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42 a igualdade remete aos direitos que todos possuem. Da mesma forma, o currículo escolar deve ser observado com atenção pelos professores, em cada detalhe, na seleção de conteúdo, textos, livros didáticos e técnicas a serem utilizadas. Deve-se reconhecer que todo saber carrega consigo o poder de produzir um entendimento sobre o mundo. Ao trabalhar junto aos alunos os processos de formação de suas identidades culturais, os professores podem valer-se do importante recurso das histórias de vida desses sujeitos. Ao narrar a sua trajetória, os alunos exercitam o processo de escolha de suas memórias e percebem os aspectos que lhes são mais caros e pertinentes. Da mesma forma, É importante que se opere com um conceito dinâmico e histórico de cultura, capaz de integrar as raízes históricas e as novas configurações, evitando-se uma visão das culturas como universos fechados e em busca do “puro”, do “autêntico” e do “genuíno”, como uma essência preestabelecida e um dado que não está em contínuo movimento (CANDAU, 2012, p. 8). 9 DISCRIMINAÇÃO A discriminação é composta por um jogo de forças cujo objetivo é a manutenção de poder por estratos sociais que se julgam possuidores de valor social mais elevado, o que resulta na produção de desigualdades como resultado estrutural da vida em sociedade. 9.1 Sobre a origem da discriminação O inatismo, princípio segundo o qual nascemos todos providos com alguma ideia que independe do meio onde vivemos, é controverso na filosofia. Alguns filósofos intuem que sim, outros que não; por isso, iniciaremos esta discussão investigando a possibilidade de a discriminação ser uma ideia que nasce com todos 43 os seres humanos, para, em seguida tratar desse fenômeno social a partir da cultura ou da construção simbólica que é amplamente difundida na sociedade. Segundo o dicionário Houaiss, a discriminação é um conceito que envolve a distinção, que, aplicada à vida em sociedade, trata de uma quebra de sentido de igualdade (HOUAISS; VILLAR, 2001). Esse é um bom ponto de partida para esta investigação, que continuará a partir da análise de alguns filósofos contratualistas sobre o tema da vida em sociedade, uma vez que é do período Iluminista que herdamos o ideal de uma vida igualitária entre todos os cidadãos e que se funda na ideia de que a garantia de direitos individuais é um elemento fundamental para a dignidade humana. Desse período, três filósofos que tratam do inatismo serão destacados para a análise, a saber: Locke, Hobbes e Rousseau. O primeiro, Locke (1983), critica o inatismo e toma o ser humano como uma tábula rasa, em que nada está previamente escrito. Já Hobbes (1979) e Rousseau (1978) abordam o inatismo segundo a ideia que fazem da “natureza humana”, ou uma abstração sobre o comportamento humano a partir de um momento que antecede o contrato social, o qual denominam “estado de natureza”. Locke (1983) também trata do “estado de natureza”, condição na qual a razão orientaria a conduta social segundo uma lei natural na qual é fundamental a atenção ao princípio de igualdade, sobretudo ao prejuízo da vida, da saúde, da liberdade e das posses. Para o filósofo, é a razão que torna possível a conduta natural, e não um conhecimento inato. A ideia de “estado de natureza” é distinta entre Hobbes (1979) e Rousseau (1978). Enquanto o primeiro afirma um caráter egoísta inato, que orienta a conduta humana a uma visão competitiva da vida, em que todos realizamos um movimento que consiste em se aproximar do que nos agrada e se afastar daquilo que nos desagrada, Rousseau (1978) ressalta a capacidade de todos de se associarem em torno de vontades gerais, que seriam as responsáveis pela alienação coletiva da liberdade natural em favor da aquisição da liberdade civil. Se pensarmos a discriminação em termos individuais, a teoria de Hobbes (1979) nos levaria a conclusões interessantes, no entanto, em ambos os casos, é difícil derivar o 44 comportamento discriminatório pela análise de grupos sociais uns contra os outros, seja por seu caráter cultural, físico, religioso ou comportamental. Pensar a discriminação enquanto um fenômeno social que afronta a igualdade entre todos os seres humanos como o resultado de ideias que são adquiridas por meio de nosso convívio social torna mais apropriado, ao debate, o seu desenvolvimento de análise a partir do campo da cultura, uma vez que dela derivam os aprendizados de significados comumente atribuídos para descrever o mundo e orientar nossa conduta coletiva. Aqui, utilizaremos o conceito de cultura exposto por Geertz (1978), que trata a cultura enquanto significados que são produzidos e compartilhados amplamente em sociedade e que sustentam as nossas relações sociais. O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1978, p. 15). De fato, é a nossa capacidade de “simbologizar” que torna possível criar, atribuir e compreender significados (WHITE, 2009). A partir dessa característica, é possível analisar qualquer processo social, mas os significados constituídos mudam ao longo do tempo, o que evidencia a ideia de aprendizado, mas, ao mesmo tempo, impõe o desafio de identificarmos na discriminação seu aspecto mais geral, capaz de abranger uma multiplicidade de casos específicos. O tratamento diferenciado a determinados extratos da sociedade que configura a discriminação será abordado, portanto, enquanto relações de poder. Desse modo, seremos capazes de tratar do conceito de modo abrangente, o que permitirá sua compreensão em diferentes contextos empíricos, como, por exemplo, em relação a discriminação racial, de gênero, sexual ou religiosa. Para facilitar essa análise, é importante compreender a sociedade como composta de diferentes conjuntos humanos, que possuem diversas formas de interconexão entre si, e, a partir dessa ideia, isolar determinados conjuntos para refletir sobre o modo como se dão as relações de poder entre estratificações 45 distintas. Por exemplo, se tomarmos a população brasileira como um todo, podemos separar o conjunto compostos por mulheres, negras e homossexuais para, então, avaliar o modo como participam da sociedade por meio de indicadores sociais e também interpretar as evidências culturais que afirmam ou negam a influência dessa população em comparação ao todo, ou mesmo a outra estratificação, como a dos homens, brancos e heterossexuais. Entre esses conjuntos, não há qualquer interseção e, portanto, as assimetrias quanto a indicadores de emprego, renda, nível educacional, moradia ou violência podem ser comparados com a finalidade de incorporar evidências empíricas para a interpretação social a respeito do fenômeno da discriminação. A análise de problemas sociais, como a discriminação, pela sociologia, não pode abrir mão de dados empíricos para ser capaz de cumprir as etapas do método científico, que observa recorrências no mundo, formula hipóteses para explicar o fenômeno, colhe dados empíricos sejam eles numéricos ou a partir do registro de fatos que corroborem uma interpretação e, por fim, fundamenta uma teoria ou formula uma lei geral que apresenta relações de causa e consequência para uma multiplicidade de situações que cumpram as mesmas premissas. É evidente que o fenômeno da discriminação é persistente ao longo da história humana, mas se buscou deixar claro, nesta primeira seção, que a cultura desempenha um papel preponderante para a análise do tema e que estabelece relações de poder capazes que podem ser interpretadaspelo modo como justificam a atribuição de valor humano diferente a determinados grupos na sociedade, inferiorizando-os e mantendo privilégios já estabelecidos. Esse jogo de poder se dá por meio da aplicação de forças, que atuam em diferentes camadas da vida em sociedade e são percebidas a partir do modo como alteramos nossa perspectiva para abordar os problemas sociais derivados da discriminação. Por todos os diferentes olhares, fica evidente a formação de preconceitos e a violência que perpetuam as desigualdades sociais (MARIN, 2020). 46 9.2 A relação entre discriminação, preconceito e violência Nem mesmo o maior negacionista, quanto à discriminação, poderia admitir que existe igualdade social na atualidade, uma vez que fartos são os exemplos do aleijamento de parcelas representativas da sociedade com base em critérios de aparência física, orientação sexual, de gênero ou religiosa. Existe um sem número de evidências históricas muito bem documentadas que nos ajudam a compreender que determinados extratos da sociedade são considerados seres humanos de menor valor. Como vimos anteriormente, esse fenômeno social será analisado sob a perspectiva das relações de poder, e a aplicação dessa categoria de análise sociológica tornará mais claro o modo pelo qual a discriminação se forma e se manifesta na sociedade. O ponto de partida para nossas análises se dará a partir da obra de Elias e Scotson (2000). Elias explica que encontrou, em uma pequena comunidade no interior da Inglaterra, um tema humano universal para realizar um estudo sociológico sobre as relações de poder. O foco do estudo inicialmente tratava de diferentes índices de delinquência entre dois grupos de moradores de uma pequena comunidade, chamada Winston Parva, na qual vivia uma parcela da população constituída de antigos habitantes e outra com novos moradores, desabrigados pelos bombardeios nazistas durante a II Guerra Mundial, que ocupavam um conjunto residencial composto de 700 casas. Entretanto, logo que o pesquisador vai a campo, os índices começam a se estabilizar e, com o passar do tempo, não mais se nota alguma diferença evidente entre o agrupamento dos antigos e dos novos moradores (ELIAS; SCOTSON, 2000). Elias passa a se interessar pela relação estabelecida entre os novos e antigos moradores daquela comunidade, que não possuíam grandes diferenças raciais, religiosas ou salariais. O autor chama de “estabelecidos” os antigos residentes de Winston Parva, de “outsiders” os recém-chegados, e orienta suas análises a relacionarem os comportamentos, o linguajar utilizado e a percepção 47 coletiva que se dá a partir da perspectiva de “estabelecidos” e “outsiders” (ELIAS; SCOTSON, 2000). Os autores identificam no grupo “estabelecido” um maior grau de coesão social, o que explica sua maior eficiência na aplicação de forças para se manterem em espaços de poder, evidenciada pelas organizações comunitárias existentes — a participação nessas organizações garantia status diferenciado perante os demais habitantes. Essa coesão também possibilitava ao grupo “estabelecido” um rápido compartilhamento de significados entre seus membros, uma vez que todos se conheciam de longa data. Esse processo inicial é chamado por Elias de “estigmatização” e ocorre quando o conjunto de preconceitos individuais se torna parte de um grupo (ELIAS; SCOTSON, 2000). Nessa obra, os sociólogos apresentam anotações realizadas a partir de depoimentos espontâneos dos “estabelecidos” que tornam evidente a classificação dos “outsiders” como pessoa de categoria inferior (ELIAS; SCOTSON, 2000). É possível notar, nessas anotações, que são realizadas generalizações ao grupo “outsider” que confrontam os valores cultivados pelo grupo “estabelecido”, como com relação a higiene pessoal, caráter, preferência política ou hábitos de consumo alcóolico. Esses pequenos preconceitos, conforme vão tomando um caráter de grupo, transformam-se em estigmas que caracterizam pejorativamente o grupo “outsider”. É curiosa e pertinente a referência de Elias com relação ao papel da fofoca nesse processo, uma vez que a informação circula de maneira muito mais eficiente entre um grupo coeso socialmente do que em um fragmentado, como é a característica da população residente no conjunto habitacional (ELIAS; SCOTSON, 2000). A piada, a caricatura e a generalização são aplicadas de modo a depreciar o alvo das informações transmitidas entre os habitantes antigos da comunidade e que foram ouvidos pelo pesquisador, o qual registrou, também, impressões sobre o tom de voz e o vocabulário utilizados na fofoca, cuja motivação subjetiva era enfatizar a superioridade de um grupo em detrimento de outro (ELIAS; SCOTSON, 2000). 48 Essa análise realizada por Elias (ELIAS; SCOTSON, 2000) e que vai do indivíduo para o coletivo é também empreendida por Almeida (2019), que descreve o racismo estrutural, que se inicia com o preconceito, individual, baseado em estereótipos, e a discriminação, a partir da qual um grupo se beneficia com a aplicação da força para a manutenção do poder. Para Almeida (2019), a discriminação possui uma concepção individualista segundo a qual as ações de violência são praticadas por grupos isolados ou indivíduos que se comportam irracionalmente, contrários a uma ética que se regula juridicamente a fim de punir ou indenizar, o que bastaria, na opinião de alguns, para resolver o problema do racismo. Para o autor, embora sejam chocantes os exemplos que justificam a análise individualista do problema da discriminação na sociedade, deve-se também atentar para uma abordagem institucional e estrutural sobre o problema, porque essas, sim, dão uma dimensão do processo histórico que mantém as desigualdades e impede certos estratos sociais de participarem de forma justa dos jogos de poder que se estabelecem ao longo da vida dos indivíduos em sociedade. Pela concepção institucional, Almeida (2019) chama a atenção para a compreensão de como a cultura e os padrões estéticos são estabelecidos e para o modo como são preenchidos os cargos de instituições públicas e privadas. Assim, é chamado de racismo institucional aquele que se repete segundo uma orientação que mantém os sistemas sociais estáveis. Já a análise do racismo pela perspectiva estrutural abrange a sociedade como um todo, o processo de constituição dos indivíduos e o funcionamento de diversas instituições públicas ou privadas, de modo que a responsabilização jurídica não satisfaz as premissas necessárias à mudança social necessária para a prevenção e para o combate à reprodução de desigualdades baseadas em um jogo de poder, que reforça as assimetrias ao longo do processo político e histórico da sociedade. Os preconceitos são fonte da discriminação e organizam simbolicamente o estrato social que desempenha o papel de “outsider”, que, portanto, é excluído das diferentes organizações sociais, seja de instituições públicas ou privadas, nas quais 49 o jogo de poder pode ser amplificado e influenciar o funcionamento dessas instituições e da cultura como um todo. Qualquer tipo de discriminação que se desenvolve historicamente, a ponto de influenciar o processo político de uma sociedade, pode ser analisado quanto ao seu desenvolvimento estrutural, a partir das marcas que deixa ao longo da história e de relatos sobre diferentes conflitos que mobilizam a opinião pública de modo cada vez mais intenso, na mesma proporção em que se popularizam os dispositivos capazes de produzir textos, sons e imagens a serem publicados em servidores conectados à internet. Os registros de violência moral ou física que determinados grupos sociais sofrem viralizam on-line e mobilizam a atenção pública sobre o tema da igualdade. Normalmente, trazem imagens fortes, que nos fazem imediatamente repudiar o uso da violência, notadamenteexpressa em função de raça, gênero, orientação sexual, religiosa ou de qualquer situação que indique uma identidade coletiva discriminatória. O que alerta Almeida (2019), aplicado ao racismo, é que a sociedade deve focar seus esforços nos pilares estruturantes da discriminação, e não apenas criminalizar atos isolados, com a finalidade de viabilizar uma sociedade da qual todos participem de modo igualitário. A elaboração de medidas para a promoção de ações afirmativas é a principal atitude tomada por instituições públicas e privadas para tentar romper diversas formas de discriminação que estão estruturalmente presentes na sociedade, como é o caso daquela que identifica os grupos humanos segundo funções que devem desempenhar na sociedade, os chamados “papéis sociais” (CASTELLS, 2010), segundo os quais, por exemplo, as mulheres são associadas ao trabalho doméstico ou pessoas negras devem assumir posições de servidão. Por isso, são criadas políticas de cotas raciais para a ocupação de empregos ou de vagas em instituições de ensino superior, o que torna possível à sociedade desvincular a ideia de funções sociais associadas a categorias de estratificação e permite igualdade de oportunidades para a diversidade humana que compõe a sociedade como um todo. 50 9.3 Consequências da discriminação para a dignidade humana A ideia de direitos humanos enquanto parte de um pressuposto de igualdade tem fortes fundamentos lançados no pensamento ocidental durante o Iluminismo, a cujos filósofos devemos a organização do Estado moderno, enquanto uma república, composta por três poderes que se autorregulam e são regidos por leis. À época, as elites intelectuais, sobretudo na França e na Inglaterra, empenharam-se em questionar o regime político absolutista, em que a nobreza e a igreja se constituíam como grupos “estabelecidos” e todo o restante da população, amplamente majoritária, como “outsiders”. Locke (1983) já apresenta em sua obra a ideia de direitos naturais como sendo aqueles evidentes à razão e que tratam da preservação da vida, da saúde, da liberdade e das posses. Na França, a Assembleia Nacional Constituinte aprova, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual todos os seres humanos são agrupados em uma categoria única, da “humanidade”, nascem livres e compartilham os mesmos direitos. Depois do Iluminismo e de seus ensinamentos para a constituição de uma ordem social capaz de buscar o estado de igualdade entre os seres humanos, um marco histórico de violência motivado pela discriminação é fartamente documentado no século XX e expõe ao mundo, com registros visuais, as atrocidades cometidas contra os judeus durante a II Guerra Mundial, cuja barbárie fez nascer a necessidade de um compromisso global que evidenciasse a preservação de direitos mínimos capazes de preservar a dignidade humana e, portanto, indicassem a contramão do que pode ocorrer com a discriminação de certos estratos sociais na vida em sociedade. Imediatamente após a guerra, é fundada a Organização das Nações Unidas e, três anos depois, promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948. A DUDH não tem força de lei, serve apenas como inspiração para o ideal de igualdade e da preservação da dignidade humana, e sua autoria é resultado do esforço de um organismo multilateral, com abrangência global. A partir desse marco internacional, movimentos sociais começam a ganhar notoriedade, sobretudo nos 51 Estados Unidos, o que culmina com a aprovação, em 1964, da legislação que garante os direitos civis (Civil Rights Act) a todos os cidadãos e criminaliza a discriminação baseada em raça, cor, religião, orientação sexual ou nacionalidade. No Brasil, o artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 2016), que trata de direitos e deveres individuais e coletivos, prevê a igualdade perante a lei e protege a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade de todos os brasileiros e estrangeiros residentes aqui. Nota-se, evidentemente, o alinhamento da legislação brasileira aos ideais do Iluminismo; entretanto, apesar disso, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e a discriminação contra mulheres, negros e homossexuais se expressa de modo estrutural em diversas perspectivas de análise social, como trabalho, renda, escolaridade e violência. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, outras iniciativas legislativas foram realizadas para tentar mitigar o problema da discriminação sob a forma penal, que tipifica crimes contra minorias, como os que ocorrem motivados contra as mulheres e contra os negros. Já a legislação que se relaciona aos homossexuais ou outros representantes da comunidade LGBTQ+ não foi aprovada pelo Congresso Federal, mas, em 2019, o Supremo Tribunal Federal determinou que os crimes de racismo sejam aplicados a esses casos até que uma lei específica seja aprovada pelo poder legislativo. A regulamentação de marcos legais que chamam a atenção para atos discriminatórios na sociedade é importante, mas, como já mencionado anteriormente, não bastam para o enfrentamento do caráter estrutural do problema. Portanto, os governos, a sociedade civil organizada e as instituições privadas têm se mobilizado conjuntamente para que a promoção da igualdade e a proteção da dignidade humana se afirmem como direitos fundamentais no mundo em que vivemos. Entre as ações afirmativas que visam a promoção da igualdade, podemos citar as políticas de cotas, que são aplicadas em universidades públicas, partidos políticos, concursos públicos e no contexto do preenchimento de vagas de trabalho em algumas empresas privadas. Essas iniciativas, muito questionadas na sociedade atual, visam a promoção de ações que impliquem a melhoria de 52 perspectivas de mobilidade social, qualidade de vida e promoção da diversidade em diferentes esferas públicas e privadas da vida em sociedade. O problema da discriminação tem sido potencializado na atualidade em virtude do registro de atos violentos contra minorias sociais com dispositivos móveis e que são publicados em redes sociais, gerando ampla divulgação e comovendo parcelas amplas da população em torno do tema da igualdade e da importância de combater a discriminação com amplitude global (SUDRÉ, 2020). No ano de 2020, uma agressão policial ocorrida na cidade de Mineápolis, nos EUA, que levou à morte de um homem negro por asfixia, foi filmada e publicada em redes sociais. As imagens do policial ajoelhado sobre o pescoço da vítima, causando o sufocamento, viralizaram e motivaram diversos protestos, mundo afora, sob o slogan Black Lives Matter (em português, vidas negras importam), chamando a atenção da opinião pública global para o fato de que o tema da igualdade racial ainda deverá percorrer uma longa trajetória até que se efetive enquanto uma prática social amplamente aceita e respeitada por todos. Entretanto, como lembra Almeida (2019), não é por meio do mero combate à violência que o problema da discriminação pode ser enfrentado, já que isso pode levar a sociedade a interpretações equivocadas sobre a centralidade do caráter individual da discriminação nesse sentido, o autor chama a atenção para o aspecto estrutural do problema. A discriminação, portanto, deve ser compreendida de modo cultural, difundida na sociedade por meio de estratégias de dominação que mantêm a centralidade do poder em grupos que são historicamente privilegiados e que produzem a estigmatização de outros grupos como uma forma de colocar em evidência seu valor inferior na sociedade. É possível mudar esse quadro, mas a solução passa por uma ampla conscientização sobre o modo como a discriminação está amplamente inserida na sociedade, não se restringindo apenas a pequenos grupos ou indivíduos que apresentam comportamentos desviantes, cuja violência é capaz desensibilizar a sociedade para a necessidade de mudanças. Contudo, ao mesmo tempo, faz com que a real magnitude do problema seja minimizada pela exemplar punição de alguns 53 poucos casos isolados mobilizados pela opinião pública, relacionados a violência física, enquanto a violência cotidiana, a segregação e a desigualdade de oportunidades ferem direitos fundamentais que tentam ser implementados em diversas partes do mundo há mais de 200 anos, ainda sem sucesso. 10 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS Desde a Antiguidade, a expansão territorial era perseguida pelas nações. Assim, foram criados os contextos de dominação. Como você sabe, o processo expansionista deixou marcas tanto nas sociedades colonizadas quanto nas colonizadoras. No Brasil, último país ocidental a abolir a escravatura, as raízes históricas de dominação do povo negro deixaram um legado de marginalização social. Por isso, as ações afirmativas e as políticas públicas se voltam, no século XXI, a resgatar a dívida histórica e devolver as possibilidades que são devidas a esse povo (AUGUSTINHO, 2019). 10.1 Desigualdades simbólicas e estruturais à luz da sociologia brasileira Os estudos de Fernandes (1978) datados da década de 1960 colocaram em xeque as leituras anteriores das relações raciais no Brasil. Nas décadas de 1940 e 1950, havia a ideia de que o Brasil era um país miscigenado, composto por inúmeras raças e etnias e que, portanto, não existiriam por aqui comportamentos racistas ou excludentes. Para Fernandes (1978), contudo, as falas sobre o tema não condiziam com a realidade. Filho de uma lavadeira, esse sociólogo tivera experiências de vida que indicavam que os trabalhadores braçais, mais pobres, eram em sua maioria negros ou descendentes de famílias negras. As classes mais abastadas, no entanto, aquelas que contratavam os serviços de sua mãe, eram compostas por uma maioria branca. Se havia tanta diferença racial entre as classes, como não havia racismo? Fernandes (1978) entendeu que as relações de raça no Brasil tinham um recorte de classe: as classes mais baixas eram negras, e as mais
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