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ESTUDOS CULTURAIS E ANTROPOLÓGICOS Priscila Farfan Barroso Etnia e raça Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Distinguir os termos “etnia” e “raça”. Relacionar os conceitos de etnia e raça com questões histórico-sociais. Construir um raciocínio crítico sobre o preconceito racial. Introdução Neste capítulo, você vai aprender a distinguir os conceitos de raça e etnia, mas também vai perceber que a ideia de raça vem sendo ressignificada e até mesmo valorizada como um componente étnico importante atrelado à identidade. Inicialmente, o conceito de raça estava ligado às questões fenotípicas dos grupos sociais, mas você vai perceber que essa afirmação não tem tanto fundamento científico assim. Na sequência, vamos associar esses conceitos com questões histórico- -sociais, a fim de compreender como a ideia de raça dividiu os grupos sociais e até mesmo hierarquizou uns sobre os outros. Alguns pontos históricos mundiais são relevantes, e cabe destacar algumas questões nacionais que se valeram desses conceitos para a construção da iden- tidade brasileira. Ao final, discutiremos sobre o preconceito racial e as suas implicações no mundo atual. Nesse sentido, serão apresentados alguns movimen- tos étnicos que buscam valorizar aspectos culturais no contexto em que vivem. Assim, você terá uma visão ampla de como raça e etnia são agenciadas desde o passado até os dias atuais! Distinção entre etnia e raça Somos todos iguais? Essa questão é muito complexa, e é sobre ela que va- mos nos debruçar neste capítulo. Para iniciar a discussão, precisamos saber que, apesar de termos em comum a condição de humanidade, temos origens biológicas, territoriais e culturais diferentes, e isso faz com que tenhamos diferenças não só no modo de viver a vida, mas também em aspectos físicos. Segundo Neves (2006), as principais espécies hominídeas consideradas cruciais para a história da evolução humana datam de sete milhões de anos atrás. De lá pra cá, o bipedismo, o consumo de proteína animal, a fabricação de ferramentas, o desenvolvimento do cérebro e a construção da vida em sociedade permitiram que o homem chegasse aos dias atuais como o conhe- cemos. Entretanto, é importante considerar esse aspecto temporal e pensar nos processos biológicos pelos quais a nossa sociedade passou: O acaso na evolução biológica remete-se à existência ou não de variante numa população exatamente no momento em que essas variantes poderiam ser instadas à condição de solução adaptativa. A existência de variabilidade depende de mutações, que ocorrem de forma absolutamente imprevisível no genoma. A necessidade, por sua vez, remete-se ao desafio de sobrevivência imposto por uma nova situação ambiental, ambiente aqui entendido no seu sentido lato, que inclui também os competidores (NEVES, 2006, p. 81). Em essência, para sobreviver, cada sociedade passou por processos de adaptação em sua forma de alimentação, de vestimentas, de proteção das intempéries climáticas e de tantos outros aspectos. Estes interferiram não somente nas expressões culturais às quais se filiavam, mas também em as- pectos biológicos que resultaram em mudanças físicas perceptíveis. Desse modo, a cor da pele, a cor do olho, a cor do cabelo, a altura, o tamanho, as formas corporais de partes do corpo são aspectos visíveis que diferenciam as sociedades e as culturas que conhecemos. Vamos compreender melhor como podemos analisar essas sociedades a partir da noção de raça e etnia. Carolus Linnaeus (1758) foi quem criou a taxonomia moderna e o termo Homo sapiens, reconhecendo quatro variedades do homem: o americano (Homo sapiens americanus), o europeu (Homo sapiens europaeus), o asiático (Homo sapiens asiaticus) e o africano (Homo sapiens afer). Essa situação difundiu a ideia de que há uma diferença entre grupos sociais a partir de cores: respectivamente, o vermelho, o branco, o amarelo e o preto. Para refletir o que a cor nos leva a pensar sobre raça, cabe lembra o que diz Guimarães (2008, p. 76–77): “[...] cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação [...]”. Logo, a difusão desse conhecimento influenciou os estudos evolutivos no sentido de reforçar a ideia de que há divisão, de certa forma homogênea, entre os grupos sociais. Todavia, poderíamos dizer que estas são raças dife- Etnia e raça2 rentes — muitas vezes percebidas pelas cores — que compõem a base para as sociedades que conhecemos hoje? Para isso, vamos estudar o próprio termo raça e problematizar os seus usos. O termo raça tem uma variedade de definições geralmente utilizadas para descrever um grupo de pessoas que compartilham certas características morfológicas. A maioria dos autores tem conhecimento de que raça é um termo não científico que somente pode ter significado biológico quando o ser se apresenta homogêneo, estritamente puro; como em algumas espécies de animais domésticos. Essas condições, no entanto, nunca são encontradas em seres humanos. (SANTOS et al., 2010, p. 122). A explicação sobre a diferença entre as sociedades por meio da divisão dos grupos sociais a partir das cores se torna sem fundamento, até mesmo porque é rara a existência de sociedades isoladas. Em geral, há grandes trocas culturais entre sociedades que vivem próximas — os seus membros inclusive transitam por esses grupos sociais por meio de casamentos. Guimarães (2008, p. 64–65) destaca que é preciso esclarecer uma dife- rença importante para compreender esse termo de forma conceitual e mais aprofundada: O que é raça? Depende. Realmente depende se estamos falando em termos científicos ou de uma categoria do mundo real. Essa palavra “raça” tem pelo menos dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela sociologia. [...] A biologia e a antropologia física criaram a idéia de raças humanas, ou seja, a idéia de que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, tal como o mundo animal, e de que tal divisão estaria associada ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e inte- lectuais entre os seres humanos. Para ser sincero, isso foi ciência por certo tempo e só depois virou pseudociência. [....] Depois da tragédia da Segunda Guerra, assistimos a um esforço de todos os cientistas — biólogos, sociólogos, antropólogos — para sepultar a idéia de raça, desautorizando o seu uso como categoria científica [...]. Ou seja, as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. [...] As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Cabe deixar de lado o termo raça usado pelas ciências biológicas e tão difundido nos séculos XVIII e XIX, que entendiam como pertinente a ideia de raças humanas para diferenciar os grupos sociais — e até mesmo hierarquizá- -los —, para compreender que a única raça existente é a raça humana. Neves 3Etnia e raça (2006) compreende que esse termo só faz sentido se for utilizado no âmbito sociológico, no qual são levadas em consideração as origens do grupo, tanto pelos traços fisionômicos como pelos aspectos culturais, abarcando as suas complexidades históricas e a identidade dos seus membros. Silva e Soares (2011) destacam que esse “novo” uso do termo vem se consolidando; porém, em outros momentos, diferentes conceitos tentaram dar conta de identificar os grupos sociais de forma que considerassem a sua pluralidade sem hierarquizá-los, como explicam a seguir: Apesar dessas novas leituras conceituais e usos das palavras, o que confere uma mudança histórica altamentecomum e saudável no campo das mentalidades, o conceito de “raça”, por muitas vezes foi deixado de lado em detrimento de outros, não completamente substituidores, mas que talvez fizessem o mesmo papel definidor e classificador dessas pessoas unidas por características, cultura e instituições semelhantes e, num contexto de luta por igualdades, experiências parecidas de resistência e/ou percepção de todo um sistema insistentemente segregacionista. Atualmente, um desses outros conceitos seria o de “etnia”, que tem origem do grego ethnos, o que entendemos não só como um conjunto de pessoas da comunidade. É o pertencimento do grupo, independente dos laços consanguíneos e a construção de ações coletivas (SILVA; SOARES, 2011, p. 106). Assim, o termo etnia abrange a complexidade dos contextos sociais, po- líticos e econômicos dos grupos sociais, não só enquanto identificação de grupo, mas enquanto mobilização política para a sua existência em meio aos outros grupos sociais. Luvizotto (2009, p. 30) explica que “[...] a concepção de etnicidade está além da definição de culturas específicas e, portanto, é composta de mecanismos de diferenciação e identificação que são acionados conforme os interesses dos indivíduos em questão, assim como o momento histórico no qual estão inseridos [...]”. Logo, com essa discussão, temos um quadro panorâmico de como os conceitos de raça e etnia se inserem nas sociedades e nos debates atuais. Sobre as transformações culturais nas sociedades, leia o artigo Culturas em transforma- ção: os índios e a civilização, da antropóloga Clarice Cohn. Ele revisita os conceitos de cultura e de tradição a partir da ideia de mudanças culturais entre um grupo indígena brasileiro, a fim de compreender como não há sociedade “pura” ou “intocável”. Etnia e raça4 Questões histórico-sociais dos conceitos de etnia e raça Para que você possa entender como esses conceitos foram utilizados diante das questões histórico-sociais, vamos enfatizar alguns momentos da história mundial e até mesmo da história nacional pertinentes a essa compreensão. É importante perceber que alguns usos políticos dos conceitos de raça e etnia podem explicitar diferenças entre grupos sociais dispostas pelos poderes político e econômico ou mesmo pretendem invisibilizar aspectos específi cos de culturas que vivem no mesmo espaço territorial, a partir de uma suposta de ideia de democracia racial. O primeiro destaque aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945). O plano alemão de conquista do mundo se valia da diferen- ciação dos grupos sociais para hierarquizar uns sobre os outros e valorizar a dita raça ariana: os descendentes de uma das três grandes sociedades humanas provenientes do Cáucaso (região da Europa Oriental e da Ásia Ocidental, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio). Mazowe (2008) destaca que os nazistas optaram pelos velhos padrões coloniais europeus, tanto em termos geopolíticos como em termos de questões raciais, para impor as suas ideias imperiais, exterminar povos considerados diferentes dos seus e se apresentar como raça superior. Assim, essa era uma estratégia política de Adolf Hitler (político alemão que foi líder do Partido Nazista) para dividir os grupos sociais, mas também fazer com que os arianos apoiassem esse regime político por medo de morrer, como analisa Foucault (1996, p. 210): [...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras raças. Este é apenas um de seus aspectos. O outro [aspecto] é o de expor a própria raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres fundamentais da obediência nazista e entre os objetivos essenciais da política. Entretanto, em nome da construção da Alemanha somente por pessoas provenientes da raça ariana, inúmeras atrocidades foram cometidas, misturando nazismo com eugenia — a seleção das pessoas com base em características genéticas. Umas das consequências desse pensamento político entre os go- vernantes alemães da época foi o holocausto, que, segundo Katz (1994, p. 28), é descrito como “[...] fenomenologicamente único em virtude do fato de que nunca antes um Estado se fixara, como objetivo de princípio e como política 5Etnia e raça de fato, a tarefa de aniquilar fisicamente cada um dos homens, mulheres e crianças pertencentes a um povo determinado [...]”. Para ter ideia de quantos judeus morreram nos vários países, veja os números do Quadro 1. Fonte: Adaptado de Coggiola (2015). País População judia antes da Guerra População judia exterminada Percentual exterminado Polônia 3.300.000 3.000.000 91 Países Bálticos 253.000 228.000 90 Alemanha e Áustria 240.000 210.000 88 Boêmia e Morávia 90.000 80.000 89 Eslováquia 90.000 75.000 83 Grécia 70.000 54.000 77 Holanda 140.000 105.000 75 Hungria 650.000 450.000 70 Bielorrússia 375.000 245.000 65 Ucrânia 1.500.000 900.000 60 Bélgica 65.000 40.000 60 Iugoslávia 43.000 26.000 60 Romênia 600.000 300.000 50 Noruega 1.800 900 50 França 350.000 90.000 26 Bulgária 64.000 14.000 22 Itália 40.000 8.000 20 Luxemburgo 5.000 1.000 20 Rússia 975.000 107.000 11 Dinamarca 8.000 120 2 Finlândia 2.000 ? ? Total 8.861.800 5.933.900 67 Quadro 1. Extermínio dos judeus na Europa Etnia e raça6 Diante desses números, percebemos como determinado uso da ideia de raça pode ter consequências perversas e aterrorizantes. Um segundo destaque para pensar nos conceitos estudados neste capítulo é em relação à difusão de uma suposta democracia racial no Brasil do século XIX. Assim como o nosso primeiro exemplo, essa proposta também tem implicações políticas de modo a invisibilizar as disputas raciais da constituição do povo brasileiro. Freyre (1995) apresenta uma convivência quase harmoniosa entre brancos, indígenas e negros desde a colonização do Brasil, trazendo a ideia de que não havia disputas raciais, imposições culturais ou mesmo resistência por parte dos povos colonizados. A sua perspectiva era de evidenciar traços de diferentes culturas que formaram o que hoje conhecemos como a cultura brasileira, mas essa leitura foi apropriada politicamente pelos governantes da época para dizer que havia no Brasil uma democracia racial. No entanto, apesar de esse ter sido um discurso oficial por muito tempo, os cidadãos reconhecem no cotidiano das cidades brasileiras que isso é um mito, como explicita Hasenbalg (1979, p. 239): [...] as pessoas não se iludem com relação ao racismo no Brasil; sejam bran- cas, negras ou mestiças, elas sabem que existe preconceito e discriminação racial. O que o mito racial no brasileiro faz é dar sustentação a uma etiqueta e regra implícita de convívio social, pela qual se deve evitar falar em racis- mo, já que essa fala se contrapõe a uma imagem enraizada do Brasil como nação. Transgredir essa regra cultural não explicitada significa cancelar ou suspender, mesmo que temporariamente, um dos pressupostos básicos que regulam a interação social do cotidiano, que é a crença na convivência não conflituosa dos grupos raciais. Para refletir sobre questões de desigualdades sociais vinculadas à discussão de raça e de classe no Brasil, leia o artigo Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira, do sociólogo Jessé Souza. https://goo.gl/Dm4C8C Sabe-se que houve, no começo do século XIX, políticas de branqueamento que buscavam atrair populações da Europa ao Brasil, a partir de vantagens para a fixação desses povos no território brasileiro. Silva (2017, p. 594) explica como se deu essa articulação: 7Etnia e raça [...] para o entendimento da democracia racial como dispositivo biopolítico as- sentado na miscigenação e no chamado “projeto” de branqueamento da nação, nomeadamente a partir dos anos 1930, quando a miscigenação e a negação oficial do racismo passaram a ser emblemáticos nas narrativas identitárias da nação. [...] É neste contexto que defendo a ideia de que a população negra acaba por ser constituídacomo saber, pois incluída nas narrativas nacionais pelo viés da miscigenação é excluída pelo seu virtual desaparecimento, uma vez que o branqueamento é concebido mediante a própria ideia de miscigenação. Mesmo evidenciando os motivos e as consequência do mito da democracia racial, Munanga (1999, p. 125–126) explica que essas ideias influenciam até mesmo a maneira como a nossa sociedade é constituída hoje: Apesar do esforço dos movimentos negros em redefinir o negro, dando-lhe uma consciência política e uma identidade étnica mobilizadoras, contrariando a ideologia de democracia racial construída a partir de um racismo universal, assimilacionista, integracionista — o universalismo — aqui, concordamos com Peter Fry — essa ideologia continua forte no Brasil, na sua constituição e na idéia da democracia racial, mesmo se há sinais [...] de uma crescente polarização. Se a mestiçagem representou o caminho para nivelar todas as diferenças étnicas, raciais e culturais que prejudicavam a construção do povo brasileiro, se ela pavimentou o caminho não acabado do branquecimento, ela ficou e marcou significativamente o inconsciente e o imaginário coletivo do povo brasileiro. Chamando atenção para essas situações que envolvem a discussão de raça e etnia, pretendemos enfatizar a relevância das conceituações apresentadas e a necessidade de um olhar crítico para a proposição de diferença dos grupos sociais. Longe de resolver a questão, o objetivo é ampliar a percepção de como esses conceitos estão atrelados às discussões políticas e econômicas, não só na nossa história, mas também nos dias atuais. Um importante aspecto histórico em relação à questão de raça e etnia se refere à escravidão de um povo sobre o outro. Assista ao filme 12 Anos de Escravidão, de Steve McQueen, que mostra as humilhações físicas e morais pelas quais o ser humano passa quando está sob o domínio de outro ser humano. Etnia e raça8 Repensando o preconceito racial A partir dos exemplos emblemáticos enfatizados, devemos lembrar que o preconceito racial ainda é velado nos dias de hoje. Talvez não tão explícito como no holocausto, na escravidão ou mesmo nas políticas de branqueamento anteriormente citadas, o olhar com desdém para alguém de etnia diferente ou mesmo a exclusão de um currículo por conta da cor da pele são considerados formas de preconceito racial. Para Blumer (1965), quatros aspectos permite evidenciar as formas de preconceito racial por um grupo dominante: (a) de superioridade; (b) de que a raça subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; (c) de monopólio sobre certas vantagens e privilégios; e (d) de medo ou suspeita de que a raça subordinada deseje partilhar as prerrogativas da raça dominante. Logo, as populações que se sentem prejudicadas em função do preconceito racial têm se organizado em movimentos sociais e se articulado para fazer valer os seus direitos sociais. Considera-se que as políticas ações afirmativas: […] tomam como base para sua implementação a extrema desigualdade racial brasileira no acesso ao ensino superior. Os argumentos favoráveis concentram- -se nesse sentido, afirmando a necessidade de um enfrentamento direto da sociedade brasileira a esse respeito, o que implica o reconhecimento de que o Brasil é um país racialmente desigual e que tal situação é fruto de discrimina- ção e preconceito, e não de uma situação de classe social (LIMA, 2010, p. 87). Essas políticas são consequência da mobilização dos movimentos sociais vinculados à noção de raça e etnia. Entre eles, podemos destacar: A partir da segunda metade da década de 1990 acelera-se um processo de mudanças acerca das questões raciais, marcado fortemente por uma aproxima- ção entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro. É a partir deste momento que as reivindicações por ações mais concretas para o enfrentamento das desigualdades raciais começam a ser cobradas. Dois acontecimentos — um de âmbito nacional e outro, internacional — são destacados consensualmente pelos estudiosos do tema como momentos importantes desse processo: a Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, ano de comemoração do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, e a Conferência de Durban, em 2001 (LIMA, 2010, p. 89). Podemos dizer que, apesar de diferentes grupos sociais que reivindicam a questão da identidade étnica no Brasil, como negros, indígenas, ciganos e 9Etnia e raça outros povos que habitam o território brasileiro, a mobilização do movimento negro tem se destacado (Figura 1). Essas mobilizações descritas acima tiveram consequências concretas nas implantações das cotas raciais, como explicita Maio e Santos et al. (2010, p. 189): Logo após a conferência, o governo brasileiro definiu um programa de po- lítica de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrícola e Reforma Agrária, Justiça e Relações Exteriores) (Moehlecke, 2002). No plano estadual e municipal, diversas iniciativas foram realizadas para a im- plementação do sistema de cotas. Aquela que obteve maior destaque no final do ano de 2001 foi a da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que estabeleceu uma porcentagem das vagas das universidades estaduais para pretos e pardos (Maggie; Fry, 2004). A partir de 2002, o debate e a implementação de políticas de ação afirmativa com viés racial, com foco no sistema de cotas, estenderam-se por diversas universidades públicas, tanto estaduais como federais. Em sua ampla maioria, com regras variadas, foram definidos mecanismos centrados na autodeclaração dos candidatos. Já a UnB, além de ser a primeira universidade federal a adotar o programa, estabeleceu critérios adicionais à autodeclaração para definir os beneficiários, ou seja, quem seriam os "negros". A implantação das cotas não se deu sem polêmicas, e desde então são produzidas avaliações sobre o programa em inúmeros estados. Figura 1. Movimento por Igualdade Racial. Fonte: Carlos (20178, documento on-line). Etnia e raça10 As principais críticas à política de cotas destacadas por Guarnieri e Melo- -Silva (2017, p. 185) desde a sua implantação em 2012 apontam: [...] inexistência biológica das raças; caráter ilegítimo das ações de “repara- ção” aos danos causados pela escravidão em tempo presente; risco de acirrar o racismo no Brasil; possibilidade de manipulação estatística da categoria “parda”; inviabilidade de identificação racial em um país mestiço; a questão da pobreza como determinante da exclusão social. Por outro ladro, também é preciso evidenciar pontos que foram vantajosos e que conseguiram provocar uma nova configuração da população no acesso à educação superior. Logo, a mesma pesquisa destacou: Os argumentos favoráveis concentraram-se na discussão sobre a constituciona- lidade das cotas e relevância para o país. A intervenção do Estado foi colocada como fundamental diante dos quadros de desigualdade raciais remanescentes de fenômenos sociais que precisam ser enfrentados; destacando-se que as “ações afirmativas” atuariam como alternativa para a busca de igualdade através da promoção de condições equânimes entre brancos e negros (GUAR- NIERI; MELO-SILVA, 2017, p. 185). Assim, pretendeu-se mostrar como podemos criar estratégias e apontamentos críticos para combater o preconceito racial, ainda que o seu processo histórico tenha se enraizado não somente no contexto nacional, como também no contexto internacional. Para compreender mais sobre o processo de implementação das cotas em termos das discussões sobre raça e etnia, leia o artigo A reserva de vagas para negros nas universidades brasileiras, de Yvonne Maggie e Peter Fry. https://goo.gl/xfpMVn 11Etnia e raça BLUMER, H. The nature of racial prejudice. In: HUNTER, G. Industrialization and Race Relations. Westport: Greenwood, 1965. CARLOS, J. Manifestantes marcham por igualdade racial em frente ao viaduto do Chá, no centro de São Paulo. 1978. Disponível em: <http://memorialdademocracia.com.br/card/ato-reorganiza-o-movimento-negro>. Acesso em: 31 out. 2018. COGGIOLA, O. A Segunda Guerra Mundial: causas, estruturas, consequências. 2015. Disponível em: <https://irp-cdn.multiscreensite.com/9cf088fc/files/uploaded/OC- SegundaGuerraMundial.pdf>. Acesso em: 31 out. 2018. FOUCAULT, M. Genealogia del racismo. La Plata: Altamira, 1996. FREYRE, G. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da eco- nomia patriarcal. 30. ed. 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