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Artigo - Psicologias, famílias e sociedade as contribuições da Psicologia Crítica1

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Psicologia e Processos
Psicossociais:
TEORIA, PESQUISA E EXTENSÃO
Cristiane Souza Borzuk
Rita de Cássia Andrade Martins
(organizadoras)
Editora da Imprensa Universitária
2019
Universidade Federal de Goiás
Reitor
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Vice-Reitora
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Pró-Reitora de Graduação
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Pró-Reitor de Pós-Graduação
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Coordenação Editorial – Conselho Editorial
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Tathiana Rodrigues Salgado (UEG)
Psicologia e Processos
Psicossociais:
TEORIA, PESQUISA E EXTENSÃO
Cristiane Souza Borzuk
Rita de Cássia Andrade Martins
(organizadoras)
Editora da Imprensa Universitária
2019
© 2019, Cristiane Souza Borzuk e Rita de Cássia Andrade Martins (Org).
Editoração Eletrônica:
Julyana Aleixo Fragoso
CAPA: 
Géssica Marques de Paulo
Revisão:
Eduarda Rodrigues Rosa e Didier Quevedo Cagnini
 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
 GPT/BC/UFG
Bibliotecária responsável: Adriana P. Aguiar / CRB1: 3172
S612 Psicologia e processos psicossociais: teoria, pesquisa e extensão /
 Organizadoras, Cristiane Souza Borzuk, Rita de Cássia
 Andrade Martins. – Goiânia : Editora da Imprensa
 Universitária, 2019.
 264 p.
 Inclui bibliografia
 ISBN: 978-85-93380-60-0
 1. Psicologia social - pesquisa. 2. Psicologia - interação social. 
I. Borzuk, Cristiane Souza. II. Martins, Rita de Cássia Andrade. III. 
Simpósio de psicologia social (3. : 2019 : Goiânia, GO). IV. Título.
 CDU: 316.6
 Sumário
PREFÁCIO 7
Embaraços em busca do público e do comum
EIXO I: TEORIA
CAPÍTULO I
Psicologias, famílias e sociedade: as contribuições 
da Psicologia Crítica 
CAPÍTULO II
A aliança entre ciência e progresso: a conversão 
da razão em domínio
CAPÍTULO III
O real ficcional e os processos identificatórios na 
formação humana subjacente à indústria cultural 
CAPÍTULO IV
As violências nas fronteiras do conflito em uma 
sociedade de contradições
7
15
35
61
81
CAPÍTULO V
Mulher Negra e o Saber Psicológico
CAPÍTULO VI
Sobre teoria e prática: observações sobre o texto 
“Notas Marginais sobre Teoria e Práxis” de 
Theodor W. Adorno
EIXO II: PESQUISA
CAPÍTULO VII
Alegações de alienação parental: uma revisão 
sobre a jurisprudência brasileira
CAPÍTULO VIII
Música sertaneja, consumo de álcool e juventude: 
relação das letras do sertanejo universitário com o 
uso de bebidas alcoólicas entre os jovens
CAPÍTULO IX
A influência do sistema carcerário no 
adoecimento mental dos detentos
EIXO III: EXTENSÃO
CAPÍTULO X
Interações entre Psicologia Social Comunitária, 
Saúde Mental e Atenção Psicossocial
CAPÍTULO XI
Intervenções psicossociais junto às mulheres em 
situação de violência a partir da Psicologia sócio-
histórica
129
145
167
189
207
231
105
PREFÁCIO
Embaraços em busca do público 
e do comum
Gosto de coletâneas, esses “seres bibliográficos” tão repudia-
dos pelas editoras brasileiras: não vendem, é o que dizem... Não sei 
se vendem ou não vendem, mas essa razão calculadora, cada vez 
mais, costuma lançar ao limbo os textos reunidos – valendo lem-
brar que já se acabou com esse espaço de espera pelo juízo final. 
Insisto na palavra reunidos: textos reunidos, pesquisadores reunidos, 
trabalho coletivo em busca de um público, de um comum, de uma 
imanência univocizante, des-hierarquizante.
Cumpre pensar nisso quando nos convidam a redigir um 
prefácio. Este “ordenador discursivo”, por sua mera existência, 
pode funcionar como aquilo que, justamente, dificulta ou 
impede o comum, por atenuar a aleatoriedade, o risco e, por isso 
mesmo, a potência dos discursos. Consciente dessa indesejável 
consequência, proponho-me a tentar transgredi-la mediante um 
prefácio-aliança. Aliança não indica necessariamente acordo total, 
mas faz esperar potencialização recíproca. É o que ao menos 
desejo com o presente escrito.
8 
Teoria, pesquisa e extensão: bem se vê que o livro provém da 
universidade pública, sempre ciosa em manter vivo esse tríptico e, 
talvez principalmente, em fazer da articulação entre os três termos 
mais do que um clichê ou retórica palavra de ordem. Aliás, e fazen-
do já de início uma inadiável menção ao momento que vivemos 
nesse Brasil pós-golpe, que não ousa dizer seu nome, talvez o que 
precisemos seja de palavras de desordem, pois “a” ordem (vigente) é de 
destruição sistemática, deliberada, das coisas e pessoas que amamos: 
a educação pública, Paulo Freire, as liberdades, as crianças, as ami-
zades, as conversas, as culturas populares, os modos de subjetivação 
múltiplos e singulares, as artes, as ficções, ...a...Psicologia Social?
Sim, trata-se de uma coletânea de artigos de Psicologia Social, 
derivada de um simpósio realizado na regional Jataí da Universidade 
Federal de Goiás, promovido em 2017. O primeiro artigo, contudo, 
ao mencionar um simpósio outro, datado do mesmo ano, me ajuda 
a começar este breve escrito: fala ele em “embaraços de percurso” 
e me sugere o nome e a aliança com uma “psicologia social emba-
raçada”, ou melhor, aquela que vejo presente nos textos que, em 
permanente tensão, recém acabo de ler. Ao contrário do que pode-
ria pensar um leitor desavisado, falar em “psicologia social embara-
çada” constitui um elogio, e é este elogio que me anima a tornar-me 
companheira discursiva dos escritores e escritoras aqui presentes.
Embaraçados em problemáticas urgentes e rigorosas, tais es-
critores e escritoras escrevem, como diriam Deleuze e Guattari, a 
N-1: jamais totalizam, sempre subtraem o Uno (ou o Único) daquilo 
que apreciam ou examinam, a fim de que este último se mantenha 
livre para estabelecer, sempre, novas conexões. Precisamos dessa 
Psicologia Social a N-1. Precisamos dela como um equipamento 
que esteja à mão e nos auxilie a “agir como se deve” em face dos 
desafios com que, no dia a dia de pessoas e psis, nos defrontamos 
nos cotidianos de vida e/ou de trabalho. 
A mesma escritora que me ofereceu os “embaraços” do tí-
9 
tulo e do andamento deste prefácio nos diz que “não há escolha”, 
visto que o Código de Ética Profissional dos Psicólogos exige que 
sejamos “críticos”. Porém a própria coletânea revela que, sim, há 
escolha. Ou, se não exatamente escolha – termo marcado pelo 
individualismo liberal –, que sempre podemos ser “colhidos” por 
formas restritivas, tristes e enfraquecedoras, as quais dizem natu-
ral o que nos enfraquece e condenam o que poderia ser, em nós, 
alegria e liberdade.
De exemplos disso, o livro está repleto. Não que os escrito-
res e escritoras presentes o façam, mas é bastante nítida a presença 
dos micro fascismos em certas teorias e práticas psi, como as que 
se seguem: aquelas que do indivíduo passaram à família unicamen-
te “para melhor te comer”, ou seja, para melhor cristalizar um cer-
to modo de vida, agora tristemente familiarista; aquelas que fazer 
da cientificidade razão de domínio, ou melhor, modo de invalidar 
formas de pensar e agir outras, diferentes, singulares; aquelas tão 
culturalmente industrializadas que, da literatura, só conhecem a 
ligada ao auto-empreendedorismo; aquelas que repetem,qual eco, 
as indignações midiáticas com certas formas de violência, sem pen-
sar que entre o que seja, ou não, tal coisa há toda uma tecnologia 
de gestão, apreciação, distribuição; aquelas que nunca pensaram 
sequer no quanto a psicologia tem contribuído para erigir racismos 
e colonialismos quando, com suas práticas teórico-metodológicas, 
supostamente assépticas, reproduzem diariamente, embora com 
menor alarde, a exibição do corpo de Saartjie Baartman em nome 
da ciência; aquelas que nem ao menos sabem que desconhecem 
Franz Fanon, Neuza Santos Souza, Angela Davis, bell hooks, Bea-
triz Nascimento, além de tantos outros e outras, submissas que 
estão às partições acadêmicas entre o que vale ou não a pena ser 
lido; aquelas que periciam alienações parentais, assédios, bullyings e 
quejandas, sem olhar para o próprio rabo em nenhum momento, 
ficando assim dispensadas de perceber a própria participação na 
10 
invenção daquilo que denunciam, patologizam e/ou criminalizam; 
aquelas que, da música sertaneja, por exemplo, só conhecem um 
“torcer o nariz” estético, nada se interessando por sua genealogia, 
nem pela presença da indústria cultural nas inflexões da mesma, 
ou por seus efeitos nos modos de subjetivação de juventudes no 
plural; aquelas que emparelham sem hesitações o crime e a lou-
cura, em um sempre reatualizado conluio entre médicos e juízes, 
no qual constituem o primo pobre da trama econômico-político-
-moral assim engendrada; aquelas que gestam ou gerenciam tudo, 
porque se pensam com maior valor do que os saberes dispersos, 
notadamente quando a questão é a saúde, inclusive a mental, mos-
trando-se, portanto, totalmente incapazes de efetivas interações 
em comunidade; aquelas que se querem e se julgam neutras e, as-
sim procedendo, tornam invisíveis os poderes que agem em certa 
direção inferiorizadora: dos negros, dos pobres, dos alunos, dos 
indígenas, dos não europeizados, das mulheres – no caso destas, 
a ponto de não se posicionarem jamais a favor do aborto, nem 
mesmo quando um certo estatuto (do “nascituro”) chama de “ge-
nitor” um eventual estuprador.
Há outras dessas psicologias sociais, cuja ação, no caso “de-
sembaraçada”, se divisa no horizonte quando os artigos que in-
tegram a presente coletânea são lidos. Todos estes, ao contrário, 
são críticos e, para tanto, recorrem a autores tão múltiplos como 
Vigotski, Adorno, Horckeimer, Paulo Freire, Benjamin, Arendt, 
Foucault, Beleval, Bourdieu, hooks, Bock, Slater, Tykanori, Hill 
Collins, Angela Davis, Simmel, Pêcheux, Butler, Rubin, Zizek, e 
Dona Ivonne Lara. Por crítica entendem, digam isso explicitamen-
te ou não, na linha da leitura foucaultiana de Kant, uma reflexão 
sobre os limites históricos de nosso saber, prática e profissão: não 
para respeitá-los, o que seria, na verdade, desembaraçar-se deles; 
mas, ao contrário, em meio ao embaraço que produzem (e nos 
produzem), para poder, a cada momento, segundo possibilidades 
11 
engendradas e alianças forjadas, transgredi-los um a um, sem pre-
cisar ignorá-los. Pois, como disse Foucault certa vez, as ciências 
são um pouco como as nações e não podem crescer a não ser 
quando seu passado não as envergonha mais, a ponto de precisa-
rem negá-lo permanentemente.
Acompanhei todas as ousadias críticas dos escritos, que são 
orientações teóricas, de pesquisa e de extensão. Com algumas me 
bati, mas sem rancor: talvez haja algo de moralizador em ver um 
indesejável incentivo ao consumo do álcool no sertanejo universi-
tário (ao passo que o artigo reconstitui de forma muito linda a ge-
nealogia da música sertaneja e, com isso, se alia a uma historiadora 
não mencionada, Maria Izilda Gomes de Mattos, que, entre outros 
livros, publicou “Meu lar é botequim”, na linha dos modos de sub-
jetivação); talvez haja riscos, ainda bem psicologizantes, em associar 
o enlouquecimento à vida na prisão, não apenas em ligar o crime 
cometido à loucura preexistente; quiçá a Lei Maria da Penha, com 
sua lógica punitiva, contribua bem mais para incrementar prisões e 
punições do que para a resistência das mulheres aos exercícios do 
poder. Talvez, sempre talvez, inevitáveis e mesmo desejáveis emba-
raços, presentes inclusive entre escritores-escritoras e uma prefacia-
dora que não pretende filiações, apenas alianças.
Porque somente alianças libertárias podem nos ajudar 
a construir a ética necessária para fazer frente a esse momento 
brasileiro (mundial?) em que, tal qual o psicólogo Richard Lynn, 
tantas pessoas defendem o conceito de eugenia e, através dele, a 
superioridade de alguns grupos – os homens, os europeus – em 
detrimento de outros – as mulheres, os africanos –, em decorrên-
cia da presumida superioridade de seus QIs. Jamais tinha ouvido 
falar de Richard Lynn antes de ler o presente livro, talvez porque, 
embora psicóloga, a literatura psi não goze de minha preferência. 
Mas conheço os racismos do “Conde de Gobineau” da esquina, da 
universidade e/ou do congresso nacional. Dada a coragem da ver-
12 
dade presente nos escritos desta coletânea, sinto a possibilidade de 
vencê-lo(s), se não pelos votos, decerto pela ética e pelos modos 
(embaraçados) de vida psi.
Obrigada por existirem e por escreverem.
Heliana de Barros Conde Rodrigues
Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e Institucio-
nal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Teoria
CAPÍTULO I
Psicologias, famílias e sociedade: 
as contribuições da Psicologia 
Crítica1
Ana Cristina Nassif Soares
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero tudo e mais
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
(Coração civil, Fernando Brant/Milton 
Nascimento).
1 Conferência de abertura do III Simpósio de Psicologia Social da Universidade Federal de 
Goiás/Regional Jataí, realizada em 05 de julho de 2017. 
16 
RESUMO
Construí o presente trabalho a partir de reflexões de expe-
riências profissionais, enquanto pesquisadora sobre o tema “famí-
lias”, de aspectos do Código de Ética Profissional do Psicólogo 
(CEPP), minha formação, bem como de ideias e considerações 
realizadas diante de minha participação em um simpósio nacio-
nal, na cidade de São Paulo, e, principalmente, da minha leitura da 
abordagem da Psicologia Sócio-Histórica. O objetivo primordial 
deste artigo foi, então, o de fortalecer o trabalho da/o psicóloga/o 
frente às diferenças sociais, acolhendo-as não como “anormalida-
des”, mas como outras possibilidades de vida, descristalizando pa-
drões e normas burgueses ainda presentes na psicologia brasileira. 
Pretendi, ainda, reforçar o compromisso da Psicologia, no Brasil, 
com o CEPP, na direção da atuação baseada na teoria crítica, da 
Psicologia Sócio-Histórica.
Palavras-chave: Psicologia Sócio-Histórica. Código de Ética 
Profissional do Psicólogo. Diferenças Sociais. Famílias.
INTRODUÇÃO
Para minha participação no III Simpósio de Psicologia Social 
da Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí, decidi focar em re-
flexões a partir de experiências profissionais, enquanto pesquisadora 
sobre o tema “famílias”, entre outros; do Código de Ética Profis-
sional do Psicólogo (CEPP), minha formação, bem como de minha 
participação no “I Simpósio Nacional Psicologia e Compromisso 
Social. Da Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no 
Percurso”, que aqui trago a partir de minhas anotações, promovi-
do pelo Instituto Sílvia Lane, na Pontifícia Universidade Católica 
(PUC-SP), em março de 2017 e, principalmente, da minha leitura da 
abordagem da Psicologia Sócio-Histórica.
17 
Acredito que estes elementos poderão situar o/a leitor/a/r, 
conforme vou construindo meu percurso nesta fala/escrita.
Ética profissional e psicologia crítica
Na Apresentação do Código de Ética Profissional do Psicó-
logo (CEPP), encontro:
Um Código de Ética profissional (...) procurafo-
mentar a autorreflexão exigida de cada indivíduo 
acerca da sua práxis, de modo a responsabilizá-lo, 
pessoal e coletivamente, por ações e suas conse-
quências no exercício profissional. A missão pri-
mordial de um código de ética profissional não é de 
normatizar a natureza técnica do trabalho, e, sim, a 
de assegurar, dentro de valores relevantes para a so-
ciedade e para as práticas desenvolvidas, um padrão 
de conduta que fortaleça o reconhecimento social 
daquela categoria. (BRASIL, 2005, p. 5).
A primeira frase já traz a ideia de que este Código se baseia 
em conceitos relacionais, pois faz uma correlação entre reflexões 
autodirigidas e heterodirigidas, ou seja, a si e aos outros, de modo 
entrelaçado, bem como a/o profissional deve se ater à sua prática 
profissional de modo referenciado em teorias, que modificarão sua 
prática e vice-versa. Segue dizendo que a prática profissional da/o 
psicóloga/o deve se pautar em valores indispensáveis para a socie-
dade em que esta ocorre, no trecho que me interessa ressaltar aqui. 
Continuando a leitura do CEPP, me deparo com os Princí-
pios Fundamentais do mesmo, dos quais destaco alguns, em ordem 
diferente: “II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a 
qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para 
a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, ex-
ploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, 2005, p. 7).
18 
A ideia aqui é que a pessoa que optar por ser psicóloga de-
verá agir totalmente contra qualquer tipo de preconceito; o próprio 
Princípio II já detalha contra o que deveremos trabalhar: contra 
qualquer tipo de ação que subjugue e submeta o ser humano. Além 
disso, a/o profissional estará a serviço da libertação/liberdade das 
pessoas. Não há escolha sobre sua ação profissional. 
Sobre o aprimoramento profissional, versa o Princípio IV: “O 
psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo apri-
moramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da 
Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.” 
(BRASIL, 2005, p. 7). Também é outra afirmativa do contínuo aper-
feiçoamento profissional, que favoreça o crescimento da profissão 
pela qual se optou.
O Princípio V anuncia que “O psicólogo contribuirá para 
promover a universalização do acesso da população às informações, 
ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões 
éticos da profissão.” (BRASIL, p. 7, 2005). Fica explícita a transpa-
rência requerida pela/o profissional, com relação à Psicologia; fazer 
frente ao poder do saber é uma das assertivas do CEPP. Deter co-
nhecimento como forma de hierarquia é o que deve ser evitado a 
qualquer custo. 
O penúltimo Princípio sobre o qual me detenho é “(...) VII. 
O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que 
atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissio-
nais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os de-
mais princípios deste código.” (BRASIL, 2005, p. 7). Este Princípio 
chama a/o profissional a se posicionar de forma “crítica”, levando 
em conta o poder em todas as circunstâncias em que atua e os efei-
tos do mesmo no seu fazer profissional. 
O terceiro e último Princípio que analiso, e o considero como 
tão importante quanto o VII Princípio, propõe a atuação da/o psi-
cóloga/o: “(...) com responsabilidade social, analisando crítica e 
19 
historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.” 
(BRASIL, 2005, p. 7). Deste preceito entendo que a atuação se an-
corará na responsabilidade social, ou seja, o que falo, o que faço, é 
sempre voltado ao outro, nunca de modo ou voltado ao individual. 
Além disso, aqui está a direção dessa atuação: “(...) analisando crítica 
e historicamente a realidade (...)”; isto é, buscando sempre como 
base da atuação profissional a Psicologia Crítica e as análises con-
textuais, históricas.
Fica bastante explícito o comprometimento desde CEPP com 
uma determinada postura profissional: aquela comprometida com 
o outro, com o coletivo, tanto profissional, quanto da população 
atendida por esta profissão. Assim, aperfeiçoamento constante faz 
parte de qualquer área de atuação na Psicologia. 
Desde o século XVII, o conceito de indivíduo se consolida 
no mundo ocidental (SOARES, 2002); contraditoriamente, este traz 
a emancipação do conceito de “eu”, enevoado pela Idade Média, 
mas traz também o individualismo moderno. O ser humano passa 
a ser o centro do universo, com o declínio da Igreja, mas se torna 
individualista, autônomo, uma ilha; as consequências disso são o 
isolamento do outro, como se não se reconhecesse no outro. 
Esta condição se fortalece ainda mais com o capitalismo (ou 
vem através deste?) e atinge a todas/os; alcança profissionais, estu-
diosas/os sobre o tema, leigas/os, etc. Atinge, também, psicólogas/
os! A/o leitora/or pode dizer: “É óbvio!”, mas ideologicamente, 
muitas pessoas não se dão conta disso e ainda concebem esta con-
dição de individualista como natural do ser humano. Como se já 
nascêssemos assim... 
Ora, se o conceito somente surge a partir da data já dita, tra-
ta-se de uma construção social! 
O Princípio III do CEPP já aponta para a necessidade de se 
analisar o contexto da vida, da atuação profissional. Juntamente 
com o Princípio VII o complementa trazendo a questão do poder e 
20 
o comprometimento dessa/e profissional com o social, com a críti-
ca e com a História! 
Então, o que é a Psicologia Crítica? Muito do que está dito no 
CEPP está baseado na Psicologia Sócio-Histórica, que eu chamo de 
Psicologia Crítica, fundamentada em leituras e na minha participa-
ção no “I Simpósio Nacional Psicologia e Compromisso Social. Da 
Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no Percurso”2, 
ao qual já me referi. 
Recorro à Bock, Furtado e Teixeira (1999, p. 86) para contar 
sobre seu surgimento: 
Escolhemos apresentar-lhe uma vertente teóri-
ca que nasceu na ex-União Soviética, embalada 
pela Revolução de 1917 e pela teoria marxista. 
No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia 
importância nos anos 70, tornando-se referência 
para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicolo-
gia Social e para a Educação.
A teoria de Vygotsky se opõe à tradição positivista e busca 
compreender o mundo psíquico dentro do paradigma da constru-
ção social, isto é, “(...) o mundo psíquico que temos hoje não foi 
nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente li-
gada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão 
construindo no decorrer da história da humanidade.” (BOCK FUR-
TADO; TEIXEIRA, 1999, p. 86). 
Apesar de ter falecido muito cedo, a abordagem de Vygotsky 
tem significados permanentes; de acordo com Bock, Furtado e Tei-
xeira (1999), como os animais não têm vida social e cultural, o en-
tendimento das funções superiores humanas não pode se dar por 
meio desses seres; estas, as funções superiores humanas, não devem 
ser concebidas como resultantes apenas da maturação, de um orga-
2 Pela extensão do nome passo a me referir a este evento somente como “I Simpósio...”. 
21 
nismo que já as possuía potencialmente; e ainda:
A linguagem e o pensamento humano têm origem 
social. A cultura faz parte do desenvolvimento hu-
mano e deve ser integrada ao estudo e à explicação 
das funções superiores. A consciência e o compor-
tamento são aspectos integrados de uma unidade, 
não podendo ser isolados pela Psicologia. (BOCK; 
FURTADO; TEIXEIRA, 1999, p. 87).
A cultura e a sociedade têm, para ele, papel fundamental na 
vida humana; Vygotsky não aceita as cisões que eram feitas na Psi-
cologia de até então, separando elementos das funções superiores, 
como por exemplo, consciência e comportamento. 
As bases para sua teoria (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 
1999) encontram-se no Materialismo Histórico Dialético; para a Psi-
cologia, Vygotsky aprimorou pressupostos a serem seguidos. Desta-
cou o caráter de transformação e movimento de todos os fenôme-
nose esses devem ser seu contexto de estudos. Enfatizou também 
a categoria sujeito, ou seja, o ser humano é influenciado e influencia 
a natureza, por meio de sua atividade e seus instrumentos. Ir além 
das aparências foi outro foco dado por ele à construção do conhe-
cimento. Reforçou a concepção de que são as condições sociais que 
provocam mudanças individuais, ou seja, a vida concreta é que gera 
a consciência, e não o contrário. Estes fundamentos caracterizam 
sua abordagem como sócio-histórica. 
Quais são, então, os aspectos contra os quais se volta a Psico-
logia Sócio-Histórica? 
Basicamente, com a visão liberal e positivista de ser humano; 
a principal delas, para mim, é a de que a pessoa é fonte de erros e o 
sistema é perfeito. Esta ideia dá total aval a qualquer modelo socie-
tário e responsabiliza o indivíduo por seu fracasso/sucesso, por sua 
bondade/maldade, por sua doença/saúde, por sua conduta certa/
22 
errada; preserva, assim, estruturas e valores societários conservado-
res. A meritocracia é um desses valores. Patrão tem que ganhar mais 
do que o trabalhador porque é patrão. 
O que também decorre dessas ideias é a visão do ser huma-
no como autônomo (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999). Ele 
próprio se torna individualidade, ele próprio se autogera. 
Coloca-se, ainda, o ser humano em oposição à sociedade. De-
frontam-se necessidades “naturais” humanas e sociais; consolida-se, 
assim, o conceito de essência humana. Desta maneira, eterniza-se o 
que é humano, como se este fosse concebido como fora de contex-
to, como se estivesse no mundo das ideias, onde tudo vale.
Além disso, qualifica-se o fenômeno psicológico3 com abs-
trato, encerra-se o mesmo no próprio ser humano, como se fosse 
o “verdadeiro eu” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999, p. 88). 
Estas ideias liberais e positivistas acabaram por naturalizar 
e essencializar o “mundo psicológico”, tornando-o descolado das 
condições materiais de produção da vida e criando uma ilusão de 
oposição “individuo x sociedade”. Frases como “o ser humano 
sempre foi...”, “o homem é egoísta por natureza”, entre tantas ou-
tras exemplificam este perigo. Aceitam estas concepções como se 
não houvesse alternativa.
Naturaliza-se a divisão da sociedade em classes. Cristaliza-se a 
hierarquia social. Essencializa-se o humano, como se não houvesse 
possibilidade de mudança.
Ainda de acordo com Bock, Furtado e Teixeira (1999), a Psi-
cologia Sócio-Histórica no Brasil pretende edificar propostas que 
possam se contrapor às ideias liberais/positivistas referidas, resumi-
damente, acima; a primeira delas é a de que não há natureza humana. 
Não há essência humana, ou seja, já nascemos prontos e vamos nos 
3 Cf. BOCK, A. M. B. Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia. São Paulo, Cortez/
EDUC, 1999. 
23 
alterando ao longo da vida; ora, se tomar como verdadeira esta ideia, 
o ser humano se autogere, se autodetermina, como se não vivesse 
em um mundo concreto. Assim, as condições materiais da vida pas-
sam a ocupar um lugar irrelevante no processo da formação da sub-
jetividade. A Psicologia Sócio-Histórica acredita que a subjetividade 
se forma a partir da realidade social, econômica, cultural, política. Se 
é assim, a relação com outros seres humanos é imprescindível, isto 
é, não somos seres autônomos, somos seres relacionais.
Se não existe a natureza humana, existe, então, a condição 
humana (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999). Isto quer dizer 
que dependendo da nossa base material e nossa interferência sobre 
esta, nos construímos; historicamente, ao olharmos os seres huma-
nos, vamos identificando transformações ao longo do tempo. Des-
sa maneira, na Idade Média, por exemplo, o conceito de “eu” não 
existia, ou se existia rudimentarmente estava subjugado à Igreja. Já 
no Capitalismo, o conceito de “eu” está em primeiro plano. Ainda 
dentro desse raciocínio, estas concepções se desenvolvem de modo 
diferente em tempos e em espaços diversos.
O desenvolvimento humano sé dá a partir do humano. Somos 
seres relacionais e nos desenvolvemos “em relação”; não há uma 
psicologia “individual”. Esta dicotomia é superada pela Psicologia 
Sócio-Histórica, a partir do Materialismo Histórico Dialético.
O ser humano é concebido, então, por meio de suas relações e 
vínculos sociais, imerso em uma determinada sociedade, em um mo-
mento histórico peculiar (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999).
Enfim, os fenômenos psíquicos vão se desenvolvendo a par-
tir da vivência do ser humano no mundo, juntamente a outros 
seres humanos. 
A importância do “I Simpósio...” para mim se dá desde sua 
proposição estrutural; em seu subtítulo aparece “(...) Embaraços no 
Percurso”; quais seriam, então, estes Embaraços? 
24 
O primeiro Embaraço é o do pensamento colonizado; nes-
te ciclo foram programadas falas de estudiosos interdisciplinares 
que focaram este tema. Basicamente, foram destacadas aqui análises 
desde a influência do colonialismo até o produtivismo acadêmico e 
a supervalorização da internacionalização do conhecimento. Foram 
lembrados o racismo, o sexismo, a religião e a bíblia como instru-
mentos de segregação e pensamento colonial, a colonialidade que 
nos entranha até hoje. 
O segundo Embaraço foi o da negação da historicidade. 
Historicizar foi um “ato” considerado fundamental ao pensamento 
crítico, por palestrantes deste ciclo. Se eu descontextualizo: pode 
tudo, porque vou para o nível das ideias; a História nos dá ideia de 
espaço e tempo, ou seja, de movimento, transformação, e não de 
eternização ou essencialização. A lógica do pensamento no Brasil é 
eurocêntrica, autoritária, colonial. A condição não branca é sinôni-
mo de atraso e subdesenvolvimento, assim, Brasil tem que ser bran-
co para progredir. A partir do século XIX, surge a ideia de demo-
cracia; as pessoas não brancas são expulsas para o “progresso” se 
realizar; são varridas porque os corpos só servem para exercer fun-
ções “pequenas”. A cultura pode ser instrumento de naturalização 
da desigualdade, pois culturas diferentes podem ser hierarquizadas. 
Além disso, este estudioso, Marcelo Paixão, critica a ideia de essen-
cialização, que já assinalei acima (PAIXÃO, 2017).
 Outras concepções interessantes foram levantadas por Luis 
Felipe Miguel. O mito da democracia racial, por exemplo, que de-
fende que só deixará de haver conflito se houver o consenso da 
“natural” condição da desigualdade. A reprodução do emprego das 
empregadas domésticas é ainda muito forte; essas pessoas só ser-
vem para fazer essas “tarefas”, e, em sua maioria, são negras. 
O mundo social precisa ser concebido como fruto do nosso 
fazer histórico; quanto mais o naturalizamos, menos participamos das 
manifestações para mudança. A naturalização é a ideologia da reprodu-
25 
ção; entender que os papeis sociais, por exemplo, são inatos, estão em 
nosso DNA, provoca a naturalização dos gêneros (MIGUEL, 2017).
A dicotomia indivíduo-sociedade foi elencada como o ter-
ceiro Embaraço, no último ciclo do “I Simpósio...”. Para Jessé de 
Souza, o indivíduo concebido como separado da sociedade não é 
visto como pertencente à uma família, à uma classe social, etc. A 
Psicologia assume a versão dominante da ordem quando descola 
o indivíduo do contexto; se torna a ciência da ordem: dominante, 
reprodutora da classe dominante. Não é “privilégio” somente da 
Psicologia, toda “ciência acrítica” assume esta postura separando o 
indivíduo do contexto (e, se não for crítica, não é ciência); distorce 
sistematicamente a realidade; são mentiras.
A individualidade é percebida como descolada da sociedade; 
dessa maneira, a desigualdade aparece como justa; “meritocracia”; é 
justo que eu produza mais e ganhe mais; quem pode mais deve ter 
mais prestígio, ideias que identifico com concepções positivistas de 
ser humano e mundo (SOUZA, 2017).
Segundo José Moura Gonçalves Filho (2017), o indivíduo é 
uma concepção burguesa; traz a individualidade e o individualismo; 
a noção de pessoa pressupõe estar em relação, fazer coisas juntos.Famílias e a psicologia sócio-histórica 
Conforme já me referi na Introdução deste texto, Famílias é 
um dos meus temas de pesquisa, juntamente com gênero e diversi-
dade sexual abordados como construções sociais. Para o objetivo 
presente, escolhi o primeiro tema para refletir sobre alguns pontos4 
relevantes, ao olhar as famílias sob o viés crítico ou da Psicologia 
Sócio-Histórica. 
4 Não estou querendo confeccionar um receituário sobre o assunto, mas apenas levantar 
questões que têm me parecido importantes.
26 
Há, por exemplo, algumas definições de família que trago para 
analisar:
(...) é o primeiro sujeito que referencia e totaliza 
a proteção e a socialização dos indivíduos. Inde-
pendente das múltiplas formas e desenhos que a 
família contemporânea apresente, ela se constitui 
num canal de iniciação e aprendizado dos afetos 
e das relações sociais. (CARVALHO, 1994, p. 93). 
Aqui há uma ênfase total na família como formadora do indi-
víduo; a família realizaria completamente “a proteção e a socializa-
ção dos indivíduos.” Mas, qual é o papel do Estado nesse processo? 
E da sociedade? Não seria um peso excessivo para este grupo? 
A próxima definição diz que a família é o (...) es-
paço privilegiado de socialização, de prática de to-
lerância e divisão de responsabilidades, de busca 
coletiva de estratégias de sobrevivência e lugar ini-
cial para o exercício da cidadania sob o parâmetro 
da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. 
(FERRARI; KALOUSTIAN, 1994, p. 11).
Neste conceito, a vida depende da família!!! Socializar, tolerar, 
responsabilizar, buscar coletivamente, exercitar, respeitar... Será que 
isso tudo acontece nas famílias brasileiras? Em algumas? Em quais? 
Em que contexto? 
A próxima definição quase que somente descreve uma famí-
lia, sem atribuir à ela, e somente à ela, mil e uma funções: 
(...) a família tem uma importância fundamental 
não apenas no âmbito da reprodução biológica, 
mas principalmente, enquanto mediadora de seus 
membros com a sociedade. Ela proporciona a 
construção de nossa primeira identidade e nos 
27 
insere nas relações sociais, tanto em nível emo-
cional, cultural, como sócio econômico. A família 
é o primeiro referencial e permeia toda a nossa 
existência. (JOSÉ FILHO, 2002, p. 15).
No entanto, no final José Filho a concebe como “primeiro re-
ferencial” humano e a eterniza na existência da pessoa. O que con-
sidero motivo de reflexões aqui é a questão relativa a várias crianças 
que nascem e vivem em situação de abrigamento, bem como pes-
soas que deixam de ter contato com sua família de origem.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atra-
vés da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, assim definiu 
família em 2011:
Considerou-se como família o conjunto de pes-
soas ligadas por laços de parentesco, dependência 
doméstica ou normas de convivência, que resi-
dissem na mesma unidade domiciliar e, também, 
a pessoa que morasse só em uma unidade domi-
ciliar. (PNAD/IBGE, 2011).
Considero bastante interessante esta definição, visto que trata 
as descrições com o uso da conjunção “ou”, que dá abertura para 
várias possibilidades.
Como eu descrevo famílias? Desde 2002 venho definindo fa-
mílias, sendo que esta conceituação está em constante construção. 
Assim, para mim, a partir de muitas leituras, vivências, conversas, 
reflexões, famílias: 
• São como são;
• São como dizem ser;
• Podem construir o sentimento de pertencimento;
• Desenvolvem relações afetivas manifestas de diversas formas;
• Podem construir laços biológicos, afetivos, por afinidade, 
entre outros;
28 
• Constroem e /ou reproduzem crenças e valores, mais ou 
menos ligados ao contexto a que pertencem;
• Constroem funções eternas, mesmo deixando de exercê-
-las na prática (por exemplo: todo ser humano é filho de 
pai e mãe, mesmo que corte relações com esta/e);
• Podem assumir várias configurações, de acordo com mo-
mentos históricos. 
Acredito que, ao se falar sobre famílias seja mais coerente 
sempre usar o plural. Quero enfatizar as várias possibilidades de se 
vivenciar e ser família, tanto com relação às configurações, quanto 
ao que cada pessoa define como sendo a sua família. As configura-
ções familiares têm muito mais relação com o contexto no qual estas 
vivem, do que com escolhas realizadas pelas pessoas que compõem 
uma família. Há ainda a possibilidade real de não se considerar vi-
vendo em família, mas sim, em um grupo social. 
Na atualidade, por conta da Política Nacional de Assistência 
Social de 2005, as famílias brasileiras têm estado em evidência; esta 
posição traz aspectos positivos, relativos ao acesso das famílias à 
proteção do Estado, mas também estas têm sido mais focalizadas. A 
culpabilização das famílias por conta de seus “fracassos” leva muito 
mais a uma desqualificação de seus membros, do que à posturas de 
acolhimento aos mesmos. Ao adotar um olhar não crítico, positivis-
ta, o indivíduo é a fonte de erros, frente a um mundo que funciona 
perfeitamente. Assim, culpabilizá-lo ou à sua família se torna o ca-
minho mais fácil e simplista. 
Outra questão importante é a psicologização das famílias; ao 
invés de se analisar as condições socioeconômicas em que vivem, 
encontro ideias que simplesmente “interpretam” as famílias sem 
que estas possam participar da “interpretação” juntamente com a/o 
profissional. Dessa forma, reforçam-se a hierarquia profissional e o 
olhar unilateral sobre as famílias. 
29 
Junto a isso, ocorre a descontextualização dessas famílias. 
Analisá-las fora do contexto em que vivem é focá-las sob ponto de 
vista idealizado, onde tudo pode e fica descolado da realidade. São 
concepções que pairam sobre as condições concretas de vida, como 
se fossem entidades independentes. Definições do tipo: “Família é 
a união de pessoas do mesmo sangue, que se amam e se protegem, 
promovendo a estabilidade do grupo.” A/o leitora/or já deve ter 
lido/ouvido pelo menos uma vez descrições desse tipo; e quem se 
reconhece como pertencendo a uma família assim? “Família é lugar 
de amor.” Somente isso? De que amor estamos falando? 
Aponto, ainda, as contradições existentes entre as atribuições 
do Estado, da escola, dos Conselhos Tutelares (nível público) e da 
intimidade, do lar, da família (nível privado); quem é responsável 
pelas famílias? O Estado ou a/o provedora/or da família? Há sem-
pre acusações entre estes lados, como se estivessem em caminhos/
posições opostos. No entanto, estão todos inseridos em um mes-
mo contexto, sofrendo as mesmas influências e tentando resolver 
problemas. Atitudes de parceria e acolhimento seriam muito mais 
solidárias e solucionáveis. Além disso, às famílias tem sido delegado 
o lugar da construção de vínculos e confiança: mas, só na família? 
Por que se incumbe à família este lugar? Se pela Constituição da 
República Federativa do Brasil o Estado tem como obrigação pres-
tar assistência às famílias em todos os níveis de sua vida, por que o 
afeto deve vir para as crianças e adolescentes somente das famílias? 
Todos os adultos significativos são importantes para estas pessoas, 
na construção de vínculos importantes.
As questões de gênero também estão presentes nas famílias; 
nestas se cristalizam os “papéis” de como ser homem/mulher. Das 
mulheres, exige-se que se vista com decência, com cores de roupa 
apropriadas; cria-se a mulher para que ela seja “pura” e incentiva-se 
o homem a ser o “garanhão”, o sedutor; perpetua-se a reprodução 
do machismo por nós, mulheres, através de tarefas destinadas às 
mulheres. O sistema patriarcal predomina na família.
30 
De acordo com Piscitelli (2009, p 132):
“Patriarcado” é um sistema social na qual a dife-
rença sexual serve como base da opressão e da 
subordinação da mulher pelo homem. O poder 
patriarcal pode ser entendido em função do âm-
bito familiar, como poder do pai sobre a esposa 
e sobre os filhos. Originalmente o termo se re-
fere aos patriarcas do Velho Testamento, como 
Abrahão, que era um anciãocom poder absoluto 
sobre mulheres, crianças, rebanhos e subordina-
dos. O termo foi usado também pelo cientista so-
cial alemão Friedrich Engels (1820-1895) e poste-
riormente por teóricas do feminismo para outros 
contextos históricos (tais como sociedades feu-
dais e capitalistas) em que haveria uma hierarquia 
muito forte baseada na estrutura familiar e no 
poder paterno. Em termos mais amplos, o poder 
patriarcal diz respeito à capacidade masculina de 
controlar o corpo da mulher, para fins reproduti-
vos ou sexuais.
Conforme a autora descreve, o sistema patriarcal, então, 
confina a mulher ao espaço privado e o homem ao espaço público 
da vida, o que vem se transformando, desde que as mulheres pas-
saram a ter que trabalhar fora de casa e ocuparem o espaço antes, 
“dos homens”. 
Defendo que as pessoas/famílias/grupos se tornam como 
estão, em função de um contexto mais amplo e, no caso brasileiro, 
de insegurança afetiva, econômica, social, de valores; de critérios de 
punição diferentes para membros da classe dominante e da classe 
dominada; da falta de condições de saúde, educação, trabalho e la-
zer; da diferenciação brutal de raças, como privilégios para brancas/
os e discriminação para negras/os e o sexismo; de preconceitos ar-
31 
raigados contra pessoas com baixo nível de escolaridade, como se o 
saber só viesse a partir de um diploma; da discriminação de pessoas 
de orientações sexuais diversas e diferentes daquela eurocêntrica, a 
heterossexual; enfim, como escolher “interpretar” famílias que “fo-
gem” ao padrão burguês psicologicamente falando, sem levar em 
conta todos os aspectos elencados acima e outros tantos mais?
Considerações finais
Qual tem sido o lugar social de psicólogas/os em nível na-
cional? O que se tem seguido em termos teóricos para alimentar e 
transformar estas práticas? 
Segundo Bock et al.: “A Psicologia tem reforçado formas de 
vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade e 
de saúde (...) Tem transformado em anormal o diferente, o ‘fora do pa-
drão dominante’.” (BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2001, p. 25).
Conforme já afirmei acima, a Psicologia brasileira, mesmo 
que tenha passado por muitas mudanças, ainda reforça padrões 
burgueses de comportamento, excluindo pessoas que não se en-
quadram nos mesmos.
Ainda de acordo com Bock, Gonçalves e Furtado (2001, p. 25) 
Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como 
instituição social marcada historicamente pela 
apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem 
falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexua-
lidade; fala-se da identidade das mulheres sem se 
falar das características machistas de nossa cultura; 
fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de 
habilidade e aptidões de um sujeito sem se falar das 
suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se 
do homem sem falar do trabalho; fala-se do psico-
lógico sem falar do cultural e do social. Na verdade, 
não se fala de nada. Faz-se ideologia.
32 
As categorias psicológicas e da vida são, então, estudadas por 
muitas/os psicólogas/os como algo abstrato, descontextualizado, 
que existe por si só. São estudadas sem um compromisso com a 
“descristalização” de regras e normas burguesas. São, assim, a pró-
pria ideologia, que mascara a realidade social, econômica, cultura, 
etc., em nome da “essência psicológica”. 
Não há, assim, escolha para quem quer se tornar profissional 
da Psicologia; o CEPP já aponta para uma atuação crítica por parte 
desta/e profissional; aquela/e voltado à contextualização de fatos 
e fenômenos, ao entendimento de comportamentos não abstratos 
ou neutros, mas construídos socialmente. Esta profissão mostra a 
construção horizontalizada do saber, da troca de conhecimentos en-
tre o acadêmico e o social. Indica a direção da análise crítica das re-
lações de poder e do posicionamento profissional frente às mesmas. 
A direção apontada pelo CEPP é para bem longe de análises positi-
vistas que culpabilizem pessoas/famílias como se fossem o motivo 
do fracasso ou do sucesso, como se isto viesse de esforço individual.
Finalizo com Bock, Gonçalves e Furtado (2001, p.35) nova-
mente, que pretendem que a ação profissional seja baseada na
(...) Psicologia Sócio-Histórica [que] produzirá 
conhecimentos com outros pressupostos, aban-
donando a pretensa neutralidade do positivismo, 
a enganosa objetividade do cientista, a positivi-
dade dos fenômenos e o idealismo, colando sua 
produção à materialidade do mundo e criando a 
possibilidade de uma ciência crítica à ideologia 
até então produzida e uma profissão posicionada 
a favor das melhores condições de vida, necessá-
rias à saúde psicológica dos homens [pessoas] de 
nossa sociedade.
33 
REFERÊNCIAS
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introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 1999.
BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (orgs.) Psi-
cologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Pau-
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CARVALHO, M. C. B. A priorização da família na agenda da política so-
cial. In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.) Família brasileira, a base de 
tudo. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNICEF, 1994.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profis-
sional dos Psicólogos. Brasília, 2005.
FERRARI, M.; KALOUSTIAN, S. M. Introdução. In: KALOUSTIAN, S. 
M. (Org.) Família brasileira, a base de tudo. São Paulo: Cortez; Brasí-
lia, DF: UNICEF, 1994.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sín-
tese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da po-
pulação brasileira. Rio de Janeiro, 2011.
JOSÉ FILHO, M. A família como espaço privilegiado para a constru-
ção da cidadania. Franca: UNESP – FHDSS, 2002. (Série Dissertações 
e Teses, n. 5).
PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H. 
B.; SZWAKO, J. E. (orgs) Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & 
Vertecchia, 2009, p. 116-148.
SOARES, A. C. N. Mulheres chefes de família: narrativa e percurso ideo-
lógico. Franca: UNESP – FHDSS, 2002. (Série Dissertações e Teses, n. 8).
I SIMPÓSIO NACIONAL PSICOLOGIA E COMPROMISSO SO-
CIAL. Da Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no 
Percurso, PUC – SP, 2017. (anotações pessoais).
CAPÍTULO II
A aliança entre ciência e 
progresso: a conversão da 
razão em domínio
Larissa Leão de Castro
RESUMO
Este trabalho investigou a pré-história da razão de domínio 
na ciência na forma mais sofisticada do positivismo elaborado por 
Émile Durkheim. Vale ressaltar que os princípios epistemológicos 
construídos por essa corrente de pensamento formam a base do 
desenvolvimento do positivismo nas diferentes áreas das ciências 
humanas, com suas especificidades. Uma pergunta recolocada é por 
que o processo progressivo de compreensão pela razão se transfor-
mou em total dominação, especificamente por essa corrente que se 
mantém dominante na ciência? Objetivou-se compreender as duas 
principais bases sobre as quais o capitalismo se erigiu e se sedimen-
tou: o surgimento da ciência na modernidade e o surgimento e pre-
36 
domínio da nova figura social que é o indivíduo. Lê a problemática 
dessas bases que produziram fortunas e exclusão a partir de Belaval, 
Hobsbawm e Horkheimer. O estudo postula que há uma aliança 
necessária e imprescindível entre ciência, barbárie e constituição 
subjetiva individualista para a conservação do que a modernidade 
considera como progresso. Por isso a importância de analisar seus 
nexos constitutivos sob um ponto de vista histórico, na aposta de 
que, pela análise da razão de domínio na ciência e da constituição do 
indivíduo moderno seja possível revelar alguns elementos presen-
tes na razão de domínio da sociedade em geral. A partir da crítica 
da razão de domínio na sociedade por meio da análise da razão de 
domínio na ciência evidencia-se que essa corrente construiu meios 
sofisticados de legitimação da eliminação do outro, do racismo e da 
violência; sendo impossível reafirmar essesinteresses ao analisá-los, 
pelo irracional, desumano e violência que carrega.
Palavras-chave: Positivismo. Razão de domínio. Capitalismo. 
Indivíduo. Eliminação.
Introdução
Ao longo da história, a pergunta e curiosidade acerca do que 
é o conhecimento, se ele é possível e quais são as condições para se 
apreender a realidade sempre existiram. No entanto, nos diferentes 
momentos históricos, as respostas dadas diferem significativamente, 
o que, por sua vez, revela que a história mantém íntima relação com 
a elaboração das respostas obtidas. 
Na modernidade, perguntas acerca do conhecimento trans-
formam-se e ganham uma especificidade com o surgimento da ciên-
cia. Cabe ressaltar que a ciência nasceu no mundo moderno, cujo 
principal marco que sintetiza essa passagem se deu com o teórico 
René Descartes (1596-1650), sobretudo em sua obra O Discurso do 
Método (1996). A principal pergunta que o move é: o homem pode 
37 
conhecer? Já no início da obra, elabora suas primeiras e definitivas 
reflexões acerca dessa questão:
O bom senso é a coisa mais bem distribuída do 
mundo: pois cada um pensa estar tão bem pro-
vido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se 
satisfazerem com qualquer outra coisa não cos-
tumam desejar mais bom senso do que têm. As-
sim, não é verossímil que todos se enganem; mas, 
pelo contrário, isso demonstra que o poder de 
bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, 
que é propriamente o que se denomina de bom 
senso ou razão, é por natureza igual em todos os 
homens; e portanto que a diversidade de nossas 
opiniões não decorre de uns serem mais razoá-
veis que os outros, mas somente de que conduzi-
mos nossos pensamentos por diversas vias, e não 
consideramos as mesmas coisas (DESCARTES, 
1996, p. 5, grifo inserido).
O filósofo nota que a razão, a capacidade de distinguir o ver-
dadeiro do falso, é uma faculdade de todos os homens e não um 
privilégio de poucos. Até então a razão era concebida como uma dá-
diva de Deus, destinada a poucos, reservada ao terreno da filosofia. 
A proposta cartesiana apresenta uma reflexão de alcance revolucio-
nário, marco do surgimento das ciências humanas e sociais.
A razão passou a ser concebida como uma prerrogativa hu-
mana universal que distingue os homens dos animais. A ressonância 
do pensamento contido na obra de Descartes foi definitiva para o 
nascimento e constituição das ciências humanas e sociais. Se a razão 
é uma faculdade humana, ela não está mais reservada aos poderes 
divinos ameaçadores e, muito menos, reservada a poucos. A ciência 
então surgiu como um fato novo, em um contexto de criação do 
mundo moderno e o que é fundamental: os acontecimentos do ho-
38 
mem passaram a ser estudados por ela (RESENDE, 2013).5
Ao mesmo tempo, essas reflexões são analisadas por Belaval 
(1976) em sua relação com uma transformação que ocorria no ter-
reno da história. O autor assinala que, até o século XV, a Europa 
era profundamente religiosa, mas essa característica se fragilizou, 
após as reformas de Lutero, de Calvino, da contrarreforma jesuíta, 
em um processo de fragmentação progressiva correlata à criação de 
uma multiplicidade de seitas. No século XVII, a religião e Deus já 
não eram capazes de explicar o mundo e nem garantir a verdade do 
conhecimento, como o era, até então.
 Ocorreu, portanto, um processo contínuo de dessacralização 
do mundo, ou seja, a razão passa a libertar o homem dos pode-
res sobrenaturais e punitivos, ao ser concebida como a capacidade 
de decifrar o mundo pelo próprio entendimento, que, por sua vez 
é inerente ao humano. A partir de Descartes (1996), sendo uma 
prerrogativa humana e não privilégio de alguns, a indagação sobre a 
possibilidade de o homem conhecer é respondida definitivamente, 
e então, a questão fundamental passa a ser: como se conhece? (RESEN-
DE, 2013)6.
Nesse sentido, na obra de Descartes (1996, p. 33) está pre-
sente uma discussão sobre como o homem pode conhecer, as pos-
sibilidades de “bem julgar”, as virtudes necessárias para o bem 
proceder, pela melhor maneira possível, pelo entendimento, sem 
que se imponha uma forma estanque e única para chegar ao co-
nhecimento verdadeiro.
Apesar dessa reflexão, a utilização da razão ao extremo criou 
uma corrente racionalista de pensamento que se desenvolveu e des-
cambou no apego e na idealização das regras como produtoras do 
conhecimento verdadeiro. Essa tendência de racionalismo chega ao 
5 Anita C. A. Resende, na disciplina Conhecimento e Sujeito, ministrada na Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal de Goiás, no primeiro semestre de 2013, na cidade de Goiânia.
6 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
39 
extremo de formalização de regras, de pressupostos e se atém à sua 
reprodução como garantia da verdade.7 Belaval (1976) analisa que 
esse movimento, correlato à progressiva dessacralização do mundo, 
acaba por se converter em pura fé na razão, em um extremo mecani-
cismo do cogito pela formalização de regras e sua reprodução: “Essa 
corrente cruzará o século XVIII e, através dos ideólogos, fecundará 
o positivismo e, nos nossos dias, o neopositivismo e a filosofia ana-
lítica” (BELAVAL, 1976, p. 7, tradução nossa).
Nessa perspectiva, as duas questões fundamentais que guia-
vam a reflexão sobre o conhecimento se converteram – no mundo 
moderno e como produto da ciência – na pergunta de como o co-
nhecimento deve proceder para ser reproduzido, segundo regras e 
pelo apreço à forma. O conhecimento passou a ser válido não mais 
por ser uma prerrogativa humana, mas por seguir determinadas re-
gras e procedimentos (e reproduzi-las como o único procedimento 
verdadeiro e seguro).
Em outros termos, uma questão epistemológica tornou-se 
uma questão metodológica. Dessa forma, com o surgimento da 
ciência, a razão converteu-se em forma. Nesse sentido, perdeu-se 
a capacidade de reflexão e a razão tornou-se um procedimento 
de reprodução da formalização produzida, portanto, um proces-
so de crença de que seguindo as regras existentes, garante-se a 
verdade. A dessacralização converteu-se em sacralização da razão8 
(RESENDE, 2013).
Atrelada a essa lógica, surgiu a ideia de progresso, com as 
transformações características que ocorreram nesse momento his-
tórico. A esse respeito, Belaval (1976) pontua que, no final do século 
XVII, só a Europa se tornou conquistadora em diversos âmbitos: na 
astronomia, no comércio, na conquista dos novos continentes, nos 
avanços tecnológicos, o que tem ressonância profunda na ciência. 
7 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
8 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
40 
Trata-se de transformações em um momento de dominação e que 
afetam até o processo de ensinamento.
Percebe-se as implicações dessas mudanças nos primórdios da 
ciência e Descartes (1996) já identifica suas tendências e contradições. 
Em sua obra O Discurso do método está presente a preocupação cientí-
fica com o progresso, com a produção de um conhecimento útil. A 
ideia do progresso estava ligada ao domínio da natureza, à pretensão 
do homem de ser senhor da natureza; e no caso da ciência, da produ-
ção de um conhecimento que tenha utilidade para a vida. 
Nessa nova época, prevalece a promessa de produzir o pro-
gresso útil para a vida. Na obra de Descartes (1996), essa promes-
sa aparece com o sentido da utilização adequada, de promoção da 
saúde para todos. Ao mesmo tempo em que se encantava com a 
aliança entre ciência e progresso, o filósofo francês receava que esse 
progresso pudesse não beneficiar a todos, mas a alguns poucos e, 
além disso, pressentia que, para beneficiar uns poucos, muitos se-
riam prejudicados, conforme a cadência da época:
De resto, não quero falar aqui em particular dos 
progressos que tenho esperança de fazer futura-
mente nas ciências, nem fazer ao público qual-
quer promessa que não tenha a certeza de cum-
prir; mas direi apenas que resolvi não empregar o 
tempo que me resta de vida em nada mais salvo 
procurar adquirir algumconhecimento da natu-
reza, que seja tal que dele se possam tirar regras 
mais seguras para a medicina do que as que tive-
mos até hoje; e que minha inclinação me afasta 
tanto de outros projetos, principalmente daque-
les que só poderiam ser úteis a uns prejudicando 
outros, que, se algumas circunstâncias me obri-
gassem a dedicar-me a eles, não creio que fos-
se capaz de ser bem-sucedido... (DESCARTES, 
1996, p. 85-86).
41 
Para o teórico, a aliança entre ciência e progresso fazia sentido 
se produzisse um avanço na saúde, se permitisse a fruição do lazer 
e não do luxo e se tivesse por objetivo o bem comum, ou seja, que 
favorecesse a todos e não a alguns e muito menos que prejudicasse 
a alguém. No entanto essa promessa, materializada também no ter-
reno da ciência, mostrou-se ilusória, converteu-se em puro domínio 
da natureza e exploração dos homens pelos seus semelhantes. “A 
razão passou a ser de utilidade para o desenvolvimento tecnológico 
e a distinção entre o verdadeiro e falso reduziu-se ao cumprimento 
ou não de regras e ao que é útil ou não” (RESENDE, 2013)9.
Uma pergunta que deve ser recolocada – porque ainda não 
foi superada na realidade até os dias atuais – é por que o processo 
progressivo de compreensão pela razão se transformou em total 
dominação, especificamente pela corrente dominante na ciência de-
nominada positivismo? E por que esse progresso se mantém como 
a lógica predominante do mundo moderno, produzindo fortunas? 
Qual é a lógica presente na razão de domínio característica do mun-
do moderno?
Pretende-se estudar essas questões tendo como objeto de es-
tudo a razão de domínio na ciência, especificamente objetivando 
a análise da corrente positivista, em virtude da ressonância que a 
razão de domínio teve nessa corrente que se mantém predominan-
te até a atualidade. Tendo em vista que a excessiva racionalização 
terminou se constituindo no positivismo francês, objeto de análise 
deste estudo, optou-se pelo estudo de alguns aspectos centrais da 
obra As regras do método sociológico (2001), de Émile Durkheim (1858-
1917), por ser um grande emblema do conhecimento reduzido à 
aplicação de regras. 
O presente trabalho parte da compreensão de que, para 
compreender e interpretar as profundas mudanças no processo de 
produção do conhecimento, é impossível não se debruçar sobre o 
9 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
42 
contexto de profundas mudanças na história, mentalidade e estilos 
de vida individuais em que esse pensamento se deu. Hobsbawm 
(1977) trabalha uma noção fundamental que permite lançar luzes 
sobre algumas das múltiplas determinações das profundas mudan-
ças ocorridas: o surgimento do indivíduo na história da humani-
dade. O resgate do surgimento do indivíduo no mundo moderno, 
que aparece como pano de fundo deste trabalho, em muito revela a 
forma de conhecer da ciência que é solidária ao seu surgimento ao 
longo da história.
Assim, percorrido brevemente o caminho que mostra o de-
clínio do pensamento filosófico e o pontapé do nascimento do 
pensamento científico moderno, a proposta de refletir sobre a ra-
zão de domínio na ciência é uma aposta de que, pela análise dessa 
escola de pensamento, o positivismo, que se mantém predominan-
te e que se alia com o progresso produzido no modo de produção 
capitalista do mundo moderno, seja possível estabelecer um diá-
logo e revelar alguns elementos presentes na razão de domínio da 
sociedade moderna. 
O SURGIMENTO DO INDIVÍDUO NA HISTÓRIA DA 
MODERNIDADE
Surgimento do indivíduo: processo lógico-histórico
Na obra A Era das Revoluções, o historiador Eric J. Hobsbawm 
(1977) analisa o período compreendido entre 1789-1848 e as duas 
revoluções que foram o marco do mundo moderno e do desenvol-
vimento do capitalismo. 
Percorre-se por meio dessa obra as transformações e seus 
entrelaçamentos nos diversos âmbitos da vida social, dos quais ne-
nhum deixou de ser afetado e constitutivo do desenvolvimento do 
capitalismo: na religião, na política, na ciência, alcançando até as ar-
tes, a forma de amar, de relacionar-se e se constituir do homem em 
43 
“um mundo no qual todos os laços sociais se desintegravam, exceto 
as relações entre ouro e papel-moeda” (HOBSBAWM, 1977, p.58).
Uma característica determinante dessa nova deu-se pelo fe-
nômeno da progressiva urbanização. O mundo europeu essencial-
mente rural foi ultrapassado definitivamente por volta de 1851, mas 
“por volta de 1789 podem ser chamadas de genuinamente grandes 
segundo os nossos padrões – Londres, com cerca de 1 milhão de 
habitantes, e Paris, com meio milhão – e umas 20 outras com uma 
população de 100 mil ou mais (...).” (HOBSBAWM, 1977, p. 33). 
Nessas cidades, que tinham como característica uma intensa 
produção econômica das fábricas, nasceram os subúrbios e o novo 
homem, denominado indivíduo pelos teóricos. Uma nova figura que 
remetia ao habitante da cidade, isolado no meio da multidão, com 
suas contradições constitutivas que se expressavam desde “jovens e 
ardentes ambiciosos para fazer fortuna ou revoluções (...)” (HOBS-
BAWM, 1977, p. 34), como Robespierre e Napoleão.
Ressalte-se que o surgimento do indivíduo se deu por um pro-
cesso lógico-histórico. Lógico, porque as ideias que ali estavam pre-
sentes se fizeram realidade e movimentavam a história; e histórico, 
já que intimamente relacionado com processos históricos definitivos, 
como o da Revolução Francesa, descambando na queda da Bastilha. 
Napoleão é bem emblemático desse processo que fez do conheci-
mento realidade, e da realidade conhecimento 10 (RESENDE, 2013). 
Nesse sentido, a nova forma de conhecer também é solidária do sur-
gimento do indivíduo, estudar seu surgimento ao longo da história 
possibilita revelar essa forma de produção do conhecimento.
Para entender o surgimento do indivíduo, considere-se como 
marco definitivo e criador da modernidade a Revolução Francesa de 
1979, por ser um grande emblema de como as transformações deter-
minaram a política e ideologia do século XIX, da qual a modernidade 
é herdeira. Essa foi a revolução social de massa mais radical, produto-
10 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
44 
ra de consequências profundas em todo o mundo, “(...) um marco em 
todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da Revolu-
ção Americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da 
América Latina depois de 1808.” (HOBSBAWM, 1977, p. 100).
A grande promessa do progresso era inquestionável, alcan-
çando todas as correntes iluministas. Nesse sentido, Hobsbawm 
(1977, p.47) aponta que a ciência, a produção, a economia e o 
comércio se aliaram para produzir riquezas e avanço tecnológico 
de tal forma que a ciência passou a se dedicar “à solução dos pro-
blemas produtivos”.
O programa do liberalismo surgia nesse momento e se con-
solidava como característica fundamental do capitalismo, que era o 
cerne do ideal racional egoísta do novo habitante da cidade, o indi-
víduo, que dizia respeito a um espírito empreendedor e engajado no 
lucro privado como o supremo objetivo de vida. 
Corolário a esse quadro, a figura intrigante do indivíduo que 
estava surgindo ganhava força e se tornava predominante na socie-
dade. Napoleão (1769-1821) é o símbolo maior que sintetiza a cons-
tituição e consolidação do homem na forma de indivíduo na história 
da modernidade. Em uma época em que os grandes homens eram 
os herdeiros da coroa, ele representou a superação dessa tradição, 
pois era um homem comum que irradiava inteligência, ambição e 
que não dependia de hereditariedade para ter o céu como limite – 
como acontecia com os reis –, tornando-se um mito.
Napoleão surgiu em um momento fundamental da Revolução 
Francesa, pois o descontentamento e o desemprego aumentavam 
em grande medida e a promessa do progresso começava a mostrar 
sua falsidade, seus penosos e sérios custos sociais. 
O domínio, a inteligência, a conquista, a força e a grandeza de 
Napoleão, em todos os sentidos, adquiriram fundamentalimportân-
cia para a solidificação do capitalismo e para o desenvolvimento do 
indivíduo e de sua busca pelo interesse próprio. 
45 
Hobsbawm (1977) expõe que o ideal da Revolução France-
sa de liberdade – encarnada no indivíduo livre, que rompe com 
a tradição e a família, se dispondo a ser um Napoleão das finan-
ças, ou da indústria, do comércio, do intelecto, da ciência – que 
ganhava força avassaladora. Um dado intrigante desse processo 
pode ser constatado com a seguinte citação do historiador acerca 
da figura de Napoleão:
Ele trouxe estabilidade e prosperidade para to-
dos, exceto para os 250 mil franceses que não re-
tornaram de suas guerras, embora mesmo para 
os parentes deles tivesse trazido à glória (HOBS-
BAWM, 1977, p. 131, grifos inseridos).
Essa passagem é emblemática da força avassaladora de Napo-
leão e da consolidação da forma do novo homem como indivíduo, 
da profunda simpatia e admiração que causava. Conforme analisa 
Hobsbawn (1977), essa época já dava sinais de suas graves conse-
quências, uma vez que a vantagem econômica contida na busca do 
lucro e dominação sem amarras, pelo ideal de indivíduo livre, pro-
duzia um grande custo social, como a guerra. Ao mesmo tempo, o 
vislumbre do progresso era tão avassalador que, para os próprios 
parentes, cujos entes próximos pagaram essa busca com a própria 
vida, o progresso configurava-se como símbolo de glória.
O historiador traça então as principais bases, do ponto de vis-
ta da história, sobre as quais o capitalismo se erigiu e se sedimentou: 
pelo liberalismo e individualismo seculares, característicos e impres-
cindíveis para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. 
Fica claro então que, por um penetrante individualismo, 
nada escapava ao império do interesse próprio, à utilização do que 
lhe aprouver a cada um na busca da felicidade egoísta. Assim, o 
historiador analisa que as formas de relacionamento sociais se da-
vam sobretudo pela competição e aproximação do outros e de 
46 
grupos, pela utilidade que delas poderia resultar. Conforme essa 
análise faz-se mister pesquisar a forma predominante que o pro-
cesso de reconhecimento ganhou na relação com o outro, como 
será aprofundado adiante.
Da individualidade e reconhecimento à individualização 
e pertencimento
Horkheimer (1895-1973), um dos grandes estudiosos do que 
se convencionou denominar teoria crítica da escola de Frankfurt, 
desenvolve questões fundamentais no que diz respeito ao contexto 
histórico analisado e a razão de domínio que o constitui. A sua obra, 
Eclipse da Razão (2002) tem por objetivo indagar acerca do conceito 
de racionalidade predominante no mundo moderno ocidental – um 
dos objetivos do presente trabalho. O caminho que o autor segue 
perpassa a discussão de “algumas escolas de pensamento predo-
minantes como refrações de alguns aspectos de nossa civilização.” 
(HORKHEIMER, 2002, p. 8), e o positivismo é uma delas.
O autor nessa obra analisa a íntima e coesa relação entre a 
lógica do indivíduo e do surgimento e da constituição da ciência 
moderna – que tem por objeto o indivíduo – no que dizem respeito 
às respectivas instrumentalizações de si mesmo e do outro, em bus-
ca do exclusivo interesse individual, próprio da ideologia neoliberal, 
da constituição do indivíduo isolado e da ciência funcional, utilitária.
A contradição fundamental da reflexão exposta pelo autor é 
que, nessa época, segundo sua própria lógica, havia a promessa fun-
dada na razão objetiva, ou seja, uma razão que prometia a realização 
pessoal indissociada dos valores universalmente humanos de digni-
dade, dos ideais universais de realização de fins humanos, em que se 
pesava o destino da humanidade e do bem comum. 
Os sonhos mais difíceis de serem realizados passaram a ser 
idealizados na forma do indivíduo, exigindo um imenso sacrifício de 
isolamento, de negação de si mesmo e dos outros. Nesse sentido, o 
47 
não reconhecimento, a fragmentação, o isolamento, tornaram-se va-
lores a serem buscados, isto é, tornar-se independente, não precisar 
de ninguém. Retomando o percurso de como a razão se converteu 
em forma (de Descartes ao positivismo), percebe-se claramente o 
alcance desse processo na ciência:
Os ideais e conceitos básicos dos metafísicos 
racionalistas estavam enraizados no conceito 
do universalmente humano, da espécie humana, 
e sua formalização implica que eles foram se-
parados do seu conteúdo humano. Como essa 
desumanização do pensamento tem afetado os 
próprios fundamentos da nossa civilização (...) 
(HORKHEIMER, 2002, p. 31).
A desumanização do pensamento caminhou, nesse mesmo 
sentido, solidária ao surgimento do indivíduo, para quem, por sua 
vez, há duas possibilidades contraditórias expressas pelo autor nos 
conceitos de “individualidade” e “individualização”. O indivíduo 
surgiu na modernidade como a pessoa que pensa por si mesma, 
fonte de autoria – tendo criatividade e potencialidade de desenvol-
vê-las na arte, na pintura, pelo poder da imaginação. Na literatura, 
aparecia a ideia nova de gênio, com originalidade e criação, próprias 
de alguém singular. 
Nesse sentido, o indivíduo tinha a possibilidade de efetivação 
da individualidade nos relacionamentos sociais, o que remete a ideia 
do reconhecimento e diferenciação na relação com o outro e com 
o mundo, à potencialidade do ser consciente, com capacidade de 
reflexão e juízo independentes, produtores de autonomia. 
Contraditoriamente, a individualidade – a nova promessa do 
homem moderno – convertia-se em extremo individualismo, como 
produto da pressão social e econômica. Horkheimer (2002,) adverte 
que a individualidade já existia e era pensada por Sócrates como va-
lorização da autonomia do indivíduo. A novidade, da modernidade, 
48 
porém é que a individualidade passou a ser uma forma predominan-
te de criação/formação. 
Sob a égide do liberalismo, na estratégia do lucro, da conquista 
e poder em busca do interesse próprio, o pesquisador analisa que se 
produzira o sintoma de forte ansiedade repressiva, motor da extre-
ma “preocupação com o sucesso” (HORKHEIMER, 2002, p. 76) e 
adaptação automática ao existente. Seguindo a trilha da tirania do pro-
veito próprio, em contraposição ao bem comum, o indivíduo é utiliza-
do como meio, em todos os aspectos, e a independência é associada à 
escolha automática dos fins, geralmente insensata, e que consiste em 
pura reprodução do existente. Nesse sentido, o espírito da utilidade 
e da funcionalidade tornam-se presentes em tudo o que a pessoa faz, 
penetrando a vida social em todos os setores e mantendo o “ideal de 
produtividade: em relação às estruturas de poder e não em relação às 
necessidades de todos” (HORKHEIMER, 2002, p. 158).
Os efeitos contraditórios desse processo é que, embora a for-
ma do indivíduo nunca tenha sido tão afirmada, atingindo seu maior 
apogeu, ao mesmo tempo, há sua completa negação, abolição.
O autor aponta que esse sistema embrutecedor idealiza o 
individualismo como um fim heroico de conquistas e realizações, 
mesmo que se pague com extermínio, miséria, pobreza, morte e 
a guerra, como analisado. Horkheimer (2002, p. 133) evidencia a 
íntima relação entre a crise da razão e do indivíduo, apresentando a 
seguinte tese: “A crise da razão se manifesta na crise do indivíduo 
por meio da qual se desenvolveu.”.
Há que se analisar um aspecto específico da forma do meca-
nismo de reconhecimento quando as leis do mercado alcançaram as 
relações afetivas, acarretando o que Horkheimer (2002) denomina 
resignação à insegurança, produtora da adesão ao existente e da não 
resistência a ele. 
Existe a tendência, em níveis cada vez maiores, de individua-
lização e de isolamento do indivíduo nas cidades, mantidos pelo 
49 
ideal de realização que se vislumbra. Ser livre, independente, não 
ter que ser reconhecido por ninguém, tornam-se valores. Ao mes-
mo tempo, como a necessidade humana de reconhecimento pelo 
outro é imanente, na particularidade histórica do capitalismo, essa 
busca sedá como “meio”, objeto de uso pelo outro para alcan-
çar os fins próprios da competição, de se isolar e se individualizar 
ainda mais. Os sentidos de solidariedade, de reconhecimento em 
causas coletivas não passam de mera ilusão, nem chegam a ser um 
ideal a ser vislumbrado.
Contraditoriamente, há uma necessidade maior de pertenci-
mento. As relações são estabelecidas predominantemente em razão 
dos cargos, de profissões fragmentadas, de funções que as pessoas 
ocupam, de tal forma que o reconhecimento pelo outro se dá pre-
dominantemente no pertencimento à uma classe, à uma moda, a 
um estilo arquitetônico, à ciência, a agrupamentos cada vez mais 
uniformes que constroem e afirmam a identidade do indivíduo pela 
negação de outros grupos não idênticos a ele. 
Nesse processo de individualização, os laços afetivos duradou-
ros tonam-se cada vez mais frágeis e reduzidos. A exacerbação desse 
processo, atrelado ao isolamento acentuado, leva a adesão a grandes 
sacrifícios. O indivíduo constitui-se afeito ao ideal da dor e de sua 
premiação, ao ideal do lucro, do sacrifício dos relacionamentos, do 
desprendimento da tradição e da família para poder ser livre e fazer o 
que quiser, sem depender de ninguém, de nenhum outro ou de algum 
reconhecimento, além de si mesmo, com um alto grau de egocentris-
mo. A busca é a uniformização nesse ideal, nas funções, nos cargos e 
grupos que se afirmam na negação de outros grupos. 
Como será analisado em profundidade adiante, o procedimen-
to racional e egoísta do indivíduo é correlato ao procedimento ra-
cional e científico do positivismo, que se consolida pela classificação 
progressiva, estabelece a uniformidade da média e a afirma, preten-
dendo eliminar qualquer diferença que vá além do normal que a mé-
50 
dia capta. O procedimento racional é o mesmo: o que não é o indiví-
duo, não é a média, deve ser transformado; como não é verdadeiro, 
deve ser negado, chegando ao ponto de pretender-se eliminá-lo. 
Então, pode-se perguntar: o indivíduo que submete-se em 
grau elevado a esse procedimento racional, que nega o que é di-
ferente nele mesmo e no outro, pelo processo da individualização, 
que se submete ao que o normal e ao que a média lhe impõe, como 
poderia ter outros valores senão os que lhe são próprios? Já que o 
coletivo, como forma de pertencimento, exige do indivíduo a nega-
ção de si mesmo naquilo que o diferencia da norma padrão, quais 
são as possibilidades de ele se reconhecer e se constituir pelo outro, 
independentemente de classes, ou seja, qual a possibilidade de se 
reconhecer em uma causa coletiva, se esse coletivo é tão hostil a 
qualquer causa comum a todos?
A classificação exige a hierarquização e a negação do outro 
em graus diferenciados, requer a eliminação de tudo o que é diferen-
te da média. Esse é o “princípio da maioria” predominante na so-
ciedade, como analisa Horkheimer (2002, p. 31). Que causa comum 
o indivíduo constituído por essa lógica poderia ter com o coletivo, a 
não ser a mesma que oferece: negação do diferente em si e no outro 
como forma de pertencimento? 
Em suma, esse procedimento racional é uma expressão geral 
da sociedade, da qual nenhuma expressão de vida permanece imune, 
porém, em menor ou maior grau, resiste-se a ele. Em níveis e graus 
diferentes há espaços, até mesmo na ciência, que se opõe mais ou 
menos a esse procedimento. A família, por exemplo, segundo alguns 
autores, pode ser o maior emblema das possibilidades de uma maior 
resistência a essa lógica, pois o afeto sobrepõe-se à racionalidade 
da mercantilização e à coisificação das relações. Além disso, apesar 
de o reconhecimento ser convertido em pertencimento na forma 
predominante da sociabilidade moderna, não quer dizer que ele seja 
isento de contradições. 
51 
O POSITIVISMO FORMALIZADO POR ÉMILE 
DURKHEIM
Durkheim (1858-1917), pela formulação de suas obras e, espe-
cificamente, pela obra As Regras do Método Sociológico (2001) constitui 
um marco do surgimento das ciências sociais, sendo de fundamental 
importância seu estudo. O autor radicaliza e potencializa a aplicação 
do positivismo formulado por Comte (1798 - 1857) e Spencer (1820 
– 1903), superando-os no rigor do trato das regras de conhecimen-
to dos fenômenos sociais. Sua obra é a expressão mais elaborada 
da conversão do conhecimento em regra. Suas discussões centrais 
descrevem, com muita precisão, a sociedade em que vivemos, sendo 
imprescindível sua análise, pois possibilita a compreensão da razão 
de domínio na ciência e joga luz sobre a compreensão da razão de 
domínio da sociedade.
O a priori do positivismo que auxilia a compreender as ra-
zões de ele prescrever e pretender conservar as leis presentes na 
sociedade pode ser encontrado na concepção de história da tradição 
dessa corrente. A ideia de história, segundo em Durkheim (2001, p. 
45), tributária da concebida por Comte, concebe o desenvolvimento 
cronológico da história da humanidade como progresso e “evolução 
contínua do gênero humano”.
Para Durkheim (2002, p. 52), após as leis serem descritas, elas 
são prescritas “como moldes nos quais temos a necessidade de va-
zar as nossas ações”. Essa ideia solidifica-se, recolocando o seu en-
tendimento sobre a relação sujeito e objeto presente nessa tradição. 
Nela, os fatos sociais devem ser considerados como coisa, já que 
independem do indivíduo, pois neles se percebem frequência, regu-
laridade, constância, que devem ser analisados mais do que “fatos 
naturais”, como apontava Comte e Spencer, mas como coisa, na 
exterioridade que isso implica, pois nada depende de ninguém em 
suas leis. O autor cita a moda, os códigos do direito, as estatísticas, 
como exemplos das leis sociais.
52 
Nessa perspectiva, as variações dos sentidos envolvidos, por 
exemplo, na moral, política, economia, “não são menos fundadas na 
natureza das coisas do que as partes imutáveis; as variações por que 
passam as primeiras testemunham simplesmente que as próprias coi-
sas variam.” (DURKHEIM, p. 61). Nesse sentido, todas as transfor-
mações, ao longo do tempo, só constatam as leis da natureza de que 
as coisas se transformam e, nada há além disso. A superficialidade 
dessa análise revela a incapacidade de considerar as transformações 
da história como objeto de estudo, no que elas podem revelar delas 
mesmas, o que não é objeto de compreensão, mas somente de consta-
tação de seu aparecimento, sendo, elas, portanto, naturalizadas.
Assim, o autor aponta a necessidade de analisar com neutralida-
de os fatos sociais, no que comportam de naturais, não como nexos e 
mediações constitutivas próprios da história. Existe então uma lógica 
em deter-se nas características aparentes e semelhantes dos fenôme-
nos sociais, estritamente naquelas que afirmam o que pode ser consta-
tado como frequente, regular, e que podem ser comparadas pelo que 
de idêntico há na realidade e que se repete. Para Durkheim (2001,), 
as variações – que nada dizem em relação ao que ocorre com maior 
frequência nos fatos sociais – devem ser isoladas e eliminadas. 
Assim, alcança-se o “objeto fixo”, um “padrão constante”, ga-
rantindo a neutralidade científica e estabelecendo “as primeiras ba-
ses da ciência sobre um terreno firme e não sobre areias movediças.” 
(DURKHEIM, 2001, p.66). A aproximação do objeto dá-se pela se-
gurança, que, por sua vez, se caracteriza por se aproximar do idêntico 
e regular dos fenômenos e captá-lo, mediante o isolamento e a elimi-
nação do diferente, variável, daquilo que envolve a subjetividade.
Pode-se tentar compreender com maior clareza a busca do 
idêntico quando Durkheim (2001, p. 42) discute as regras fundamen-
tais da observação dos fenômenos, e como a ciência deve dirigir-se 
ao seu objeto de estudo: “Esta vai das ideias para as coisas, e não das 
coisas para as ideias.”. Nesse ponto, o autor revela uma dificuldade de 
53 
alcançar o objeto, já que as ideias estão prontas e, só se vai ao objeto 
para verificá-las e não para compreender o que ele revela. 
Nessa perspectiva,

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