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53 poucos casos isolados mobilizados pela opinião pública, relacionados a violência física, enquanto a violência cotidiana, a segregação e a desigualdade de oportunidades ferem direitos fundamentais que tentam ser implementados em diversas partes do mundo há mais de 200 anos, ainda sem sucesso. 10 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS Desde a Antiguidade, a expansão territorial era perseguida pelas nações. Assim, foram criados os contextos de dominação. Como você sabe, o processo expansionista deixou marcas tanto nas sociedades colonizadas quanto nas colonizadoras. No Brasil, último país ocidental a abolir a escravatura, as raízes históricas de dominação do povo negro deixaram um legado de marginalização social. Por isso, as ações afirmativas e as políticas públicas se voltam, no século XXI, a resgatar a dívida histórica e devolver as possibilidades que são devidas a esse povo (AUGUSTINHO, 2019). 10.1 Desigualdades simbólicas e estruturais à luz da sociologia brasileira Os estudos de Fernandes (1978) datados da década de 1960 colocaram em xeque as leituras anteriores das relações raciais no Brasil. Nas décadas de 1940 e 1950, havia a ideia de que o Brasil era um país miscigenado, composto por inúmeras raças e etnias e que, portanto, não existiriam por aqui comportamentos racistas ou excludentes. Para Fernandes (1978), contudo, as falas sobre o tema não condiziam com a realidade. Filho de uma lavadeira, esse sociólogo tivera experiências de vida que indicavam que os trabalhadores braçais, mais pobres, eram em sua maioria negros ou descendentes de famílias negras. As classes mais abastadas, no entanto, aquelas que contratavam os serviços de sua mãe, eram compostas por uma maioria branca. Se havia tanta diferença racial entre as classes, como não havia racismo? Fernandes (1978) entendeu que as relações de raça no Brasil tinham um recorte de classe: as classes mais baixas eram negras, e as mais 54 altas, brancas. Para ele, o termo “racismo” aparece como “preconceito de cor” (FERNANDES, 1978). A leitura da democracia racial era estimulada especialmente por duas obras de Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos. Freyre (1981) produziu ensaios sociológicos de extrema importância, narrando as formas de vida e a relação entre os núcleos sociais brancos e negros no Brasil pós-colonial. A análise desse sociólogo, no entanto, é mais suave no tocante aos conflitos e problemas vividos pelo povo negro após a abolição da escravatura, já que não houve qualquer política de auxílio para aqueles que, longe de seu continente natal, não tinham empregos ou moradia. Em 1955, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) financiou um projeto desenvolvido por Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as possibilidades de harmonia racial. De acordo com Nogueira (2007), as leituras sobre as relações raciais no Brasil e a condição do negro na estrutura social brasileira se iniciaram a partir de três perspectivas: a interpretação afro-brasileira iniciada por Nina Rodrigues, que tinha foco nas contribuições de africanos escravizados e seus descendentes na cultura brasileira; a análise histórica de como o negro passa a fazer parte da cultura brasileira, cujo principal expoente seria Gilberto Freyre; e a vertente sociológica, que se preocuparia com a interpretação das relações sociais entre brancos e negros na sociedade brasileira. As duas perspectivas iniciais citadas por Nogueira (2007) tinham a tendência a romantizar a presença do negro na sociedade e na história brasileiras, salientando as cores trazidas por sua cultura, sua música, sua culinária. Mas, embora não o negassem, tais perspectivas não refletiam sobre o fato de que essa contribuição se deu forçadamente, já que o povo negro nunca foi convidado a povoar terras brasileiras, mas foi forçado via escravidão. A dimensão da violência e da segregação econômica vividas nos períodos pré e pós-abolição não era mencionada. A perspectiva das relações sociais entre brancos e negros se inicia no Brasil, ainda de acordo com Nogueira (2007), em 1935, por meio de estudos 55 conduzidos na Bahia por Donald Pierson, publicados em São Paulo na Revista do Arquivo Municipal e na Revista Sociologia. Durante as décadas de 1940 e 1950, a presença do negro nos “sertões” brasileiros foi o foco dos estudos, com olhar voltado para seu trabalho nos campos de cana-de-açúcar e nas usinas. Criava-se o estereótipo do negro sertanejo. Mas foi entre 1950 e 1960 que, financiados pelos projetos da UNESCO, sociólogos brasileiros e estrangeiros debruçaram-se sobre as formas de relacionamento e os trânsitos sociais do negro no Brasil. Se você considerar que no mesmo período, nos Estados Unidos, havia as lutas pelos direitos civis da população negra, vai perceber que esse movimento despertou o interesse de outros países em compreender as suas “relações raciais”. Por isso, a questão da “situação racial” se torna preponderante: como o negro se encontra nas sociedades pós-escravocratas? Como a raça que o dominava se comportava então? Assim, há um deslocamento: do olhar romantizado sobre as contribuições culturais do negro para o sangue e a violência envolvidos nessa contribuição forçada. Além disso, passam a ser considerados os resultados negativos para os descentes dos escravizados, em contraponto ao lucro e à acumulação de quem os mantinha cativos. Fernandes (1978), avaliando esse quadro, indica que a situação racial no Brasil seria ainda de dominação; não uma dominação inteiramente baseada na raça, mas na classe. Observe que, com isso, o sociólogo afirma que ainda havia dominação: ocorrera uma transferência de poder simbólico de dominação após a abolição da escravidão, uma vez que o povo negro não tinha retido a sua liberdade, mas também não tinha espaço para ascender socialmente. Afinal, não havia políticas sociais que os acolhessem como cidadãos tais quais os brancos, deixando- os à própria sorte. Entre 1920 e 1940, a intensa migração europeia para o Brasil encontrou aqui uma estrutura de acolhimento e de respeito à dignidade humana e social que os negros nunca encontraram, especialmente por meio do trabalho formal e da possibilidade de educação, o que, numa sociedade capitalista, pode significar a manutenção ou a ascensão social. Nogueira (2007, p. 291) afirma: 56 De um modo geral, tomando-se a literatura referente à “situação racial” brasileira, produzida por estudiosos ou simples observadores brasileiros e norte-americanos, nota-se que os primeiros, influenciados pela ideologia de relações raciais característica do Brasil, tendem a negar ou a subestimar o preconceito aqui existente, enquanto os últimos, afeitos ao preconceito, tal como se apresenta este em seu país, não o conseguem “ver”, na modalidade que aqui se encontra. Dir-se ia que o preconceito, tal como existe no Brasil, cai abaixo do limiar de percepção de quem formou sua personalidade na atmosfera cultural dos Estados Unidos. A baixa “percepção” do racismo no Brasil se deve a um elemento principal: haveria no País uma distinção entre o preconceito de marca e o preconceito de origem. O preconceito de marca seria o racismo mais facilmente observado na América do Norte, onde pessoas negras e seus descendentes são segregados por pertencerem a essa etnia, independentemente de serem birraciais ou “mestiços”. No Brasil, esse preconceito estaria firmemente associado também à condição social e à classe do sujeito: um negro que ascende socialmente seria “aceito” mais facilmente pela sociedade branca, “quase” como um igual. Mas um homem negro pobre não teria qualquer privilégio ou passibilidade. Haveria ainda algumas diferenças na questão do colorismo: no Brasil, indivíduos com ascendência multirracial com pele clara e fenótipos próximos aos brancos teriam mais “passibilidade”social, ou seja, se passariam por brancos e sofreriam menos racismo. Países como os Estados Unidos mantêm a política da “única gota”: uma única gota de sangue negro tornaria a pessoa também negra, independentemente da cor da pele e dos fenótipos. Com isso, Nogueira (2007) diz que ainda existem preconceito e racismo no Brasil, mas que eles são velados quando o indivíduo ascende socialmente, porque seria vantajoso manter o trânsito social livre entre as classes abastadas. 10.2 O fator biológico e o fator social no conceito de raça Você provavelmente já viu um mapa-múndi. Já reparou que nas representações cartográficas o continente europeu está sempre centralizado? O planeta Terra é redondo e não tem “centro”. Se um astronauta observar o planeta do espaço, a parte central vai depender da localização do próprio viajante espacial. 57 As representações da Europa como central nos mapas não são acidentais. Elas estão ali porque representam a visão dos povos que empreenderam as grandes expansões marítimas a partir do século XIV. Para os expansionistas, conquistadores de territórios, o centro do mundo era a própria terra natal, e o restante, adjacência, territórios “descobertos”. O problema dessa visão é que boa parte dos territórios descobertos nessas jornadas eram novos apenas para os europeus, mas, por vezes, mantinham sociedades centenárias e até milenares. Então, a descoberta só podia pertencer aos povos europeus por meio da conquista e do domínio. Assim, houve a imposição da cultura, das estruturas e até da constituição física do que seria “central”. Peles claras e provenientes da Europa eram o centro, e o que não condizia com essa descrição, periférico. Nas lutas pelo espaço social ao longo dos períodos de dominação de um povo por outros, constituiu-se a ideia de que uma raça poderia ser superior a outra. O nazismo, modelo político de extrema direita que precedeu a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, se constituiu baseado na ideia de superioridade física, intelectual e moral da raça ariana, subjugando outros povos, especialmente os judeus. Os europeus não foram os únicos povos a empreender jornadas de conquista e dominação de territórios. Muitas sociedades o fizeram, incluindo sociedades orientais, árabes e africanas. Porém, a expansão imperialista do Velho Continente, especialmente a partir do século XV, fez com que houvesse ali centralização política e de poder econômico. Com os territórios dominados tornando-se independentes, a partir do século XIX, houve a manutenção dos valores imperialistas, criando uma leitura eurocêntrica de mundo. Os conflitos étnicos tampouco se baseiam apenas na relação entre países centrais e periféricos, mas o racismo se estabelece essencialmente por meio dessa relação. Afinal, ele foi a motivação da escravização de sociedades negras diversas com vistas ao lucro dos países colonizadores (AUGUSTINHO, 2019). O racismo e os conflitos étnicos são derivados da ideia de que um povo é central, superior, e que outros povos, com peles, fenótipos, culturas ou religiões diferentes, devem ser inferiorizados. Mas, como você vai ver, há na interpretação 58 racista também um viés econômico, já que normalmente as raças e etnias que se tentam subjugar passam a ser economicamente dominadas e exploradas. O racismo e os conflitos étnicos, portanto, se constituem no exercício da dominação e da violência, bem como da subjugação simbólica pautada na exclusão e no apagamento da individualidade. No Brasil, o mito da democracia racial vem constantemente sendo negado, e o racismo, apontado especialmente pela geração de brasileiros negros nascida a partir de fins dos anos 1980 e início dos anos 1990. O racismo se mostra especialmente pela marginalização social da população negra, assim como pelo encarceramento sumário do povo negro. Religiões de matriz africana são discriminadas, a ponto de sofrerem atentados em seus prédios, como apedrejamento e incêndios criminosos, especialmente no Rio de Janeiro, onde fiéis não estão seguros para expressar livremente sua religião (o que é garantido pela Constituição), correndo o risco de sofrer represálias. Conflitos étnicos são disputas culturais. Normalmente, acontecem em associação a uma disputa também territorial. Pode não haver a intenção de domínio da outra cultura, mas de legitimação religiosa, cultural ou ancestral. Quando os conflitos étnicos se associam a disputas territoriais, pode haver movimentos separatistas, em que a comunidade pretende formar um novo Estado, pautado em suas próprias características culturais e/ou religiosas. Quando essa intenção separatista é completamente refutada pelo Estado em que a comunidade em conflito se encontra, o desgaste pode evoluir para uma guerra. O conflito entre Israel e Palestina pode ser considerado um conflito étnico por disputa de território. Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) delimitou um Estado duplo israelense e palestino, mas em 1948 foi criado o Estado de Israel, que recebeu judeus de todo o mundo após o holocausto. Porém, a região era previamente habitada por palestinos, árabes de cultura majoritariamente islâmica. A disputa cultural se inicia especialmente por Jerusalém, a chamada Terra Santa, território importante para cristãos e muçulmanos. Para palestinos, Jerusalém ainda é árabe, e para israelenses, pertence aos hebreus. Os Estados tomaram a frente do conflito, gerando ataques e ofensivas constantes, com períodos de paz e outros mais violentos (AUGUSTINHO, 2019). 59 O racismo, por sua vez, é a inferiorização de uma raça associada à supervalorização de outra. Existem novas abordagens sociológicas que indicam que o racismo só acontece quando há a possibilidade de dominação estrutural ou hegemônica da raça discriminada. Essa nova leitura indica que no Brasil, por exemplo, o racismo se dá pela marginalização e pela inferiorização de pessoas negras ou indígenas por brancos, porque os brancos são estruturalmente dominantes, sendo maioria na arena política e na detenção de recursos financeiros. Quando um indivíduo de cultura não dominante discrimina outra cultura ou indivíduo de grupo social distinto, haveria então episódio de preconceito ou injúria racial. Isso porque sua discriminação, embora possa ter impactos emocionais negativos no indivíduo ofendido, não pode causar cerceamentos políticos ou econômicos, porque ele não tem o poder estrutural. Vertentes sociológicas tradicionais, por sua vez, indicam que racismo é toda e qualquer ação de inferiorização, discriminação ou segregação de um grupo sociocultural baseada em elementos culturais, religiosos ou fenotípicos, independentemente do grupo que ofende ou que é ofendido. O escopo biológico indica que a utilização do termo “raça” para seres humanos é inadequada. Isso porque a raça seria a determinação de uma subespécie, ou de várias subespécies, atreladas a uma espécie. Ou seja, ela identificaria diferenças genéticas significativas entre grupos diversos, porém pertencentes à mesma espécie. Seres humanos não possuem diferenças genéticas significativas entre si a ponto de formar subgrupos. Pelo contrário, as estruturas dos códigos genéticos são praticamente indistintas, independentemente dos fenótipos, como cor da pele, cabelos e olhos e estrutura física. Por isso, a determinação do termo “raça” a partir dos pressupostos biológicos é errônea. Do ponto de vista sociológico, o termo “raça” tende a ser utilizado para a identificação de grupos sociais com traços culturais, sociais e religiosos específicos, havendo ou não características fenotípicas associadas (BOBBIO et al., 1998). No caso da sociologia brasileira, esse termo é utilizado para identificar o racismo, ação discriminatória vivida por indivíduos afro-brasileiros. Contudo, não é adequado, considerando a leitura biológica, identificar grupos culturaisquaisquer como raças.
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