brasil e estão a cargo dos estados (ALMEIDA, 2009). As referências a autores do Direito como José Afonso da Silva (Direito Urbanístico Brasileiro) estabelecem um ponto de partida que não questiona a formação de sentidos das normas, nem dos seus conteúdos ideológicos. Benício (op. cit.) chega a citar Jane Jacobs5 sobre a inadequação do formato institucional das grandes cidades que acabam administradas como se pequenas fossem. Portanto, incapazes de lidar com problemas peculiares às grandes escalas. O autor refere-se também à Carta das Cidades Educadoras6 da Associação Internacional das Cidades Educadoras (1990) para qual: [...] a cidade deve ser um espaço formador de individualidades baseadas na cidadania e de sociabilidades fundadas na diversidade, na tolerância e no convívio construtivo e, também, um espaço preocupado com a memória, a cultura democrática e a solidariedade (NIANILI; LEVY, 2016 apud BENÍCIO, 2016, p. 60). (grifos meus) O recorte apenas sobre as leis de loteamento e dos chamados condomínios urbanísticos não alcança a questão da diversidade morfológica, mesmo levando em consideração apenas o ambiente urbano. Não há referências sobre como se dão os parcelamentos e os loteamentos fechados (chamados de condomínios urbanísticos) contrariando normas e tipos urbanísticos ideais. Essas seriam expressões materiais das morfologias7 e/ou a dimensão espacial de sociabilidade presentes nos municípios brasileiros refratárias à diversidade, decorrentes da desagregação do espaço público e com a perda de representatividade espacial das instituições políticas locais? A conclusão do autor é a de que a instituição municipal deve ser aperfeiçoada apenas 5 Morte e Vida de Grandes Cidades 2000 publicação original 1960 6 A Carta está disponível em: http://www.edcities.org/rede-portuguesa/wp- content/uploads/sites/12/2018/09/Carta-das-cidades-educadoras.pdf Acesso em: 15 ago. 2019. 7 O que neste capítulo é tratado como sociabilidades, no capítulo 3, é abordado como morfologia. Não são sinônimos. Sociabilidade e morfologia são perspectivas de observação diferentes sobre o mesmo objeto, agrupamentos humanos. 23 no que tange aos seus instrumentos de atuação, posto que presume ser a que melhor representa politicamente os grupos sociais que nela vivem. O segundo eixo de pesquisas é aquele agrupa o maior número de trabalhos. São teses que tratam sobre o desempenho de políticas públicas e de instituições municipais e correlatas – em geral, trabalhos desenvolvidos nos campos da economia, ciência política e da administração pública. Para além dos trabalhos identificados nas áreas elegidas, encontra-se também uma grande quantidade de pesquisas (mais de duzentas) em áreas como saúde pública, educação, engenharia (ambiental, de transportes, civil) que analisam a performance das instâncias municipais nos respectivos campos. Nesse grupo, incluem-se os já citados trabalhos de Benício (2016), que leva a cabo uma avaliação da capacidade municipal de regulação do uso do solo. Pinto (2007) que termina por ponderar a eficiência da gestão municipal em arranjos metropolitanos, assim como o de Grin (2016), discutindo performance de modelos de gestão no horizonte de um desejado federalismo cooperativo. É recorrente a presença de análises estritas de mecanismos de ação de políticas públicas (SOUZA, 2012), questionando sua eficácia quanto à autonomia, à descentralização, à capacidade financeira, aos instrumentos legais e a arranjos como os consórcios municipais (TAVARES, 2016 e BARBOSA, 2013). Em se tratando da cooperação entre municípios na forma de consórcios, há trabalhos que analisam a eficácia dos instrumentos e sobre a efetividade dos resultados obtidos com tais arranjos. Alinham-se aos primeiros, o de Tavares (2016), sobre a gestão de resíduos sólidos, e o de Barbosa (2013) sobre a eficiência dos consórcios intermunicipais para o atendimento de demandas por políticas públicas. Alinhado à segunda perspectiva, está Souza (2012) estudando as potencialidades dos consórcios em políticas redistributivas, ou seja, como a cooperação de municípios impacta no acesso aserviços e na melhora dos indicadores sociais de seus habitantes. A capacidade financeira e a descentralização aparecem recorrentemente nesse eixo. Verifica-se aí a sempre repetida questão da viabilidade municipal dada a repartição fiscal e financeira vigente (VESCOVI, 2003) e pela eficiência na aplicação de recursos quando restabelecida a descentralização (GRAF, 2015), acompanhada pelo tema correlato da autonomia. A autonomia é objeto de Franzese (2005) que argui 24 como os três entes — município, estado e União — interagem sobre um mesmo lugar. Compara os alinhamentos entre os governos através de instrumentos de cooperação voluntária, revelando as possibilidades e limitações para os municípios administrados por partidos iguais ou diferentes das esferas mais abrangentes. Com isso pretende demonstrar que os limites da autonomia esbarram na necessidade de cooperação, principalmente para as políticas não integrantes dos sistemas de transferências obrigatórias de recursos (saúde e educação) além dos programas de habitação. Ainda dedicados à eficiência ou qualidade dos modelos de gestão de políticas públicas, podem ser citados os trabalhos de Santos Jr (2000) e Costa (2008). Ambas teses abordam a municipalização dos sistemas de planejamento e dos serviços públicos de interesse social mais imediato como uma questão a ser resolvida pelo aperfeiçoamento de mecanismos de transparência e pela ampliação da participação democrática. Estes trabalhos, entretanto, não chegam a questionar os fundamentos dos modelos de serviços públicos aos quais se referem como ideais. Assumem a urbanização como um fato onipresente, que produz o mesmo efeito de “desenvolvimento combinado e desigual” em toda parte, reduzindo a percepção apenas às categorias de inclusão ou exclusão de acesso aos bens e serviços que o município, em tese, deve prover. Não há menções à variabilidade morfológica, todos os municípios ou são apenas ricos ou pobres, periféricos ou centrais. As categorias rural e urbano são as únicas acionadas, legando sempre ao rural a conotação de atraso ou fora do escopo das ações que não sejam no sentido de urbanizá-lo. Por outro lado, tais trabalhos acabam por apontar as insuficiências do modelo único de gestão do espaço em escala local no Brasil, e que os esforços homogeneizadores encontram sérios obstáculos. O terceiro eixo temático dos trabalhos sobre a municipalidade aponta para uma linha decorrente do diagnóstico de insuficiência das instituições locais. Essa linha aposta na adequação democrática do município e dos seus instrumentos de ação, discutindo a representação política nos órgãos existentes. Aí está Silva Jr. (2014), propondo uma ampliação na discussão sobre os modelos de gestão para um planejamento mais inclusivo. As conclusões de Santos Jr (2000) e Costa (2008) apontam as opções de formas democráticas de gestão e produção do planejamento pela participação de entidades representativas em conselhos deliberativos setoriais, 25 assim como o desenvolvimento de mecanismos de representação e de democracia direta. Neste conjunto, o trabalho de Arenas (2014) que busca comparar os entes político-administrativos locais do Rio de Janeiro, Medelín e Londres para analisar o grau de representatividade da população nas instituições locais. Primeiro, há que se ressaltar que Arenas compara entes de natureza diferente: o que entende como o equivalente ao município de Londres está em um nível intermediário entre os governos regional e local8. Trata-se do governo metropolitano de Londres subdividido em entidades menores que historicamente estão mais próximas do que entendemos por município. Outro ponto relevante é que tais entidades não são simétricas entre si, demonstrando uma variabilidade nas atribuições e funções conforme o desenvolvimento histórico particular de cada uma. Por outro lado, as conclusões de Arenas são contundentes quanto à baixa representatividade espacial e à alta concentração de poder em um grupo pequeno de “oficiais” (representantes políticos) locais no Rio de Janeiro. Em Medelín e Londres, existem instâncias inframunicipais (de acordo com o referencial adotado pelo trabalho em questão) capazes de articular demandas de interesse mais imediato e de garantir no quadro institucional mais abrangente a representatividade dos diferentes grupos dessas cidades. Mas Arenas não chega a identificar no não reconhecimento da diversidade de sociabilidades uma possível razão para o distanciamento da representatividade de determinados espaços no Rio de Janeiro, e para o esvaziamento do poder político de algumas instâncias inframunicipais em Medelín. Ao mesmo tempo, deixa de aprofundar quanto à variabilidade das atribuições dos entes que compõem à Grande Londres tratada como município. A começar pela própria Cidade de Londres, ente que guarda funções bastante peculiares com relação aos demais, ligadas às atividades econômicas, o que parece ser um indicativo de que se trata de uma forma de sociabilidade preservada e privilegiada. 8 A pesquisa recupera a formação histórica do ente, mas passa ao largo das diferenças conceituais da matriz anglo-saxã para a matriz ibérica e dentro desta da portuguesa e espanhola. Não se trata apenas de identificar os nomes diferentes para entes equivalentes, são trajetórias de organização do Estado distintas. Não é suficiente dizer que os municípios sul-americanos devem sua forma apenas ao processo de colonização para justificar porque são diferentes do inglês, se assim o fosse, faltaria uma comparação com Espanha, Portugal e Inglaterra contemporâneos para prová-la e ainda entre os países das Américas. 26 Seja a uniformidade política, a centralização excessiva, a inadequação dos instrumentos, a insuficiência dos recursos ou a falta de democracia, os trabalhos não questionam a institucionalização do município pelas demais instâncias do Estado como uma espacialidade que não reconhece outras hierarquias, nem outros arranjos institucionais e socioespaciais diversos do que está atualmente legalmente estabelecido. 2.2 Outra perspectiva para os estudos do Estado-local Os trabalhos levantados no item anterior apontam para os limites das instituições municipais sem, entretanto, questionar a formação dessas instituições ne do ente político município. Sugiro, portanto, a alternativa de recuperar as ideias que contribuíram para o desenho que tais instituições assumem. A justificativa é: as instituições como as conhecemos não são imutáveis e, tal qual as palavras que as nomeiam, estão passíveis de transformações de sentido e função, ainda que algo de seus fundamentos e elementos de identificação permaneça. Se o município pode ser identificado como uma dessas instituições, então é possível inquirir como atingiu o formato atual. É o objetivo dessa pesquisa, levantar o processo de construção da compreensão que temos de município. Como objetivo secundário, a investigação de evidências que expliquem por que, mesmo diante de um espaço diverso ─ situação na qual seria esperável o desenvolvimento igualmente diverso de soluções administrativas e de governo ─ prevalece um único regime, ao menos no plano formal-jurídico, de organização desse espaço. 2.2.1 Município, o que é isto? A palavra município tem uma longa história de definições para as distintas representações que deste signo se apropriaram. Algumas com caráter adjetivo, outras que a igualam a um tipo de topônimo e as que dão o sentido de instituição. Retrocedendo a Portugal dos séculos XV a XVIII, o emprego de “município” dá- se como uma distinção honorífica às vilas e cidades cujos habitantes gozaram da cidadania romana e de suas respectivas prerrogativas. Somente a partir do século XIX, observa-se um deslocamento de sentido, passando a ser também um substantivo equivalente ao poder local que até entãoera quase sempre designado por “conselho”, e que ainda hoje permanece como seu sinônimo na Constituição portuguesa. Outra 27 forma adjetiva utilizada denotava uma distinção entre os munícipes (e os serviços urbanos dos Conselhos) em relação aos habitantes dos campos e suas atividades. A explicação para a mudança aparece com as novas releituras como a de Alexandre Herculano que, em 1874, alçará o município à base da formação do Estado português, contribuindo para a definição contemporânea de circunscrição administrativa local (PINHEIRO, 2014). Já no Brasil, a palavra pouco foi empregada até o momento da independência, quando passou a evocar aspectos de sua origem no esforço de construir uma nova instituição administrativa do Império representativa da autonomia local então reivindicada e da unidade nacional desejada. Isto porque até então este Estado local se dava através das cidades, sempre reais, e das vilas estabelecidas com prerrogativas e obrigações singulares, sem qualquer uniformidade mútua9. (PEREIRA, 2014). O município enquanto um ente do Estado é expressão da organização social e de poder político. O Estado define-se por um conjunto normativo que enuncia seus elementos constituintes, nomeadamente, o povo , o território, o governo (pessoas e instituições dotadas de instrumentos de ação e relação sobre os demais elementos). A esse conjunto normativo estatal foi investido um caráter jurídico. Tal Direito passou a legitimar-se pela tese contratualista a partir de um mandato decorrente da ideia de soberania popular ou nacional ou, segundo teses como a marxista, pela força do poder político-econômico dominante sobre determinado território e sociedade. A própria fundamentação invocada para a legitimação do ordenamento jurídico adotado, melhor explicado adiante, diz muito das relações de poder em uma sociedade e sobre quais bases se assentam. O Direito diz de como se pretende organizar as relações de um território com a sociedade através de instrumentos normativos disponíveis a uma ou mais instâncias de governo equipotentes ou não. Por outro lado, pela própria natureza do Estado, a norma – lei escrita ou de costume – é uma consolidação de relações de poder da sociedade. Isto não impede que haja outras propostas, ou mesmo expressões dessas relações que não chegam a tomar a forma de lei, mas que igualmente determinem a 9 Uma distinção entre os dois tipos é que as cidades se davam sempre em terra alodial, ou seja, livre de quaisquer foros, vínculos e ônus como nas vilas fundadas em terras de capitanias e outras concessões (AZEVEDO, 1992). 28 formação do espaço. Ou também sugira outras configurações, pois que decorrentes de instâncias de poder não reconhecidas no Estado. Sendo assim, o município é uma expressão jurídico-política de espacialização, há outras que não chegam a se tornar Direito, mesmo que tenham força política. A modernidade e o constitucionalismo moderno10 legaram uma proposta de racionalização e sistematização dessas relações de poder e sua normatividade da qual decorre o “casamento” entre Estado e Direito. Não cabe discorrer aqui dessa "concepção normativa do mundo". É bastante elucidar que essa concepção é oriunda inicialmente do jusnaturalismo clássico que explica a ordem e o Direito sobre as coisas e as relações humanas a partir de um plano metafísico, divino, seguida do jusnaturalismo racionalista que procura o fundamento do Direito na razão humana ou na ordem das coisas da natureza através de relações de causa e efeito. (STEUDEL, 2009, p. 47). Podemos assumir que ambas são justificativas para relações de dominação e poder entre pessoas e destas com o espaço através de territórios. A principal forma de expressão dessas relações, desde então, são as constituições ou “conjuntos de regras (escritas ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem político-jurídica, num determinado sistema político-social” (CANOTILHO, 2003 p. 53). As Constituições modernas caracterizam-se pela formalidade, quer dizer, estão organizadas em documentos que se intitulam ou são designados como parte ou o todo de uma Constituição nacional, o que levou, na maioria dos países a partir dos séculos XVIII e XIX, à codificação. Isso significa que há textos relativamente coesos contendo todas as normas que enunciam a organização dos respectivos Estados. O município, como parte do Estado brasileiro, está enunciado em seus textos constitucionais e naqueles que lhes servem de complemento – leis interpretativas, complementares, ordinárias, decretos etc. Entretanto, como reiteradamente aparece, esse concerto normativo é político-jurídico, portanto, também é resultado de relações sociais, políticas, econômicas e culturais. O Direito, novamente, consolida uma versão ou uma síntese de versões dessas relações institucionalizando-as, tornando-as 10 Que aqui é entendido como “[...] a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade” ou o “movimento político, social, cultural” que no século XVIII, questionou política, filosófica e juridicamente o arranjo de domínio político vigente, consoante a proposição de uma nova forma de organização e fundamentação do poder político. (CANOTILHO, 2003 p.51-52) 29 referência da realidade que se espera constituir, isto é, o que pelo poder político instituído, deve ser. O dever ser (sollen) em oposição ao ser (sein) é uma construção importante no âmbito do positivismo jurídico que revela a própria fragilidade de uma argumentação racional ou a possibilidade de uma epistemologia jurídica. Isso porque não há um fundamento ontológico empírico para as normas. Uma inferência entre normas é logicamente válida, todavia a validade das normas não depende desta inferência. Como toda a argumentação é construída sob a existência de uma “norma hipotética fundamental”, ela não existe senão por um ato de vontade, ruindo assim a dicotomia ser – dever ser (RABENHORST, 2005). Nesta tese, identifico essa vontade como um ato de poder sobre o outro, abordado pela ideia de semiologia política que o revela na instauração de uma linguagem que nos afeta pelo controle dos sentidos e do que é ou não reconhecido pela palavra. Assim, é o texto dessas normas, especialmente as que expressa ou implicitamente enunciam e descrevem o município, suas atribuições, funções e características a primeira fonte de análise desta investigação, o que contempla a minha terceira proposição. As palavras ou elementos de referência que melhor definem município são os termos “local” e “governo municipal”, como se vê desde a Constituição de 1824 até a de 1988, e antes ainda, delineado nas Ordenações do Reino. E nos lugares onde por foral o Alcaide há de ser eleito pelo Conselho [Câmara], sem que o apresentem ao Alcaide Mór [...]Porém não é nossa intenção de tolher os Concelhos de seu direito, onde a eleição dos Alcaides a eles pertença, e o Alcaide Mór reconhecerá o por eles apresentado; porque onde os Concelhos estão em posição de assim o fazer, mandamos que assim se faça (transcrição) 11 A palavra alcaide, de origem árabe, designava entre os muçulmanos na Península Ibérica o governador de uma praça ou de uma província. Formada pelo artículo Al e Caydum, que deriva do verbo Cade, que significa capitanear, o termo transitou para os reinos cristãos, servindo para denominar os governadores das povoações fortificadas (BLUTEAU, 1712-1728, p. 216-218). 11 O trecho citado está no Livro I, Título LXXV § 3 cujo original é o seguinte: “E nos lugares, onde per Foral o Alcaide se ha de pòr pelo Concelho, sem o apresentarem ao Alcaide Mór, usem dito Foral, como sempre usaram , servindo porém tres annos, e mais não, sob as penas sobreditas. Porém nãohe nossa tenção de por isto tolher aos Concelho seu direito, onde a eleição dos Alcaides a elles pertence, e o Alcaide Mór recebe o per elles presentado; porque onde os Concelhos stão em poss de assi o fazer, mandamos que assi se faça”. 30 O excerto das Ordenações Filipinas, neste trecho compiladas das Ordenações anteriores, destacam os dois fundamentos ou elementos de identificação do que contemporaneamente chamamos município. Primeiro, o governo pelos conselhos (espécie de câmara de representantes), manifesto pela eleição do alcaide, agente com atribuições administrativas próprias. Segundo o caráter local, pois se trata de autonomia concedida a um lugar em particular, via de regra vila ou cidade, por ato real. Assim estão reconhecidos o caráter local, a função de governo municipal que é tipificada pelo tipo de atividade exercida pelo alcaide, e certo grau de autonomia. E isso está denotado pelo papel do Alcaide Mor, função de nomeação real, que deve reconhecer a autonomia dos concelhos (câmaras) para apresentarem seus próprios alcaides menores (locais). A Constituição do Império do Brasil12 no artigo 167, Capítulo II - Das Câmaras, do Título 7º - Da Administração e Economia das Províncias, estabelece que estas mesmas câmaras são responsáveis pelo governo econômico e municipal das vilas e cidades. Ainda no Império, a Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, Lei 105 de 184013, buscou delinear o entendimento sobre municipal no §4º do artigo 10 do Ato Adicional para consolidar que caberia às assembleias provinciais a competência legislativa sobre o governo municipal, ainda que a iniciativa dos projetos fosse das câmaras das respectivas vilas e cidades. A partir da Constituição de 1891, os entes vilas e cidades são substituídos simplesmente por município14. O sentido de local é sugerido pela expressão “seu peculiar interesse”, mas não há menção ao governo municipal. Entretanto, no artigo anterior, nas disposições sobre os Estados, tanto a palavra “local” como “autoridades 12 Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se crearem haverá Camaras, ás quaes compete o Governo economico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. [...] Art. 169. O exercicio de suas funcções municipaes, formação das suas Posturas policiaes, applicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis attribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar. 13 (Ato Adicional de 1834) Art. 1º A palavra - Municipal - do art. 10, § 4º do Acto Addicional, comprehende ambas as anteriores - Policia, e Economia -, e a ambas estas se refere a clausula final do mesmo artigo - precedendo Propostas das Camaras.- A palavra - Policia - comprehende a Policia Municipal, e Administrativa sómente, o não a Policia Judiciaria. 14 Art 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse. 31 municipais” aparecem de forma expressa15 para descrever a administração do Distrito Federal. As autoridades municipais do então Distrito Federal foram herdeiras institucionais do Município Neutro do Império. Este fora tacitamente instituído pelo Ato Adicional de 1834 que, em seu art. 1º, parágrafo único16, determinou que a autoridade da assembleia da província na qual estivesse instalada a corte não alcançaria a mesma corte nem seu município. Assim é o Município Neutro, mais tarde Distrito Federal e atualmente o Município do Rio de Janeiro, o primeiro ente a ser formalmente reconhecido sob esta categoria. O que havia até então eram as vilas e cidades e seus termos — palavra que designava o território sob a jurisdição de suas respectivas câmaras. Nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69, a fórmula do peculiar interesse é repetida, enquanto o governo municipal ora fica à mercê das disposições das Constituições dos estados ou das Constituições Federais. Na figura a seguir, está um recorte do Mapa do Município Neutro dos anos 1870, um exemplo da adoção da palavra município em representações oficiais do Império. 15 Art 67 - Salvas as restrições especificadas na Constituição e nas leis federais, o Distrito Federal é administrado pelas autoridades municipais. Parágrafo único - As despesas de caráter local, na Capital da República, incumbem exclusivamente à autoridade municipal. 16 (Lei de Interpretação do Ato Adicional) Art. 1º O direito reconhecido e garantido pelo art. 71 da Constituição será exercitado pelas Câmaras dos Distritos e pelas Assembléas, que, substituindo os Conselhos Geraes, se estabelecerão em todas as Provincias com o título de Assembleias Legislativas Provinciais. A autoridade da Assembleia Legislativa da Província, em que estiver a Côrte, não compreenderá a mesma Corte, nem o seu Município. Figura 1 – Detalhe do Mapa do Município Neutro. Fonte: Maschek (1873) 32 Pelo observado nas fontes legais a definição de “governo municipal” e de “local” também é passível de transformações. É fundamentalmente sobre essas definições que se estabelecerá a discussão a respeito do município. Também é relevante a evolução de sentido de município que paulatinamente se consolidou como um ente político-administrativo em abstrato em contraste às vilas e cidades — realidades socioespaciais, em algum momento investidas de instituições políticas próprias. 2.2.2 Definição de uma questão Se o que inquieta os pesquisadores dos municípios e governos locais é a sua capacidade de produzir um espaço em conformidade com uma expectativa de atuação do Estado, é preciso conhecer a noção mesma em que se fundamenta essa conformidade, como se atualiza, renova e reafirma. Esse tipo de análise é possível pelo que se define a seguir como “olhar longo” (sobre o tempo de longa duração), ou seja, buscar compreender os processos e as estruturas não apenas desde o seu estado atual, mas como resultantes dinâmicas. Neste sentido, construir séries, definindo seus elementos, pontos de interrupção, limites, cronologias e relações, possibilitando estabelecer séries de séries (FOUCAULT, 2008), é um recurso para a pesquisa desses elementos formadores do município. A sugestão é a de, definidos índices para “local” e para “governo municipal”, podem-se estabelecer séries respectivas para cada um dos índices. O desafio, como colocado em Arqueologia do Saber, será o de estabelecer os limites e identificar os pontos de ruptura das séries. Se essa postura permite um aprofundamento ontológico acerca de determinado objeto, o campo e o objetivo da investigação servem como limites para delimitação da exploração. Assim, o espaço, como tomado pelo Planejamento Urbano e Regional, e o recorte temporal específico limitam a exploração realizada nesta investigação. As próprias fontes e a descrição das circunstâncias históricas em que são produzidas estabelecem possibilidades de classificação e delimitação das séries em que se instauram e das outras séries que criam. As bases para a investigação dessas séries são os textos dedicados à formação e função do Estado e no caso particular, do município como parte integrante. Para entender sua funcionalidade hoje é preciso 33 recuperar sobre quais fundamentos foi pensado, incluindo aí não só a definição formal, legal, mas também as práticas e processos políticos que os determinaram. Essa postura de investigação é compatível com a ideia de tempo longo como a sugerida pela Escola dos Annales. Como sugere a epígrafe deste capítulo, o problema não é rastrear no tempo as origens de um fundamento, mas como ele se transmite, renova e revalida (FOUCAULT, 2012). Como estabelecer um recorte, um ponto em que se reconheçam as passagens e transformações? As fontes, tanto as teses recentes já citadas, como as revistas, artigos e outras publicações com mais tempo de existência, encaixam-seem períodos políticos, nesta tese, admitidos como conjunturais. A sucessão entre períodos autoritários e democráticos é indicadora de transformações quanto ao entendimento da formação do Estado e, portanto, do município. Pelo recorte temporal adotado, 1948-1968, interessam as sete constituições brasileiras desde 1824 porque possibilitam identificar as continuidades e as rupturas de sentido para a categoria município. Por mais que o foco sejam os processos e debates sobre a definição dessa categoria e sua repercussão ao longo da maior parte do século XX, não há como analisá-los sem ao menos uma aproximação sobre os sentidos com os quais propuseram discuti-la, o que em parte já foi apresentado com a própria definição de município. Para além das definições jurídicas, estão as outras ideias sociais e políticas que também utilizam o município como categoria na elaboração de propostas de organização da sociedade e do Estado brasileiro. É por esse caminho que sugiro a perspectiva histórica. As fontes documentais diretas, ou seja, os ensaios, artigos e demais textos que buscam desde dados empíricos ou especulações teóricas sobre a formação de entes para lidar com o governo de âmbito municipal, encontram-se recuadas na história. Esse recuo parece coincidir com outros fatores políticos e sociais que podem ser considerados condicionantes para a reflexão acerca dos municípios. Onde situar o ponto de partida dessa discussão? Como definir um referencial inicial quando a própria história pode ser lida em escalas distintas e em ritmos diferentes como sugere a Escola dos Annales? A pertinência dessa vertente como linha de investigação está na compatibilização entre o objeto e método históricos com as demais ciências sociais como sugerido por Braudel (BARROS, 2018). 34 A proposta braudeliana parte do conceito de longa duração17 que compatibiliza a noção de estrutura das demais ciências sociais com o tempo/ processo histórico. O tempo dessa estrutura permite que outros tempos e processos se desenvolvam dentro dela. Essa estrutura é o contorno no qual a experiência humana se desenvolve. Vale destacar que a estrutura pode ser uma técnica, uma atitude mental diante de um tema, a difusão de uma prática agrícola, ou, como sugerido aqui, uma forma de organização social (BARROS, 2018). Outro conceito importante implicado é o da multiplicidade de tempos históricos. Esse conceito significa que, além da diferença de tempo entre estruturas manifestam- se conjunturas e eventos de duração curta ou menor. A imagem adotada também por Braudel é a de uma arquitetura dos tempos. Essa proposição também é problematizada, pois os elementos da longa duração e da multiplicidade não necessariamente se sucedem concomitantemente. Daí falar-se em uma polifonia, cânones18 das durações, com sobreposições, convergências ou divergências (BARROS, 2018). Aas fontes escolhidas apontam no sentido de se configurarem esses arcos ou sinfonias de movimentos sucessivos e concomitantes na formação do Estado brasileiro. Fazendo um paralelo com as séries documentais citadas, esses tempos históricos dizem do ritmo e do momento em que são produzidas. A repetição das fórmulas para o município nas Constituições republicanas, partindo da base estabelecida no Império (governo municipal e local) evidenciam uma estrutura histórica que perpassa conjunturas específicas. Essas seriam expressas pelas diferentes Cartas Constitucionais que deixaram em aberto ou atribuíram sentidos específicos a esses elementos fundantes do município. Pela disponibilidade de acervo e pela similaridade histórica com o período pós- 1988, o período 1946-1968 mostra-se ideal para análise dentro do arco histórico mais abrangente. A semelhança é por se tratar de regimes de redemocratização, o primeiro 17 Para mais confira A História e as Ciências Sociais: a Longa Duração, 1958. 18 Cânone, do francês antigo canon, origina-se do grego kanon (regra ou lei), na música, assume o sentido de uma forma na qual as vozes se sucedem repetindo a melodia iniciada pela primeira voz sem que essa tenha terminado o seu movimento. No contexto braudeliano, é empregado como esse encadeamento de processos ou pensamentos que se retomam um pouco deslocados no tempo e que sucessivamente transformam-se. 35 ficou conhecido como República Nova (1945-1964) e o segundo como Nova República19 (1985 em diante). A introdução da categoria planejamento é típica do pós-guerra e redefine os fundamentos de atuação do Estado. Quer dizer, local e governo municipal, a partir de então, passam a ser alvo ou lugar de planejamento. Da mesma maneira, uma série de categorias de análise hoje adotadas pelo campo de Planejamento Urbano e Regional foram naquele período definidas e paulatinamente incorporadas ao repertório do debate municipalista. Por essa linha, a tese justifica-se como uma contribuição à história do planejamento, descrevendo-o como um elemento de um processo estruturante do Estado quando a categoria planejamento é incorporada às discussões municipalistas sobre o espaço e governo municipais. Contudo, não é suficiente o estabelecimento de um período e de fontes documentais para que se desenvolva a análise do objeto em questão: o debate acerca da definição do município quanto à sua expressão espacial e instituições. Faz-se necessário definir índices capazes de referenciar sobre o que se quer analisar nas discussões e como estas evoluem a partir das transformações de sentido das categorias, da reafirmação e substituição de fundamentos trazidas pelas conjunturas estabelecidas por outras séries de acontecimentos correlatas. Por fim capítulo propôs justificar a partir da revisão de literatura e da análise das fontes, o projeto desta pesquisa. A sugestão é deslocar a atenção da análise de desempenho do município estabelecido hoje ante a um programa estatal para outra linha, a recuperação do processo de definição dos programas estatais e das próprias instituições municipais. 19 Nova República é a expressão cunhada no discurso de posse de Tancredo Neves, primeiro presidente não militar, eleito em 1985, parte do processo de restauração democrática do país. “Brasileiros, começamos hoje a viver a Nova República. Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos [...]" (NEVES, 2001). 36 3 UM PLANO PARA A ANÁLISE Desde que seres humanos não são meramente animais políticos, mas também animais dotados do uso da linguagem, suas atitudes são forjadas por suas ideias. O que eles fazem e como o fazem vai depender de como eles veem a si mesmos em seu mundo, e isso, por sua vez, depende dos conceitos através dos quais eles veem (PITKIN; RESENBLUM, 2015, p. 60- 61). O objetivo desse capítulo é definir os referenciais teóricos- adotados no para a pesquisa no debate municipalista. O primeiro item, desdobra-se em dois pontos, um é a semiologia política, adotada como meta-referencial analítico, estabelecendo os pressupostos sobre os quais as fontes são lidas. Este ponto é uma proposta para estudos do espaço a partir dos discursos, e alguns resultados são apresentados e posteriormente retomados nos capítulos seguintes. O segundo ponto trata do espaço como categoria da geografia e como objeto do Planejamento Urbano e Regional. Define-se o conceito de espaço assim como elementos adotados na pesquisa. O conjunto da leitura semiológica e do conceito de espaço formam as principais categorias teórico-metodológicas da pesquisa. Essas categorias são traduzidas em termos que as identifiquem nos textos analisados. E os termos são interpretados a partir de outras categorias analítico- instrumentais, índices dos elementos analisados o que será abordado no segundo item deste capítulo. Uma referência importante sobre esta forma de pensar é a chamada virada linguística, também chamada de giro linguístico. Em rápidaspalavras, essa linha do pensamento filosófico ocidental questiona a concepção ontológica da realidade. Seus percussores, dentre os quais destacam-se Schleiermacher e Wittgenstein, propuseram que estamos limitados pela linguagem, seus limites são os limites do mundo20.Essa corrente ganhou força entre as chamadas humanidades ao adotarem a tese de que a linguagem constrói a realidade e não o contrário, dando origem às correntes do estruturalismo e dos pós-estruturalismos. Da primeira, destaca-se Ferdinand Saussure para quem os conceitos não podem existir independentemente das diferenças entre as palavras, de tal modo que o conceito de algo não existe sem ser nominado. Um objeto só é reconhecido como tal graças à relação entre o nome e 20 Para mais sobre o giro linguístico e a influência dos filósofos da linguagem confira SCAVINO, Dardo. A Filosofia Atual: pensar sem certezas. São Paulo: NOESES, 2014. Disponível, em audiolivro (em espanhol), em: <https://www.youtube.com/watch?v=3gY0wcAZqig> Acesso em: 08 ago. 2017. 37 o conceito, ou o conjunto de características que a ele associamos. De tal modo, não poderíamos entender o objeto em si apenas pela sua nomeação se não fôssemos capazes de distingui-lo de todas as demais coisas através do conjunto de características, essas definidas e distintas umas das outras. A realidade, para essa corrente, é uma convenção de nomes e características, convenção chamada de linguagem (WARAT, 1984). O desenvolvimento dessa tese nos anos 1960, na França, culminou com a institucionalização de um “megaparadigma” transdisciplinar, contribuindo para integrar as ciências sociais. Contudo era falho pelo exagerado otimismo e cientificismo (PETERS, 2000), e por tratar de uma espécie de positivismo levado às últimas consequências (WARAT, 1984), que pretende(u) estabelecer uma epistemologia de todas as ciências humanas apenas através de um sistema lógico de signos universalmente aplicáveis transvalorativamente. Os estudos pós-estruturalistas surgem como uma resposta filosófica às pretensões científicas do estruturalismo. Tais estudos são inspirados nas propostas de “desencantamento” das estruturas e de suas bases metafísicas, a partir das ideias de Nietzsche e Heidegger. Por outro lado, reafirmam a tradição estruturalista da linguística baseada no trabalho de Saussure e nas interpretações estruturalistas de Foucault (primeira fase), Lévi-Strauss, Barthes e Althusser (PETERS, 2000). Dessas vertentes, toca-me a ideia da genealogia nietzschiana, desenvolvida por Foucault como uma forma de história crítica, resistente à busca por essências e origens, pondo em seus lugares os conceitos de proveniência e emergência. O significado é uma construção em constante marcha, radicada no que é pragmático a um determinado contexto. De tal forma, questiona a suposta universalidade das “asserções de verdade”, duvidando da fórmula de uma lógica de produção de verdade universal, mas não da possibilidade de proposições de verdade que se queiram universais. A exemplo de Foucault, pensadores pós-estruturalistas desenvolveram formas originais e peculiares de análise (gramatologia, desconstrução, genealogia, semionálise), em geral voltadas para crítica de instituições como a família, o Estado, a clínica entre outros. (PETERS, 2000). Neste rol, inclui-se Luís Alberto Warat, advogado e professor de Direito, que dedicou sua obra a uma teoria crítica do Direito 38 primeiro, pela substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de significações; e segundo, pela introdução da temática do poder como forma de explicação do poder social das significações, proclamadas científicas (WARAT, 1982. p. 50). O que fez constatando que “o conhecimento, na medida em que é purificado pela razão, limita, maldosamente a percepção dos efeitos políticos das verdades”. (op. cit. p. 50). Essa crítica aos discursos das ciências, às razões não sensíveis é o ponto de partida, entretanto não implica em uma empiria ou o abandono das categorias objetivas. Para esta pesquisa de tese outros campos do saber são acionados. A Sociologia, a Geografia, o Direito e o Planejamento Urbano e Regional são os campos disciplinares de estudo escolhidos por mim. Se o problema está colocado pelo Planejamento Urbano e Regional, os meios de análise são dados pelos demais ramos do conhecimento, abrangendo as dimensões do município que correspondem a seus respectivos objetos de análise. A pesquisa, então, se desenvolve sobre os entendimentos de espaço, sociedade e instrumentos normativos pertinentes ao município. Essa escolha de dimensões não é arbitrária. Como será evidenciado, numa das definições de município, este é um ente parte do Estado, o que remete, segundo as concepções contratualistas e formalistas – que podemos entender como as prevalecentes desde a modernidade21 aos dias atuais – a uma estrutura social e política composta de território, sociedade e governo, relativamente distinguíveis, fazendo uso dos conceitos de nação e soberania, ou a capacidade de afirmar-se enquanto representação e ação dominantes sobre os próprios elementos constituintes (ABBANGANNO, 1998; BOBBIO et al. 1998,). Essa definição de Estado enquanto representação que uma sociedade faz de si mesma e de sua forma de organização sobre um determinado espaço é parte de uma chave interpretativa adotada nesta investigação que entende as estruturas político-jurídicas como decorrentes das representações sociais do espaço – e todos os objetos que o compõem – e das relações intersubjetivas com este e entre si. O que implica em um não-compromisso com doutrinas ou dogmas jurídicos usualmente adotados como critério de identidade ou validade das concepções de Estado. 21 Período da história do ocidente que se inicia com o Renascimento, entre os séculos XV a XVIII, e “costuma ser associado a alguns termos-chave como razão, ciência, técnica, progresso, emancipação, sujeito, historicismo, metafísica, niilismo, secularização” (ABBAGNANO, 2007 p. 791) 39 Isso para dizer que os Estados democrático, social e, autoritário, entre outras formas, são possibilidades, expressões das relações de poder de dada sociedade em determinado território. No caso em questão, o Estado brasileiro é resultado da ideia que sua sociedade faz de si, do território que constitui e dos governos que institui, composto de estruturas normativas que exprimem as relações de poder sobre seu espaço (território) e sobre si mesmo22. Aqui, há uma delimitação importante, esse conjunto das normas abrange vários aspectos das relações sociais, ainda que se tome apenas as que dizem respeito à interação entre pessoas e o espaço e que se restrinja às normas jurídicas. Trata-se de um contingente muito vasto. Por exemplo, as relações: 1) com a propriedade fundiária que envolvem uso, fruição e disposição; 2) de conduta conforme o lugar em que alguém se encontre; 3) de estatuto pessoal no sentido de prerrogativas e atribuições de acordo com o lugar de origem. Contudo, o que está sob estudo são aquelas regras voltadas para como a sociedade estabelece seu modo e abrangência de ocupação enquanto ente coletivo sobre um determinado território institucionalizado, ou seja, reconhecido como expressão de uma fração do Estado, no caso, o município. São normas que expressam a forma institucional de representação: política da sociedade, do espaço que ocupa (território) e, dos meios (instrumentos) de ação sobre este território e, o que se espera que se faça e como se disponha dele. Tais normas são o principal elemento material de análise deste trabalho. 22 Essa postura tem um fundo filosófico influenciado por ideias desde Wittgenstein, Nietzsche que provocam a reflexões sobre as certezas do real e das estruturas ideológicas do poder. O primeiro por demonstrar que a linguagem define as possibilidades
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