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FAUSTON NEGREIROS A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI Fortaleza – CE 2009 S Negreiros, Fauston A merenda escolar e seu potencial em face da segurança alimentar em Guaribas-PI. / Fauston Negreiros -- Teresina, 2009. 143f. : il Dissertação (mestrado em Educação Brasileira) – Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra. 1. Educação - Currículo. 2. Segurança alimentar. 3. Merenda escolar. I. Bezerra, José Arimatea Barros – Orient. II. Título. CDD – FAUSTON NEGREIROS A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI Relatório de Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Educação Área de Concentração: Currículo e Ensino Orientador: Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra Fortaleza – CE 2009 FAUSTON NEGREIROS A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI Trabalho apresentado em: 21/01/2009 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra - (UFC) Presidente da Banca _________________________________________________________ Profª. Drª. Maria de Lourdes Peixoto Brandão Examinadora (UFC) _________________________________________________________ Profª. Drª. Elza Maria Franco Braga Examinadora (UFC) _________________________________________________________ Profª. Drª. Helena Alves de Carvalho Sampaio Examinadora (UECE) _________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Socorro Lucena Lima Examinadora (UECE) “O que o mundo social fez, o mundo social pode desfazer.” Pierre Bourdieu DEDICATÓRIA À Helenita Gomes de Negreiros, vozinha, pelo açúcar, fermento e afeto, indispensáveis ao meu preparo. AGRADECIMENTOS Ao professor José Arimatea Barros Bezerra pela orientação e motivação contínua que me impulsionaram à conclusão deste trabalho. À professora Maria de Lourdes Peixoto Brandão, por oferecer os instrumentos necessários à resolução de inquietações da pesquisa e assim favorecer o meu crescimento. Aos meus pais, Luiz Gonzaga e Gema Galgani de Negreiros, que apesar de distantes fisicamente nunca soltaram as minhas mãos. Aos sujeitos da pesquisa, cuja contribuição foi imprescindível para que este trabalho se tornasse um fato e cuja participação se fundamenta como primeiro elemento transformador. Por permitirem a troca de conhecimentos para o desenvolvimento de ações futuras. Ao Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da UFC e ao Núcleo de Educação, Currículo e Ensino por terem contribuído para meu amadurecimento acadêmico. À tia Lourdinha Nunes pelo incentivo implacável e crença constante em meu potencial. À amiga Ana Valéria Lopes Lemos, que me ajudou a editar essa dissertação e os problemas do dia-a-dia. À Ana Lourdes Lucena, pela amizade fiel e leal que tanto me ajudou a crescer durante o mestrado, adoçando o amargo e salgando o insípido. À Samara Mendes pela “co-orientação”, pela amizade, pelos conselhos e pelos temperos da companhia. À Natércia Mendes e Samara Alves, grandes amigas, por mais uma parceria de sucesso, conjugando bons pratos, bons livros e relevantes artigos. A Cleilson Nogueira pelo apoio moral em momentos significativos para a conclusão deste trabalho. A Mauro Furtado, amigo das urgências e emergências, da ciência e paciência, toda a gratidão. A Delite Barros e Carla Andrea, profissionais amigas e amigas profissionais por todo o carinho, confiança e cumplicidade. Ao Instituto Dom Barreto, em nome da Prof.ª Márcia Rangel, pelo incentivo constante e por subsidiar meu crescimento profissional e pessoal. A todos aqueles que acreditaram em mim, por meio de contribuições para este estudo, em especial ao povo cearense pela acolhida calorosa. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES), durante o ano de 2008 pela concessão de financiamento para essa pesquisa. RESUMO Estudo sobre a análise do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) como um instrumento com potencial de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de fome presente no município de Guaribas – PI. Buscou-se mapear o universo da produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os cardápios da merenda escolar; e apresentar as práticas alimentares da população do município situando sua construção sócio-histórico-cultural; O método utilizado foi qualitativo, História Oral, com abordagem de pesquisa definida como exploratório-explicativa, no qual foram necessários grupos de participantes contemplados por moradores de Guaribas, pais de alunos, técnicos responsáveis pela merenda escolar e pela análise das potencialidades da região geográfica. Estudos acerca das teorias do currículo, dos conceitos sócio-antropológicos de comida e alimento, produção agrícola e situação de fome, aspectos culturais do sertão piauiense e práticas alimentares no espaço escolar, representaram o suporte teórico da investigação. A análise dos dados sucedeu conforme orientações da Hermenêutica de Profundidade, através da qual se dá uma ênfase ao processo de interpretação, possibilitando a compreensão das formas simbólicas enquanto campo-objeto e também campo-sujeito. Por meio desse estudo, constata-se que as formas de utilização do PNAE – política educacional – poderiam constituir potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e superação da fome, podendo garantir segurança alimentar. No entanto, isso não ocorre, em sua plenitude, na operacionalização daquele Programa junto ao município de Guaribas – PI. Palavras-Chaves: merenda escolar; segurança alimentar e nutricional; Piauí; Guaribas. ABSTRACT It is a study about The National Program for Free School Meal (NPFSM) as an instrument with the potential for social development and promotion of the quality of life in the midst of hunger present in the town of Guaribas-PI. It is an effort to map out the universe of family agricultural production at the town, identifying the foods that can be integrated into the menu of school meal; and to present the eating practices of the population of the town situating its social-historical and cultural construction. The method utilized was qualitative, Oral History, with the research approach defined as explorative-explanative, in which it was necessary groups of participants contemplated by the residents of Guaribas, the parents of the students, technicians responsible for school meal and through the analysis of the potentialities of the geographical region. These are the studies around the curriculum theory, the social- anthropological concepts of food and nourishment, agricultural production and the situation of hunger, cultural aspects of the dry regions of Piauí and the eating practices in school spaces, which representthe theoretical base of the investigation. The analysis of the data was done according to the orientations of the Depth Hermeneutics, through which it was given the emphasis on the process of the interpretation, making possible the comprehension of the symbolic forms as field-object and also field-subject. Through this study, we can establish that the ways of the utilization of the NPFSM- educational policy- can constitute the potential element of the stimulus to the local and family agriculture and for the overcoming of hunger, enabling to guarantee food security. However, this does not happen, in its plenitude, in the operationalization of the Program for the town of Guaribas-PI. Key Words: school meal; food and nutritional security; Piauí; Guaribas. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 10 CAP. 1 – “COZER O PIAUÍ E DESCASCAR GUARIBAS” – O ESTADO E O MUNICÍPIO EM SUAS CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES ............................. 19 1.1 Comer, comer, comer... Terra à vista! – As práticas alimentares e os alimentos transportados pela armada de Pedro Álvares de Cabral ................................................................ 19 1.2 Piauí: berço da humanidade ou o caldeirão do inferno?........................................................... 22 1.3 O fim do mundo, uma imensidão quase desconhecida, ou seja, o Piauí ................................. 23 1.4 Descansa a fome no Piauí em berço esplêndido, eternamente? .............................................. 27 1.5 O estado do Piauí: uma caracterização histórica ..................................................................... 29 1.6 E por falar no Piauí, Guaribas como anda você? ..................................................................... 35 1.6.1 Um pouco além/ mais da história local ................................................................................ 37 1.7 Comer hoje no Piauí é... .......................................................................................................... 40 CAP. 2 - GUARIBAS À MODA DA CASA: HÁBITOS ALIMENTARES E SITUAÇÃO DE FOME ..................................................................................................................................... 41 2.1 Bolo de Milho com coco, e sua receita como metáfora para expressar as práticas alimentares de Guaribas – PI ......................................................................................................... 42 2.1.1 Duas xícaras de chá de massa de milho; duas xícaras de chá de leite; três ovos ................. 43 2.1.2 Uma xícara e meia de chá de açúcar; meia xícara de chá de óleo; uma colher de sobremesa de fermento em pó ....................................................................................................... 46 2.1.3 Uma xícara de chá de coco ralado ......................................................................................... 49 2.1.4 Modo de preparo: em uma panela, misture a massa de milho, leite, o açúcar e o óleo ........ 55 2.1.5 Leve ao fogo por 5 minutos; desligue o fogo e deixe esfriar ............................................... 59 2.1.6 Quando já estiver frio, junte o coco, as gemas, as claras batidas em neve e o fermento ...... 62 2.1.6.1 Despeje a massa em uma forma untada e enfarinhada ..................................................... 62 2.1.6.2 E leve ao forno na temperatura média ou baixa por cerca de 45 minutos. Para servir polvilhe com coco ralado ............................................................................................................... 66 2.1.7 Rendimento: 10 pedaços; ou 8 pessoas ................................................................................. 59 2.1.8 Tempo de preparo: 1 hora e 10 minutos ................................................................................ 77 2.2 Comer e não comer. A segurança alimentar em Guaribas, alguém determina? ...................... 81 CAP. 3 – O SABOROSO E O INSÍPIDO NA ESCOLA: DISCUTINDO OS TEMPEROS DO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ............... 82 3.1 A data de fabricação ................................................................................................................ 84 3.2 COMPOSIÇÃO QUÍMICA: escolha de cardápios e aceitabilidade ...................................... 88 3.3 A EMBALAGEM: como os atores vêem a merenda escolar .................................................. 91 3.4 PRESERVAR EM LOCAL AREJADO: operacionalização das propriedades do PNAE ...... 96 3.5 PRAZO DE VALIDADE: aspectos da funcionalidade do PNAE .......................................... 100 CAP. 4 - O CONTEÚDO DO PNAE: POSSIBILIDADES DE USUFRUTO DE SEU PESO LÍQUIDO .......................................................................................................................... 116 4.1 O PNAE como indutor de segurança alimentar e nutricional ................................................. 118 4.2 Necessidade de políticas públicas mais eficazes. .................................................................... 120 4.3 A Merenda educadora .............................................................................................................. 124 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 130 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 132 APÊNDICES ................................................................................................................................ 138 10 INTRODUÇÃO A presente dissertação de mestrado está organizada em introdução, quatro capítulos, conclusão e seis anexos. A introdução discorre acerca dos anseios pessoais para a realização do estudo, a relevância social e acadêmica desta temática, uma breve discussão sobre a segurança alimentar no Brasil, sob o foco prospectivo das ações desenvolvidas, e a demarcação dos pressupostos teóricos e metodológicos que guiaram a pesquisa. O objetivo principal foi de analisar o PNAE como um instrumento potencial de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de fome presente no município de Guaribas - PI. Desdobrou-se esta meta em outras mais: mapear o universo da produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os cardápios da merenda escolar; apresentar as práticas alimentares da população do município situando sua construção sócio-histórico-cultural; identificar as formas de utilização do PNAE – como política educacional – como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e superação de fome/ garantia de segurança alimentar. Quando se procura discutir a construção de um fenômeno ou de alguns hábitos culturais de uma civilização, como a alimentação, logo se remete aos aspectos históricos e geográficos, que, por conseguinte, construíram novas subjetividades. Apesar de ser bastante discutida a ascensão de novos sujeitos que se constroem ao longo das gerações, verifica-se que certos fenômenos ou alguns problemas sociais, se perpetuam, persistem e se repetem de maneira plenamente funesta à sociedade, como é o caso da fome, da miséria e da pobreza. Comer é cultura? Sim, comer é cultura. A prática alimentar está permeada por diversas manifestações culturais, dentre elas o gosto por um determinado alimento, a sua escolha em determinado momento (horário) de consumo, o modo específico de consumir e preparar o alimento, os instrumentos utilizados para o seu consumo, e preparo onde e com quem se come, são indubitavelmente, práticas culturais. A proposta de pesquisaras relações entre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a vivência da fome e a promoção da segurança alimentar partiu de inquietações surgidas em um estudo anterior, realizado no município de Guaribas, Piauí. Nesse estudo, apresentou-se a necessidade de se “[...] desenvolver a aprendizagem de novas formas de ação por parte daqueles que vivenciam o fenômeno da fome.” (NEGREIROS, 2003, p. 54). Assim, é proposta deste estudo analisar o PNAE como um instrumento com 11 potencial de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de fome presente no município de Guaribas, Piauí, considerando o fomento de ações nos espaços educacionais. O tema da segurança alimentar, muito em voga nos últimos anos, em especial no que diz respeito às medidas do atual Governo Federal para assegurar o direito de todos os sujeitos terem acesso a uma alimentação segura e compatível com suas necessidades vitais, tem provocado discussões por estudiosos, e engajadas no tema, em especial pelo fato de o problema da fome ter persistido ao longo das décadas, perpetuando e promovendo a reprodução da inferioridade social. A relevância desta investigação está na proposta de descrever e analisar uma política alimentar que pode subsidiar a construção de novos instrumentos/políticas para atuar diante da realidade que se perpetuou no decorrer de décadas no município de Guaribas. Instrumento que, possivelmente, poderá ser considerado em futuras pesquisas de caráter interventivo e, principalmente, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas e ações pedagógicas, tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais, com maior eficácia. A fome é um tema constante atualmente nos diversos meios de comunicação, onde tem sido alvo de controvérsias no que concerne à tentativa de sua erradicação. Isso se deve à postura do atual Governo Federal, que foi a de implantar um programa – Programa Fome Zero, que atualmente engloba, dentre outros, o Programa Bolsa Família – que visa garantir a segurança alimentar da população brasileira. Este foi criado para combater a fome e suas causas estruturais, que geram a exclusão social, garantindo que todas as famílias tenham condições de se alimentar dignamente e de forma permanente, com quantidade e qualidade adequadas. Apesar do extraordinário avanço científico e tecnológico, a civilização moderna não superou o drama da fome. Ao contrário, por mais paradoxal que possa parecer, as condições de vida da maioria da população dos países subdesenvolvidos têm se deteriorado nas últimas décadas. Milhões de seres humanos vivem em estado de pobreza absoluta, pois sua renda é tão baixa que ficam impedidos de uma alimentação mínima diária satisfatória, condenados, portanto, a uma crônica subnutrição. Valente (2002) afirma que o Brasil tem os meios e o conhecimento técnico necessários para erradicar a fome. Para que esses objetivos sejam atingidos, faz-se necessário um planejamento prévio, uma vez que a fome não é só efeito, mas também causa da miséria, 12 pois atrofia o corpo, reduz a capacidade de aprendizado, estreita a esperança e definha o futuro. Essa afirmação reforça as idéias de Castro (1960), ao apontar que com a perpetuação da desigualdade e as pressões de mercado, aliadas à inexistência ou descontinuidade de projetos públicos para tentar solucionar o problema, ele vem aumentando de proporção em grandes regiões do Brasil, em especial no Nordeste. Dados coletados pelo IBGE (2000) classificaram o município de Guaribas (situado na mesorregião do Sudoeste piauiense e na microrregião de São Raimundo Nonato) como o mais miserável do país. Além de apresentar um elevado índice de desnutrição, a situação da população ainda se agrava com a falta d’água (escassez de chuvas), de saneamento básico, de ofertas de trabalho e pelo funcionamento precário dos serviços de saúde (NEGREIROS, 2003). Por esse motivo, escolheu-se como localidade para a realização desta pesquisa o município de Guaribas, devido ainda ao reconhecimento e à divulgação em âmbito nacional da presença latente do problema da fome. Isto tudo se alia à proximidade geográfica – o pesquisador é ex-residente da aludida microrregião de investigação – e aos interesses municipal, estadual e nacional, de promoção de pesquisas interventivas preocupadas com a realidade social, que auxiliem na construção de políticas públicas funcionais e específicas. É significativo destacar que o pesquisador já desenvolveu estudos anteriores envolvendo temáticas relacionadas às práticas alimentares e às vivências e experiências da fome (NEGREIROS, 2003). Esses trabalhos também foram norteadores para a elaboração da atual pesquisa. O primeiro capítulo relaciona as características históricas, sociais, econômicas e culturais do estado do Piauí, traçando comportamentos e costumes, historicamente construídos, apreendidos e reproduzidos. Em especial algumas das concepções apresentadas frente ao estado em momentos distintos de sua história, da conquista do território no século XVI, o apogeu da economia pecuária, até as indicações atuais sobre do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que desponta uma de suas cidades, Guaribas, como a mais miserável da nação. Oportunamente, a localidade também é situada histórica e culturalmente. No segundo capítulo, é exposta a constituição sócio-histórico-cultural das práticas alimentares da população do município de Guaribas – PI, explicitando as situações de fome apresentadas no decorrer das últimas décadas. Destacam-se, as mudanças ocorridas nestas práticas mediante transformação no espaço físico-geográfico da cidade, como no âmbito econômico. Já nos capítulos posteriores, terceiro e quarto, discute-se acerca das práticas 13 alimentares indicadas nas diretrizes e leis do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, junto ao município de Guaribas – PI sob a gestão de seus responsáveis junto aos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE). Sobretudo, foi o intento mapear o universo da produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os cardápios da merenda escolar; e subsequente oportunizar a identificação de formas de utilização do PNAE como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e superação de fome/ garantia de segurança alimentar. Finalmente, ressalta-se que nos capítulos dois, três e quatro, os sujeitos que participaram desta pesquisa tiveram seus nomes preservados, ao mesmo tempo que sugeriram um prato de comida de maior apreciação ao paladar como palavra de auto-denominação. Em anexo, encontram-se os instrumentos – roteiros de entrevistas – utilizados para a coleta dos dados, e algumas imagens do município de Guaribas – PI, espaço geográfico em que foi ensejada a pesquisa. • O referencial teórico-metodológico Para desenvolver este estudo recorreu-se à pesquisa qualitativa, escolha que se fundamenta na compreensão de que “as principais características dos métodos qualitativos são a imersão do pesquisador no contexto e a perspectiva interpretativa de condução da pesquisa”. (KAPLAN; DUCHON, 1998, apud DIAS, 2007). Acrescenta-se, ainda, que esta abordagem de pesquisa define-se como exploratório-explicativa, a partir do referencial formulado por Santos (2000). Porque explorar é tipicamente fazer a primeira aproximação de um tema e visa a criar maior familiaridade em relação a um fato, fenômeno ou processo. Quase sempre se busca essa familiaridade, prospecção de materiais que possam informar ao pesquisador a real importância do problema, o estágio em que se encontram as informações já disponíveis a respeito do assunto, e até mesmo revelar ao pesquisador novas fontes de informações (SANTOS, 2000, p.26). Por ser exploratório-explicativa, esta pesquisa busca analisar o processo de implementação do PNAEem Guaribas – PI, tendo como parâmetros de análise a produção acadêmica já existente sobre práticas alimentares, currículo escolar, segurança alimentar e políticas públicas de alimentação e nutrição. Portanto, implica considerar o PNAE, como 14 política sócio-educacional e potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e superação de fome com sua contribuição para o aumento dos níveis de segurança alimentar nas famílias envolvidas, com práticas alimentares existentes no município de Guaribas–PI. O referencial teórico norteador se pauta na Sociologia de Bourdieu (Habitus, Capital Cultural, Capital Simbólico, Campo) e nas Teorias Críticas sobre Currículo, dialogando com a produção sobre políticas públicas de alimentação e nutrição, e a produção sócio-antropológica acerca da alimentação. Para a realização deste estudo foi necessário agrupar três grupos gerados a partir dos perfis de sujeitos de pesquisa. Nessa introdução, consta uma breve apresentação desses grupos, sendo que serão pormenorizados e articulados concomitantemente com os respectivos referenciais norteadores para a presente abordagem teórica. Os sujeitos da pesquisa foram selecionados com base em amostras não- probabilísticas intencionais, visto que estes foram escolhidos conforme os objetivos da pesquisa. De acordo com Moura (1998, p. 60), “[...] as amostras intencionais se utilizam de pessoas que, na opinião do pesquisador, possuem, a priori, as características específicas que ele deseja ver refletidas em sua amostra”. O primeiro grupo de sujeitos da pesquisa é composto por seis moradores da zona urbana e/ou rural do município de Guaribas – PI, com no mínimo de 40 (quarenta) anos, que sempre residiram na localidade e que tenham como principal meio de subsistência a agricultura. A coleta de dados junto a este grupo visou obter informações acerca da construção das práticas alimentares da população local de baixa renda, optando-se por participantes nessa faixa etária, com o intuito de que estes tenham registrado vivências das possíveis modificações nos hábitos alimentares, produção agrícola, assim como da situação de fome presente na localidade. Para auxiliar na discussão dos dados coletados sobre práticas alimentares junto a este grupo de sujeitos, foram utilizados os estudos de Câmara-Cascudo (2004); Santos (2005); Levi-Strauss (2004); Damatta (1986); Maciel (2004). Por outro lado, sob uma perspectiva complementar, foram usadas concepções e estudos fomentados nas obras de Castro (1959) sobre a fome. Não obstante, foram utilizados os estudos que abordam os aspectos culturais do sertão piauiense, no âmbito da História e da Geografia do Piauí, tais como: IBGE (Censo Demográfico) e Fundação CEPRO, com dados acerca da realidade sócio-política da realidade piauiense; Costa (2006) que discute sobre as especificidades da escola do sertão piauiense; 15 Araújo (1991) que apresenta discussões em torno do Estado piauiense e o desenvolvimento sócio-político-econômico. Recorreu-se, ainda, a textos literários piauienses: Ataliba, o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco; Trinta e Dois, de Fontes Ibiapina, nos quais se recolheu as percepções acerca das especificidades sócio-histórico-culturais do sertanejo piauiense que estão no ideal representativo e de representação do cidadão piauiense interiorano e de baixa renda. Para a obtenção de dados acerca da integração de alimentos produzidos no município de Guaribas na merenda escolar, foi composto o segundo grupo de sujeitos desta pesquisa: a nutricionista e a coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar da Secretaria Estadual de Educação do Piauí (SEDUC/PI); Nutricionista responsável pela compra da merenda escolar no município de Guaribas; e seis pais de alunos das escolas públicas do município de Guaribas – PI, cuja principal renda é a agricultura familiar. Com a entrevista desses sujeitos visou-se evidenciar os usos e as possibilidades de integração de alimentos produzidos no município de Guaribas à merenda escolar. As análises das informações obtidas deste grupo de sujeitos foram realizadas a partir de estudos acerca das políticas educacionais e suas articulações em redes locais e nacionais, formuladas por Martins (1994); Pereira (2001); e Pinto (2000); sobretudo enfocando aspectos das relações de poder, regulação social e controle democrático, financiamento da educação. Sobre questões relacionadas às políticas de alimentação escolar e suas implicações junto aos hábitos alimentares locais (BEZERRA, 2002) e com as especificidades das comunidades piauienses, em especial àquelas relacionadas às áreas do sertão sudeste do Piauí, fez-se uso como norteadores da prática de pesquisa os estudos de Negreiros (2003). Destarte, quanto aos aspectos vinculados à preservação e valorização das formas e hábitos alimentares locais diante dos aspectos relacionados ao patrimônio cultural, como aduz MALUF (2003), sobretudo evidenciando as devidas ressalvas quanto à concepção de que nem todos os alimentos são saudáveis, ou seja, existem casos que o aprimoramento alimentar é indispensável. Ainda com intuito de estabelecer articulações com uma perspectiva de Segurança Alimentar recorreu-se ao Art.4º da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN). Enquanto que ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, tem-se a Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública (lei 8.666, de 21 de julho de 1993), complementada pela Medida provisória n°2.026, de 1° de julho de 2000; as cartilhas e 16 manuais de instruções sobre o Programa, elaborados e publicados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FUNDEF) e MDS. Como sujeitos do terceiro grupo temos: Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade, o Secretario Municipal de Agricultura; dois Técnicos do Serviço de Aprendizagem Rural (SENAR) – agrônomo e médico veterinário; Presidente do Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA/PI). As informações provenientes destes sujeitos foram agregadas àquelas do segundo grupo acima. Da interlocução com estes sujeitos objetivou-se obter uma descrição sobre a utilização do PNAE como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local. Os dados empíricos provenientes dos participantes do momento da pesquisa citado acima foram discutidos e confrontados com as concepções de Direitos Humanos articulada por Bobbio (1992), que discute que a participação ativa e informada dos titulares de direitos pode ser descrita como um princípio básico dos direitos humanos, bem como a necessidade de inclusão dos marginalizados nas estratégias para a promoção da realização dos seus direitos humanos. As concepções apresentadas acerca da produção agrícola familiar e circulação de alimentos advindas dos discursos dos referidos sujeitos foram defrontadas com estudos de Menasche (2007). Destarte, foi prioridade articular essa categoria de análise com aquelas apresentadas acerca das políticas educacionais e segurança alimentar relatadas anteriormente. Entre os participantes da pesquisa a coleta dos dados foi realizada através de um roteiro temático (semi-estruturado) de entrevista (em anexo), utilizando-se como categorias: práticas alimentares; e, produção agrícola do município. Destarte, vale destacar que questionários, guias de observação e imagens farão parte dos instrumentos e procedimentos técnicos a serem utilizados. Utilizou-se o roteiro de entrevistas para explorar a visão dos pais de alunos da rede escolar oficial acerca da importância do PNAE, conforme o objeto de estudo estabelecido. Este instrumento de coleta, segundo Minayo (1994) constitui um instrumento para orientar uma “conversa com finalidade” que é a entrevista, devendo ser o facilitador de abertura, de ampliação e de aprofundamento da comunicação. Essa parte da elaboração do roteiro e suas qualidadesconsistem em enumerar de forma mais abrangente possível as questões que o pesquisador quer abordar no campo, a partir de suas hipóteses ou pressupostos, advindos, obviamente, da definição do aludido objeto de investigação (Minayo, 1995, p.121). O roteiro de entrevistas foi composto por perguntas norteadoras que tiveram o objetivo de 17 ajudar a desenvolver o diálogo a respeito dos hábitos alimentares, das estratégias adotadas para a convivência com as situações de escassez de alimentos, das técnicas de cultivo de alimento e outras formas de obtenção de alimentos. Para a coleta de dados por meio das entrevistas usou-se como referência a técnica da História Oral, subsidiada, também, pela compreensão de Memória, segundo Lang et al (2001); Le Goff (1996); Bosi (2003); Ferreira e Amado (1996) que se caracteriza pelo registro da história de vida de indivíduos que, ao focalizar suas memórias pessoais, constroem, paralelamente, uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas da trajetória do grupo social ao qual pertence. Os sujeitos-participantes relataram livremente suas experiências acerca das temáticas sugeridas, sendo estes relatos registrados feitos em meio eletrônico de áudio, sendo, portanto, um instrumento fundamental para compreensão e reconstrução parcial de História de Vida dos referidos sujeitos. Com isso, seguiram-se então as postulações orientadoras de Thompson (1992) e Halbwachs (2004), que fazem referência às rediscussões sobre as fontes históricas, bem como quanto à construção e preservação da memória, respectivamente. Utilizou-se os estudos de Certeau (1994; 1996) referenciando-se a partir de suas pesquisas os conceitos de práticas sociais, cotidianas, e a idéia de construção do cotidiano, reinvenção de hábitos/ estratégias de sobrevivência dentro de uma determinada realidade local, cultural. Articulando-se este autor com a perspectiva de Bourdieu (capital cultural, social e simbólico, habitus). Para obtenção de informações junto aos integrantes dos Grupos II e III foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas com perguntas direcionadas às respectivas competências dos participantes (em anexo). A elaboração destas entrevistas foi orientada pelos dados obtidos via documental (centros de pesquisa; fontes documentais; registros institucionais) e pelos relatos de história de vida dos participantes do grupo I. • Procedimento de análise dos dados Nos participantes do Grupo I, foram selecionados aqueles com expressivo conhecimento acerca dos indivíduos a eles vinculados no ambiente familiar, o que facilitou, com isso, a aquisição e registro de informações As sessões de coletas foram transcritos, mantendo no texto todas as informações constantes da gravação. Posteriormente foram fichadas por categorias de análise. 18 Depois de colhidos, os dados foram transcritos, categorizados e examinados através da técnica da Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 1998), que evidencia o objeto de análise como construção simbólica significativa, que necessita ser interpretado. Neste referencial, dá-se uma ênfase ao processo de interpretação, que possibilita a compreensão das formas simbólicas enquanto campo-objeto e também campo-sujeito. Diante disso são atentados, com rigor, categorias de estudo que primam pela construção e preservação da memória e história imóvel, ou seja, diz respeito às permanências de alguns aspectos sócio-históricos ao longo dos anos e das gerações (LE GOFF, 1996). A partir dos princípios da Hermenêutica de Profundidade, interpretação da doxa, análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva, e re-interpretação, foram pautadas as análises das categorias que emergiram no decorrer do presente estudo. No capítulo II, as categorias, com o intento de contemplar os princípios de análise já expostos, organizou-se as categorias a partir de uma receita de bolo, em nosso caso, o bolo de milho, no qual as etapas de seu preparo constituíram nos procedimentos de preparo do referido prato. O capítulo III seguiu uma lógica semelhante. As categorias, de forma analogamente organizadas de acordo a ilustração dos caracteres de um produto alimentício ofertado em um supermercado ou qualquer espaço onde a alimentação pode ser comercializada: data de fabricação; composição química; embalagem; preservar em local arejado; e prazo de validade. Estratégia utilizada, em especial para fomentar uma maior gama de análises e representações em torno das categorias emergidas. No capítulo IV as categorias de análise dos dados emergiram das considerações efetuadas nos capítulos anteriores, impulsionando para uma apreciação mais concisa em torno do PNAE. Destaca-se que os relatos dos sujeitos-participantes desta pesquisa tiveram seus nomes ocultados, assim foram preservados o seu anonimato. Com isso, fez-se uso de palavras de auto-denominação, no qual os entrevistados escolheram o prato/ comida que mais lhes proporciona prazer ao palato, com a finalidade de que este substituísse seus legítimos nomes. Por fim os dados coletados foram articulados com o referencial teórico da Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu, assim como com os principais eixos teóricos citados anteriormente acerca das políticas educacionais; práticas alimentares; situação de fome; segurança alimentar; merenda escolar; agricultura familiar. 19 CAP. 1 – “COZER O PIAUÍ E DESCASCAR GUARIBAS” – O ESTADO E O MUNICÍPIO EM SUAS CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES “No Piauí nasceu Mãe de ‘mim’ e de vocês (Na serra da Capivara) ‘Mim’ quem fala é índio A língua que falava os "Jês" Beija-flor (RJ) - Samba Enredo 1996. Tendo em vista o propósito deste capítulo, discute-se inicialmente as relações subjetivas constituídas em meio às práticas alimentares que permeavam as primeiras ações educativas no estado do Piauí tendo como meta destacar e fomentar reflexões em torno dos comportamentos e costumes piauienses, historicamente construídos, apreendidos e reproduzidos conforme imposições estabelecidas segundo princípios que se respaldam no conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu. 1.1 Comer, comer, comer... Terra à vista! – As práticas alimentares e os alimentos transportados pela armada de Pedro Álvares de Cabral As cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais. Hoje, os estudos sobre a comida e a alimentação invadem as Ciências Humanas a partir da premissa de que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História (Santos, 2005, p. 2). 20 Nessa lógica supracitada, compreender uma história de “inabilidades alimentares” (grifo do autor) vivenciadas no território brasileiro – mais especificamente naquele da região do Piauí – remete-se, logo em seguida a questionamentos sobre as mais antigas e pioneiras formas de alimentação que foram fomentadas junto ao Brasil. Assim, como esse se trata de um país que sofreu substancialmente momentos de dependência de Portugal durante seu período de colonização.A primeira vez que o território brasileiro foi explorado por outros povos, como os portugueses, data-se historicamente que foi efetuado por Pedro Álvares Cabral. Todavia, como aduz Serrão (1968) “é quase certo que a região já fora abordada por nautas portugueses, e que a viagem de Cabral não foi de ‘descobrimento’ mas de reconhecimento” (p. 102 – 103). Essas nuances históricas soam, em especial, como indicativos de que a concepção vigente por alguns historiadores de que as “Caravelas do Descobrimento”, assim como foram chamadas, constituíram-se de agentes literalmente exploradores. Em meio que agiram de maneira a desprezar os valores, hábitos alimentares e manifestações culturais apresentados pelos nativos (índios). E assim, impondo como legítimas suas próprias aspirações e julgamentos sociais, plenamente convergentes com aqueles padrões sugeridos – ou impostos, como citou Bourdieu – pelas classes mais abastadas da alta corte portuguesa. Por conseguinte, assim sucedeu, e não era para menos, com as práticas alimentares. A partir de análises da Carta de Pero Vaz de Caminha, articulação promovida por Paula (1992), constata-se a carta enquanto um documento ímpar da literatura de viagens. Descreve, verifica e explica uma página da História de Portugal, com um vigor e talento, acompanhados e simplicidade e enaltecendo as qualidades do povo português, quando em contato com culturas e etnias totalmente diversas. A Carta registra as mais variadas informações da terra descoberta nos seguintes aspectos: morfologia, fauna, flora, humana, alimentação, crenças, habitação, religião e outras. A importância em se analisar o estudo dos mantimentos trazidos a bordo de uma nau quinhentista, caracteriza-se como sendo de suma importância. Afinal, como afirmou Paula (1992), ocorria uma preocupação latente frente à quantidade de alimentos, seu potencial de conservação diante de longas viagens marítimas, sua tolerância a mudanças de temperatura entre continentes com climas tão diferenciados. Estas características podem ser contempladas nos alimentos citados, da própria Carta, a seguir: carnes, pescados secos e salgados, legumes, favas, manteiga, mel, açúcar, biscoito, trigo, vinho, azeite, sal. Contudo, é perceptível a ausência das verduras e dos citrinos, logo faltam as 21 vitaminas B e C. Sabe-se muito bem que as vitaminas, quando não ingeridas durante algum tempo, levam ao aparecimento de doenças específicas graves, que acabam por matar se os nutrientes em causa não são de novo fornecidos ao organismo humano em tempo adequado. De acordo com Paula (1992), “a armada de Vera Cruz demorou 44 dias a pisar terras do Novo Mundo, sem enfermos” (p.36). Uma consequência disso seria a descrição por parte de Vaz de Caminha acerca da presença significativa de doentes com a chegada das caravelas no litoral brasileiro. É importante destacar que as aludidas preocupações dos portugueses frente às comidas armazenadas e a forma de preparo e consumo de seus alimentos – o fogão era posicionado de forma estratégica no barco, que por vezes poderia, inclusive, mudar de local neste espaço – se constituíram como ações pioneiras no transporte e na locação logística dos alimentos para longas viagens além de escalas estratégicas. As referidas práticas denotam uma perspectiva já discutida por Carneiro (2003), onde efetua uma revelação da cozinha como um microcosmo da sociedade, com todo o significado simbólico na construção de regras e sistemas alimentares, impregnada de cultura. No livro, o autor, dentre outros, sugere aos historiadores direções no campo da História da Alimentação, segundo as perspectivas das Ciências Humanas, que possam revelar a estrutura da vida cotidiana a partir do universo da comida. Com essas discussões até aqui apresentadas, constatam-se alguns indicativos da reprodução da inferioridade social no Brasil desde os tempos mais remotos. Destarte, percebe- se que aspectos de imposição, postulados ainda em períodos de Brasil Colônia, perduram, e ganham força. Com isso, o que acaba sendo mais preocupante é que algumas dessas atividades efetuadas ganham uma roupagem de ações educativas, ou de libertadores, de geradoras de autonomia quando são desenvolvidas através de espaços ou sujeitos respaldados com a dimensão da educação, enquanto um instrumento de ascensão social. No Brasil, as relações entre as práticas de inculcação alimentar iniciaram-se da forma aludida acima durante o descobrimento. Como se sabe, o país hoje em dia é classificado como pertencente àquele grupo dos “Países em Desenvolvimento”, terminologia outrora utilizada como “subdesenvolvido”. Esta classificação deve-se, em especial aos números alarmantes de pessoas em situação de pobreza e fome que contam no Brasil, que de acordo com a Fundação Getúlio Vargas relata 55 milhões de pessoas passando fome no Brasil. E esses números podem ainda ser visto de maneira mais significativa quando os 22 mesmos dados evidenciam o Piauí como o estado onde mais é presente a fome no país. Até que ponto essa condição se deve a que fatores, exclusivamente climáticos, ou estruturalmente políticos? 1.2 Piauí: berço da humanidade ou o caldeirão do inferno? Onde fica o Piauí mesmo? Sempre que alguém efetuar essa pergunta, responda prontamente: está localizado na região Nordeste do Brasil! Fato que necessariamente todo brasileiro que cursou a terceira série do Ensino Fundamental deveria saber, mas, volta e meia, um questionamento como este, surge em meio a um diálogo entre grupos de estudantes e/ ou é apresentado de maneira “divertida” e plenamente permeada de preconceito em espaços diversificados da mídia nacional. O discurso científico, enquanto questionador, precisa estar presente de uma perspicácia e de uma autonomia legítimos, e acima de tudo, não-ingênuos. Essa representação sobre o estado surgiu por quê? Reproduz-se por quê? Mantém-se por quê? Afinal, o fato de o Piauí ser o estado mais pobre da nação, segundo indicativos do IBGE (2007) é motivo suficiente para enclausurá-lo no esquecimento em nosso discurso social, político e acadêmico? A resposta, sem sombra de dúvidas é: Não! Mas, faz-se indispensável serem promovidas reflexões sobre as potencialidades desta aludida localidade do território brasileiro, bem como avaliar criticamente estas potencialidades, e sobretudo, desvendar que fatos históricos permearam, construíram e, ainda hoje mantém esses status ao Piauí. Com isso, verificar a luz da ótica educacional da cultura brasileira, perspectivas de gênese e manutenção de realidades que fizeram e fazem parte das preocupações do povo piauiense, constitui nossa intenção ao discutir a situação de fome e pobreza. Vale ressaltar, que o estado apresenta inúmeras potencialidades, possui história e, por conseguinte, possui uma subjetividade própria. E por isso, existem duas, e não apenas uma concepção acerca do Piauí. De um lado o estado é concebido como um lugar inóspito e hostil, como um “caldeirão de quentura, um inferno de quente” (Costa, 2006) e /ou como uma analogia ao “fim do mundo” (Monsenhor Chaves); e uma outra, que o classifica como um lugar agradável, de acalento e legitimamente favorável ao crescimento e desenvolvimento humano, como é presente no discurso de Adrião Neto (2006) “o berço do homem americano”. 23 Como aborda Bock et al (1999), é justamente em meio às contradições humanas, da sociedade, que se encontram as explicações e pontos de transformação social. Ou seja, identificar esses paradoxos frente ao estado do Piauí, implica identificar determinações danosas para convertê-las. 1.3 O fim do mundo, uma imensidão quase desconhecida, ou seja, o Piauí Nos primeiros discursos descritivos aduzidos pelas cartas de navegantes que exploravam o território piauiense era comum que esses relatos tivessem pouca precisão quanto àssuas limitações (Costa, 2006). Uma variedade climática, em alguns períodos oscilava de maneira bastante paradoxal, o que representava uma tarefa bastante árdua aos desbravadores das terras, assim como àqueles que efetuaram as primeiras atividades pedagógicas, como serão apresentadas adiante. O Piauí fica em um território com fronteiras naturais, tendo características próprias, o relevo, o clima e a bacia hidrográfica. Possui o território à imagem de um arco. Do lado oriental, diversas elevações formando o Arco da Fronteira, cadeia de serras que indicam os limites do Estado. Apresenta certa homogeneidade a região, ainda que a longa extensão produza suas particularidades, nos diversos aspectos examinados pela geografia. Tratava-se de região de acesso difícil, que só foi conhecida dos colonizadores, no século XVII, e colonizada apenas no século seguinte (COSTA, 2006, p. 91). Quanto ao clima ocorrem duas estações, uma com chuvas, em geral de dezembro a maio, chamada erroneamente de “inverno”, e outra sem chuva, “verão”, de junho a novembro, meses que variam do Sul para o Norte do estado. A média anual de precipitação pluviométrica é de 600 mm, chegando a ser de 1.000 mm em várias partes, com a temperatura média de 30ºC. A seca caracteriza-se pela ausência de chuvas, não no período chuvoso, mas também pela quase total falta de precipitação pluviométrica no período normalmente sem chuvas. Esta acontece a cada dez anos, em média podendo durar um a três anos (COSTA 2006, p. 95). O Estado do Piauí está situado entre 2º44 e 10º52’ de latitude e entre 40º25’ e 45º59’ de longitude Ocidental, abrangendo área de 251.529,186 Km². Corresponde a 16,16% 24 da região Nordeste e 2,95% da área do Brasil, não estão incluídos nessa contagem a área litigiosa a ser demarcada entre o Piauí e o Ceará. Pertencente ao segundo fuso horário brasileiro. É o terceiro maior Estado nordestino e o décimo primeiro Estado brasileiro em extensão territorial (Rodrigues, 2000). O espaço educacional brasileiro foi construído pelos jesuítas, sobre isso não é travado nenhum questionamento. Entretanto, no que diz respeito aos efeitos que essa educação fomentou no Brasil e consequentemente no Piauí de hoje, proporcionando malefícios e/ou benefícios ao atual sistema educacional. Os jesuítas assentam, logo ao desembarcarem, os seus arraiais; fundam as suas residências ou conventos, a que chamavam “colégios”; instalam os seus centros de ação e abastecimentos ou se o quiserem, os seus quartéis, para a conquista e o domínio das almas, penetram as aldeias dos índios e, multiplicando ao longo da costa, os seus pontos principais de irradiação. (Azevedo, ano 1963 p. 502). A eficácia da ação pedagógica jesuítica no Brasil deve-se ao cuidado rigoroso com o preparo dos mestres instrutores; e a uniformização desta ação. Os conteúdos que eram trabalhados pelos jesuítas estavam muito bem fundamentados de acordo com as regras codificadas no “Ratio Studiorum”, que constituía-se em: Studia Inferiora, esta reunia as disciplinas de letras humanas, de grau médio, com duração de três anos e constituído por gramática, humanidades e retórica, forma o alicerce de toda estrutura de ensino e se baseia exclusivamente na literatura clássica greco-latina. Filosofia e ciências (ou curso de artes), também com duração de três anos, tem por finalidade formar o filósofo e oferecer as disciplinas de lógica, metafísica e filosofia moral. O outro grupo de disciplinas que constituía o método jesuítico era nomeado de Studia Superiora, que baseva-se no estudo da teologia e ciências sagradas, com duração de quatro anos. A Studia superiora visava à formação de novos sacerdotes integrantes da Companhia de Jesus (ARANHA 1996, p.92). De fato, a educação jesuítica, com seus fundamentos clássicos, alcançou outros tempos e conseguiu manter as suas bases praticamente intactas. Mas uma grande falha percebida neste método foi onde muitos buscaram apoio para lutarem contra. O fato de este ensino manter uma separação entre a escola e vida, na grande vontade de retornar aos clássicos, fez com que “os companheiros de Jesus” esquecessem as inovações de seu tempo. No Piauí a ação jesuítica não ocorreu como em outros pontos do Brasil, dois fatos podem ser apontados para explicar a inexpressiva atuação dos jesuítas na Educação do Piauí: um primeiro diz respeito à tardia fixação da Ordem em território piauiense. Havendo chegado ao Brasil em 1549, só na segunda metade do século XVIII se estabelecem no Piauí, movidos 25 por interesses pecuniários: as fazendas de gado. É verdade que antes já haviam transitado pelo Piauí – corredor de passagem entre Pernambuco e o Maranhão – sem, entretanto aqui se fixarem. Por outro lado, outro fato também significativo, que correspondeu à orientação da Ordem em relação às atividades desenvolvidas na colônia, notadamente, a partir da implantação do “Ratio Studiorum”. Sabe-se que os propósitos que animaram D. João III em 1549 a enviar os Jesuítas ao Brasil com o aval de Simão Rodrigues então superior da Ordem em Portugal, e que inspiraram o plano educacional de Nóbrega tinha duplo objetivo: o aliciamento do indígena para possibilitar a colonização; e o preparo de uma elite para exercer as funções públicas da colônia (BRITO 1996, p.14). Os primeiros jesuítas em terras piauienses foram os Padres Francisco Pinto e Luís Figueira, em janeiro de 1607, chegaram de Pernambuco para evangelizar no Maranhão. O Padre Francisco Pinto foi morto pelos índios Tacarijus. Os jesuítas voltaram incursionar pelo território piauiense, em 1711, com a chegada do Padre Manoel Gonzaga e seu companheiro Manoel da Costa, que vieram tomar posse e administrar as fazendas que Domingos Mafrense deixou em testamento para a Companhia de Jesus. (Adrião Neto 2006, p.207). Com a administração das fazendas absorvia por completo os jesuítas, não lhes restou tempo para exercer suas atividades educacionais e culturais. E somente vinte e sete anos depois de sua chegada, é que acontece o inicio de suas atividades. De acordo com Brito (1996, p. 13) somente em 1733 ocorre substancialmente uma preocupação com a educação do povo com a conquista no referido ano do alvará de funcionamento de ensino que se denominaria “Externato Hospício da Companhia de Jesus”. O estabelecimento, entretanto não logrou funcionar em virtude das dificuldades encontradas para sua instalação decorrente dentre outras coisas da pobreza do meio, da dispersão demográfica dos núcleos populacionais, muitos distantes uns dos outros, e das precárias condições de comunicação e acesso entre as Capitanias. Frustrada a organização do “Externato Hospício”, fazem os inacianos outra tentativa, em 1749 e organizam no Distrito da Mocha, hoje cidade de Oeiras, o Seminário do Rio Parnaíba. (BRITO, 1996). O autor supracitado ainda aduz que A fixação dos jesuítas no Piauí ocorre no último período de sua atuação, quando a Ordem enfatiza a criação de Seminários. Daí a criação do Seminário do Rio Parnaíba, em lugar de uma escola de ler e escrever ou de um colégio e o fracasso da iniciativa em face das condições adversas do meio para a implantação daquela instituição. (p. 18) 26 Como é discutido por Rodrigues (2000) e Brito (1996) a educação jesuítica no Piauí enfrentou alguns percalços, dentre eles o enfrentamento de realidades desfavoráveis, como a fome e a pobreza. Em muitos espaços educacionais, as práticas alimentares fazem-se presentes. Elas irão manifestar, mais uma vez, aspectos culturais de uma localidade, com isso, a situação de fome também pode ser característico de uma região, ao ponto de ser possível se constituir uma Geografia da Fome, em meio que se mapeiem áreas que mais sofram que esse fato tão funesto como apresentou Castro, (1961) em seus estudos sobre a fome no Brasil. As práticas alimentares nesse período eram deuma homogeneidade peculiar nas principais localidades exploradas pelos historiadores, aonde os jesuítas conduziam suas atividades pedagógicas, sobretudo, concomitante às suas ações inculcadoras eles vivenciavam os hábitos locais de alimentação, ao mesmo tempo em que impunham outros de seus hábitos, advindos de suas vivências e cultura anteriores. Como se sabe, o recorte do estado do Piauí deveu-se aos modos de produção local de agricultura e pecuária. Com isso, um personagem que surge é o do vaqueiro, típico da região até os dias atuais, no qual seus hábitos e estratégias alimentares foram parâmetros para muitos daqueles que pela região do estado passaram. Vale ainda destacar que o nome do referido estado tem origem nos piaus, peixes abundantes nos rios da localidade, que era utilizado como fonte de alimentação local, muitas vezes em meio aos espaços pedagógicos – de práticas jesuíticas – durante este recorte histórico em estudo. Os vaqueiros piauienses tinham a responsabilidade de cuidar do gado, cabendo- lhe uma cabeça para cada quatro que criassem (Costa, 2006). A alimentação básica era a carne de vaca assada em espeto, pois não havia sequer panelas para que cozinhassem, bem como os laticínios. Disse Matias Augusto de Oliveira Matos que sem dúvida, o forte da culinária piauiense tem por base o boi e a farinha (produto da rústica mandioca que sobrevive durante os períodos de chuva e de estiagem nas baixadas e nas chapadas). É a dobradinha para todas as regiões do estado, para todas as situações difíceis. (p. 230) Da carne de gado surgiu a alimentação típica do Piauí, como a paçoca, resultado da carne seca batida no pilão com farinha de mandioca, e o arroz de maria isabel, com carne seca cortada e misturada com arroz. Conseguiram os vaqueiros e as populações rurais do Piauí antigo, ainda, mel silvestre para a sua nutrição. Havia a coleta de frutos como cajá, caju, bacuri, crioli, buriti e 27 pequi, com as quais se começou a fazer doces e comidas típicas. Preparava-se também pratos com a caça local, como jacu, avoante, paca, cotia, capivara e veado, quando as tinham em quantidade. Nos rios menores pescava-se mandy, curimatá e piau, que depois inclusive deixou o seu nome no rio Piauí, que por sua vez denominou o novo território (Costa, 2006). Uma região rica em belezas naturais, belas serras, belos rios, e que por mais que tenha recebido pouco dessa influência jesuítica quanto às imposições de modelos educacionais a partir da disposição de classes sociais como esclarece Romanelli (2006) A Educação dada pelos Jesuítas, transformadas em educação de classe, com características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer modificação estrutural, mesmo quando a demanda social de educação começou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da população e obrigando a sociedade a ampliar sua oferta escolar. (p.35) Na atualidade as perspectivas de distribuição de renda, como apontam dados do IBGE (2006) ainda se configuram com um dos maiores problemas enfrentados pelo estado do Piauí. Em especial por se tratar de construtos que se repetem ao longo das décadas. 1.4 Descansa a fome no Piauí em berço esplêndido, eternamente? O Piauí tem tomado conta do cenário da imprensa nacional com frequência por apresentar números alarmantes quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que tem sido o mais baixo dentre os estados do país. A situação de fome, miséria e pobreza perduram na região. Durante muitos anos a fome, segundo Cerri & Santos (2003) tem sido vista como fenômeno natural, ou efeito secundário de acidentes climáticos, nunca sendo aceito pelas elites como alvo de desigualdade social, o que vem a embasar mais ainda o que diz Leal (1998, p.03): “não mais recorrente, mais repetitivo, mais triste e mais drástico”, garantindo que o problema da seca do Nordeste ainda não foi resolvido pelo simples fato de que para os homens de decisão política da própria região interessa mais a sua permanência do que sua solução. Para Negreiros et al (2003), a fome é um fenômeno amplo que incorpora dimensões relacionadas a diferentes necessidades históricas, culturais e psicológicas, que exercem influência direta e indireta no ambiente familiar. Para Castro (1961, p. 87) “as 28 crianças já nascem corroídas pela fome dos pais e se desenvolvem mal pelo uso de uma alimentação extremamente inadequada”. O autor relata ainda que a fome transmite não só uma herança de carência biológica, mas também uma funesta inferioridade social, que permanece ao longo das gerações de maneira latente. A idéia ganha mais consistência quando é reforçada por Bourdieu & Passeron (1982) que fazem referência à reprodução cultural da desigualdade, apresentando que os indivíduos e as instituições que representam a forma dominante da cultura, buscam manter sua posição privilegiada, apresentando seus bens culturais como naturalmente ou objetivamente superiores aos demais. Idéia bastante visível no modelo apresentado pelos jesuítas, como articula Azevedo (1963) ao discorrer que na primeira incursão na educação popular, fica explícito que esses religiosos não tinham a idéia de só catequizar, “... mas lançavam as bases da educação popular e, espalhando nas novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos costumes, começavam a forjar unidade espiritual e política de uma nova pátria” (p. 507). Ao seguir a mesma linha de pensamento, no período compreendido entre a chegada ao Brasil dos jesuítas (1549), até a sua expulsão (1759), em todas as unidades de ensino (litoral, planalto e posteriormente Sul e Norte) se verificou somente o interesse em formação humanística, havendo um total desinteresse na formação científica e técnica. O que possa ter ocorrido devido às imposições do reino de Portugal para a continuidade de tal omissão. Não obstante, mais uma vez se torna evidente o caráter exploratório e legitimador da dominação pelas ações efetuadas no aludido período. As concepções de Bourdieu (2006) apontam que no conjunto da sociedade, tenderia a prevalecer, portanto, a imposição de um determinado arbitrário cultural como a única cultura legítima. Os indivíduos normalmente não perceberiam que os bens culturais tidos como superiores ou legítimos ocupam essa posição apenas por terem sidos impostos pelos grupos dominantes. A situação de fome se perpetua, conforme argumentou Negreiros (2003), se não forem constituídas práticas educativas interventivas que contemplem tanto a instituição familiar como a escolar. O primeiro por ser o primeiro espaço socializador da criança, sugere um gama de repertórios comportamentais, por vezes disfuncionais; e a escola, enquanto prática de ensino institucionalizada trata de reproduzir o habitus constituído a partir das relações existentes entre as duas instâncias sociais. A instituição familiar corresponde a um grupo de pessoas, que vive numa 29 estrutura hierarquizada com a proposta de uma ligação afetiva duradoura, incluindo uma relação de cuidado entre os seus constituidores – adultos, crianças e idosos – surgidos no contexto. A família tem que dar subsídios para que o indivíduo adquira valores morais, éticos, culturais etc., pois fornece a base para o desenvolvimento social, por ser o primeiro ambiente socializador vivido por parte das crianças em seus primeiros anos de vida (Carvalho, 1997). Essa idéia é reforçada por Bock et al, (1999), que alude sobre o papel primordial desempenhado pela família na reprodução de valores que constituem a cultura e das idéias dominantes em determinado momento histórico, no qual estabelece disputa com outros grupos sociais, prevalecendo e dando continuidade a um legado que transforma o homem e é transformadopor ele. Os autores ainda apresentam que para analisar o homem é preciso situá- lo num contexto sócio-histórico-cultural, identificando e desvendando as determinações. 1.5 O estado do Piauí: uma caracterização histórica Patrocínio (2006) afirma que por quase dois séculos subsequentes ao “descobrimento”, o Piauí não foi colonizado, ao contrário do que acontecia com os atuais estados do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba; para o autor, o “devassamento e o inicio da colonização” (p. 10) no Piauí estão intimamente relacionados às bandeiras, que seguiam atrás de ouro e pedras preciosas. Nunes (2001) afirma que se penetrações houve, não forma profundas; foram rápidas incursões em busca do ouro ou do índio, e jamais tentativas para colonizar. [...] A terra desconhecida teria que ser devassada e conquistada, e do seio fecundo dos sertões jorrariam novas fontes de enriquecimento (p. 26) Entretanto, só foram encontrados no estado terras férteis e ótimas pastagens para criação de gado. Um outro agente para a colonização do estado está relacionado à necessidade de um percurso terrestre que ligasse a Bahia ao Maranhão. A área correspondente hoje ao estado do Piauí, na época da sua colonização, era considerada grande em se considerando a quantidade de colonos que a ocupavam, com suas propriedades distando cerca de até vinte léguas umas das outras. Esta característica 30 determinou a tardia nomeação de um governador para a Capitania, criada em 1718 e tendo designado seu primeiro governante apenas 40 anos depois, em virtude do pouco contingente populacional e suas implicações, pois a realidade do Piauí à época – início do século XVIII, era uma população sem vínculo de organização social e isenta à organização política (Nunes, 2001). Muito embora o povoamento tenha sido acelerado, a densidade populacional era extremamente baixa, em virtude da grande área territorial tomada, que era efeito da pecuária, dispersar para crescer. Reflexo disso está no fato de apenas em 1972 ter início a fundação de vilas, o que tão insistentemente solicitava a Corte, mas a precariedade demográfica da Capitania não possuía um povoado digno de ser alçado à categoria de vila. Segundo Nunes (2001), no sertão piauiense, com esse adensamento populacional, a maior parte dos habitantes eram os “desocupados”, que eram apanhados pelos grandes fazendeiros e distribuídos pelos latifúndios, assim organizando suas “cabroeiras”, visto que a coesão dos donos das terras era manifesta pelo poderio que ele tinha de aglutinar ao que estavam no seu entorno, ou seja, “sua gente”. Durante os primeiros decênios do século XIX, prosseguem as pesquisas em busca de novas fontes econômicas. O que se vê no cenário do Piauí desde o governo de D. João de Amorim – até a independência – foi a continuação da luta entre fazendeiros, chefes de tribo, e os representantes da coroa, a constituir a característica mais importante da história do Piauí, na segunda metade do século XVIII, até mesmo a Independência. Nas vésperas da independência, ainda não havia governo estabilizado. Vivia-se período retardatário de nossa evolução histórica, de nossa Idade Média. Para to do o Brasil este século marcou por toda parte a consolidação do poder público; por todo o litoral processava-se com facilidade a organização política, em virtude do comércio, da agricultura, da indústria açucareira, atividades que tendem a condensar populações, preparando o ambiente para a estabilização estatal. Enquanto isso, na região do pastoreio a que pertencia o Piauí, tudo conspirava contra a ordem: o deserto, a campina, o nomadismo e a tradição de longos anos de vida, dissoluta, onde o individualismo impunha a lei. Proclamada a Independência não houve como consequência dessa ocorrência histórica, modificações profundas ou ainda modificação notável no cenário social do Piauí, que continuava governado por fazendeiros, encastelados em seu orgulho e prepotência. Não havia ensino de natureza alguma no Piauí. O que nos unia ao Brasil era incontestavelmente o comércio de gado, que foi poderoso fator de unidade brasileira. Acerca desse fato Araújo 31 (1997) expõe: No Piauí, o novo regime federativo, legitimado juridicamente pela Constituição Estadual de 1891, não trouxe mudanças profundas para o estado. Não obstante, foi um período marcado por lutas pela manutenção de sua autonomia, uma vez que existiam ameaças de o Piauí ser incorporado às unidades federativas limítrofes, em face da alegada insuficiência de recursos para sua auto-sustentação. Contudo, realizaram-se transformações de natureza político-administrativa, que buscavam a consolidação da autonomia do estado (p. 43) Havia o caos econômico e financeiro por toda parte, e por toda parte periclitavam as instituições, e o cenário político não era diferente, pois “nem com o novo regime republicano os governantes piauienses modificaram seus atos, a bem dos setores públicos. Mesmo com o governo republicano, dava-se continuidade à política imperial de esquecimento dos estados pobres, como o Piauí” (Araújo, 1997, p. 72) As atividades agrícolas e pastoris - fontes de grande riqueza do Piauí - estavam decrescendo em produção, de ano para ano, em virtude de diversos fatores, tais como a ausência da renovação e cruzamento com uma boa raça de gado, o absenteísmo, as dificuldades de transportes e estradas, a rotina do método de uso da terra, ainda dos tempos coloniais e, ainda, a seca, que implicava a falta de pastagens. No entanto, não se descartava a ausência de uma política econômica que favorecesse aquelas indústrias. No período da monarquia, as atividades continuavam as mesmas, não havendo mudanças significativas na estrutura política-econômica-social do estado (Nunes, 2001). A promessa de expansão da indústria pastoril, por meio de processos modernos, não foi além dos planos, pois não alcançou resultado prático. Temerosos com a possibilidade da emergência de uma nova força na política local, os grandes latifundiários boicotavam iniciativas de modernização na atividade pastoril no Piauí (Araújo, 1997). A navegação a vapor foi apenas amostra de modernização na economia política, mas não solucionou o problema piauiense. Outros vestígios de fomento econômico manifestam-se, como fruto da angústia financeira. O que vem, entretanto, em socorro do estado, é a borracha e, em seguida, a cera de carnaúba e o babaçu, produtos naturais da terra que surgem espontaneamente a impor-se como contribuintes maiores do orçamento, no ensaio de adaptação do Piauí ao regime federativo (Nunes, 2001). Desde a colonização do Piauí, a sua atividade principal fora a pecuária, destacando-se como suporte básico até o início do século XX, quando a atividade econômica do extrativismo vegetal – a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa de babaçu 32 se incorporaram no quadro econômico de maior importância para o Estado. Tais produtos, mesmo inseridos na demanda do comércio internacional, não se consolidam como atividade dinâmica e duradoura capaz de influenciar nas transformações da estrutura socioeconômica do Estado (Araújo, 1997). O regime federativo também não proporcionou mudanças para o Piauí, entretanto, houve lutas para que o estado mantivesse sua autonomia, visto que eram constantes as ameaças de que fosse incorporado aos outros estados com os quais fazia limite, para isso sendo alegada a falta de recursos para que a unidade federativa se auto-sustentasse. Ocorrem, então, mudanças para que se alcançasse uma maior receita, principalmente no aumento da fiscalização da requisição dos impostos, que recaiam sobre os principais produtos de exportação a época, os quais eram o gado e seus derivados (couros, solas, peles, chifres) (Araújo, 1995). Até essa medida ser tomada, tais artigos. “escoavam para as províncias limítrofes doPiauí, como Bahia, Ceará e Maranhão, quase sempre como contrabando, em tropas de animais, por áreas onde a fiscalização do Estado não era exercida, o que servia para engrossar a exportação dessas províncias” (Araújo, 1995, p. 68). Essa dependência com os estados vizinhos, em especial com o Maranhão, proporcionava atraso econômico e social para o Piauí. Na capital Teresina, a essa mesma época, ouvia-se da elite um discurso progressista revestido por um conjunto de mudanças aparentes. Essa aspiração progressista culminou em projetos políticos que pretendiam iluminação pública, telégrafos, saneamento, estradas de rodagem e de ferro, assim como projetos para a organização do espaço urbano. A economia era pautada quase que exclusivamente na atividade de subsistência, com baixo nível técnico e consequente ignóbil índice de produtividade, contando ainda com as “peculiaridades históricas e ambientais da região” (Araújo, 1995, p. 20). Mesmo com meios de produção rudimentares, a cultura do algodão foi de grande importância no comércio de exportação, inicialmente para a América do Norte e posteriormente para atender as necessidades – reduzidas – do mercado interno (Araújo, 1991; Araújo, 1995; Patrocínio, 2006; Mendes, 2003). Ao longo da historia do Piauí, a agricultura mercantil não foi a prática principal da sua economia, ao contrário das criações de gado, que até meados do século XIX eram prósperas e representavam a base da economia do estado (Araújo, 1991). Isso denota que o 33 potencial agrícola (terras férteis abundantes, rios, lençóis freáticos) do estado pouco foi utilizado até pouco tempo atrás, nos anos de 1990, com as grandes plantações de soja e arroz no sul do estado, mas o principal, em se tratando de agricultura, é a de subsistência, essencial para o sustento das populações rurais piauienses. O interesse, conforme Mendes (2003), na criação de gado no Piauí começou com os habitantes dos estados vizinhos, devido à situação climática e de solo que propicia a tal atividade. Mendes ainda afiança que, de acordo com Censos Agropecuários, os recursos naturais ainda são subutilizados no Piauí, tanto os solos quanto as águas (de superfície e de solo). A importância da pecuária pode residir no fato de que foi esta atividade a responsável pela inserção do estado no contexto econômico brasileiro (Brandão, 1995). Historicamente, a virada do século XIX para os primeiros anos do século XX, foi a passagem do período monárquico para a República e um momento agitado por crises políticas que transcorreram todo o país (Araújo, 1995). Pode-se inferir que no inicio do século XX, de acordo com o que coloca Araújo (1995), a situação político-social-econômica do Piauí não era diferente do século anterior, pois poucas mudanças haviam acontecido tanto na produção agrícola quanta na infra-estrutura do estado. Os grupos políticos ainda tentavam melhorias e aquisições para o Piauí, mas percebe-se que eles não tinham forca suficiente para alcançar os objetivos almejados. A situação econômica do Piauí era muito distinta da situação do Centro-Sul, pois esta região desenvolvia-se de forma rápida – devido à produção do café -, enquanto que no Piauí e em todo o Nordeste a economia se orientava pela atividade de subsistência, imposta pelas particularidades históricas e ambientais inerentes à região, tendo ainda como agravante o nível técnico elementar que tornava baixo o índice de produtividade. A agricultura orientava-se para o consumo familiar, baseado na pequena produção, utilização de terras arrendadas de outrem e meios de produção elementares. (Araújo, 1997). As finanças e a economia sustentaram-se na pecuária, que constituiu a riqueza básica do Piauí até a primeira metade do século XX. Muito embora, como colocado anteriormente, a agricultura mercantil não tenha sido o forte da economia piauiense, a seca atinge incisivamente o povo piauiense, muito pelo fato da cultura de subsistência ser a principal fonte de alimentação e de pequenas e informais trocas dessas pessoas. Os produtores rurais ainda enfrentam, ao longo desses anos, da colonização até hoje, o fenômeno da seca, encarado por Neto & Borges (1987) como uma calamidade social e que “está ligada ao comportamento do clima, mas, de fato, contém uma 34 significação bem mais ampla e complexa que a simples ausência ou irregularidade de chuvas” (p. 15). Segundo os autores, de 1877 até a época do estudo, as noticias em torno da seca e a consciência do povo acerca dela mudou muito pouco; ainda é mais cômodo acusar que a seca é apenas consequência do clima. Até mesmo “órgãos técnicos, políticos e a imprensa alimentam, sutil ou abertamente, a crença segundo a qual a catástrofe vem do alto” (p. 22). Os aspectos climáticos piauienses, como infere Brandão (1995), sempre chamaram atenção dos viajantes desde a época das Capitanias, mesmo com a boa qualidade dos solos para pecuária e plantio de culturas e pastos. É mostrado que os estudos especializados que tentam desmistificar esse ensejo climático da seca ainda são de restrito acesso, porem, são taxativos em afirmar que a perda das plantações não é provocada pela ausência de chuvas. Relatórios da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER) de 1981 afiançam que no Nordeste brasileiro não falta água e que o semi-árido é região bastante propicia para a prática da pecuária e da agricultura; outros estudos mais antigos (Lisboa, 1913; SUDENE, 1973 apud Neto & Borges; 1987) já coligiam que o flagelo da seca não ocorre exatamente nos mesmos anos e que os índices de chuva estão abaixo do necessário para encher rios, lagos e açudes, e que o fenômeno social da seca acontece quando a frequência das chuvas é inconciliável com o período das culturas de subsistência; isso significa que a chuva por vezes vem, entretanto, na ocasião em que o produtor não estava preparado para recebê-la, ou depois que a produção já havia sido perdida ou a precipitação vem distribuída irregularmente. Neto & Borges (1987) afirmam que há casos, no Piauí, de municípios onde agricultores produzem regularmente bem, enquanto que seus - à mesma época e com os mesmos cultivos – perdem suas plantações; tais casos, em sua maioria, “não se tornam conhecidos do publico externo ao município devido ao interesse dos agricultores e das lideranças políticas locais na obtenção dos benefícios dos programas de emergência. Neste sentido, prefere-se apresentar o município todo em estado de calamidade” (p. 24). É imperioso afirmar que, ainda segundo os autores supracitados, não existe qualquer região no mundo que seja ou esteja imune a ocorrências climáticas irregulares semelhantes à do Piauí; não é a falta de água que assola o estado, isto é, “a natureza oferece os recursos hídricos”, é a organização da sociedade “que não permite aos agricultores tirar (dela) 35 proveito” (p. 29) para sua subsistência. Falta, portanto, informação e conscientização para o produtor rural acerca da questão da seca, pois como coloca Araújo (1991), não faltam medidas para enfrentamento da seca, já que a primeira intervenção com relação a esse fenômeno data de 1853, pela criação da Comissão de Exploração, que levou a uma oficialização dos estudos acerca da falta de chuvas no sertão. Nunes (2001) sucintamente explicita que “até meados do século passado, as modificações que se observaram na vida do Piauí tinham caráter mais social que político. Até mesmo a Independência não teve reflexos profundos em nossa história, a modificar sua fisionomia. A integração do Piauí no Brasil só teve seu início em 1845, e em nossos dias ainda está a se processar e a reclamar atenção de homens públicos. Ainda há pedaços do Piauí que pertencem ao Brasil arcaico, ronceiramente a marchar em rumo a seu destino, a evocar ainda a expansão dos currais, na época da conquista” (p. 34).
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