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66 bimodais, esse caminho de desenvolvimento para uma estrutura combinatória é familiar e previsível. 8 LITERATURA SURDA Comunicar e interagir são necessidades de todos e vão além da busca por compreensão. Nesse sentido, a literatura surda ou a literatura por meio dos recursos da língua de sinais facilita o processo de construção cognitiva e a ampliação de vocabulário, fazendo com que o silêncio dos surdos não seja manifestado por preconceitos culturais e exclusão social, permitindo que seja reconhecida a existência de possibilidades, para essa comunidade, de recursos de conhecimento semelhantes aos dos ouvintes. Neste capítulo, portanto, você vai entender do que se trata a literatura surda, reconhecendo as suas características e diferenciando-a da literatura tradicional, voltada aos ouvintes. 8.1 O Que é Literatura Surda? A palavra literatura, em sentido amplo, aplica-se a todas as produções literárias de um país ou de uma época, sendo, portanto, um dos ramos essenciais do conhecimento humano. Literatura abrange os textos, orais ou escritos, sejam eles poesia, história, textos de gramática, eloquência, textos filosóficos ou teológicos, textos das ciências, dramas, dentre outras. Entretanto, a literatura não pode ser reduzida à sua etimologia — litterae, litteratura —, que se refere à “coisa escrita”, ainda mais quando nos referimos à literatura surda (PINTO, 2019). Distinguir os meios ou os recursos de literatura surda envolve um mundo totalmente diverso do habitual e preestabelecido em uma nação ouvintista que não conhece as culturas e as especificidades da comunidade surda. Enquanto define-se surdo por sua perda auditiva, dividimos o mundo em duas categorias que dependem do modo de comunicação: aqueles que se comunicam usando a verbalização e aqueles que se comunicam usando a língua de sinais. Diante desse ponto de vista, temos, portanto, uma diferença cultural, e não uma deficiência 67 no sistema sensorial. De fato, algumas pessoas com surdez têm ou necessitam de uma reeducação oral, caso não tenham aprendido ou desenvolvido a comunicação por meio da Libras e tenham vivido, quase que exclusivamente, em meio a pessoas ouvintes. Ao contrário, um ouvinte com pais surdos pode ter aprendido a língua de sinais como língua materna e ter vivido principalmente em um ambiente social de cultura surda. É a partir desses fatos que podemos identificar e definir a literatura surda. A literatura da qual estamos falando deveria constituir um meio de acesso não só à cultura surda, mas à cultura dos países e comunidades de modo geral. Para crianças surdas, muitas vezes, é mais difícil adquirir referências culturais comuns; por isso, elas devem ser movidas pelo desejo e pela curiosidade que a própria literatura traz, como o de transmitir e receber informações e conhecimentos a fim de aprender outras culturas, outras ideias, distinguindo uma literatura realista de uma fantasiada e desfrutando do prazer que desenvolve a expressão de sentimentos e emoções. As principais características dessa literatura são o enriquecimento de vocabulário, a aquisição de conceitos e a decifração do acesso aos significados. Ser surdo é pertencer a uma cultura na qual os sinais, sejam escritos ou sinalizados, têm uma importância primordial na literatura voltada a ela. Quando a literatura retrata a questão dos surdos e da surdez, muitas das vezes, é concebida pelo viés patológico, e não no sentido socioantropológico que estabelece uma temática da diferença e não da falta dela (SANTOS; LIMA, 2016, p. 3). As pessoas com surdez não deveriam limitar-se às literaturas ouvintistas, o que poderia torná-las socialmente incapacitadas ao acesso à cultura. A literatura surda no Brasil ainda se encontra em criação e caminha a passos lentos, o que a torna uma definição em construção. Apesar disso, é importante destacar que a literatura surda não se dá apenas por meio do silêncio, mas por uma literatura não auditiva. A literatura é uma parte importante e valiosa de qualquer cultura e, para os surdos, não é diferente. Essa parte da cultura ajuda a explicar a identidade, as crenças e os modos de vida das pessoas com surdez, sendo apreciada e compartilhada não somente por essa comunidade. Não é possível articular os conceitos da literatura surda sem ao menos passar por suas exterioridades culturais e pela própria prática da linguagem não verbal, ou seja, sem o conhecimento mínimo da língua de sinais. 68 Em relação ao conceito de literatura surda, vale apenas trazer a importância de que esta literatura se constitui na perspectiva de quem vive na comunidade surda e é usuário da língua de sinais como sua L1 (SANTOS; LIMA, 2016, p. 3). Cada comunidade de surdos se caracteriza por uma difusa biografia em meio a batalhas e conquistas. Por isso, também é importante o conhecimento histórico dos surdos para realizar uma análise mais profunda sobre o assunto. A ancestral história dos surdos até a contemporaneidade é fascinante e, ao mesmo tempo, desumana e cruel, pois, unifica estudos sobre deficiências e a afirmação da diferença física, caracterizando os surdos como pessoas impossibilitadas. Essa história e essa cultura não podem ser confundidas simplesmente com o que realmente é a literatura surda. Não se pretende, com isto, ignorar que esses fatos fazem parte desta literatura, mas sim deixar claro que a história e a cultura apresentadas em escrita de língua de sinais ou pela própria Libras não são o único repertório da literatura surda — precisa-se muito mais do que isso. É necessário que poemas, poesias, textos, ciência, dentre outros, também estejam presentes na literatura de forma viável, em meios utilizados pelos surdos. 8.2 As Características Da Literatura Surda A língua brasileira de sinais (Libras) não é uma linguagem escrita, cuja comunicação altera a legitimidade de uma interação cordial quando aplicamos uma entonação, mas leva a uma literatura com ocorrência incomum, afinal, não conta com uma forma escrita alfabética que possa produzir uma literatura manuscrita ou oral. Suas narrativas são preservadas e sobrevindas de geração a geração pelo ato de arrolar histórias, piadas, trocadilhos, humor, canção, poesia, contos, entre outros por meio das mãos, do corpo e da face, em vez de oralizadas ou escritas — como acontece na literatura portuguesa —, refletindo sua experiência, tradição e seus valores (PINTO, 2019). A língua, a história e a cultura surda estão entrelaçadas e não existem uma sem a outra para que sua literatura seja desenvolvida. A maioria dos países têm a literatura surda como uma língua natural de comunicação e educação das pessoas com surdez. No entanto, nem sempre foi assim, e, para isso, é necessário entender melhor a história e a cultura da língua de sinais para compreender como foi originalmente constituída uma literatura. 69 A literatura do silêncio é a literatura visual, é um corpo de materiais literários que podem ser desde criativos até trabalhos técnicos ou científicos. Para Karnopp (2008, p. 14-15), “a literatura surda está relacionada com a cultura, contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística, constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas”. Com toda essa base, a literatura surda, por meio da língua de sinais, auxilia na compreensão, no aprimoramento e na construção de vocabulário nos mais variados contextos, que viabilizam uma ampliação de conhecimento da própria língua de sinais, propondo embasamento para auxiliar nos encaixes dos diferentes contextos e parâmetros e lembrando, sempre, das devidas expressões. A partir dos elementos supracitados, as características próprias de cada estrutura literária voltada às pessoas com surdez nos presenteiam com inúmeras possibilidadesde recriação, permitindo, assim, que aprofundemos a compreensão da língua de sinais, investigando e expandindo o conhecimento por meio das literaturas surdas. Porém, os surdos, de certa forma, constituem um grupo acanhado de cultura linguística e precisam adaptar-se, em sua maioria, à literatura ouvintista. A literatura voltada aos surdos necessita de muito mais do que a simples oralização ou das palavras descritas no papel; ela carece de movimentos em classificadores, construção espacial, marcadores manuais e expressões faciais e corporais para que a significância se torne ainda mais viva e verdadeira. Sem esses elementos, não se produz uma literatura surda de qualidade e compreensível a esses usuários. Quando falamos em literatura surda ou por meio da língua de sinais, também entramos no campo da tradução, já que não trata apenas de obras nacionais: elas também podem ser traduzidas ou adaptadas, mas não necessariamente são literatura surda. O clássico filme “Mr. Holland – Adorável Professor” de 1995) é um bom exemplo, afinal, trata-se de um filme em que há um personagem surdo, mas isso não significa que o filme tenha sido feito especificamente para essa comunidade. Os surdos formam um grupo de fator particular, que necessita de uma combinação entre língua de sinais e cultura própria para atribuir aquilo que é visto, e não aquilo que é escrito. Sabe-se que não é impossível unir ambas as coisas, mas a 70 construção literal descrita pelos próprios surdos é particular e para um público restrito nos interesses editoriais. No Brasil, por exemplo, o conto “Cinderela Surda”, escrito por Lodenir Becker Karnopp, Carolina Hessel e Fabiano Rosa, foi a primeira obra escrita em língua de sinais (no sistema SignWriting) voltada exclusivamente ao público surdo e, nesse fruto, estão inseridos elementos da identidade e cultura própria dessa comunidade. É difícil conhecer um escritor surdo que escreva voltado exclusivamente ao público de sua cultura. Alguns dos mais conhecidos no Brasil são, sem dúvida, além dos já citados acima, os instrutores do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Internacionalmente, a mais conhecida é Marlee Matlin, surda, atriz vencedora do Oscar de 1987 e que publicou três livros. Certamente, esses escritores estão classificados na categoria de “literatura surda”, um subgênero literário, já que o tema de que tratam não é apenas surdez, mas algo maior (PINTO, 2019). Independentemente do autor surdo, é comum que a maioria escreva curiosidades e experiências do mundo do silêncio, não porque sua cognição descritiva seja restrita, mas pela necessidade de expor sua cultura, de lutar em favor dos seus direitos e de fazer com que suas mãos sejam ouvidas. Todas as obras literárias oralizadas e utilizadas por uma comunidade de forma verbalizada ou escrita são originadas e destinadas às pessoas ouvintes, o que exclui o aproveitamento da literatura surda, afinal, essas obras não são propostas para a comunidade que vive no silêncio. Como nenhum método amplamente aceito foi desenvolvido para o registro da língua de sinais por escrito, ele prossegue como uma linguagem puramente “visual- espacial”. Após a chegada da tecnologia e do mundo cibernético, as línguas de sinais puderam ser gravadas, preservadas e distribuídas, porém, em pequenas e amadoras demandas. Hoje, no mundo virtual, por meios dos sites de acesso a vídeos, é possível encontrar inúmeros trabalhos que podemos classificar como literatura surda. Mas quais trabalhos seriam esses? É possível encontrar documentários, histórias, músicas, principalmente, poemas e outras obras em línguas de sinais para todo tipo de gosto, idade e sexo. Mas você por acaso já ouviu falar em algum filme de longa-metragem com tradução em Libras? Muitos dizem: “mas os filmes têm o closed caption”! Sim, mas, embora o 71 tenham, isso não configura um filme como dirigido à comunidade surda especificamente, já que a legenda não transpõe o mínimo realismo sonoro aos surdos. A Universidade Gallaudet, nos Estados Unidos, desenvolve, todos os anos, produções extraordinárias, belíssimas e destinadas exclusivamente à população que tem a língua de sinais como sua L1 — nesse caso, sim, obras literárias surdas. No Brasil, o INES, fundado e situado no Rio de janeiro, propõe ideias com essa mesma conveniência. A chegada e a prevalência da tecnologia de vídeo digital permitiram que mais pessoas e instituições gravassem suas próprias produções em língua de sinais, com mais facilidade e com compartilhamentos jamais previstos. Plataformas como YouTube, Facebook, Instagram, WhatsApp contribuíram para uma maior exposição das criações literárias originais. Como a Libras não é universal e cada país possui sua própria língua de sinais, as influências históricas, culturais locais e regionais ultrapassam fronteiras por esses meios virtuais e precisaram desenvolver a sua própria literatura — para o que se levou um bom tempo. Atualmente, existem, em média, 130 línguas de sinais, como a Língua Gestual Portuguesa (LGP), a Língua de Sinais Catalã (LSC), a Língua Americana de Sinais (ASL), a Língua de Sinais Sul-africana (SASL), a Língua de Sinais Japonesa (JSL) e a Língua de Sinais Francês (LSF), da qual se originou a Língua de Sinais Brasileira (Libras), entre outras (PINTO, 2019). Com a evolução das línguas de sinais, criou-se um sistema de escrita de sinais voltado às pessoas com surdez, o chamado SignWriting, que potencializa a literatura surda, afinal, permite que os textos sejam transmitidos manualmente. Porém, no 72 Brasil, esse sistema ainda está em fase de desenvolvimento e há poucos profissionais que estudam a sua aplicação na literatura. A literatura surda, geralmente, apresenta usos criativos de sinais, expressões faciais e corporais, classificadores, empréstimos semânticos, entre outros elementos para facilitar o entendimento e propor uma comunicação eficaz. Um tipo mais comum de literatura surda no Brasil são as historinhas infantis por meio de narrativas desenvolvidas por diversas pessoas e instituições voltadas à educação. Esse tipo de trabalho é caracterizado pelo uso de uma série de classificadores que asseguram a realidade idealizada pelas mãos. 73 74 8.3 Diferenças Entre Literatura Surda e Literatura Tradicional Temos o costume de comparar a língua de sinais com a língua portuguesa, e isso é um grande erro. Da mesma forma, a literatura surda ou a literatura por meio da língua de sinais não se convenciona com a língua portuguesa, mesmo que os próprios surdos precisem adaptar-se à literatura dos ouvintes por carência de materiais literários específicos. As línguas de sinais, por sua vez, tampouco têm a mesma estrutura linguística que as línguas orais. Podemos diferenciar inicialmente que uma se fala “com as mãos” e a outra “com a boca”, e essa diferença se faz no modo de apresentar uma literatura. Outro erro comum ao ver uma pessoa sinalizando é pensar que para cada palavra feita em uma frase em português será destinada um sinal. A seguir, vamos entender a diferença entre a literatura tradicional e a literatura surda. 8.4 Literatura Tradicional Historicamente, o que é chamado de literatura tradicional é a literatura oral que se desenvolve antes de qualquer literatura escrita. Podem ser considerados precisamente como textos pertencentes aos gêneros orais tradicionais contos, poesias, poemas, provérbios, textos, canções, rimas, entre outros. Assim, a literatura oral torna-se escrita ou pelo menos é transcrita, o que pode parecer contraditório. Na verdade, os textos em folha de papel de um livro perdem algumas de suas características naturais ou improvisadas. A literatura fornece várias definições da tradição oral de acordo com as mais variáveis opiniões e a origem do autor (história, sociologia,linguística, antropologia, filosofia, etc.). No geral, essas definições destacam a transmissão oral da memória coletiva e específica das sociedades tradicionais em oposição à transmissão escrita e específica para o mundo moderno (PINTO, 2019). Dentre as transmissões orais voltadas a literatura, encontramos: a tradição oral, transmitida verbalmente por um povo sobre o seu passado, em histórias passadas de geração em geração; a literatura oral, a partir de histórias transmitidas anonimamente. 75 Diante do descrito, isso significa que qualquer sociedade tradicional é oral e que qualquer sociedade moderna é escrita? Não, a oralidade e a escrita não são sistematicamente opostas, as duas formas coexistem em todas as sociedades. A oralidade não é uma literatura secundária, mas é importante distinguir a literatura “verbalizada” da “oralizada”. Do mesmo jeito, a oralidade não é uma cultura padrão. Não é por falta de escrita que existe a literatura oral, mas porque essa corresponde às mais diversas necessidades e a preferências de busca por conhecimento. Vamos entender melhor quais seriam as literaturas tradicionais? Para isso, é importante que você entenda suas classificações. De acordo com Pinto (2019), as literaturas tradicionais são classificadas por gênero, subgêneros, mídias, técnicas, entre outros. Em relação aos gêneros e subgêneros, encontramos, por exemplo: Épico-narrativo, na forma de contos, novelas, romances, fábulas, crônicas, etc. Fábulas, como “Chapeuzinho vermelho”. Lírico, em cantigas, versos, prosas e poesias. Dramático, em peças de teatro e filmes dos mais variados subtipos (comédia, pantomima, marionete, terror, etc.). Em relação às mídias da literatura tradicional, temos livros (escrita), roteiros, meio oral, digital, etc. As mídias digitais também estão cada vez mais na vida das pessoas com surdez e, por meio delas, não apenas se interage, mas se pode procurar o que há de melhor na literatura. Na literatura tradicional brasileira, destacam-se vários grandes nomes, como, por exemplo: Aluísio de Azevedo (“O Cortiço”); Carlos Drummond de Andrade (“Contos de aprendiz”); Castro Alves (“O navio negreiro”); Cecília Meireles (“O menino azul”); José de Alencar (“O Guarani”); Machado de Assis (“Dom Casmurro”); 76 Mario de Andrade (“Macunaíma”); Mario Quintana (“Eu passarinho”); Monteiro Lobato (“Sítio do Pica-pau Amarelo”). 8.5 Literatura Surda Atualmente, ainda não contamos com variados livros próprios à literatura surda no Brasil, mas podemos encontrar versões adaptadas ou transcritas por meio digital (em vídeo) pelos mais variantes meios eletrônicos, como o YouTube e em blogs, nos quais é possível buscar, como em qualquer literatura, materiais de ótima qualidade, mas, infelizmente, também materiais que degradam a imagem cultural surda ou que não oferecem o mínimo de culturalidade pessoal. Apesar da escassez de obras escritas em língua de sinais disponíveis no Brasil para as pessoas com cultura e necessidade de uma literatura surda, podemos mencionar os seguintes autores e obras: Carolina Hessel, Fabiano Rosa e Lodenir Karnopp: autores que se dedicam exclusivamente à escrita ou à transcrição literal por meio da escrita da língua de sinais e escreveram os primeiros livros de literatura infantil em SignWriting no Brasil, “Rapunzel Surda” e “Cinderela Surda” (Figura 1). 77 Sérgio Ribeiro: autor de “Textos em Libras” (Figura 2), em que reúne alguns textos de sua autoria na categoria didáticos, infantil, infanto-juvenil e juvenil escritos em SignWriting. 9 PRODUÇÃO E TRADUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE SURDOS A língua portuguesa, na modalidade escrita, não é uma língua natural para os surdos. Nesse sentido, a produção de materiais didáticos para o ensino dessa comunidade precisa levar em consideração que a metodologia utilizada para a
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