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-
A SANTIDADE DE JAGUARIPE:
CATOLICISMO POPULAR OU RELIGIÃO INDíGENA?
"Nosertão desta capitania para as bandas de jaguaripe se levantou
uma errônea idolatria gentilica, a qual sustentava efazia os brasis
deles pagãos, e deles cristãos, e deles forros,
e deles escravos, que fugiam a seus senhores para a dita idolatria
(. . .J e tinham um ídolo de pedra, a que faziam suas cerimônias e
adoravam dizendo que vinha já o seu Deus a livrá-Ias do cativeiro
em que estavam, e fazê-tos senhores da gente branca, e que os
brancos haviam de ficar seus cativos .:,
(Depoimento de Gonçalo Femandes ao Santo Ofício, BA, 1592,
citado por Azzi, 1987:87).
Omovimento religio-so conhecido porSantidade de jagua-
ripe deu-se por volta do ano
de 1585, no Recôncavo
Baiano. Sua história, ainda
pouco conhecida e ana-
lisada, é um daqueles
intrigantes episódios que se
situam nos limites de fron-
teiras culturais.
Inicialmente organizado
no lugar chamado Palmeiras
Compridas, a Santidade teve
como primeiro líder um ín-
dio, ex-aluno de padres je-
suítas, que havendo fugido
do colégio em Tinharé, ca-
pitania de Ilhéus, fundou o
movimento.
Antônio, como era chama-
do o líder deste movimento antes de ser caraíba,
conhecia a mitologia heróica tupinambá. Dizia-se so-
brevivente do dilúvio, fazendo-se chamar por Taman-
duaré -.variante de Tamendonare, um dos gêmeos
que sobreviveram à grande inundação, e um dos
principais ancestrais daquela nação (Vainfas, 1992).
Os seus seguidores, segundo o mesmo autor, for-
mavam um "ajuntamento eclético" de cativos e for-
ros, que funcionava como refúgio para os arnerín-
dios escravizados ou aldeados, independentemen-
te de suas origens étnicas.
Parte deste movimento, conta Vainfas, deslocou-
se para o engenho de Fernão Cabral de Taíde, o
principal senhor de terras da
região. Seguiram Tomacaúna
(Domingos Fernandes),
mameluco enviado sob or-
dens do senhor de engenho,
com a incumbência de trans-
ferir o movimento para suas
terras, convencidos pelo
emissário de Femão Cabral de
que gozariam de liberdade de
culto e na esperança de
encontrar seu paraíso.
A parte da Santidade que
concordou em migrar con-
tava com cerca de sessenta
a oitenta índios liderados por
Mãe de Deus e Santinho. O
líder principal não seguiu, e
sobre esta outra parte do
movimento que permaneceu
em seu campo de origem,
por enquanto não se tem notícia.
No engenho, os adeptos da seita construíram uma
igreja, ao seu modo, e expandiram o número de
seguidores, até mesmo entre os brancos. Sobre a
igreja há relatos bem interessantes que nos dão uma
idéia de como era o lugar:
"Contou Simão Dias que, à porta do terreiro,
na casa erigida como igrejados índios,ficava uma
cruz de pau, e no interior, penduradas pelas pa-
redes, diversas tabuinhas de madeira, pintadas
com uns riscados 'que eles diziam serem seus li-
vros'. No centro do terreiro aparecia uma estaca
alta de madeira enterrada no chão, sobre a qual
ISABELLE ORAl PEIXOTO DA SILVA*
RESUMO
Este ensaio aborda um movimento religio-
so indígena no Brasil do século XVI. Tem
como objetivo levantar questões sobre o seu
caráter e conteúdo católico-tupinambá. Por
meio da identificação dos elementos de sua
composição, que denotam uma complexo
estrutura de ambigüidades, tradicionalismo
e mudanças, chama a atenção para a ne-
cessidade de uma reflexão mais profunda,
de cunho comparativo, acerco das cosmo-
logias tupi e católica.
* Professora de Antropologia do Departamento de
Ciências Sociais e Filosofia do UFC e doutorando do
Curso de Ciências Sociais do Unicamp.
SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. A santidade deJaguaripe .. pp. 65 a 70 65
se postava o ídolo de pedra 'que tinha uma cara
figurada com olhos e nariz enfeitado com paninbos
velhos'; uma figura incerta - concluiu a testemu-
nha, guardada por um índio a que chamavam sa-
cristão" (Vainfas, 1992: 190).
Outra referência que completa o panorama so-
bre a igreja cita um altar com castiçais, pia de batis-
mo e confessionário, e a figuração do ídolo como
um gentio (Azzi, 1987: 198).
O fim deste movimento foi trágico: considerado
heresia, os índios foram expulsos, o dono do enge-
nho punido e a igreja destruída. Entre os anos de
1591 e 1592 a Santidade foi reprimida e devassada
pelo governador e pelo Santo Ofício.
Durante o processo inquisitorial, por ocasião da
visitação do Santo Ofício, foi constatada significati-
va participação dos brancos na Santidade. Havia
freqüentadores ilustres, como a esposa do grande
senhor de engenho - Margarida da Costa -, que
confessou ter participado durante dois meses dos
ritos indígenas, por ter convicção de que se tratava
de prática católica:
'Tinha para si e dizia que não podia ser aquilo
demônio, senão alguma coisa santa de Deus, pois
traziam cruzes de que o demônio foge, e pois fa-
ziam reverências às cruzes e traziam contas e
nomeavam Santa Maria. "(Depoimento citado por
Azzi, 1987: 196).
Outros depoimentos, como o de Luíza Barbosa,
não confirmam a livre adesão ao movimento, sobre
o que resta dúvida quanto a sua veracidade,
mediante a circunstância do relato:
"Confessando-se disse que sendo ela moça de 12
anos pouco mais ou menos, se alevantou nesta ca-
pitania, entre os gentios e índios deste Brasil cris-
tão, se alevantou uma abusão chamada entre eles a
santidade, como muitas vezes depois disso se ale-
vantou também nesta capitania.
A qual era que diziam os ditos brasis, assim cris-
tãos como gentios, que aquela sua santidade era
um Deus que eles tinham que lhes dizia que não
trabalhassem porque os mantimentos por si pró-
prios haviam de nascer, e que quem não cresse
naquela santidade se havia de converter em paus
e pedras, e que a gente branca se havia de
converter em caça para eles comerem, e que a lei
dos cristãos não prestava, e assim diziam, e ti-
nham muitos outros despropósitos. "(Depoimento
citado por Azzi, 1987: 196).
Tudo leva a crer que houve uma grande pene-
tração deste movimento na sociedade colonial, par-
ticularmente na esfera dogmática e litúrgica da Igre-
ja. ão fora isto, não se justificaria a reação arrasa-
dora das instituições coloniais contra ele. De cará-
66 Revistode Ciências Sociais v.26 n.l/2 1995
ter eminentemente anticolonial, representou uma
ameaça por causa de sua capacidade de arregímen-
tar escravos fugidos de toda a capitania e membros
de outros estratos étnicos e sociais, além de esti-
mular a formação de outros núcleos de rebelião
(Vainfas, 1992).
O desafio teórico que a Santidade de ]aguaripe
nos impõe é entender o caráter de seu conteúdo
católíco-tupinambá.
Das descrições do movimento podemos pinçar
os componentes que são expressão de ambigüida-
de: o céu, o batismo, os nomes, as orações, as con-
fissões, as reverências ao ídolo e os objetos que
compunham a igreja (altares, mesa, sacristia, pia de
batismo, água benta, castiçais de pau, livros de fo-
lhas de casca de árvore, cadeiras para confessar
mulheres, instrumentos musicais, rosários e cruzes).
Destes componentes tomamos o céu e o batis-
mo, por reunirem mais elementos, a partir dos quais
podemos levantar algumas idéias.
Em sua pregação, a Santidade era o verdadeiro
caminho para se chegar ao céu. Porém, "a qual céu
se referia a pregação? Ao paraíso cristão ou à terra
sem mal?" (Vainfas, 1992). O autor admite a possi-
bilidade da noção do paraíso cristão ter sido inte-
grada ao universo simbólico da Santidade. Por outro
lado, cita a parábola tupi freqüentemente enuncia-
da pelo caraíba, de que não seria mais necessário
trabalhar, posto que, caso a Santidade triunfasse, os
alimentos nasceriam espontaneamente da terra ou
seriam caçados pela ação das próprias flechas.
Isso o leva a concluir por uma "confusão entre os
dois paraísos", justífícada pela heterogeneidade dos
adeptos da seita, não só índios, mas também ne-
gros e brancos.
A cerimónia do batismo dos novatos era presidi-
da pelo caraíba, que fazia uso de água e de óleos
no ofício. O nome do estreante era escolhido pelo
chefe religioso e tanto podia ser nome cristão como
tupi. São nomes como Papa (o do caraíba), Mãe de
Deus (líderda Santidade em jaguaripe), Santinho
ou Santíssimo (auxiliar de Mãe de Deus). Bispos e
vigários são também nomeados, não ficando claro
se estas nomeações denotavam a reprodução da
instituição clerical ou apenas o uso dos nomes, sem
os seus significados.
Em todo caso, embora a cerimônia do batismo
fosse uma afirmação do ritual católico, o seu signifi-
cado era a negação do batismo cristão. Mas aqui se
coloca uma questão: esta negação levava de volta à
condição indígena ou apontava para uma purifica-
ção do ritual católico? Embora este evento possa ser
visto como a negação do batismo cristão, por
outro lado ele pode ser percebido como um
aperfeiçoamento deste sacramento.
Nesse caso, o batismo não seria a negação dos
preceitos do catolicismo. Seria a negação da prática
dos padres, considerada incongruente com os seus
preceitos doutrinários.
Enfim, tanto para o tema do céu como para o
tema do batismo, é necessário uma investigação
mais profunda para que se possa perceber mais a
contendo os sentidos que tiveram.
Elementos mais genuinamente indígenas nós
encontramos na virtude do caraíba de falar com os
espíritos, na separação entre homens, mulheres e
crianças, durante os cortejos que seguiam o líder, nos
bailes, no uso da erva-santa, nas possessões, nos
cantos e nas defumações. Sobre esses componentes
não há equívoco quanto a sua origem nativa.
Deixando um pouco de lado a Santidade de Ja-
guaripe, façamos uma incursão pelas primeiras nar-
rações sobre Santidades, por meio das cartas dos
jesuítas dos anos de 1550, para podermos compa-
rar a Santidade de 1585 com suas predecessoras.
As cartas dos jesuítas Pero Correia e João de Azpi-
lcueta informam sobre a grande autoridade que os
ditos "santos" exerciam sobre os demais, as predições
que faziam quando incorporados por espíritos e a
capacidade de dar saúde e vitória (Navarro, 1988:
121,123,173). Tudo isso contado com espanto pelos
religiosos, a título de "errores", sendo os santos vistos
como embusteiros, antes de qualquer coisa.
Apesar do teor dos relatos, as descrições são muito
ricas. O mesmo Pero Correia assim descreve a ma-
nufatura do ídolo, o festejo em sua honra e o poder
de vida e de morte do santo:
"Estesfazem umas cabaças a maneira de cabe-
ças, com cabeltos, olhos, narizes e bocca com mui-
tas penas de cores que lhes apegam com cera
compostas á maneira de lavores e dizem que
aquelle santo que tem virtude para lhespoder valer
e diligenciar em tudo, e dizem quefalta, e á honra
disto inventam muitos cantares que cantam diante
delle, bebendo muito vinho de dia e de noite, fa-
zendo harmonias diabólicas, e já aconteceu que
andando nestas suas santidades (que assim a cha-
mam elles)foram duas línguas, as melhores desta
terra, lá e mandaram-as matar. Têmpara si que
seus santos dão a vida e a morte a quem querem. "
(Navarro, 1988:123-24).
A hostilidade dos "santos" em relação aos missio-
nários aparece constantemente nas cartas. Por outro
lado, não ficava por menos a revanche dos jesuítas
dirigida contra os santos e também contra os
feiticeiros, estes de grau inferior na hierarquia da
pajelança indígena, a quem os padres tributavam o
maior empecilho à catequese. Podemos ver isto na
história narrada pelo jesuíta Antonio Blasquez, que
conta um caso em que um feiticeiro foi denunciado,
em confissão, após o que foi preso por um
empregado do governador. A repercussão deste fato
foi tão assustadora que provocou a denúncia de
outros feiticeiros (incitada pelos padres), dos quais
mais dois foram presos e depois de libertos se
submeteram aos jesuítas. Como conseqüência,
ninguém mais se atreveu a usar publicamente
feitiçaria (Navarro, 1988: 333-34).
Uma outra carta muito instigante que trata da re-
lação entre santos e padres é a do Pe.Vicente
Rodrigues. Apesar de extensa, vale a pena a sua
reprodução:
"Nacapitania de Peranambuco vinham os Gen-
tios de seis, sete léguas á fama dos Padres, carre-
gados de milho e do que tinham para lhes oJferecer,
e si sabiam por onde haviam de passar, sabiam-
lhes ao caminho com muito mantimento, dizendo-
lhes que lhes deitasse a bençam. Na mesma capi-
tania em uma aldêa onde puzeram uma cruz,
aguardavam os Padres com muita offerta ao pé
da cruz para que o Padre que por ali fosse lhes
deitasse abençam, e haveria naquella aldêa cem
homens dos quaes a maior parte se fizeram
catechumenos. Pala qual aldêa aconteceu d'abi a
poucos dias passar um seu feiticeiro em que elles
têmgrande credito e ajuntaram-se os catechumenos
e lançaram-no fóra, dizendo que já tinham outra
lei em que viviam. Estefeiticeiro, vendo o crédito
que os Padres tinham com o Gentio, dizia que
era seu parente e que os Padres diziam verdade e
que ellejá morrera epassara desta vida e tornara
a viver como diziam os mesmos Padres, e que
portanto cressem nelle, pedindo-lhe suas filhas e
davam-lhas. Neste tempo tornaram os Padres a
passar por aquella parte e disseram-lhe como
aquillo tudo era mentira. Tomaram disto tanta
paixão que foram em busca do feiticeiro e o
mataram. "(Navarro, 1988:144).
A narração nos faz ver a semelhança entre o ritual
de recepção aos padres e a cerimônia de chegada
dos santos nas aldeias, que consistia na oferenda de
mantimentos e na expectativa de receber bênçãos.
O episódio do feiticeiro é fabuloso. Já nos dá uma
mostra da capacidade de criação ardilosa do profeta,
como ele conseguiu lidar e manipular elementos
da cosmologia cristã, para no final reafirmar a sua
condição de profeta, ainda que o resultado tenha
sido desastroso para ele.
A descrição mais completa de uma cerimônia de
Santidade está numa carta mais antiga, do Pe.
Nóbrega, que assim relata:
"Somente entre eltes sefazem umas cerimonias
SILVA, Isabelle Braz Peixoto do. A sontidode deJoguoripe .. pp. 65 o 70 67
da maneira seguinte: de certos em certos annos
vem uns feiticeiros de mui longes terras, fingindo
trazer santidade e ao tempo de sua vindo lhe man-
dam limpar os caminhos e vão recebê-los com dan-
ças e festas, segundo seu costume; e antes que
cheguem ao Ioga r andam as mulheres de duas em
duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas
que fizeram a seus maridos umas ás outras e pe-
dindo perdão deltas. Em chegando ofeiticeiro com
muita festa ao logar entra em uma casa escura e
põe uma cabaça que traz em figura humana, em
parte mais conveniente para os seus enganos. Mu-
dando a propria voz em a de menino junto da
cabaça lhes diz que não curem de trabalhar, nem
vão á roça, que o mantimento por si crescerá, e
que nunca lhes faltará que comer, e que por si
virá á casa, e que as enxadas irão a cavar, e as
frechas irão ao mato por caça para seu senhor e
que hão de matar muitos dos seus contra rios e
captiuarâo muitos para seus comeres e promete-
lhes larga vida, e que as velhas se hão de tornar
moças e as filhas que as deem a quem quiserem e
outras cousas semelhantes lhes diz epromette, com
que os engana, de maneira que creem haver dentro
da cabaça alguma cousa santa e divina, que lhes
diz aqueltas cousas, as quaes creem. Acabando de
falar ofeiticeiro começam a tremer, principalmente
as mulheres, com grandes tremores em seu corpo,
que parecem endemoninhadas (como de certo o
são), deitando-se em terra, e escumando pelas bocas
e nisto lhespersuade ofeiticeiro que então lhes entra
a santidade. "(Navarro, 1988: 419-20, nota 200).
Há ainda os relatos leigos que se referem a socie-
dades não submetidas à catequese. Aparecem no-
vamente os bailes, o fumo, a cabana como lugar da
cerimônia, a pintura e o enfeite dos maracás, a
oferta de presentes ao pajé, a exclusão das mulhe-
res e das crianças do ritual, o transe místico do pajé,
a defumação dos maracás, os diálogos com a santi-
dade incorporada nos maracás, e a transformação
dos chocalhos em ídolos, que eram fincados no chão
e presenteados com comida e cabanas individuais.
A descrição de Jean de Léry 0557-58) traz de
diferente o fato de que os caraíbas vistos por ele
andavam em grupos de até doze homens, a men-
ção às cançôes que se referiam explicitamente à
mitologia heróica dos tupi, particularmente ao dilú-vio e à sobrevivência dos antepassados trepados
nas árvores, e o período de três semanas que os
maracás passavam até adquirirem santidade e o
poder de transmitir a fala dos espíritos, quando sa-
cudidos (segundo Vainfas).
De todos esses relatos transcritos, façamos uma
reflexão sobre os temas do caraimonhaga, do ido-
68 Revistode Ciências Sociais v.26 n.1j2 1995
10, das pregações e da cruz.
Pensamos que a cerimônia do caraimonhaga era
o centro do ritual da santidade. Por meio dela cada
maracá passava a ser receptáculo da santidade, por-
tanto objeto sagrado, digno de receber oferendas.
Apresenta-se então uma distinção entre o caraíba e
a santidade. O profeta era aquele que se comunica-
va, incorporava, tinha o poder de transmitir e dialo-
gar com a santidade, mas não era ele próprio divi-
no. Havia uma entidade que se diferenciava dele,
que tinha existência própria.
A permanência desta cerimônia do caraimonbaga
na Santidade de Jaguaripe é citada por Vainfas, ain-
da que não explorada com a ênfase que lhe é devi-
da (acreditamos):
"Na igreja sempre iluminada, para o que se
utilizavam tocheiros e castiçais de pau, o ápice
da cerimônia residia no uso do petim ou erva-
santa. Razão de ser do culto, a defumação com as
folhas da erva ou a sucção de sua fumaça era o
que transmitia a 'santidade' (ou o caraimonhaga)
para os fiéis. Transmitia-se inicialmente para os
principais' da seita, e depois para os outros, que
a sorviam 'até caírem bêbados' ou começarem a
dançar e a se movimentar 'com todos os membros
do corpo '.A própria fumaça era, por isso, divina,
o que se pode claramente perceber na exaltação
fervorosa de um certo adepto: 'Bebamos o fumo,
que este é o nosso Deus que vem do Paraíso!'
(Vainfas, 1992: 193).
Diríamos que há aí uma pequena sutileza, em que
a ênfase dada ao petim na verdade deve ser dirigida
ao caraimonhaga. A razão de ser do culto não esta-
va no petim, mas na transmissão da santidade. A
transmissão não era decorrência, mas o essencial da
cerimônia. O petim, embora de extrema relevân-
cia, era o veículo de contato com a santidade.
De todo modo, também aqui é preciso investigar
mais, até mesmo para constatar ou não diferenças
no sentido desta cerimônia, entre as primeiras San-
tidades e a de 1585.
Não obstante, ainda que centrada no uso do petim
(e não na transmissão da santidade), a cerimônia do
carairnonbaga talvez fosse o que havia de funda-
mental na Santidade de Jaguaripe, em termos de
continuidade das Santidades descritas nos primei-
ros relatos dos jesuítas.
A Idéia e a figura do ídolo estavam completa-
mente instauradas em Jaguaripe. A sua imagem foi
construída em mármore, media 66 centímetros e se
apresentava vestido com panos.
UNaSantidade do sertão de Frio Grande prega-
va-se que o deus dos índios iria livrá-los do cati-
veiro e tornâ-los senhores dos brancos - rnensa-
gem que atraía copioso número de escravos brasis
para as fileiras do movimento. O deus que os li-
vraria da escravidão era o ídolo Tupanasu (deus
grande) ou o próprio caraiba que o encarnaua, o
qual também se dizia deus e senhor do mundo."
(Vainfas, 1992: 186).
A nova figuração do ídolo pode ser compreendi-
da como uma espécie de continuação adaptada,
enriquecimento do culto indígena, que lhe deu nova
roupagem sem mudar o conteúdo. Como lembra
Azzi, os índios também assimilaram elementos do
culto católico, ou como forma de defesa do próprio
culto ou como meio de promoção da própria re-
ligião, abrilhantada com elementos da cultura dos
conquistadores, de quem admiravam o nível de ci-
vilidade. Este autor sugere mesmo, no reverso da
medalha, uma pedagogia catequética, em que os
indígenas usariam técnicas análogas às dos jesuítas,
para a conversão ao seu culto.
a conteúdo das primeiras pregações tinha um
caráter heróico e idílico (não plantar, não caçar, re-
moçar, longa vida, saúde, vitória sobre os inimigos).
A sua associação ao mito da terra sem mal foi
pensada inicialmente por Metraux, que via uma
reedição ou continuação da tradição tupí naqueles
movimentos do século XV1.
Metraux supunha uma diferenciação entre os
movimentos messiânicos dos índios tribalízados e dos
destribalizados. Embora nas duas situações represen-
tem soluções tradicionais diantes da desorganização
social e cultural provocada pela condição colonial,
que ameaça a tradição e a existência, os movimentos
dos destribalizados se caracterizam por uma "mescla
heteróclita de temas pagãos e cristãos":
"Alguns movimentos têm tido um caráter
sincrético; outros, apesar de certospréstimos do ca-
tolicismo, expressavam crenças e valorespuramen-
te indigenas. (. ..) Em uma tipologia do messianismo
sul-americano, tais movimentos [dosmessias Tuka-
no, de 1880]se aparentam com os que seproduzi-
ram em 1578[?] na região da Babia entre os índios
tupinambâs meio cristiariizados, assim como na
zona missioneira do Paraguai. Distinguem-se dos
messianismos da Terra sem mal pelos préstimos do
cristianismo epor suas tendências xenófobas. São
revoltas de índios desgraçados e não-tribalizados. "
(Metraux,1973: 15,29).
As tendências xenófobas são evidentes na Santi-
dade de ]aguaripe. Há sempre o apelo a "livrar do
cativeiro" e "tornarem-se senhores dos brancos".
Talvez até pudéssemos dizer que há uma acentua-
ção no caráter messiânico deste movimento. A san-
tidade agora tem nome próprio (Tupanasu) e dife-
rentemente dos movimentos originais, cujas men-
sagens enfatizavam o advento da terra sem mal (ca-
ráter mais rnilenarista), a ênfase passa a ser no Deus,
no messias que vem salvar.
a que temos de realmente novo em ]aguaripe é o
símbolo da cruz, a prinápio usada no lugar das maracás
e que depois adquire lugar próprio, na porta da igreja.
Este pode ser um sinal verdadeiramente sincrético,
que se separa dos outros pontos considerados
anteriormente. Parece ser o caso de uma absorção do
culto católico, a merecer maior apreciação.
Contudo, mesmo com todas as modificações de-
tectadas até agora no movimento religioso do
Recõncavo Baiano, consideramos prematuro che-
gar a uma posição conclusiva sobre o seu caráter
sincrético ou de religião "puramente" indígena, dada
a complexidade de sua composição que reúne ele-
mentos ambíguos, tradicionais, transformados e
novos. Algumas questões fundamentais, colocadas
pelo próprio Metraux, ainda carecem de um olhar
mais profundo e completo:
"Que importância devemos atribuir às práticas
cristãs adotadas pelos profetas? Trata-se de sim-
ples imitações destinadas a acrescentar seu prestí-
gio ou de um verdadeiro sincretismo? São estes
movimentos o resultado de um efeito de desorga-
nização social ou cultural produzida pelo contato
com a civilização européia ou são simplesmente
formas mais agudas de um misticismo indígena?"
(Metraux, 1973:7).
Ao lado dessas questões, há ainda uma outra or-
dem de problema que, pensamos, precisa ser en-
frentada. Trata-se de cogitar sobre as homologias,
uma certa similitude entre elementos da cosmologia
tupi e cristã; o que poderia estar na base do imbri-
camento tupinambá-católico presente no movimen-
to de ]aguaripe.
Por outro lado, é fundamental não perder de vista
a dinâmica inerente à própria cosmologia Indígena,
que também desenvolveu (e desenvolve) o seu
processo particular de transformações.
Sabe-se lá se, ao final de um longo mergulho na
Santidade de ]aguaripe, não se chegará simplesmen-
te à conclusão de que procurar por "fronteiras cul-
turais" é coisa de antropólogo ...
BIBLIOGRAFIA
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projeto autoritário. São Paulo, Paulinas.
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índios do sul. Religião, resistência e adaptação", in
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Espanha, Aguilar.
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PINTO, Estevão.(938), "As crenças religiosas", in
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Editora Nacional.
_____ . (958), "A santidade", in Muxarabis e
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Nacional.
VAINFAS, Ronaldo (org.). (992), "Idolatrias luso-
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Trópico dos pecados". Rio de Janeiro, Campus.
70 Revistode Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

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