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DAVALOS, Pablo Movimientos Indígenas en América Latina: el derecho a la palabra, en Pueblos indígenas, estado y democracia Buenos Aires, CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales 2005 Na década de 90 houve a eclosão de novos movimentos sociais, entre eles os indígenas. Nesse contexto se consolidaram as políticas neoliberais de ajuste macroeconômico e reforma estrutural. No coração da matriz epistemológica do pensamento liberal está subjacente uma reivindicação de universalidade que necessariamente gera conflitos quando encontra sociedades que pensam, agem ou vivem de maneira diferente. Como resultado, ocorrerão as mobilizações contra a reforma estrutural, mas também pela autonomia e pelo respeito a seus direitos, que serão liderados por movimentos indígenas em todo o continente (Díaz Polanco e Sánchez, 2002). Samuel Huntington propõe que um possível cenário para o futuro do liberalismo, é o choque de civilizações, pois todo encontro com povos diferentes é um encontro conflitivo, uma colisão violenta, um confronto que pode ser até bélico. - Ainda há toda uma ideologia e imaginário que faz dos povos indígenas, bodes expiatórios do fracasso das políticas desenvolvimentistas, mas atualmente o pensamento neoliberal coloca-os fora de qualquer consideração teórica, escopo normativo e avaliação ética. - Desde a década de 90 os movimentos indígenas vêm se tornando fortes protagonistas, buscando na crise neoliberal a qual passa a américa latina, oportunidades para mudar os sistemas de representação política, para dar novos critérios à democracia, baseados na participação e identidade comunitária. Como resultado, rolaram as reformas constitucionais em alguns países da América Latina, como a Convenção 169 da OIT. Esses movimentos colocam a necessidade de que a democracia reconheça a diferença e a necessidade, baseada na identidade, de construir a participação social (já que ninguém te representa tão bem quanto vc, vc deve participar da vida política para ser bem representado). Vemos as experiências dos indígenas bolivianos, que contestaram a presidência da república através do voto; dos indígenas equatorianos que participaram com sucesso de experiências de poderes locais, e que são atores fundamentais na política nacional; a experiência dos indígenas mexicanos, guatemaltecos, mapuches, etc. - Segundo dados da CEPAL, na América Latina e Caribe existem entre 33 e 40 milhões de indígenas, pertencentes a mais ou menos 400 grupos étnicos. O problema é a nossa proposta modernizante na sua prática diária estatal e sistemas de representação com marcos institucionais e códigos que se baseiam numa exclusão silenciosa e numa violência sistemática e persistente. - Enrique Dussel teoriza que a sociedade ocidental se constitui a partir de seu encontro com a alteridade, situado a partir de 1492 com o desembarque europeu no que se chamaria América. Nesse momento nasce uma ordem civilizatória que inclui em si mesma uma ideia de emancipação. Numa dialética com a figura do outro (esse sendo os povos habitantes do continente que os Kuna chamavam Abya Yala), a modernidade tinha que reconhecer a alteridade que comprova a sua existência. A modernidade é um projeto com normas universais e constrói a figura do indivíduo (base na economia para o consumidor, e na política para o cidadão) racional, moralmente egoísta e utilitário. - O discurso político que os povos indígenas apresentam não rejeita o legado da modernidade, mas possibilita um diálogo de saberes. Os povos indígenas propõem que a figura do sujeito comunitário seja respeitada, da mesma forma que na matriz da modernidade se garantem os direitos do indivíduo ("direitos do homem e do cidadão", etc.). Proposta que ainda tem de ser desenvolvida e debatida. - Os povos originários sabem que portam uma racionalidade diferente, e que seus conhecimentos não devem ser classificados como "pré-modernos", "tradicionais", "inocentes", "subdesenvolvidos", menores de idade ou pessoas em trânsito para a modernidade. A dinâmica política dos movimentos indígenas faz exigências que enriquecem o legado da modernidade em seu conteúdo emancipatório, apontando a concretização da hipótese de Dussel de que a modernidade pode finalmente se descobrir e retomar suas promessas de liberdade/autogoverno. - O poder não pode relativizar o conteúdo de seu discurso correndo o risco de perder a legitimidade de seu domínio, na proposta derivada da hipótese de Dussel, a reformulação das relações de poder existentes no sistema estaria em jogo. Reformulação que vai além da esfera acadêmica e se situa na esfera do confronto social. Os povos indígenas sabem disso, e seus projetos procuram rearticular seu sistema de conhecimento dentro de uma estrutura institucional própria e dentro de um campo de lutas no qual cobram o reconhecimento como povos com identidades diferentes, criação de suas próprias universidades, ou exigem demandas por educação intercultural. - Foi sob os parâmetros da modernidade que os estados-nação foram estruturados no continente americano. O individualismo apoiou a figura do cidadão como um pré-requisito para a forma republicana que a burguesia deveria dar ao estado na América Latina. Nos marcos constitucionais estabelecidos no início das repúblicas latino-americanas, a figura do cidadão não contemplava a diferença e excluía explicitamente os índios de todo o sistema de representação, de toda a estrutura institucional do Estado. - Para ser cidadão, era necessário ser branco-mestiço, ter renda, e ser capaz de ler e escrever. Essa exclusão baseada na razão, foi justificada e legitimada a partir desse quadro conceitual, teórico, axiológico e normativo dado pela modernidade. Desde 1492 subsiste a indiferenciação, de querer sempre "incluir" os outros, de levá-los dentro das coordenadas deste projeto civilizatório. As razões da coroa espanhola para reconhecer a condição ontológica de seres humanos aos indígenas foi a necessidade de levantar novos impostos. - No debate político, o indígena esteve circunscrito a âmbitos restritos que se subsumiam ao antropológico. Mas a antropologia como ciência nasce desde os requerimentos do poder. É o olhar que objetiviza ao outro para estudá-lo, que o converte em objeto de estudo e manipulação. Conhecer para dominar era e é a divisa desse conhecimento. Esta é a vontade de poder que encerra o saber na modernidade. - Durante os anos 70 e 80 constituem-se e emergem com força movimentos sociais cujas diretrizes serão a reformulação do regime político e das práticas sociais que se desenvolvem. A eclosão mais importante se dará na década de 1990 com dois acontecimentos significativos: no início da década, o primeiro levantamento dos indígenas do Equador, e em 1994, quando entra em vigor o tratado de livre comércio entre México, Canadá e Estados Unidos (acordo que se vincula a todo o discurso da globalização e liberalização dos mercados), insurge a guerrilha zapatista, em Chiapas, no México. - Transformar um Estado excludente, autoritário, violento, num Estado pluralista, tolerante, participativo, democrático nos seus procedimentos e nas suas instituições, é uma das tarefas históricas que o movimento indígena incorporou na sua agenda. Existem assimetrias, diferenças, nos vários movimentos indígenas do continente, mas também é certo que os aspectos demonstrados constituem um projeto comum em quase todos eles. - A construção dos saberes está imersa em relações de poder e de dominação que os impedem de ser neutros. A tarefa sistemática, brutal, violenta, de destruir o saber ancestral era paralela àquela pela qual a população aborígene era submetida às novas condições econômicas e sociais. Não se dominavam só os corpos, mas também as suas "almas". Até o debate sobre a existência da "alma" humana e o reconhecimento da condição ontológica de seres humanos foi composto pelas novas considerações de poder e dominação em ascensão depois da conquista europeia. - Destruir uma cultura é destruir sua memória. Um povo sem memória é um povo sem raízes históricas e semcapacidade de resposta. Um povo que pode ser facilmente subjugado. A resistência procura a recuperação da memória para construir seu futuro. É reconhecendo o passado que pode se entrever o futuro. - Numa sociedade em que o conhecimento se articula com a dominação, o saber é também poder, e o poder necessita do saber. O duplo saber-poder nasce no início da modernidade ocidental capitalista e a ciência não é inocente, neutra. - No capitalismo a relação custo/benefício, traço ontológico do homo economicus, é a base fundamental do contrato social. Essa relação, que é toda uma cosmovisão e um projeto civilizatório, impregna e atravessa todas as possibilidades humanas no interior do capitalismo. Se o homo economicus faz ciência, a faz num contexto determinado, em que seu conhecimento será o privilégio da instituição ou empresa que financiou essa investigação. Apesar de sua contribuição compreender aos seres humanos, e ser um produto histórico, a apropriação individual desse conhecimento e depois seu aproveitamento com fins comerciais são parte da dinâmica do sistema - Não se trata tanto dos institutos de investigação sobre temáticas exclusivamente indígenas, que existem desde longa data, mas do facto de o movimento indígena latino-americano incorporar as noções de criação, reconstituição, recuperação e reconstrução do saber dentro de espaços definidos por uma prática política própria, o que dá um significado diferente a essa dinâmica. As propostas de criação de universidades indígenas, centros de capacitação política dos povos indígenas, ou escolas de formação, são parte justamente da necessidade de criar uma prática diferente e que a longo prazo possibilita uma reflexão de tipo mais epistemológico sobre o saber indígena. De fato, trata-se de uma das dinâmicas mais inovadoras e mais promissoras dos movimentos indígenas do continente.
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