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O DESENVOLVIMENTO LOCAL EM UMA ESCALA
DO CRESCIMENTO AO DECRESCIMENTO: ANÁLISE DE UM
CAMINHO ALTERNATIVO À SOCIEDADE DE CONSUMO
Ana Sofia Nuñez de Abreu
Projeto de Graduação apresentado ao Curso de
Engenharia de Produção da Escola Politécnica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Engenheiro.
Orientador Ricardo Ferreira de Mello, D.Sc.
Rio de Janeiro
Abril de 2021
i
ii 
O DESENVOLVIMENTO LOCAL EM UMA ESCALA DO CRESCIMENTO AO 
DECRESCIMENTO: ANÁLISE DE UM CAMINHO ALTERNATIVO À SOCIEDADE 
DE CONSUMO 
 
 
Ana Sofia Nuñez de Abreu 
 
 
 
PROJETO DE GRADUAÇÃO SUBMETIDO AO CORPO DOCENTE DO CURSO DE 
ENGENHARIA DE PRODUÇÃO DA ESCOLA POLITÉCNICA DA UNIVERSIDADE 
FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS 
NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE ENGENHEIRO DE 
PRODUÇÃO. 
 
 
Examinado por: 
 
________________________________________________ 
Prof. Ricardo Ferreira de Mello, DSc. 
 
________________________________________________ 
 Prof. Felipe Addor, DSc. 
 
________________________________________________ 
 Prof. Vinícius Carvalho Cardoso, DSc. 
 
 
 
 
 
RIO DE JANEIRO, RJ - BRASIL 
Abril de 2021 
 
iii
Agradecimentos
É impossível chegar neste momento, um dos últimos ritos da graduação, sem reviver
mentalmente toda trajetória até aqui. Lembrar a Ana Sofia, que em 2014 se matriculou na
UFRJ convicta de que sairia formada em Nanotecnologia quatro anos depois, só me faz
refletir o quanto esses anos universitários me ensinaram a lidar com a imprevisibilidade e
com mudanças de rota ao longo do caminho.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, meu muito obrigada por ser esse
ecossistema inspirador que transborda conhecimento para além das salas de aula. Hoje,
sou extremamente grata por ter persistido e escolhido duas vezes uma das melhores
universidades do Brasil. À Universidad de Málaga, meu muchas gracias por ter sido minha
casa durante nove meses e por todas as experiências e reflexões engrandecedoras que
esse intercâmbio me proporcionou.
Aos amigos que dividiram esse caminho universitário, obrigada por estarem
presentes nas lembranças mais leves e divertidas que levarei comigo. Desde os encontros
inesperados e repletos de abraços nos corredores do CT, até as aulas sem sinal de celular
no subsolo do CCS. Em especial, Patrícia e Carolina, obrigada por estarem presentes em
todos os momentos, das alegrias aos desabafos, dentro e fora da universidade e até mesmo
com um oceano de distância.
Ao Ricardo que abraçou desde o início o tema deste trabalho e tornou o percurso de
fazer um TCC individual, em meio à pandemia, menos solitário. Muito obrigada por me
apresentar novos horizontes desde a perspectiva econômica, pelo apoio e principalmente
pela paciência, que em tempos pós-modernos pode ser reconhecida como a virtude rara de
quem escuta áudios longos no whatsapp. Não posso deixar de agradecer também a todos
os professores e professoras que marcaram essa jornada desde os anos de colégio até aqui
por todos os ensinamentos compartilhados.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a minha família pelo incentivo, pela
compreensão e por sempre me ensinarem a valorizar a educação em primeiro lugar. A
minha mãe - e professora - Ana Luisa, sou grata pelas mensagens de “divirta-se” todos os
dias pela manhã desde o colégio que sem dúvida alguma marcaram esse caminho
acadêmico. Ao meu pai Luiz Paulo, gratidão pela confiança, a minha dinda Carmen gratidão
pela cumplicidade e a minha avó Maria de la Paz, gratidão pelos abraços e sorrisos.
iv
Resumo do Projeto de Graduação apresentado à Escola Politécnica/ UFRJ como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Engenheiro de
Produção.
O DESENVOLVIMENTO LOCAL EM UMA ESCALA
DO CRESCIMENTO AO DECRESCIMENTO: ANÁLISE DE UM
CAMINHO ALTERNATIVO À SOCIEDADE DE CONSUMO
Ana Sofia Nuñez de Abreu
Abril/2021
Orientador: Ricardo Ferreira de Mello
Curso: Engenharia de Produção
Resumo: Sabe-se que os impactos socioambientais gerados pela sociedade de
consumo inviabilizam sua manutenção no longo prazo. Entende-se que essa
sociedade nada mais é que um reflexo do sistema econômico vigente, e portanto,
busca-se inicialmente compreender os pilares de tal sistema em torno dos conceitos
de desenvolvimento e crescimento. Em seguida, é apresentada a teoria do
decrescimento econômico como um contraponto à sociedade de consumo rumo à
uma sociedade que valorize mais o indivíduo humano e não o indivíduo consumidor.
No entanto, sabe-se que a transição rumo a uma sociedade de decrescimento não é
um processo trivial. Por isso, com o objetivo de avaliar sistematicamente se uma
proposta alternativa à sociedade de consumo de fato se aproxima do caminho rumo
à sociedade de decrescimento, foi criada uma matriz de avaliação numa escala do
crescimento ao decrescimento. Tal avaliação foi aplicada ao conceito de
desenvolvimento local devido a uma aproximação conceitual entre ele e alguns
direcionadores do decrescimento. Assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar
se experiências pautadas na lógica do desenvolvimento local são um caminho viável
para contrapor a lógica do sistema econômico da sociedade de consumo,
aproximando-se da proposta de uma sociedade de decrescimento.
Palavras-chave: Sociedade de Consumo, Decrescimento Econômico, Crescimento
Econômico, Desenvolvimento Local, Desenvolvimento Econômico.
v
Abstract of Undergraduate Project presented to POLI/UFRJ as a partial fulfillment of
the requirements for the degree of Industrial Engineer.
LOCAL DEVELOPMENT ON A SCALE OF
GROWTH TO DEGROWTH: ANALYSIS OF AN ALTERNATIVE PATH
TO CONSUMER SOCIETY
Ana Sofia Nuñez de Abreu
April/2021
Advisor: Ricardo Ferreira de Mello
Course: Industrial Engineering
Abstract: It is a well-known fact that the socio-environmental impacts generated by
the consumer society make its maintenance unfeasible in the long term. It is also
understood that this society is nothing more than a reflection of the current economic
system. Therefore, this work initially seeks to understand the bases of this system
through the concepts of development and growth. Then, the theory of economic
degrowth is presented as a counterpoint to the consumer society towards a society
that values the human individual more than the consumer individual. However, the
transition towards a degrowth society is not a trivial process. Therefore, in order to
systematically evaluate if an alternative proposal to the consumer society does, in
fact, builds the path towards the degrowth society, an evaluation matrix was created
on a scale from growth to degrowth. Such assessment was applied to the concept of
local development due to a conceptual approximation between it and some drivers of
degrowth. Thus, the general objective of this work is to analyze whether experiences
based on the logic of local development are a viable way to oppose the logic of the
economic system of a consumer society, approaching the proposal of a society of
degrowth.
Keywords: Consumer Society, Economic Degrowth, Economic Growth, Local
Development, Economic Development.
vi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
Figura 1: Diagrama do Fluxo Circular 24
Figura 2: Efeitos de um Aumento no Gasto sobre o Produto 29
Figura 3: Diagrama de Solow com Progresso Tecnológico 35
Figura 4: Efeitos da Redução da Produção sobre o Produto 44
Figura 5: Diagrama Conceitual de Causa e Efeito para o Decrescimento 64
Figura 6: Mapa Conceitual dos Direcionadores de Implementação da
Sociedade do Decrescimento 67
Figura 7: Riscos do Processo de Construção do Desenvolvimento Local 81
Figura 8: Graus e Níveis de Participação dentro de um Coletivo 84
Figura 9: Percentual da Pontuação Total Obtido em cada Macro Grupo 96
QUADROS
Quadro1: Escala Relativa de Importância de Saaty 14
Quadro 2: Índices Randômicos de Consistência Aleatória 15
Quadro 3: Os Cinco Estágios para o Desenvolvimento Econômico 22
Quadro 4: Critérios para Análise de Afinidade com a Proposta de uma
Sociedade de Decrescimento 70
Quadro 5: Matriz de Hierarquia entre Critérios 76
Quadro 6: Critérios e Pesos de Avaliação da Afinidade com a Proposta de uma
Sociedade de Decrescimento 77
Quadro 7: Matriz de Afinidade do Desenvolvimento Local com o Decrescimento 95
vii
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 8
1.1. Motivação 9
1.2. Objetivos 11
1.3. Metodologia 12
1.4. Limites do Trabalho 16
2. A ECONOMIA HEGEMÔNICA DO CRESCIMENTO 18
2.1. O Desenvolvimento Econômico 19
2.2. O Modelo do Fluxo Circular 24
2.3. O Crescimento Econômico 26
2.3.1. O crescimento no curto prazo: um olhar sobre produção,
renda e demanda 27
2.3.2. O crescimento no longo prazo: a elaboração de teorias do
crescimento 30
3. O CAMINHO DO DECRESCIMENTO COMO PERSPECTIVA ALTERNATIVA 37
3.1. Crítica Econômica do Decrescimento 39
3.1.1. Crítica aos Níveis de Consumo 40
3.1.2. Crítica aos Níveis de Produção 42
3.1.3. Crítica aos Níveis de Trabalho 45
3.2. Crítica Socioambiental do Decrescimento 49
3.2.1. Cultura do Consumo 49
3.2.2. Mantenedores da Sociedade de Consumo 53
3.2.2.1. A publicidade 53
3.2.2.2. O acesso ao crédito 56
3.2.2.3. A obsolescência programada 59
3.3. Direcionadores de Implementação 63
4. UMA ESCALA DO CRESCIMENTO AO DECRESCIMENTO 69
4.1. Definição dos Critérios de Intersecção 69
4.2. Hierarquização dos Critérios para Criação da Matriz de Avaliação 72
5. O DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO ESTADO DE TRANSIÇÃO 79
5.1. Direcionadores para a Implementação do Desenvolvimento Local 81
5.2. O Papel dos Atores Envolvidos no Desenvolvimento Local 86
5.3. Um Olhar sobre Produção, Trabalho e Consumo 88
5.4. Avaliação de Afinidade com a Proposta da Sociedade de Decrescimento 91
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 98
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 100
1. INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje, o ato de consumir parece ser uma condição inerente à
existência humana. Majoritariamente, o que define se um indivíduo está ou não à
margem da sociedade é seu poder de compra, ou seja, aqueles que têm pouco ou
nenhum poder de compra se tornam invisíveis perante os olhos dos poderes público
e privado. Mais que isso, o consumo adquiriu um papel importante na construção da
identidade. Todos os produtos, serviços e até mesmo as informações que se
consomem hoje colaboram não só para a construção do perfil do indivíduo enquanto
consumidor, mas principalmente para a construção de sua identidade enquanto ser
humano.
Observa-se hoje uma supervalorização dos bens de consumo, onde
espera-se que eles cumpram não só suas funcionalidades básicas, mas que
também sejam pensados para atender com exclusividade às necessidades humanas
em todos os níveis, desde as fisiológicas até as realizações pessoais. Essa crença
na satisfação de desejos a partir do consumo de produtos é falaciosa, uma vez que
para essa promessa permanecer atraente e válida, desde a perspectiva dos
consumidores, o desejo não pode ser satisfeito após a compra (BAUMAN, 2008). E
é justamente por essa ser uma promessa inalcançável que o autor defende que a
base para a expansão da economia na sociedade de consumo é o “ciclo do ‘compre,
desfrute e jogue fora’.”. De maneira complementar, Campbell (2006) argumenta que
o consumismo moderno, que sustenta a economia, é pautado no processo de querer
e desejar, mais especificamente na habilidade dos indivíduos enquanto
consumidores de exercitarem continuamente seu desejo por diferentes objetos de
consumo.
A partir de uma perspectiva socioambiental este é um modelo econômico
insustentável no longo prazo. Do ponto de vista social, o poder de consumo por si só
já é um fator gerador de desigualdade social. Segundo o relatório o Estado do
Mundo (2010) publicado pelo World Watch Institute (WWI), os 7% mais ricos da
população mundial na época eram responsáveis por 50% das emissões de carbono,
sendo essa uma medida que reflete essencialmente seus hábitos de produção e
consumo de bens e serviços. Além disso, observou-se nos últimos anos um
8
aumento acelerado no volume de consumo de informação e de tecnologia,
juntamente com um aumento nos casos de ansiedade no mundo. Segundo relatório
divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2017, o Brasil lidera o
ranking dos países com maior parcela da população que sofre de distúrbios de
ansiedade, 9,3% da população brasileira. Em números absolutos, o país fica em 4º
lugar, atrás apenas de Índia (1º), China (2º) e Estados Unidos (3º).
Já do ponto de vista ambiental, o relatório “Os Limites do Crescimento”
divulgado em 1972 por Donella Meadows e outros cientistas do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT) utilizava modelos de simulação matemática para
estimar que os recursos naturais do planeta se esgotariam em menos de 100 anos,
caso a humanidade seguisse os padrões de consumo daquela época. Em 2020, a
ONG internacional Global Footprint Network (GFN) calculou 22 de agosto do mesmo
ano como o Dia de Sobrecarga da Terra, ou seja, a partir desse dia, inicia-se um
déficit ambiental com o planeta, já que seriam consumidos mais recursos naturais do
que o planeta é capaz de renovar em um ano.
Diante disso, está dado um cenário no qual a base da expansão econômica
da sociedade é o consumo. No entanto, segundo Cechin (2008), está claro que há
uma limitação para a perpetuação desse ciclo de crescimento econômico “de um
lado, limitado pela finitude de matérias-primas e energia e, de outro, pela capacidade
restrita do planeta de processar os resíduos.”. Dessa forma, faz-se necessário um
modelo de desenvolvimento econômico que inclua variáveis sociais e ambientais
nas funções econômicas clássicas.
Assim, a temática que este trabalho se propõe a analisar é a possibilidade de
uma alternativa à sociedade de consumo com base no modelo econômico de
desenvolvimento local, sob a luz das premissas da teoria do decrescimento
econômico.
1.1. Motivação
Este trabalho é reflexo principalmente de inúmeros questionamentos
acumulados pela autora ao longo dos seus anos de formação em Engenharia de
Produção. Como esse profissional se forma com diferentes competências de
9
otimização, de resolução de problemas, de observação de padrões e de criação de
métodos, mas dificilmente discute o impacto de toda produtividade e de todo lucro
conquistados no ecossistema social no qual os mercados estão inseridos? Mais
ainda, como muitas vezes colocam a sociedade à serviço dos mercados e não o
contrário?
Durante as pesquisas de revisão bibliográfica iniciais para definição do tema
do presente trabalho, observou-se que os artigos e teses que enxergavam um
problema na manutenção da sociedade de consumo eram de autoria principalmente
de cientistas sociais, de cientistas ambientais e, em menor escala, de economistas.
Alguns poucos trabalhos encontrados de autoria de administradores ou de
engenheiros de produção, tratavam o tema a partir da ótica da economia
comportamental .1
Entretanto, acredita-se que uma mudança no comportamento de consumo do
indivíduo não é suficiente para frear o ciclo insustentável da sociedade de consumo
e mitigar suas consequências socioambientais. O discurso de que cabe ao indivíduo
se redimir dos impactos ambientais gerados pelo seu consumo, a partir do consumo
certo, dos produtos certos e das empresas certas, apenas corrobora para a
construção social do conceito de “consumidor responsável” (FONTENELLE, 2017).
Esse discurso do “consumidor responsável” é facilmente absorvido pela
cultura de consumo e refletido em estratégias de marketing, uma vez que o
problema segundo eles não está no quanto um indivíduo consome, mas sim no que
ele consome. Por exemplo, em 2020, a agência de pesquisa de tendências de
mercado Euromonitor International identificou um novo tipo de consumidor, o
Empowered Activist em seu relatório de tendências anual.Esse tipo de consumidor,
que já representa 12% dos consumidores no mundo, acredita que sua ação de
consumo individual tem o poder de gerar uma mudança positiva no seu entorno. O
que esse consumidor não percebe é que seu comportamento é apenas reflexo da
cultura no qual está inserido e que esse “superpoder” de impactar a sociedade
através da compra é uma exclusividade falaciosa de uma sociedade de consumo.
1 Segundo Mankiw (2015) a economia comportamental é um “novo campo de estudo, que
introduz a psicologia na economia”, cujos estudiosos sugerem que “as decisões sobre consumo não
são tomadas pelo Homo economicus ultra-racional, mas sim por seres humanos reais, cujo
comportamento pode estar bem distante do racional.”.
10
A relevância deste trabalho reside para além do problema dado de
manutenção dos padrões da sociedade de consumo. Estando principalmente
atrelada à contribuição para a análise de alternativas de solução do problema a
partir da ótica sistêmica e metodológica característica da formação em Engenharia
de Produção. Enxergando que a cadeia de valor de qualquer organização produtiva
não deveria encerrar na entrega de seu produto ou serviço ao consumidor, mas sim
no impacto dos mesmos no tecido socioambiental no qual foram inseridos.
1.2. Objetivos
O objetivo geral deste trabalho é analisar se experiências pautadas na lógica
do desenvolvimento local são um caminho viável para contrapor a lógica do sistema
econômico da sociedade de consumo, aproximando-se da proposta de uma
sociedade de decrescimento.
Para alcançar tal objetivo, alguns objetivos específicos se fizeram
necessários. Inicialmente, foi preciso construir um alicerce teórico que embasasse
tanto a construção de uma matriz avaliativa quanto a análise crítica final do trabalho.
Enquanto o último critério visa contribuir para a avaliação de experiências pautadas
no desenvolvimento local como caminho de transição entre uma sociedade de
consumo e uma sociedade de decrescimento. São eles:
● Caracterizar o sistema econômico hegemônico, compreendendo seu
fluxo circular de riqueza e seus pilares conceituais tais como
crescimento, desenvolvimento, produção, consumo, trabalho,
desemprego e renda;
● Apresentar o slogan do decrescimento econômico como oposição às2
premissas do sistema econômico hegemônico, compreendendo suas
alternativas aos mesmos pilares citados anteriormente;
● Compreender as críticas do decrescimento econômico aos pilares de
manutenção da sociedade de consumo: a publicidade, o acesso ao
crédito e a obsolescência dos produtos;
2 O termo é utilizado por Latouche (2009) ao definir decrescimento como “slogan político com
implicações teóricas.”
11
● Eleger os critérios para análise de como determinada teoria ou
experiência se encaixam num espectro entre a sociedade de consumo
e a sociedade de decrescimento;
● Apresentar o conceito de desenvolvimento local como proposta prática
de um modelo econômico intermediário entre os dois extremos teóricos
analisados.
1.3. Metodologia
Visando atingir os objetivos elucidados anteriormente, o presente trabalho é
composto por uma pesquisa exploratória no que diz respeito aos conceitos-chaves
do embasamento teórico. Tal pesquisa foi feita a partir da revisão bibliográfica de
textos oriundos de diversas áreas do conhecimento, da economia à sociologia,
buscando trazer uma visão o mais sistêmica possível do objeto de estudo.
Num segundo momento, foram definidos critérios para analisar a teoria do
desenvolvimento local com base nos principais pontos de divergência entre as
teorias econômicas apresentadas. A escolha dos critérios decorreu da análise crítica
da autora sobre os aspectos teóricos revisados, tomando como inspiração o
arcabouço de critérios proposto por Cuvillier (2018) para análise de “comunidades
locais que se propõem a viver de sua produção e com qualidade, inseridas no tecido
econômico local, porém sem almejar um crescimento ilimitado e visando a se
emancipar economicamente.”.
Após a definição dos critérios notou-se a necessidade de estabelecer uma
hierarquia de importância entre eles, uma vez que alguns por si só poderiam
aproximar mais a experiência analisada de uma sociedade de decrescimento que
outros. Além disso, o estabelecimento de uma mera ordenação dos critérios
propostos não era suficiente, já que para compor a matriz avaliativa de afinidade
entre determinada experiência e a sociedade de decrescimento era necessário
atribuir pesos diferentes aos critérios mais importantes.
Diante desse cenário, no qual era necessário fazer uma seleção comparativa
e qualitativa dentre múltiplos critérios, notou-se uma similaridade entre o resultado
esperado e a matriz intercritérios que compõe uma das etapas iniciais do método de
12
apoio à decisão multicritério Analytic Hierarchy Process (AHP). Tal método, criado na
década de 70 por Saaty, e amplamente abordado na literatura de Gestão de
Projetos, consiste na criação de um modelo que busca refletir o raciocínio humano
diante de um problema complexo de tomada de decisão, tomando como base os
julgamentos subjetivos dos decisores (SAATY, 1991 apud RIBEIRO et al., 2015).
A aplicação do método AHP inicia-se com a definição de um objetivo e dos
critérios de análise por parte do decisor. No caso do presente trabalho, o objetivo é
“ser uma sociedade de decrescimento”. Uma vez definidos os critérios, monta-se
uma matriz quadrada de ordem n, cujo valor é igual ao número de critérios elegidos,
de modo que os critérios possam ser comparados pelos decisores, refletindo
numericamente seus julgamentos e preferências, com base na escala de
Saaty(1990) exposta no Quadro 1. A comparação é feita sempre avaliando a
intensidade da importância do elemento i da linha com relação ao elemento j da
coluna para alcançar o objetivo. Havendo duas regras básicas para o preenchimento
numérico dessas avaliações:
(1.1)𝑆𝑒 𝑖 = 𝑗, 𝑎
𝑖𝑗
= 1
(1.2)𝑆𝑒 𝑎
𝑖𝑗
= θ, 𝑎
𝑗𝑖
= 1θ 
Dessa forma, o resultado obtido será uma matriz recíproca com os elementos
da diagonal principal iguais a 1. A seguir, calcula-se as médias geométricas dos
elementos de cada linha i. Em seguida, normaliza-se os valores encontrados para a
obtenção do autovetor final daquela matriz, dividindo a média geométrica de cada
linha i pelo somatório das médias geométricas de todas as n linhas da matriz.
Apesar de existirem na literatura diferentes cálculos matemáticos para a obtenção
desse autovetor, Bajwa declara que a média geométrica mostrou-se o melhor deles
(BAJWA et al., 2008 apud MORAIS, 2019) e Saaty complementa que para a
utilização de tal cálculo ser válida é necessária apenas a normalização dos
resultados obtidos (SAATY, 2008 apud MORAIS, 2019).
13
QUADRO 1 - ESCALA RELATIVA DE IMPORTÂNCIA DE SAATY
Intensidade da
Importância Definição Explicação
1 Mesma importância Os dois elementos comparados contribuemigualmente para o objetivo
3 Importância pequena deuma sobre a outra
O elemento comparado é ligeiramente mais
importante em relação ao outro.
5 Importância grande ouessencial
A experiência e o julgamento favorecem fortemente
o elemento em relação ao outro.
7 Importância muito grandeou demonstrada
O elemento comparado é muito mais forte em
relação ao outro e tal importância pode ser
observada na prática.
9 Importância absoluta O elemento comparado possui o mais alto nível deevidência possível a seu favor.
2, 4, 6, 8
Valores intermediários
entre os valores
adjacentes
Utilizados quando o decisor sentir dificuldade
para escolher entre dois graus de importância
adjacentes.
Fonte: Adaptado de Saaty (1991 apud Ribeiro et al., 2015)
Uma vez obtida a matriz de análise relativa intercritérios e calculado seu
autovetor, é necessário calcular sua Razão de Consistência ( ). Tal parâmetro é𝑅𝐶
calculado para garantir que não houveram incongruências lógicas por parte do
decisor na hora de atribuir seus valores de importância relativa. A Razão de
Consistência é calculadaa partir da equação 1.3 através da razão entre o Índice de
Consistência ( ) e o Índice Randômico de Saaty ( ), tendo que ser inferior a 10%𝐼𝐶 𝐼𝑅
para que a matriz seja considerada consistente.
(1.3)𝑅𝐶 = 𝐼𝐶𝐼𝑅
O Índice de Consistência ( ), por sua vez, é calculado segundo a equação𝐼𝐶
1.4 a partir do autovalor máximo da matriz ( ) e da ordem da matriz. Em teoria oλ
𝑚á𝑥
𝑛
autovalor máximo de uma matriz de ordem seria igual a . No entanto, o que𝑛 𝑛
Saaty defende é que esse desvio entre o autovalor encontrado e a ordem da matriz
serve como indicador para determinar a consistência dos julgamentos (SAATY, 1991
14
apud RIBEIRO et al., 2015). O cálculo do autovalor máximo ( ), por sua vez, éλ
𝑚á𝑥
dado pelo produto interno entre o autovetor de prioridades normalizado e o vetor
com a soma total de cada coluna j da matriz.
(1.4)𝐼𝐶 = 
λ
𝑚á𝑥
− 𝑛
𝑛 − 1
Já o Índice Randômico de Saaty ( ) é um valor pré-fixado segundo o Quadro𝐼𝑅
2 de acordo com a ordem da matriz intercritérios.𝑛
QUADRO 2 - ÍNDICES RANDÔMICOS DE CONSISTÊNCIA ALEATÓRIA
n 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
IR 0.00 0.00 0.58 0.90 1.12 1.24 1.32 1.41 1.45 1.49 1.51 1.48 1.56 1.57 1.59
Fonte: Adaptado de Saaty (1991 apud Ribeiro et al., 2015)
Assim, com essa primeira matriz intercritérios, o método AHP espera obter um
autovetor que reflita o ranking dos critérios elegidos e seus respectivos pesos na
tomada de decisão. Foi essa parte da metodologia AHP utilizada no presente
trabalho. A metodologia completa ainda orienta uma segunda etapa na qual são
definidas alternativas para atingir o objetivo, como por exemplo, projeto A, B e C.
Uma vez definidas as alternativas, montam-se matrizes intra critérios nas quais o𝑛
número de linhas i e de colunas j são iguais ao número de alternativas a serem
avaliadas. Assim como na primeira matriz, nessas matrizes intra critérios as
alternativas devem ser comparadas segundo a escala de julgamento de Saaty,
dando origem a uma matriz para avaliá-las individualmente em cada um dos
critérios. Ao final, o método chega à resposta de qual alternativa é a melhor para
atingir o objetivo, apoiando assim a tomada de decisão.
No entanto, o presente trabalho almeja auxiliar na resposta de questões como
o quanto determinada experiência se aproxima de um ideal da sociedade de
decrescimento. E não propriamente numa escolha pela experiência que mais se
aproxima do objetivo exposto, uma vez que a teoria do decrescimento defende que
15
cada experiência deve ter autonomia para determinar seu funcionamento. Dessa
forma, a segunda parte do método AHP não tinha porquê ser utilizada.
Por fim, pretende-se exemplificar como seria o uso dessa matriz na análise de
afinidade entre a teoria do desenvolvimento local com a sociedade de decrescimento
em si. Traçando, assim, uma análise do desenvolvimento local como alternativa
viável à sociedade de consumo.
1.4. Limites do Trabalho
Conforme dito inicialmente, o poder de consumo é por si só um fator gerador
de desigualdade social, que colabora para a manutenção de relações de dominância
não só entre países, como também dentro desses países. Assim, considerando que
o plano de fundo base para o desenvolvimento deste trabalho é a sociedade de
consumo, a primeira limitação clara da pesquisa é que referências a “consumidores”
contemplam apenas parte da população que tem acesso ao consumo.
Desde o ponto de vista sociológico, sabe-se que o conceito de sociedade
abarca um conjunto de pessoas que compartilham o mesmo território, a mesma
cultura e estão sob a gestão das mesmas instituições políticas e sociais (DE
OLIVEIRA, 2010). Dessa forma, são consideradas sociedades de consumo todas
aquelas sociedades que estão sob o regimento de um sistema hegemônico
capitalista e compartilham de uma cultura globalizada do consumo. Por mais que as
diferenças regionais, políticas e a cultura local sejam direcionadores específicos
responsáveis por diferenciar as sociedades de consumo entre si, Lipovetsky (2009)
define uma sociedade de consumo como sendo aquela centrada na expansão das
necessidades dos seus indivíduos, ordenando sua produção e seu consumo em
massa sob os pilares da obsolescência, da sedução e da diversificação de opções.
Além disso, neste trabalho não se pretende exaurir as críticas à sociedade de
consumo no âmbito teórico da sustentabilidade ambiental. Apesar de ser um tema
de extrema importância e aparecer tangencialmente em algumas discussões ao
longo do texto, não é um objetivo aprofundar tais conceitos. Este limite é reflexo
principalmente de uma premissa exposta ao longo do trabalho de que esse é um
16
aspecto de maior consenso mesmo entre os defensores do crescimento econômico
tradicional.
17
2. A ECONOMIA HEGEMÔNICA DO CRESCIMENTO
A economia é um campo de estudo que se posiciona na fronteira entre as
ciências sociais e as ciências exatas. Os economistas são aqueles que utilizam o
método científico como ferramenta para o estudo da sociedade, mais
especificamente, para o estudo de como a sociedade administra seus recursos
escassos (MANKIW, 2016). No entanto, dada a dificuldade de se modelar
quantitativamente os aspectos de sistemas complexos como as sociedades, a teoria
econômica tradicional tende a classificar aspectos ambientais e sociais como
externalidades negativas, ou seja, como meros efeitos colaterais de decisões
tomadas no decorrer do fluxo contínuo de circulação de riquezas.
Isso fica ainda mais evidente quando se estuda o sistema econômico
capitalista, que historicamente se consolidou hegemônico na sociedade. Segundo
Bresser-Pereira (2006), o capitalismo pode ser entendido como “um sistema
econômico coordenado pelo mercado, no qual empresas e Estados-nação
competem a nível mundial”, em que um dos objetivos dessa competição é o
desenvolvimento econômico dos atores envolvidos. E um dos indicadores utilizados
para acompanhar o desenvolvimento econômico de um país é a sua taxa de
crescimento medida frequentemente através do Produto Interno Bruto (PIB).
No entanto, é importante ressaltar que por mais que um crescimento
econômico contribua para o desenvolvimento econômico da sociedade capitalista,
nem todo cenário de desenvolvimento econômico impacta diretamente o
desenvolvimento sociopolítico da região. Muitas vezes, a expansão da atividade
econômica, apenas contribui para acentuar as desigualdades sociais através do
aumento da concentração de renda do que para maximizar o bem-estar social. Logo,
não se pode assumir a premissa de que o crescimento econômico sempre tem um
efeito positivo sobre a qualidade de vida dos indivíduos.
Ao longo da consolidação do sistema capitalista como hegemônico, os
conceitos de crescimento econômico e de desenvolvimento econômico acabaram se
misturando, e muitas vezes sendo utilizados como sinônimos pelo senso comum.
Para Schumpeter (1997), o desenvolvimento econômico engloba apenas mudanças
na vida econômica que tenham surgido pela própria iniciativa da esfera econômica.
18
Com isso, o autor exclui casos em que uma mudança nos indicadores econômicos
está atrelada apenas a mudanças no entorno sociopolítico que acabaram por induzir
uma adaptação econômica. O crescimento econômico, por sua vez, é entendido por
Mankiw (2015) como uma melhora nos padrões de vida de determinada sociedade
em termos materiais, devido a um aumento constante de renda individual que
impulsiona um aumento nos índices de consumo.
Frequentemente, termos como “qualidade de vida”, “padrões de vida”,
“mudança de vida” e outras variações são encontrados em ambas definições. Em
suma, ao desenvolvimento econômico cabe um aspecto mais qualitativo das
mudanças na sociedade. Enquanto o crescimento econômico pode ser medido
quantitativamente através de indicadores secundários como renda e consumo.
Essa contextualização prévia é necessária para a compreensão da divisão
conceitual adotada neste capítulo. Primeiramente, discute-se a busca pelo
desenvolvimentoeconômico como um dos objetivos básicos da economia
capitalista. Em seguida, busca-se compreender o funcionamento elementar dessa
economia através do modelo tradicional do Fluxo Circular. E por fim, apresentam-se
duas abordagens macroeconômicas para o crescimento econômico: uma de curto
prazo com o cálculo do PIB e outra de longo prazo com a discussão sobre modelos
de crescimento.
2.1. O Desenvolvimento Econômico
Apesar do desenvolvimento ser o objetivo dos Estados-nação no sistema
capitalista, é preciso pontuar que esse não é um objetivo que se finda uma vez
alcançado. Os países já considerados desenvolvidos seguem em busca de
fortalecer suas economias. Enquanto os países em desenvolvimento e
subdesenvolvidos, por sua vez, buscam diferentes estratégias para atingir o padrão
de vida e riqueza que os países desenvolvidos possuem hoje.
Frequentemente, verifica-se uma categorização dos países de acordo com
seu estágio nesse processo em: desenvolvidos, em desenvolvimento e
subdesenvolvidos. Segundo essa divisão, o que diferencia um estágio do outro são
fatores como o grau de industrialização, valor do PIB e valor do Índice de
19
Desenvolvimento Humano (IDH) de cada país. Analisando tais fatores, percebe-se
que eles são majoritariamente econômicos, inclusive o próprio IDH que é calculado
em termos de PIB per capita, expectativa de vida (que em termos econômicos
influencia em quanto tempo os indivíduos poderão vender sua força de trabalho) e
acesso à educação (que em termos econômicos influencia na qualidade da mão de
obra disponível).
Como esse desenvolvimento almejado se baseia numa visão economicista,
os aspectos social, ambiental e político são considerados secundários, ou seja,
meros efeitos de uma melhora econômica. O princípio dessa visão já pode ser
verificado desde a origem das teorias sobre desenvolvimento econômico. Por mais
que algumas práticas embrionárias dessas teorias já pudessem ser observadas nas
políticas mercantilistas dos países europeus até o século XVIII, é no período após a
Segunda Guerra Mundial que o conceito ganha mais notoriedade. Isso porque o
desenvolvimento econômico passa a ser entendido como um projeto político dos
países industrializados (do Primeiro e do Segundo Mundo) para os países
subdesenvolvidos do Terceiro Mundo (MARTINS, 2010).
Assim, o conceito de desenvolvimento econômico para os países do Terceiro
Mundo estava relacionado a um processo pautado no crescimento econômico, a
partir do desenvolvimento industrial, que possibilitasse a incorporação dos padrões
de vida dos países desenvolvidos. Entretanto, esse processo de desenvolvimento
industrial acabou sendo um cenário de disputa entre os dois pólos econômicos da
época, EUA e URSS, através de suas companhias transnacionais. Dessa forma, o
projeto político por trás do desenvolvimento econômico beneficiava os países
desenvolvidos que conseguiram baratear suas produções, transferindo a parte
operacional do seu processo produtivo para países do Terceiro Mundo. No país de
origem, eram mantidas apenas as matrizes das empresas que se ocupavam das
decisões estratégicas e da idealização de inovações para o processo de produção.
Com isso, a base do processo de desenvolvimento dos países desenvolvidos
também era a partir do crescimento econômico que era obtido através da inclusão
de inovações que poderiam ser de cunho tecnológico ou não nas suas atividades de
produção. Schumpeter (1997) exemplifica cinco principais mudanças que podem ser
consideradas exemplos de desenvolvimento econômico de um Estado-nação: a
20
introdução de um novo bem na economia, a abertura de um novo mercado, a
introdução de um novo método de produção, a utilização de uma nova fonte de
matérias-primas ou a reorganização de qualquer indústria existente (com criação de
monopólios, por exemplo).
Dessa forma, pode-se observar que as mudanças apresentadas como
exemplos de desenvolvimento econômico pelo autor estão diretamente ligadas à
capacidade produtiva e à capacidade de inovação das organizações, ou seja, elas
surgem no âmbito da produção e não do consumo (NIEDERLE; RADOMSKY, 2016).
Quando um novo bem é introduzido ou quando se abre um novo mercado, trata-se
de exemplos da expansão da capacidade produtiva. Quando se introduz um novo
método ou se utiliza uma nova fonte de matéria-prima, busca-se otimizar essa
mesma capacidade. E, por fim, quando há a reorganização de uma indústria, em
geral, busca-se definir quem serão os atores responsáveis por controlar a produção.
Entretanto, como as teorias desenvolvimentistas foram estudadas à luz do
cenário da Guerra Fria, pode-se observar que esse conceito de desenvolvimento
pautado na inovação abrangia unicamente os países que já eram considerados
“desenvolvidos” na época. Afinal, é um conceito que foca em melhorias nos
processos produtivos já existentes com base na inovação tecnológica, ao passo que
os demais países, em geral, ainda tinham a agricultura como atividade econômica
majoritária ou estavam sediando as etapas menos desenvolvidas dos processos
produtivos das transnacionais.
Por isso, também era necessário uma teoria de desenvolvimento que
pudesse ser aplicada aos países subdesenvolvidos. Na década de 60, Walt Whitman
Rostow lançou nos EUA o livro Etapas do Desenvolvimento Econômico: um
manifesto não-comunista, no qual o autor propõe cinco estágios do desenvolvimento
econômico, desde a sociedade baseada na economia agrícola até a sociedade
baseada no consumo em massa. É interessante observar que o último estágio
descrito por Rostow é exatamente a descrição da sociedade estadunidense naquela
época, ou seja, uma sociedade na qual qualidade de vida se torna sinônimo de
elevados níveis de consumo.
21
QUADRO 3 - OS CINCO ESTÁGIOS PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Etapa 1
Sociedade
Tradicional
Etapa 2
Precondições
para o Arranco
Etapa 3
Arranco
Etapa 4
Marcha para a
Maturidade
Etapa 5
Era do Consumo
em Massa
Funções de
produção
limitadas pela
própria limitação
científica e
tecnológica da
época.
Mantém as
características da
sociedade
tradicional, mas
observa-se um
dinamismo do
comércio e a
aplicação de
novos métodos
produtivos.
As forças que
contribuem para
o progresso
econômico se
sobrepõem na
sociedade e o
desenvolvimento
passa a ser
condição normal.
A economia
demonstra
aptidão técnica
para produzir
qualquer coisa
que se decida.
Os setores de
consumo de bens
duráveis e
serviços passam
a liderar a
economia.
Fonte: Elaboração própria com base em Rostow (1960, p.16-23)
Os cinco estágios resumidos no Quadro 3, começam com a Sociedade
Tradicional, que pode ser entendida como uma sociedade incapaz de produzir
excedentes e, por sua vez, acumulação, tendo que viver com seus limites naturais
sem perspectiva de ascensão econômica (NIEDERLE; RADOMSKY, 2016).
O segundo estágio, das Precondições para o Arranco, é das fases mais
importantes do processo, pois é ela que servirá como base para todas as demais.
Nessa fase, observa-se um aumento da produtividade devido à divisão do trabalho e
à incorporação do avanço tecnológico que contribui para alavancar o
desenvolvimento econômico. Segundo Rostow (1960), é ainda nessa fase que a
sociedade passa a acreditar na ideia do progresso econômico como algo possível e
benéfico para diferentes fins como “dignidade nacional, o lucro privado, o bem-estar
geral, ou uma vida melhor para os filhos”.
Já o terceiro estágio é definido pelo Arranco, quando a sociedade ultrapassa
barreiras tecnológicas, políticas, institucionais e passa a experimentar os primeiros
indicadores de desenvolvimento, dentre os quais pode-se citar o processo de
industrialização (NIEDERLE; RADOMSKY, 2016). Nesse estágio, há uma
consolidação da “sociedade moderna” não só em termos econômicos, mas
principalmente em termos sociais, devido a uma forte migração do setor rural para
os centros urbanos.
O quarto estágio é definido como a Marcha para a Maturidade que pode ser
resumido como um estágio noqual a técnica disponível permite a produção de
22
qualquer bem. Rostow (1960) afirma que após a fase de Arranco, inicia-se um
processo de busca pelo progresso contínuo à medida que há uma incorporação
tecnológica na economia. Dessa forma, é possível observar uma evolução na
habilidade econômica de produzir novos bens, antes importados, assim como de
aumentar a variedade de produtos exportados.
Por fim, o último estágio da Era do Consumo em Massa, é quando se verifica
um aumento da renda real per capita, indicando que a sociedade de fato atingiu a
maturidade. Com isso, os consumidores têm mais renda disponível para adquirir
mais que apenas produtos que suprem suas necessidades básicas de alimentação,
habitação e vestuário. Somado a isso, o aumento da produção e consequentemente
dos trabalhadores nos centros urbanos, fez com que esse novo grupo também
estivesse ávido por adquirir os benefícios provenientes do consumo possibilitados
por uma economia amadurecida.
O próprio Rostow (1960) ressalta que seu livro consiste em uma
generalização em forma de um conjunto de etapas do desenvolvimento. Isto é, seu
modelo de estágios pode explicar de forma genérica o processo histórico de
desenvolvimento econômico das sociedades, mas sem se ater às especificidades de
cada país. O principal ponto a ser destacado é que o autor parte da premissa de que
todos os países que ainda não eram considerados desenvolvidos deveriam seguir o
mesmo processo de desenvolvimento que foi observado no decorrer da história dos
Estados Unidos. No entanto, ao final do quinto estágio, Rostow (1960) também
afirma que é difícil fazer projeções acerca do futuro do desenvolvimento, uma vez
que a sociedade norte-americana ainda não tinha um padrão distinto da fase
anterior.
Retomando o conceito de Bresser-Pereira (2006) de que os Estados-nação
competiam entre si na sociedade capitalista visando os melhores índices de
desenvolvimento, somado à proposta de caminho para o desenvolvimento de
Rostow (1960), observa-se que essa competição já está praticamente perdida para
os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Isto é, se todo o país em
desenvolvimento tomar como base o processo pelo qual passaram as nações já
desenvolvidas, eles estarão sempre considerando como “linha de chegada” um
padrão de desenvolvimento naturalmente defasado. Uma vez que, deve-se
23
considerar que os países já desenvolvidos seguem inovando sua produção e
desenvolvendo cada vez mais suas economias, enquanto os países
subdesenvolvidos seguem pautando seu desenvolvimento no consumo e na réplica
de inovações já obsoletas.
2.2. O Modelo do Fluxo Circular
O diagrama do fluxo circular busca simplificar como a economia se organiza e
como seus principais atores – empresas e famílias – interagem entre si, levando em
conta atividades como produção, trabalho, venda e consumo. Para isso são
considerados dois fluxos – um de insumos e mercadorias e outro de dinheiro – e
também dois mercados nos quais ocorre essa interface entre empresas e famílias:
os mercados de bens e serviços e os mercados de fatores de produção.
FIGURA 1 - DIAGRAMA DO FLUXO CIRCULAR
Fonte: Mankiw (2016, p. 24)
Analisando o diagrama (Figura 1), observa-se primeiramente que as
organizações familiares são as detentoras dos fatores de produção ao mesmo
24
tempo em que são consumidoras de bens e serviços. Dessa forma, o fluxo de
insumos e mercadorias se inicia com famílias vendendo seus fatores de produção
para as empresas no mercado de fatores de produção. As empresas, por sua vez,
utilizam esses fatores de produção como insumos para produzir seus bens ou
serviços, que serão vendidos às famílias no mercado de bens e serviços.
Já o fluxo de dinheiro pode ser iniciado com as empresas que obtêm receita a
partir da venda de seus bens ou serviços. Parte dessa receita é utilizada para pagar
custos fixos tais como aluguéis e salários e a outra é equivalente ao lucro obtido.
Dessa forma, tanto lucro, aluguel quanto salário são destinados a indivíduos que
fazem parte de uma família e que irão gastar essa renda comprando novos bens ou
consumindo novos serviços. Essa atividade dos indivíduos como consumidores gera
receita para as empresas, fomentando assim a continuidade do ciclo.
Esse é um fluxo simplificado que não contempla diretamente, por exemplo,
relações comerciais entre empresas ou relações informais de troca entre famílias.
No entanto, é o modelo que ainda serve como base para a medição do crescimento
econômico e que melhor explica o fluxo majoritário de circulação de renda na
sociedade. Ao longo dos anos, foram feitas releituras mais complexas desse
modelo, conferindo maior destaque para o papel do governo e das instituições
financeiras como agentes reguladores desse fluxo.
É importante pontuar, no entanto, que independente da adição de novos
atores, esse é um diagrama que se baseia numa visão limitada do ser humano, na
qual o papel do indivíduo na economia se resume a: viver para trabalhar, trabalhar
para comprar e comprar para sobreviver. Isso porque o fluxo toma como base a
figura do Homo economicus, um protagonista idealizado que representa o papel dos
seres humanos nas premissas econômicas. Esse indivíduo tem como característica
fundamental agir de maneira sempre racional objetivando maximizar seus ganhos,
seja como consumidor ou como empresário.
Além disso, segundo a economista inglesa Kate Raworth defende no seu
TEDx Why It’s Time for Doughnut Economics (Atenas, 2014), esse modelo
tradicional contabiliza apenas o valor que a sociedade cria e que pode ser
monetizado. Deixando de contabilizar todo o valor gerado em trocas colaborativas e
25
cooperativas entre indivíduos. Como exemplo, tem-se desde a troca de favores entre
amigos até os códigos open source disponibilizados por programadores na internet.
Em suma, apesar do modelo simplificar o fluxo de dinheiro, ele não considera
a possibilidade de haver um fluxo de riqueza cujos valores não podem ser medidos
em termos monetários. Assim, ele exclui não só a riqueza existente nos processos
de cooperação e colaboração interpessoais, mas também o ganho que o indivíduo
pode buscar fora desse mercado de bens e serviços, sem a necessidade de exercer
seu papel de consumidor. Por mais que os exemplos variem de indivíduo para
indivíduo e algumas empresas aleguem proporcionar tais ganhos, pode-se citar
exemplos como autoconhecimento, desenvolvimento pessoal, estabilidade
emocional, equilíbrio mental, criatividade, entre outros conceitos um pouco mais
abstratos.
Além disso, parece óbvio notar que esse não é um fluxo que está flutuando
na sociedade, tal como os manuais de economia clássicos fazem parecer, mas sim
que está completamente interligado com o ecossistema terrestre (RAWORTH, 2014).
E ainda assim, é um fluxo que ignora completamente a origem e a finitude dos
recursos naturais que sustentam seus processos produtivos, bem como o impacto
dos subprodutos gerados, tais como poluição e dejetos, no entorno ambiental. O
esforço recente por parte das empresas em desenvolver formas mais eficientes de
explorar os recursos naturais ou de pensar na logística reversa para o
reaproveitamento de embalagens que seriam descartadas, por exemplo, ainda não é
suficiente para sustentar a coexistência desse fluxo econômico com o meio
ambiente no longo prazo.
2.3. O Crescimento Econômico
As perspectivas para abordagem macroeconômica do crescimento são
muitas. Enquanto no curto prazo, os economistas tendem a se ater a uma fotografia
do mercado de bens e serviços, analisando os indicadores do PIB para avaliar o
crescimento, no longo prazo, são necessárias análises mais dinâmicas que
descrevam como e quais mudanças ao longo do tempo são capazes de afetar o
crescimento econômico de um país frente a outro. Afinal, as taxas de crescimento
26
fotografadas pelo PIB não são necessariamente constantes, e apesar de suas
flutuações, o país pode se encaminhar para um estadode crescimento no longo
prazo (JONES, 2000). Nesse contexto, os economistas passaram a se debruçar
também sobre o estudo de teorias do crescimento econômico a partir do
desenvolvimento de modelos mais complexos que visam explicar os fatores que
contribuem para diferenças tão acentuadas de crescimento econômico entre
diferentes países.
2.3.1. O crescimento no curto prazo: um olhar sobre produção,
renda e demanda
Quando se estuda o crescimento econômico no curto prazo, que para
economia abrange um período em torno de um ano, busca-se entender as relações
entre produção, renda e demanda. Pelo modelo do fluxo circular, pode-se inferir que
dado um aumento na produção, em geral, são necessárias mais pessoas para
produzir, maior investimento com o pagamento de salários e com isso há um
aumento do volume de renda em circulação. Com o aumento da renda, espera-se
que haja também um aumento na demanda por bens, uma vez que os indivíduos
dispõem de mais dinheiro para gastar, o que estimula, por sua vez, um novo
aumento na produção.
Os economistas do século XIX que quisessem estudar todo esse fluxo,
precisavam compilar informações dispersas de diferentes setores para entender o
que acontecia na economia como um todo (BLANCHARD, 2011). Foi apenas após a
Segunda Guerra Mundial que as contas de renda e produção nacional foram
agregadas em termos de produto agregado e passaram a ser medidos através do
PIB. Inúmeras definições desse indicador são encontradas na literatura econômica,
mas de modo geral elas partem de uma ótica da produção para isso. Blanchard
(2001), define PIB como a “soma dos valores adicionados na economia em um dado
período”, entendendo que o valor adicionado por uma empresa é “o valor de sua
produção menos o valor dos bens intermediários que ela utiliza na produção”.
27
Em termos matemáticos o PIB é calculado através da soma de consumo(𝑌)
, investimento , gastos do governo e da diferença entre exportações e(𝐶) (𝐼) (𝐺) (𝑋)
importações em dado período, segundo a equação 2.1.(𝐼𝑀)
(2.1)𝑌 = 𝐶 + 𝐼 + 𝐺 + 𝑋 − 𝐼𝑀
Na variável de consumo são contabilizados o volume total de bens e serviços
finais adquiridos pelos consumidores. O valor dessa variável é de longe o principal
componente do valor final de , estima-se que no Brasil ele represente 65% do valor𝑌
total do PIB nacional . Na variável de investimento são consideradas todas aquelas3
compras feitas por empresas ou por consumidores que envolvam os serviços que
esses bens irão possibilitar no futuro. São exemplos de investimento: a compra de
fatores de produção como máquinas e instalações ou a compra de uma moradia. Na
variável de gastos do governo são contabilizados todos os bens e serviços
adquiridos por todas as instâncias governamentais, que geralmente passam a ser
oferecidos à população de forma gratuita. Por fim, a diferença entre exportações e
importações representa a balança comercial do país e contribui para o aumento do
PIB à medida que o volume de produção exportado é maior que o volume de bens e
serviços que não se pode produzir internamente.
Dada a preponderância da variável de consumo para a medição do principal
indicador de crescimento econômico, vale aprofundar a definição da função de
consumo em si, que pode ser expressa em como uma função linear da renda(𝐶)
disponível como destacado na equação 2.2:(𝑌
𝐷
)
(2.2)𝐶 = 𝐶 (𝑌
𝐷
) = 𝑐
0
 + 𝑐
1
 (𝑌
𝐷
) = 𝑐
0
 + 𝑐
1
 (𝑌 − 𝑇) 
A interpretação dessa função revela que todo indivíduo consome pelo menos
um valor para suprir suas necessidades básicas, ainda que sua renda disponível 𝑐
0
seja nula. A partir do momento que esse indivíduo possui uma renda , a renda(𝑌)
3 Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/01/consumo-das-
familias-brasileiras-tem-queda-historica-de-125-no-2-tri.htm&sa=D&ust=1605365040757000&usg=AO
vVaw3NVqIdedxzifREuIXB5Vkh. Acesso em 7 nov. 2020.
28
disponível pode ser entendida como a renda menos os gastos com pagamento(𝑌
𝐷
)
de impostos ao governo . Além disso, a renda que determinado indivíduo dispõe(𝑇)
irá se subdividir entre consumo e poupança. Assim, o parâmetro é definido pela𝑐
1
propensão a consumir de um indivíduo, ou seja, qual o percentual da renda
disponível será utilizado para consumo. Analogamente, é definido como o(1 − 𝑐
1
)
percentual da renda destinado à poupança. Dessa forma, quanto maior a renda
disponível, maior o nível de consumo de uma sociedade.
Analisando a equação do PIB, por sua vez, observa-se que por mais que o
indicador busque medir os níveis de produção e oferta de bens e serviços, a
medição é feita sob a ótica da demanda considerando o consumo de indivíduos,
empresas e governo. Isso reflete uma das premissas econômicas utilizadas neste
modelo de que numa economia fechada em equilíbrio a produção é igual à4 (𝑌)
demanda . Além disso, há uma segunda premissa de que produção e renda são(𝑍)
idênticos, tanto que são expressos pela mesma variável (BLANCHARD, 2011).𝑌
Dessa forma, o crescimento econômico expresso pelo aumento do PIB, pode
ser entendido como a passagem de um estado de equilíbrio entre produção e
demanda (A, com renda Y) para um novo estado de equilíbrio A’ (com renda Y’’ > Y),
como mostra a Figura 2.
FIGURA 2 - EFEITOS DE UM AUMENTO NO GASTO SOBRE O PRODUTO
Fonte: Blanchard (2001, p.46)
4 Economia fechada é uma simplificação do modelo que considera que uma economia não
realiza trocas comerciais com outros países do mundo. Logo, a função do PIB assume X = IM = 0.
29
Essa passagem de um ponto de equilíbrio para outro inicia-se, segundo o
exemplo de Blanchard (2001), pelo aumento do consumo em 1 bilhão u.m. sem que
haja um aumento de renda, ou seja, através de um aumento de . Com isso, há um 𝑐
0
deslocamento da curva de demanda, passando do ponto A para o B. Dado esse
aumento da demanda, a indústria precisa aumentar sua produção para suprir essa
necessidade (ponto C). Com o aumento da produção, também verifica-se um
aumento de renda, e logo um aumento incremental da demanda devido ao
componente que desloca a economia para o ponto D. Esse ciclo de aumento𝑐
1
 (𝑌
𝐷
)
de demanda, produção e renda segue, até que o novo ponto de equilíbrio A’’ é
atingido.
Por mais que as três variáveis apresentem uma dependência circular entre si,
como será discutido com maior profundidade no próximo capítulo, historicamente
verificou-se que foi o aumento de produção que justificou um estímulo na demanda.
Isso porque a inserção de capacidade tecnológica nos processos produtivos
possibilitou um incremento produtivo ainda maior que a demanda disponível. Com
isso, houve um esforço para estimular essa demanda, seja através do estímulo
publicitário, seja através do aumento da renda a partir do acesso ao crédito.
2.3.2. O crescimento no longo prazo: a elaboração de teorias do
crescimento
A visão estática do crescimento econômico a partir do aumento de renda,
produção e demanda demonstrado pelo PIB não é suficiente para entender as
diferentes jornadas de crescimento da economia de diferentes países. Além disso,
sabe-se que os valores do PIB passam por diversas flutuações, nas quais um
aumento gera um otimismo e expansão da economia, enquanto quedas no PIB
geram um sentimento de pessimismo e recessão econômica. No entanto, quando
avaliamos no longo prazo, diferentes décadas, essas flutuações são amenizadas e
só se pode verificar uma tendência de crescimento única.
Enquanto a perspectiva no curto prazo foca em como criar a demanda
necessária para suportar o aumento da capacidade, o cerne das teorias de
30
crescimento é como estimular a oferta. Partindo da premissa da existência de uma
demanda estável que consiga absorver toda produção de uma economia, a questão
posta pelos teóricos do crescimento é justamente como aumentar a capacidade de
produção no longo prazo (SIMONSEN, 2009). Um dos primeiros modelos criados foi
o modelo independente de inspiração keynesiana de Harrod(1939) e Domar (1946).
Tal modelo, que focava na compreensão dos ciclos econômicos de crescimento,
também serviu como base para o surgimento do primeiro modelo de inspiração
neoclássica, o modelo de Solow (1957) que tinha como foco entender a diferença de
crescimento entre os países.
O modelo de Harrod-Domar parte da função de produção ( ) mostrada na𝑌
equação 2.3, na qual , , são constantes positivas, representa a taxa de𝑣 𝑎 𝑚 𝑔
crescimento populacional, representa o estoque de capital, representa a força𝐾 𝑁
de trabalho e, representa o tempo.𝑡
(2.3)𝑌 = 𝑚𝑖𝑛 {𝑣−1𝐾; 𝑎𝑁𝑒(𝑔 +𝑚)𝑡}
Essa função indica que a capacidade produtiva ou é limitada pelo estoque de
capital disponível, ou pela quantidade de mão de obra disponível. O modelo assume
uma premissa que em há um cenário de desemprego, ou seja, .𝑡
0
𝑎𝑁𝑒(𝑔 +𝑚)𝑡 > 𝑣−1𝐾
Logo, a função de produção será dada exclusivamente em termos de estoque de
capital disponível. Assim, um aumento incremental nos níveis de produção, neste
cenário, acarreta um aumento incremental nos estoques de capital:
(2.4)∂𝑌∂𝑡 =
1
𝑣 ·
∂𝐾
∂𝑡
O modelo assume ainda uma simplificação de que todo estoque de capital
não se deprecia, assim, todo o investimento ( ) realizado em uma economia gera(𝐾) 𝐼
um aumento incremental de . Sabendo que de toda renda disponível numa𝐾
sociedade, parte é direcionada para consumo e parte é direcionada para a
poupança, a variável de investimento pode ser definida pela taxa de poupança de
determinada sociedade ( ), através da equação:𝑠
31
(2.5)𝐼 = 𝑠𝑌
Ao substituirmos 2.5 em 2.4, a fórmula clássica de crescimento econômico do
modelo de Harrod-Domar é obtida. Nela, a taxa de crescimento ( ) é expressa∂𝑌∂𝑡 ·
1
𝑌
em termos da taxa de poupança de determinada sociedade e do custo de
capital-produto incremental ( ), ou seja, o capital necessário para gerar um aumento𝑣
de 1 unidade de produto incremental.
(2.6)∂𝑌∂𝑡 ·
1
𝑌 =
𝑠
𝑣
A partir da equação do modelo, entende-se que o crescimento é tanto maior
quanto maior for a taxa de poupança ou quanto menor for o custo de capital-produto
incremental em determinado país. Dessa forma, todos os esforços da engenharia
para o aumento da produtividade e concomitante redução dos custos, contribuem
para o crescimento econômico ao reduzir o custo de capital-produto incremental.
Assim como o aumento na taxa de poupança, seja do governo, das empresas ou da
sociedade em geral também contribuem para o crescimento.
No entanto, sob a ótica keynesiana, uma vez determinada a equação da taxa
de crescimento real (2.6), Harrod observou que para uma economia crescer à pleno
emprego era necessário que os fatores disponíveis de mão de obra e de estoque de
capital fossem equivalentes ( ). Para tanto, existe apenas uma taxa𝑎𝑁𝑒(𝑔 +𝑚)𝑡 = 𝑣−1𝐾
de crescimento que assegura que ambas parcelas sejam iguais, fato que o próprio
Harrod considerou uma coincidência altamente improvável (SIMONSEN, 2009).
Supondo que em os tomadores de decisão resolvessem investir o𝑡
−1
suficiente para gerar um crescimento em , mas a economia na verdade cresceu𝐺
𝑊
𝑡
0
à uma taxa . Se , os tomadores de decisão são induzidos a reduzir os𝐺
𝐴
𝐺
𝐴
 < 𝐺
𝑊
investimentos no período seguinte , provocando uma taxa de crescimento real𝑡
1
(𝐺
𝐴
)
ainda menor. Caso contrário, se , há um sentimento geral de otimismo por𝐺
𝐴
 > 𝐺
𝑊
parte dos investidores que decidem investir mais no período seguinte, contribuindo
32
para taxas reais de crescimento maiores. Essas oscilações constituem o que é
conhecido como “fio de navalha” de Harrod, no qual a economia capitalista alterna
sempre em ciclos econômicos de recessão e expansão, não havendo nenhum
mecanismo que garanta , e portanto, um cenário de crescimento à pleno𝐺
𝐴
 = 𝐺
𝑊
emprego.
Apesar de correntes econômicas distintas, o modelo de Harrod-Domar serviu
como base para os modelos neoclássicos de crescimento econômico de Solow
(1956 e 1957). A diferença entre os dois modelos é que em 1957, Solow incluiu o
progresso tecnológico na função de produção, como coeficiente amplificador da(𝐴)
capacidade da força de trabalho. Como o segundo modelo é mais completo e o
primeiro modelo acaba sendo um caso específico dele quando , optou-se por𝐴 = 1
descrever a seguir o modelo de crescimento de Solow com tecnologia.
No contexto pós Segunda Guerra Mundial, o modelo de Solow buscava
entender não só as diferentes taxas de crescimento entre países, mas
principalmente sustentar a ideia de que era possível um crescimento permanente e
estável no longo prazo, sem que houvesse a necessidade de uma intervenção
estatal na economia (SILVA, 2020). Assim, a função de produção de Solow é(𝑌)
uma função do tipo Cobb-Douglas que permite a substituição de capital pela(𝐾)
força de trabalho . Além disso, tal função também produz retornos constantes de(𝐿)
escala, isto é, com o aumento de qualquer um dos fatores , há um aumento(𝐾, 𝐴, 𝐿)
proporcional na produção, uma vez que é uma constante entre 0 e 1.𝑎
(2.7)𝑌 = 𝐾𝑎 (𝐴𝐿) 1−𝑎
O pressuposto de retornos constantes de escala implica que o tamanho da
economia (tendo como base o tamanho da força de trabalho) não afeta a relação
entre produção por trabalhador efetivo e capital por trabalhador efetivo(𝑦) (𝑘)
(MANKIW, 2015). Dessa forma, o modelo será desenvolvido a partir da função de
produto por trabalhador (Equação 2.8), obtida através da divisão da equação 2.7
pela unidade eficiente de trabalho .(𝐴𝐿)
33
(2.8)𝑦 = 𝑓(𝑘) = 𝑘𝑎
Além disso, no modelo de Solow, o capital incremental por trabalhador efetivo
leva em conta também a depreciação desse estoque de capital , a taxa de(∆𝑘) (𝑑)
crescimento da força de trabalho e a taxa de crescimento da tecnologia .(𝑛) (𝑔)
Tanto a depreciação dos equipamentos e ferramentas produtivas, quanto o aumento
da força de trabalho e da tecnologia acabam contribuindo para diminuir o estoque de
capital por trabalhador efetivo.
(2.9)∆𝑘 = 𝑠. ∆𝑦 − (𝑛 + 𝑔 + 𝑑)𝑘
A compreensão do modelo de Solow é facilitada pelo diagrama que isola
essas duas funções contidas na fórmula do capital incremental por trabalhador
efetivo . Nele, o autor defende, que toda economia tende a um estado(∆𝑘)
estacionário , que propicia uma taxa de crescimento estável. Assim, uma(∆𝑘 = 0)
economia que apresenta a curva de investimento maior que a curva de(𝑠. ∆𝑦)
depreciação , se encontra num processo de acumulação de capital( (𝑛 + 𝑔 + 𝑑)𝑘 )
por trabalhador efetivo que tende ao estado estacionário . Por outro lado, quando(𝑘*)
a curva de depreciação é maior que a curva de investimento quer dizer que não há
investimento suficiente para manter o estoque de capital já existente, logo a curva de
depreciação tende a retomar ao estado estacionário .(𝑘*)
34
FIGURA 3 - DIAGRAMA DE SOLOW COM PROGRESSO TECNOLÓGICO
Fonte: Jones (2000)
A partir do modelo da Figura 3, também podemos ampliar a análise para
entender as macro variáveis que não são dadas diretamente pela razão por
trabalhador efetivo. Por exemplo, a função de produção total da economia
equivalente a . Sabe-se que no estado estacionário, a quantidade𝑌 = 𝐾𝑎 (𝐴𝐿) 1−𝑎
de capital disponível não se altera. Logo, o crescimento econômico no estado
estacionário aumenta apenas conforme a taxa de progresso tecnológico ( que𝑔
influencia o valor de ) e a taxa de crescimento populacional ( que influencia o𝐴 𝑛
valor de ). Como existe um claro limitante no crescimento infinito da força de𝐿
trabalho, Mankiw (2008) conclui que no modelo de Solow, apenas o progresso
tecnológico consegue explicar o crescimento sustentável de dada economia no
longo prazo.
Dessa forma, o modelo de Solow é capaz de explicar por exemplo a diferença
de renda entre países ricos e pobres. De acordo com o modelo, países mais ricos
investem mais em tecnologia e tendem a ter menores taxas de crescimento
populacional, o que faz com que eles apresentem maiores níveis de capitalpor
trabalhador eficiente, logo seu estado estacionário atinge um nível de renda(𝑘*)
mais alto. Além disso, o modelo mostra que os países que apresentam altas taxas
de crescimento no longo prazo é porque investiram em avanço tecnológico e
qualificação da força de trabalho para sustentar tal crescimento (JONES, 2000).
Observando ambos modelos, o primeiro de Harrod-Domar consegue captar
que o crescimento econômico estável no longo prazo não consegue manter toda
força de trabalho ocupada no fluxo produtivo. De acordo com ele, o crescimento
35
econômico não só alterna ciclos de expansão e recessão econômica, como tende a
manter sempre uma parcela da população desempregada. Além disso, o modelo é
focado principalmente nas taxas de poupança, que geralmente é menor nos países
em desenvolvimento (seja pelas dívidas do governo ou por hábito da população).
Já o modelo de Solow, cumpre seu papel no contexto socioeconômico no qual
estava inserido de demonstrar que o crescimento econômico não só deveria como
poderia ser sustentado no longo prazo. Para isso, é necessário um investimento em
tecnologia que contribua para o aumento da eficiência da força de trabalho e um
maior crescimento da produção. Novamente, assim como discutido sobre as teorias
de desenvolvimento, um modelo de crescimento pautado na tecnologia e na
inovação é praticamente um modelo perdido para os países subdesenvolvidos.
Primeiro porque esses países tendem a importar tecnologias já consolidadas e
eventualmente obsoletas dos países desenvolvidos. Além disso, nem sempre
encontra-se mão de obra suficientemente qualificada para trabalhar com elas, o que
acaba sendo ineficiente no sentido de amplificar a produtividade da força de
trabalho. Somado às questões de qualificação da mão de obra, os países em
desenvolvimento estão em um estágio de transição demográfica no qual o
crescimento populacional ainda é acelerado, o que dificulta a acumulação de um
maior capital por trabalhador eficiente. Fazendo com que suas economias tendam a
um estágio estacionário de menor renda.(𝑘*)
36
3. O CAMINHO DO DECRESCIMENTO COMO PERSPECTIVA ALTERNATIVA
A ideia de decrescimento teve seu início na França por volta de 1972 quando
a palavra décroissance foi utilizada por André Gorz ao questionar o relatório “Os
Limites do Crescimento”, duvidando que a manutenção do equilíbrio do planeta era
compatível com o sistema capitalista. Esse início das ideias sobre decrescimento
coincide com o período da crise do petróleo e com o período de recessão econômica
dos países europeus, que logo encontraram saída nas propostas neoliberais
(KALLIS; DEMARIA; D'ALISA, 2015).
A partir do final dos anos 1990, o decrescimento rompe as fronteiras
francesas e passa a ganhar força também na Itália e na Espanha. Surge uma nova
onda de discussões sobre o tema, agora movidas principalmente por uma crítica à
noção dominante de “desenvolvimento sustentável” (KALLIS; DEMARIA; D'ALISA,
2015). Isso porque o desenvolvimento sustentável tal como defendido na atualidade
é um mito, já que tem a pretensão de ser ecológico, mas segue tendo como base a
premissa de desenvolvimento a partir de um forte crescimento econômico
(LATOUCHE, 2010).
O contexto das propostas do decrescimento está intimamente ligado a uma
percepção da insustentabilidade ambiental do desenvolvimento econômico
catalisado pelo crescimento econômico devido à finitude dos recursos naturais do
planeta. Somado a isso, há uma crítica cultural de que a sociedade de crescimento
provoca uma “destrucción antropológica de los seres humanos transformados en
animales productores y consumidores” (CASTORIADIS, 2005 apud LATOUCHE,
2010). Essa crítica reforça o papel do ser humano na sociedade de consumo que é
movimentar a economia através do exercício da sua função de consumidor. Dessa
forma, para os teóricos do decrescimento, a causa dessas questões socioambientais
reside nas próprias premissas que baseiam a economia capitalista.
Assim, Latouche (2009) apresenta o decrescimento como um slogan político,
cujo principal objetivo é enfatizar o abandono do crescimento pelo crescimento, que
na realidade tem como único motor a busca pelo lucro daqueles que já detêm
capital. O autor ainda ratifica que seu objetivo não é preconizar o decrescimento
pelo decrescimento, nem tampouco defender decrescimento como sinônimo de
37
crescimento negativo. Afinal, isso provocaria um caos numa sociedade orientada ao
crescimento, por meio do aumento das incertezas, das taxas de desemprego e de
uma piora na qualidade de vida.
É preciso salientar que o decrescimento é um caminho alternativo pensado e
escolhido em prol de uma sociedade centrada na pessoa humana. Obviamente,
essa mudança acarretará uma retração do valor do PIB, mas isso já não é de suma
relevância uma vez que esse indicador de crescimento não é mais um objetivo a ser
perseguido, e sim objetivos como bem-estar, sustentabilidade ambiental e justiça
social (CUVILLIER, 2018). Ao romper com a sociedade de crescimento, Latouche
(2010) reafirma que isso não é buscar um crescimento alternativo ou uma economia
alternativa, mas sim sair da economia e de seus fetiches conceituais de progresso,
crescimento e desenvolvimento.
Isso implica romper também com esses conceitos no imaginário coletivo, sair
da crença no Homo economicus e pensar os seres humanos como algo mais que
apenas um ser racional e calculista (LATOUCHE, 2010). É preciso acreditar que a
construção de um novo mundo é possível, no qual existam outras razões para a vida
humana além de exercer seu personagem de consumidor e contribuir para a mera
expansão da produção e do consumo (LATOUCHE, 2011 apud CUVILLIER, 2018).
No entanto, é difícil imaginar a viabilidade desse discurso numa sociedade de
crescimento. Por isso, para a aplicação do slogan do decrescimento é necessário
conceber também uma sociedade de decrescimento que tenha como base outras
premissas não economicistas.
A seguir, a crítica do decrescimento é segmentada entre uma crítica à
economia de crescimento hegemônica e uma crítica aos padrões socioambientais da
sociedade de consumo. Para isso, serão abordados conceitos-chave como
produtivismo, consumismo e níveis de trabalho. Além da própria sociedade de
consumo e seus propulsores: a publicidade, o crédito e a obsolescência
programada. Por fim, busca-se apresentar os caminhos teóricos propostos para a
construção dessa nova sociedade de decrescimento.
38
3.1. Crítica Econômica do Decrescimento
A crítica econômica do decrescimento concentra o principal ponto de
discordância no foco do crescimento ilimitado. Entretanto, o aspecto econômico é
prontamente apontado como causa da insatisfação socioambiental e rechaçado
enquanto alternativa, uma vez que a proposta é de uma saída da economia. Dessa
forma, observa-se em Latouche (2009, 2010) que não há tanto esforço em esgotar
uma crítica econômica, mas sim em reafirmar as insatisfações socioambientais.
Visando embasar tal relação de causa e consequência entre as insatisfações
socioambientais e a economia, Rist (2012) apresenta cinco argumentos
fundamentais. O primeiro diz respeito à crença de que a economia inclui
absolutamente tudo, quando na verdade a lista de excluídos contempla tudo aquilo
que é gratuito, todas as trocas baseadas em vínculos sociais, a destruição da
camada de ozônio, perda da biodiversidade e inclusive exclusão social. Se
considerarmos o cálculo do PIB, é interessante observar que a poluição ambiental
contribui duas vezes para o crescimento do indicador: tanto pelo faturamento de
empresas que negligenciam as leis ambientais, como pelo faturamento daquelas
cuja atividade fim é amenizar o dano ambiental causado pela primeira (BREGMAN,
2018). Em contrapartida, uma floresta com séculos de existência só é contabilizada
a partir do momento em que é vendida como madeira e lenha, por exemplo (COBB;
HALSTEAD; ROWE, 1995 apud BREGMAN, 2018).
O segundo diz respeito à visão reducionistado Homo Economicus, que não
apresenta diferenças socioculturais e que pode adotar atitudes egoístas a fim de
maximizar constantemente seu próprio bem-estar. Frente ao caos socioambiental da
sociedade de crescimento, esse argumento mais que criticar a tradicional indiferença
a tais questões pela economia tradicional, ele reforça a ideia de que o ser humano
tem potencial para agir de uma maneira distinta, mais generosa, empática e
emocional.
O terceiro mostra como a teoria neoclássica inverteu totalmente a noção de
“utilidade” que os indivíduos buscam maximizar na visão economicista. Outrora “útil”
era tido como antônimo daquilo que é fútil ou supérfluo. Agora, “útil” é tudo aquilo
que pode ser desejável e que alguma pessoa está disposta a pagar pelo seu preço.
39
Logo, o que o Homo Economicus busca maximizar não é de fato sua função de
utilidade, mas sim seu poder de compra.
O quarto critica o fato da economia funcionar como um sistema fechado,
como visto anteriormente no diagrama do fluxo circular. Dessa forma, esse sistema
ignora o recebimento de recursos naturais como insumos a serem degradados no
processo produtivo, da mesma forma que ignora os resíduos gerados em forma de
lixo e poluição por esse fluxo produtivo. Por fim, o quinto argumento critica o fato da
economia reduzir todos os bens a um equivalente monetário, colocando num mesmo
patamar tanto bens renováveis quanto não renováveis.
Além desses pontos, outro aspecto que frequentemente aparece nas críticas
econômicas é uma crítica ao modelo de desenvolvimento econômico, pautada
principalmente no fracasso que esse projeto teve nos países do Terceiro Mundo.
Segundo Cuvillier (2018), nos países em desenvolvimento, “‘crescer tem um sentido
mítico civilizatório’ e é difícil propor outro caminho a não ser o do crescimento para
visar a evolução”. Observando o caso do Brasil, por exemplo, independente das
orientações políticas dos governantes, foram defendidas sempre políticas
desenvolvimentistas pautadas no crescimento e amparadas pelo lema positivista
nacional de Ordem e Progresso (CUVILLIER, 2018).
No entanto, por mais incorporado que esse conceito esteja nas sociedades
dos países em desenvolvimento, ele não é posto como um entrave eterno que
inviabilize a aplicabilidade das pautas do decrescimento nesses países. Isso porque
o decrescimento, conforme aponta Latouche (2010), não é uma alternativa em si,
mas sim um leque de alternativas uma vez que essas devem ser condizentes com a
realidade social, política, cultural e ambiental, respeitando a autonomia de cada país.
3.1.1. Crítica aos Níveis de Consumo
A crítica do decrescimento ao consumismo é preponderantemente
socioambiental. No âmbito econômico, a principal crítica reside no fato da economia
hegemônica se sustentar a partir de um ciclo de consumo e descarte cada vez mais
acelerado, justificado sob os ideais de crescimento econômico em prol de um
bem-estar social que nem sempre é observado na prática. Com isso, a crítica aos
40
níveis de consumo figura como uma alternativa para frear esse avanço econômico e
iniciar um processo de saída da economia rumo à construção de uma nova
sociedade.
À medida que a economia cresce, o volume de circulação de riquezas
aumenta, a sociedade se torna mais rica, podendo haver um aumento dos níveis de
consumo. Desde o ponto de vista do indivíduo, a cultura de consumo faz com que a
satisfação de desejos não seja plenamente atendida no momento da compra,
mantendo assim o ciclo de consumo em pleno funcionamento e uma sociedade
permanentemente insatisfeita e frustrada. Dessa forma, o crescimento da economia
pode até contribuir para um aumento na qualidade de vida no curto prazo, mas não
sustenta um aumento do bem-estar dos indivíduos no longo prazo. Frequentemente,
o que se observa é a expansão econômica mercantilizando cada vez mais espaços
da vida privada, degradando as relações interpessoais e acarretando em
consequências negativas para o bem-estar dos indivíduos enquanto seres sociais
(D’ALISA; DERIU; DEMARIA, 2018).
Assim, os impactos econômicos dessa proposta de redução do consumo no
curto prazo implicam numa diminuição do PIB, o que para uma sociedade de
consumo é sinônimo de períodos de pessimismo por parte dos investidores, de
recessão econômica, aumento do desemprego e diminuição da renda média social.
Tal efeito primário, sob a perspectiva do decrescimento não é tão grave, uma vez
que o decrescimento pressupõe uma sociedade na qual o crescimento econômico
não é um objetivo a ser perseguido. Além disso, o excesso de renda por parte da
população também é considerado como algo negativo, pois atua como um reforço
positivo dos ciclos de consumo, já que assumindo uma taxa de poupança constante,
com mais renda disponível, as pessoas compram mais.
Já no longo prazo, analisando apenas a consistência da proposta sob a ótica
dos modelos de crescimento, caso a renda disponível e tudo mais se mantivesse
constante, uma redução do consumo significaria um aumento das taxas de
poupança e consequentemente das taxas de crescimento. Entretanto, como
discutido acima, uma redução nos níveis de consumo não apresenta efeitos
isolados, logo o mais provável é que ocorra uma redução da renda média de
imediato. Dessa forma, entende-se que uma redução inicial nos níveis de consumo,
41
reduziria a riqueza disponível na sociedade, configurando assim um reforço negativo
para o início de novos ciclos de consumo e descarte, conforme o objetivo do
decrescimento.
3.1.2. Crítica aos Níveis de Produção
Numa sociedade na qual o lucro está acima de qualquer coisa, é frequente
ouvir a máxima de que “tempo é dinheiro”. Quando levada ao contexto empresarial,
isso implica numa busca incessante pela produtividade não só dos funcionários, mas
também dos processos como um todo. Tal pensamento, sob a perspectiva da gestão
empresarial, remonta principalmente aos estudos da Administração Científica de
Taylor, na década de 1910.
Neles, Taylor (1995) buscava encontrar o melhor método para realizar
determinada tarefa através da aplicação de método científico. O funcionário mais
eficiente era selecionado, e posteriormente treinado para realizar a tarefa no menor
tempo possível, com a menor taxa de erro. Com isso, Taylor (1995) acreditava ser
possível reduzir as ineficiências do processo produtivo e obter mais resultados que o
sistema tradicional de iniciativa e incentivos individuais.
Atualmente, ainda se observa nas práticas de gestão dos mais diferentes
tipos de empresas a busca constante pelo aumento da produtividade, ou seja,
produzir mais utilizando os mesmos recursos. Tal busca por ser o funcionário mais
produtivo pode fomentar um clima competitivo dentro das organizações, que é um
valor conflitante com a proposta colaborativa do decrescimento. Mais que isso, numa
perspectiva individual, essa perseguição pela produtividade acaba sendo
extrapolada para a vida pessoal, na qual a pessoa quer ser produtiva durante todo o
seu tempo. Com isso, é possível observar cada vez mais o aumento dos mercados
fast: fast fashion, fast food e fast furniture, etc. totalmente compatíveis com o estilo
de vida produtivista do mundo moderno, mas ambientalmente incompatíveis com
uma sociedade de decrescimento e com a capacidade do planeta.
Já numa perspectiva social, a perseguição produtivista sob uma lógica de
maximização do lucro contribui também para: longas jornadas de trabalho não
remuneradas, más condições de trabalho e inclusive um desgaste psicológico dos
42
trabalhadores que são cobrados para atingir metas inalcançáveis. Isso sem
mencionar que ainda hoje muitas pessoas ainda são remuneradas segundo uma
lógica baseada na produtividade, fomentando ainda mais a competição entre
funcionários e contribuindo para um desgaste psicológico de cada um.
Sob a lógica da economia capitalista, pensar numa redução do volume de
produção seria o equivalente a pensar numa redução também de receita e
demissões emmassa, para que as empresas conseguissem manter financeiramente
suas margens. Com mais pessoas desempregadas, a renda média disponível na
sociedade também diminuiria. Por outro lado, é importante destacar que mesmo no
contexto capitalista, a busca contínua por produtividade contribui também para uma
prática recorrente de incorporação de tecnologia nos processos produtivos. Por mais
que o modelo de crescimento de Solow aponte a tecnologia como fator que sustenta
o crescimento no longo prazo, muitas vezes o que se observa, no curto prazo, é que
o ganho produtivo decorrente da incorporação tecnológica é tanto que acaba por
substituir alguns postos de trabalho, aumentando as taxas de desemprego
estrutural.
No entanto, a crítica do decrescimento não se estende de maneira irrestrita a
todo tipo de tecnologia como fonte de produtividade. Seu enfoque é maior no
monopólio tecnológico dos países desenvolvidos, que exportam suas tecnologias
como produtos sem adaptá-las às realidades regionais, e também na
retroalimentação do sistema tecnológico, cujos avanços têm como propósito seu
próprio benefício (D’ALISA; KALLIS, 2018). Como exemplo do segundo ponto
pode-se citar o avanço tecnológico entre dois modelos de celulares consecutivos,
em geral, não tem como objetivo primário melhorar a experiência do usuário, mas
sim justificar um aumento no preço para maximizar a receita da empresa. Além
disso, os teóricos do decrescimento ao tecer críticas sobre as tecnologias fazem
uma nítida distinção entre aquelas baseadas em matrizes renováveis versus aquelas
baseadas em matrizes fósseis que são as mais criticadas por todo impacto nocivo
ao meio ambiente.
Observando a proposta de redução da produção no curto prazo, é possível
analisar, a partir do gráfico da Figura 4, os impactos sob a ótica da economia
tradicional. Uma redução da produção graficamente seria uma migração ao longo da
43
reta Y no sentido de um estado A’ (maior renda) para um estado A (menor renda). A
economia tradicional assumiria como premissa que a demanda se mantém
constante ao longo da reta ZZ’. Logo, essa escassez de oferta no estado de menor
renda poderia tanto justificar um novo aumento de produção ou até a entrada de
novos competidores no segmento de mercado para suprir essa demanda ociosa. No
entanto, como o decrescimento pressupõe também uma redução da curva de
demanda, a partir da redução do consumo, é provável que a economia tenda a se
manter estável no ponto A.
FIGURA 4 - EFEITOS DA REDUÇÃO DA PRODUÇÃO SOBRE O PRODUTO
Fonte: Elaboração própria
Como discutido na seção 3.1.1, essa redução de renda, do ponto de vista da
sociedade de decrescimento, não é tida como algo ruim. Primeiro, porque o
decrescimento enxerga o excesso de renda como algo negativo, já que incentiva
novos ciclos de consumo. Não só isso, como a má distribuição de renda também é
vista como um fator que contribui para a desigualdade social. Por isso, para o
decrescimento é preferível uma sociedade com menor renda, porém melhor
distribuída, a uma sociedade com uma alta renda limitada apenas a um grupo.
Além disso, sabe-se que o dinheiro até certo ponto é capaz de trazer
felicidade para o indivíduo, mas depois da renda necessária para satisfazer as
necessidades materiais básicas, uma renda extra não contribui para a melhoria no
bem-estar (KALLIS; DEMARIA; D'ALISA, 2018). Para alguns autores, no entanto, é
44
responsabilidade governamental garantir que toda pessoa tenha acesso ao que eles
chamam de renda básica. Tal proposta de projeto será melhor abordada na seção
3.1.3 quando os efeitos decorrentes do desemprego forem explorados.
Dessa forma, a crítica do decrescimento ao produtivismo não é apenas uma
crítica ao seu efeito primário de aumento da produção como desencadeador dos
ciclos de consumo, mas principalmente à incompatibilidade socioambiental desse
estilo de vida numa sociedade de decrescimento. Nela, espera-se uma escala de
produção que seja primordialmente local, suprindo as demandas num escopo
reduzido, e que a busca por produtividade seja uma busca por melhorar as
condições de trabalho e por construir uma lógica de produção ambientalmente
sustentável.
3.1.3. Crítica aos Níveis de Trabalho
A venda da força de trabalho dos indivíduos para as empresas ainda é a
principal fonte de obtenção de riqueza por parte desses indivíduos. Tal riqueza é o
que permite um trabalhador exercer seu papel de consumidor na sociedade de
consumo. Esse fluxo de circulação de riqueza é bem descrito a partir do ponto de
vista do indivíduo por Cacciari (2006 apud LATOUCHE, 2009) quando ele afirma que
“A vida do trabalhador geralmente se reduz à vida de um “biodigestor que
metaboliza o salário com as mercadorias, transitando da fábrica para o
hipermercado e do hipermercado para a fábrica”.
Nitidamente, o cenário da fábrica pode ser substituído por todo tipo de
escritório ou serviço e o hipermercado pode ser substituído pelos shoppings centers
e até mesmo pelos e-commerces. De toda forma, independente do cenário, como
todo o entorno cultural da sociedade de consumo defende que o indivíduo deve
exercer seu papel de consumidor, este por sua vez passa a buscar a maximização
de seus insumos. Assim, é recorrente encontrar indivíduos que trabalhem mais do
que as horas contratadas em busca de aumentar seus salários através da
remuneração variável de horas extras, ou ainda para demonstrar aptidão para
pleitear um aumento definitivo de salário.
45
Analisando a proposta do decrescimento de redução dos níveis de produção
e consumo sob a ótica do fluxo circular da economia, percebe-se que também será
necessária uma redução do trabalho. Para Latouche (2009), essa redução deve ser
feita em termos de jornada de trabalho com a adoção de pisos salariais mínimos.
Por exemplo, uma fábrica que necessitava de 1.000 horas de trabalho semanais
para atender a um nível de produção consumista, agora necessita apenas de 500
horas. Nesse caso, o defendido por Latouche (2009) é que haja também uma
redução de 50% na jornada de trabalho e que o salário se mantenha ou diminua
sem que atinja um valor abaixo de um mínimo digno para sobrevivência na
sociedade.
Os defensores do decrescimento também tendem a apoiar essa redução da
jornada de trabalho pelos seus benefícios socioambientais. Países que possuem
jornadas de trabalho mais curtas, têm menor pegada ecológica e menores níveis de
emissão de carbono (SCHOR, 2018). Além disso, com mais tempo livre, os
indivíduos podem optar por estilos de vida mais sustentáveis, o que geralmente
abrange atividades que demandam mais tempo. Tomando como exemplo o caso dos
meios de transporte, quanto mais rápido se vai de um lugar a outro, maior é o
consumo de carbono. Dessa forma, os defensores do decrescimento também
acreditam que tais mudanças no estilo de vida serão capazes de retroalimentar o
sistema econômico com novas formas de consumo mais sustentáveis e novos
modelos de produção.
É comum que pelo menos dois obstáculos se apresentem a tal proposta. O
primeiro é a disposição dos empresários em minimizar seus lucros uma vez que se
venderá o mesmo, se produzirá menos e os custos fixos com salários serão
mantidos. Decorrente disso, espera-se que haja um aumento no desemprego, fora
uma dificuldade de absorção da mão de obra que já está desempregada, devido a
uma menor disponibilidade de postos de trabalho e à baixa probabilidade de
surgirem novos postos.
Quanto à boa vontade dos empresários em diminuir suas margens, o
decrescimento se apoia no seu próprio pressuposto de descolonizar o imaginário
social. Assim, espera-se que o decrescimento se desenvolva numa sociedade
anti-utilitarista, cujos benefícios são calculados no longo prazo e não consideram
46
apenas aspectos monetários (KALLIS; DEMARIA; D'ALISA, 2018). Nessa
sociedade, o objetivo de toda corporação não seria a maximização do lucro de um
grupo de pessoas, mas sim cumprir uma função social através da oferta de seusprodutos ou serviços.
Quanto ao aumento do desemprego, defende-se antes de mais nada que a
transição até o decrescimento acontecerá de maneira planejada e poderá contar
com apoio estatal durante esse período. Tal apoio poderia se concretizar através de
um projeto de garantia de empregos ou através de um projeto de renda básica e
renda máxima (KALLIS; DEMARIA; D'ALISA, 2018).
O projeto de garantia de empregos é uma ideia conhecida desde a década de
30, que defende o papel do governo de assegurar um posto de trabalho para toda
pessoa que esteja buscando emprego (UNTI, 2018). Diferente do discurso capitalista
tradicional, aqui os empregos não dependeriam da demanda, uma vez que o foco
dos empregos seria em setores que servem à população como educação, saúde
preventiva ou proteção ambiental, por exemplo. Além disso, acredita-se que uma
política de garantia de empregos poderia melhorar também as condições laborais
dos postos de trabalho privados. Considerando que os trabalhadores da rede
privada terão a sempre a possibilidade de escolher entrar para um programa de
garantia de empregos do governo, os empresários seriam obrigados a oferecer
condições de trabalho e salário iguais ou melhores que as do programa (WRAT,
2012 apud UNTI, 2018).
O projeto de rendas básica e máxima, por sua vez, consiste na garantia de
que o Estado daria permanentemente uma renda básica a todos os indivíduos para
que vivam de maneira digna e com segurança econômica. Dessa forma, as pessoas
não precisariam submeter-se a postos de trabalho degradantes apenas para adquirir
um salário de sobrevivência. Uma vez satisfeitas as necessidades básicas do
indivíduo, sabe-se que qualquer renda extra não contribui para o aumento do
bem-estar e da felicidade, mas sim para o aumento do consumo e do desperdício
(ALEXANDER, 2018). Dessa forma, os indivíduos que tivessem renda superior ao
teto de renda máxima, deveriam pagar integralmente a diferença em forma de
impostos, que poderiam auxiliar no financiamento dos pagamentos da renda básica
pelo Estado. Os defensores do decrescimento levantam a questão de se o Estado
47
conseguiria bancar financeiramente toda essa operação, mas Alexander (2018)
defende primeiro que qualquer outro benefício social deveria ser interrompido e
também que este seria um propósito útil e necessário pelo qual o Estado deveria
emitir mais dinheiro.
Em suma, apesar do decrescimento apontar um caminho de olhar a economia
e a sociedade como um todo em escala local, como será melhor descrito na seção
3.3, os teóricos reconhecem que num estágio de transição, é necessário um maior
apoio estatal. Apesar desse apoio ser tão melhor quanto mais local seja sua esfera
política com poder de decisão, é necessário que haja uma regulação macro. Por
exemplo, no caso de uma proposta de renda básica, se uma comunidade tiver uma
renda básica diferente da outra, pode haver uma migração para as regiões de maior
renda.
Provavelmente, um decrescentista criticaria tal afirmação alegando que na
sociedade de decrescimento, a busca pelo dinheiro não seria um valor prioritário,
mas sim o reforço dos laços sociais comunitários. No entanto, não se imagina que
tal recolonização do imaginário coletivo ocorrerá de maneira tão rápida, o que requer
que premissas como essa do Homo Economicus que vai buscar maximizar seus
insumos sigam sendo consideradas durante o período de transição.
Por fim, há de se ressaltar ainda o efeito socioeconômico desse tempo livre
decorrente da redução da jornada de trabalho sobre a sociedade. Segundo Mothé
(1997 apud LATOUCHE, 2009), numa economia capitalista, tradicionalmente, o
tempo pode ser livre para o trabalhador assalariado, mas pode não estar livre da
economia, sendo assim empregado em outra atividade mercantil. Numa sociedade
de decrescimento é preciso que esse tempo seja um “tempo qualitativo, [...] que
cultiva a lentidão e a contemplação” (LATOUCHE, 2009) no qual atividades de ócio,
lazer, pensamento e trocas sociais sejam valorizadas. Economicamente, esse tempo
livre trará mais espaço para atividades econômicas autogeridas, colaborativas, de
ajuda mútua e inclusive de produção para uso do próprio indivíduo (GORZ, 1991
apud LATOUCHE, 2009). Essa mudança, numa sociedade de decrescimento na qual
a medida de riqueza não deve ser monetária, acaba por complementar o fluxo de
riqueza da economia tradicional.
48
3.2. Crítica Socioambiental do Decrescimento
Como discutido anteriormente, por mais que o próprio termo “decrescimento”
ressalte a contraposição com o modelo de crescimento econômico que sustenta o
sistema capitalista, sua teoria se origina da premissa de que manter os padrões de
vida da sociedade de consumo característica desse sistema é inviável não só em
termos ambientais como também em termos sociais. Latouche (2010) é enfático ao
afirmar que “o final previsível da sociedade de consumo é o final da história e da
aventura humana”, ressaltando também que a sobrevivência dessa sociedade é
limitada pela finitude dos recursos naturais do planeta.
A seguir serão apresentados o conceito e o processo de formação da cultura
do consumo, bem como os três pilares apresentados pelos teóricos do
decrescimento como mantenedores do ciclo econômico da sociedade de consumo
funcionando. No entanto, vale ressaltar que apesar da separação conceitual didática
para fins deste trabalho, tanto a publicidade, quanto o acesso ao crédito e a
obsolescência programada também são componentes importantes que contribuíram
e contribuem para a consolidação da cultura do consumo nessas sociedades.
3.2.1. Cultura do Consumo
A cultura do consumo ao longo da história se confunde com a própria cultura
capitalista. Ela surge com o objetivo de fomentar na sociedade um estilo de vida que
consiga absorver os crescentes excedentes produtivos do setor industrial. Para isso,
ela se baseia em dois objetivos-chave: criar no inconsciente coletivo o conceito do
indivíduo consumidor, bem como supervalorizar a utilidade dos objetos de modo a
atender aos interesses do mercado. Segundo Fontenelle (2017), o processo de
formação desse modo de vida tem suas raízes em dois marcos históricos do século
XVIII: a 1ª Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
A 1ª Revolução Industrial foi a responsável por uma substantiva mudança nos
modos de produção da sociedade inglesa da época. A manufatura deu lugar a um
modelo de produção que inseriu as máquinas nos processos produtivos,
especialmente da indústria têxtil, propiciando um aumento significativo na
49
capacidade produtiva da época. Por outro lado, a Revolução Francesa foi uma das
principais revoluções sociopolíticas da modernidade, que se caracterizou pelos seus
ideais liberais e pela consolidação da burguesia como classe dominante ao final do
processo.
Num primeiro momento, pós-Revolução Industrial, esse incremento na
capacidade produtiva das fábricas excedia a demanda da sociedade por produtos
ordinários. Logo, era necessário uma sociedade com padrões de consumo acima da
média, que na época seria equivalente aos padrões da própria classe burguesa. Isso
não significa, no entanto, que o intuito era apenas vender para a classe média, mas
sim criar um imaginário coletivo de que aquele era o estilo de vida correto a ser
seguido por todas as pessoas.
Ainda nesse período de antecedentes da cultura do consumo, em 1852, surge
em Paris a primeira loja de departamento do mundo, a Bon Marchè. Esse modelo de
loja se caracteriza pela oferta de distintas categorias de produtos em um mesmo
espaço, a um preço competitivo, lucrando principalmente através do volume de
produtos vendidos. Dessa forma, o objetivo dessas lojas é ter um giro rápido de
estoque para escoar o excedente produtivo das fábricas, além de estimular o
consumo em massa, principalmente de classes mais baixas. Já nesta época, as
lojas adotavam uma técnica de expor os produtos nas vitrines, de modo que os
objetos sempre apareciam associados a um estilo devida da classe burguesa.
Colaborando, assim, para desenvolver no imaginário popular de que o estilo de vida
burguês poderia ser acessível a todos.
Apesar da dificuldade de traçar limites temporais para processos de profunda
transformação cultural, Fontenelle (2017) propõe duas fases para se entender a
formação dessa cultura do consumo: a Fase Inicial — entre as últimas duas décadas
do século XIX e quase a metade do século XX — e a Fase de Consolidação — a
partir da Segunda Guerra Mundial até a década de 90.
A Fase Inicial coincide com o período histórico da 2ª Revolução Industrial, no
qual o avanço tecnológico foi simbolizado principalmente pela inserção das
máquinas movidas à combustão em diferentes processos produtivos. Isso permitiu
não só um ganho de escala produtiva frente à 1ª Revolução Industrial, como também
o desenvolvimento de setores variados da indústria, desde a petroquímica até a
50
automobilística. Além do avanço tecnológico, essa fase ainda é marcada pela
consolidação dos mercados nacionais substituindo os pequenos mercados, pelo
surgimento do marketing como disciplina no campo acadêmico e pela criação do
“crédito ao consumidor”, presenciado pela primeira vez na sociedade estadunidense
(FONTENELLE, 2017). Esses fatores, segundo Lipovetsky (2007), contribuíram para
consolidar o processo de “democratização do acesso aos bens mercantis” para as
grandes massas.
Durante esse período, os Estados Unidos conquistaram um grande avanço
tecnológico e aumento de capacidade produtiva não só das suas fábricas como
também do setor agrícola. Com isso, no período após a Primeira Guerra Mundial,
eles foram o principal fornecedor de mercadorias para a Europa, consolidando-se
como uma grande potência da época. Mais que as mercadorias, os Estados Unidos
também exportaram seu estilo de vida característico, o American Way of Life, no
qual o consumo era sinônimo de felicidade e prosperidade. É importante frisar, no
entanto, que por essa cultura do consumo ainda não estar consolidada na
sociedade, os níveis de consumo não foram suficientes para suprir a superprodução
industrial, culminando na primeira grande crise do capitalismo, em 1929.
Já a Fase de Consolidação coincide em parte com o período da Era de Ouro
do capitalismo, caracterizado principalmente pela produção em massa, elevação dos
níveis de consumo e das taxas de emprego, além de maior intervenção estatal na
economia. Ela consolida os objetivos iniciais da cultura do consumo que são a
construção do conceito do consumidor moderno e a subjetivação dos objetos que
devem atender aos anseios do mercado consumidor. Mais que isso, é nesta fase
que o acesso ao crédito é difundido em grande escala e que o marketing se
consolida não só em termos de propaganda, mas de pesquisas de mercado
baseadas em conceitos comportamentais e também de agências de tendência de
consumo. É também nesta fase que, segundo Lipovetsky (2007), “começam a vir à
luz políticas de diversificação dos produtos bem como processos visando reduzir o
tempo de vida das mercadorias”, isto é, o conceito de obsolescência.
Nessa época, observou-se pelo lado da produção um aumento expressivo da
oferta de produtos similares. Além disso, em sociedades de consumo mais
consolidadas como a dos Estados Unidos, a maior parte dos consumidores já tinha
51
suas necessidades de status e padrão de vida atendidas. Dessa forma, os
produtores precisavam se diferenciar frente seus concorrentes, bem como criar
novas necessidades nos consumidores já “satisfeitos”. Assim, essa fase se
caracterizou não só pelos padrões de consumo e pela produtividade, mas
principalmente pelo desenvolvimento das identidades das marcas através do
branding, assim como pelo avanço dos anúncios publicitários em termos de
compreensão da psique humana.
Com isso, essa segunda fase pode ser caracterizada como a era das
imagens tanto para o consumo em si, quanto para incentivar o consumo de outras
mercadorias (FONTENELLE, 2017). Um dos reflexos disso está na pop art,
movimento artístico que atingiu seu ápice nos Estados Unidos na década de 60,
transformando mercadorias comuns em obras de arte. Nas obras de Andy Warhol, o
principal nome no movimento, podem ser observados padrões de repetição de
diferentes mercadorias, fazendo uma referência aos fluxos de produção em série e
ao consumo de massa.
Ao longo desse processo de formação e consolidação, o foco primordial da
cultura do consumo foi criar uma atmosfera na qual os indivíduos seriam os
responsáveis por absorver o excedente da produção industrial. Se isso, num
primeiro momento, foi feito atendendo às necessidades individuais, em um momento
posterior, foi necessário despertar os desejos e aspirações desses indivíduos, além
de instigá-los a querer repetir tais sensações de maneira frequente. Para Campbell
(2006), o consumo já não é apenas sobre a satisfação de necessidades e desejos,
mas sim um processo no qual a atividade de compra tornou-se um meio para que as
pessoas descubram quem elas são, fornecendo a elas uma espécie de
comprovação da sua própria existência. O papel social desse indivíduo não é
reforçado apenas pelo ato de comprar em si, mas também pelo que esse indivíduo
consome, caracterizando a supervalorização dos produtos nessa sociedade de
consumo.
52
3.2.2. Mantenedores da Sociedade de Consumo
Sabe-se que a sociedade de consumo segue uma lógica de estimular a
demanda para que essa se iguale ao aumento da oferta decorrente dos avanços em
termos de produtividade. Segundo Latouche (2012), são três os pilares de
manutenção dessa sociedade: a publicidade, o acesso ao crédito e a obsolescência
dos produtos. A seguir, será apresentado como cada um atua de maneira a reforçar
positivamente um ponto estrutural da cultura dessa sociedade.
A publicidade se baseia na compreensão da mente humana para fomentar os
desejos, desencadeando novos ciclos de compra. O crédito, por sua vez, é uma
forma de diminuir a energia de ativação dos ciclos de compra, já que a satisfação de
necessidades propiciada pela compra não precisa mais ser adiada. E a
obsolescência, muitas vezes já propositalmente programada, atua como catalisadora
no ciclo de “compre, desfrute e jogue fora”, uma vez que prolongar a vida útil de
determinado produto é mais custoso que comprar um novo.
3.2.2.1. A publicidade
Televisão, rádio, outdoor, panfleto, internet. É difícil imaginar um mundo
atualmente sem a influência da publicidade em suas mais variadas formas. Para
Kotler (2012), a publicidade pode ser entendida como uma maneira efetiva de
transmitir mensagens com o objetivo de criar uma predileção nos consumidores por
determinada marca. Além disso, é preciso salientar que a publicidade é apenas uma
das diversas ferramentas que viabilizam uma estratégia de marketing, que foi
definido de maneira mais ampla pela Associação de Marketing Americana (2017)
como uma função organizacional cujos processos têm como objetivo criar,
comunicar, entregar e trocar ofertas que gerem valor para clientes, parceiros e a
sociedade em geral.
Apesar de já existirem registros de técnicas de marketing desde o final do
século XIX, esse ramo de estudo se consolida como disciplina acadêmica
independente na primeira década do século XX, absorvendo influências tanto da
economia quanto da psicologia (FONTENELLE, 2017). Naquela época, era
53
necessário explorar estratégias que estimulassem a demanda, fator imprescindível
para dar vazão ao aumento de produtividade industrial. Tais estratégias objetivam
elevar o valor de uma mercadoria para além do seu valor de uso, de modo que ao
adquiri-la o consumidor pode também expressar sua identidade ou suprir
necessidades emocionais, por exemplo.
A máxima popular de que “dinheiro não traz felicidade, mas pode comprá-la”,
é um campo muito fértil para o desenvolvimento publicitário. Um estudo da
Universidade de Michigan (2014) estima que comprar pode deixar as pessoas até
três vezes mais felizes, oque pode ser considerado um reflexo da cultura de
consumo nos Estados Unidos. Dessa forma, tanto uma bebida gelada em um dia
quente, quanto uma nova peça de roupa podem contribuir para incrementar a
felicidade do indivíduo. Nesse contexto, o papel publicitário é despertar a conexão
subconsciente entre essa busca por felicidade e as marcas. Assim, tem-se o desafio
de fazer com que aquele consumidor que sente sede em um dia quente, busque por
uma marca específica, tornando-se seu cliente.
Não só sentimento de felicidade, mas muitas mercadorias também acabam
adquirindo um simbolismo intrínseco. Por exemplo, entre junho de 2019 e maio de
2020, em torno de 2,5 milhões de usuários em toda a América Latina (sendo 56%
apenas no Brasil) consumiram produtos sustentáveis vendidos pelo Mercado Livre .5
Dentre esses produtos, os mais vendidos foram escovas de bambu e canudos
reutilizáveis. Ao consumir tais produtos, mais do que a funcionalidade de limpar os
dentes ou beber algo, os consumidores buscam de maneira consciente ou não
reforçar sua identidade de indivíduos preocupados com o meio ambiente.
A publicidade também tem o poder de atribuir um significado positivo ou
negativo a determinado produto dependendo do contexto sociocultural no qual ele
está inserido. Em 1929, por exemplo, Edward Bernays foi o idealizador da peça
publicitária nos EUA que vendia o cigarro como símbolo da emancipação feminina,
na qual o produto adquiriu o status de “tochas da liberdade” (DAFOUR, 2013 apud
5 Pesquisa realizada pelo próprio Mercado Livre através dos dados de sua base de
consumidores e vendedores. Discussão dos resultados disponível em:
https://www.consumidormoderno.com.br/2020/07/27/consumo-consciente-mais-produtos-sustentaveis
-nas-sacolas/. Acesso em: 05 nov. 2020.
54
FONTENELLE, 2017). Já em 2002 , no Brasil, imagens publicitárias aversivas foram6
estampadas nos maços de cigarro para associar o produto aos malefícios que ele
causa à saúde.
O exemplo da publicidade de cigarros desenvolvida por Edward Bernays
ilustra bem o papel da publicidade numa sociedade de consumo: o de vender não o
produto em si, mas o de vender algo que atenda à uma demanda subjetiva - muitas
vezes inconsciente - do indivíduo (DAFOUR, 2013 apud FONTENELLE, 2017).
Inspirado pela teoria da psicanálise desenvolvida por seu tio, Sigmund Freud,
Bernays acreditava que o poder ilimitado do desejo humano permite despertar
necessidades que não passam pelo crivo da racionalidade nos indivíduos. Com isso,
é possível estimular a demanda por diferentes produtos e serviços, contribuindo
assim para dar vazão à produtividade industrial.
Em contrapartida, há quem defenda que as necessidades por todo tipo de
produto e serviço sempre estiveram latentes no tecido social, e que o papel dos
produtores é apenas captar tais necessidades e resolvê-las com suas mercadorias.
Acredita-se que esse fluxo pode até existir em alguma proporção. No entanto, o
fluxo majoritário começa com o produtor, enquanto agente do desenvolvimento
econômico, criando novas mercadorias e se perpetua com os consumidores sendo
“ensinados a querer coisas novas, ou coisas que diferem em um aspecto ou outro
daquelas que tinham o hábito de usar” (SCHUMPETER, 1997). Tal processo de
“ensino” compreende o papel central da publicidade e é o aspecto sob o qual recai a
crítica de Latouche (2009) ao apontá-la como um dos pilares mantenedores da
sociedade do consumo.
Além disso, é válido mencionar o protagonismo que a publicidade ganhou na
última década através dos negócios digitais. O investimento em propaganda paga é
o principal modelo de monetização de redes sociais como Google, Youtube,
Facebook, Instagram e Twitter. No segundo trimestre de 2020, a receita com
anúncios no Facebook e no Instagram atingiu US$ 18,32 bi , valor 10% maior que no7
7 Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/07/30/facebook-tem-aumento-de-
receita-com-anuncios-apesar-de-boicotes. Acesso em 05 nov. 2020.
6 Registro segundo Souza & Campos (2011). Disponível em: https://www.researchgate.net/
publication/313789553_Imagens_aversivas_veiculadas_nos_macos_de_cigarros_Significados_atribui
dos_por_universitarios_da_area_da_saude_de_uma_universidade_publica_estatal. Acesso em: 05
nov. 2020.
55
mesmo período de 2019, e a publicidade no Youtube aumentou 6%, atingindo uma
receita de US$ 3,8 bi .8
Para além dos indicadores, é importante salientar também que as redes
sociais adquiriram esse papel de destaque como canal publicitário principalmente
pela sua assertividade na hora de mostrar a mercadoria correta para o público
correto. Isso porque através do acúmulo de dados dos usuários elas conseguem
traduzir um perfil bem acurado do usuário incluindo informações como gênero,
idade, localização e até interesses pessoais. No Facebook, em 2020, estão
disponíveis algumas classificações que limitam a veiculação da propaganda só para
usuários que tenham interesse em amor próprio, autoconfiança, body positive e até9
pessoas que prefiram produtos de alto valor no Brasil. Demonstrando, assim, uma
habilidade inata de acessar desejos, pensamentos e necessidades subconscientes
que muitas vezes nem os indivíduos sabem expressar.
3.2.2.2. O acesso ao crédito
A palavra crédito significa confiar, logo a concessão de crédito se baseia no
fornecimento de recursos financeiros no presente confiando que o tomador de
crédito ressarcirá em um momento posterior. No contexto da sociedade de consumo,
isso significa que o consumidor adquire um incremento em seu poder de consumo
atual, sem precisar adiar suas necessidades.
É importante ressaltar, no entanto, que a concessão de crédito estimula não
só o consumo como também a produção. Quando o tomador de crédito é uma
pessoa jurídica, o propósito desse aumento do poder de compra no presente pode
ser justamente investir na capacidade produtiva da empresa. Esse tipo de
empréstimo também aumenta muito em cenários de crise econômica, visando
manter a continuidade do negócio.
O primeiro registro do uso de crédito através de instituições especializadas foi
em 1878 em Chicago (BECKMAN; FOSTER, 1969 apud MOREIRA, 2011).
9 Body positive é um movimento no qual as pessoas passam a enxergar aspectos do seu
corpo que por muito tempo foram considerados fora do padrão como algo positivo.
8 Disponível em https://www.telesintese.com.br/google-reporta-queda-de-8-nas-receitas-com-
publicidade-no-trimestre. Acesso em 05 nov. 2020.
56
Entretanto, apenas no início do século XX, que a concessão de crédito perde o
estigma de ser utilizado apenas por aqueles em condições de pobreza e adquire
escala na sociedade estadunidense. Apenas na década de 80, o acesso ao crédito
difundiu-se pela Europa após a regulação de acesso ao crédito pelos países
europeus, permitindo que os consumidores decidissem quando, como e quanto se
endividar (MOREIRA, 2011). Tal fato representou uma mudança não só econômica
de incentivo ao consumo, como também uma quebra nos paradigmas sociais uma
vez que pedir dinheiro emprestado passa a ser algo socialmente aceito e não
associado ao estigma da pobreza, mas sim ao da liberdade de escolha.
No Brasil, a concessão de crédito com propósito de consumo passou a ser
difundida na década de 90, após a adoção do Plano Real. Segundo Conca (2010), o
aumento expressivo no volume de concessões de crédito foi reflexo da necessidade
dos bancos de compensarem a perda inflacionária que tinham decorrente da
estabilização econômica. Por isso, neste período observou-se que as concessões
não passavam pela análise devida. Hoje, segundo Rodrigues (2017), são
empregados critérios tanto subjetivos quanto objetivos para análise de crédito, que
buscam classificar o consumidor com base em seu comportamento histórico,
concedendo o empréstimo apenas para aqueles que serão de fato bons pagadores.
Um ponto marcante para a política de créditos brasileira foi a instituição, em
1999, pelo Banco Central do regime de metas da inflação. Assim,a partir dos anos
2000, com maior controle sobre a inflação, foi possível a adoção de uma política
monetária que possibilitou a redução das taxas de juros, possibilitando a expansão
do volume de crédito concedido no país. No Brasil, assim como no restante do
mundo, o crédito também já se consolidou como um produto (que estimula a
aquisição de novos produtos), sendo comercializado em pelo menos 5 tipos: cartão
de crédito, crediário, cheque especial, crédito consignado e crédito pessoal.
O cheque especial é um valor de crédito já pré-aprovado que fica disponível
na conta corrente para ser utilizado quando o saldo for insuficiente. Já o crédito
consignado consiste no pagamento do montante da dívida em parcelas que são
descontadas diretamente do salário ou do benefício previdenciário. O crédito
pessoal, por sua vez, compreende os empréstimos e financiamentos para a
aquisição de bens específicos como um veículo ou habitação própria.
57
Já o cartão de crédito e o crediário são as principais modalidades que
viabilizam o consumo excessivo na sociedade de consumo e que, portanto, atuam
como mecanismos de manutenção da mesma. O cartão de crédito se traduz na
concessão de um limite de crédito máximo mensal para o usuário que pagará
apenas o equivalente ao seu uso. Uma característica do uso do cartão de crédito, no
Brasil, é a possibilidade de parcelamento das compras sem o pagamento de juros.
Esse é um dos mecanismos que mais estimula o consumo, uma vez que a pessoa
vê como um benefício não precisar dispor de todo o montante do valor do produto no
momento da compra, assim como pagar esse mesmo valor sem juros no longo
prazo.
Para obter um cartão de crédito, no entanto, não há necessidade de possuir
vínculo com instituição financeira já que muitas lojas, principalmente do varejo,
podem emitir cartões para serem utilizados naquela loja e em sua rede credenciada.
A oferta desse tipo de cartão private label por parte das empresas favorece a
fidelização dos clientes. Segundo dados de 2019 , mais de 70% dos consumidores10
que possuem esse tipo de cartão dizem priorizar as compras nos respectivos
estabelecimentos que emitiram os cartões do que em outros que não aceitam.
Nesse aspecto, o cartão private label se aproxima do modelo do crediário,
uma vez que ambos estão vinculados a um estabelecimento de compra e não a uma
organização financeira propriamente. O crediário, ou carnê como ficou popularmente
conhecido, é uma modalidade de crédito que também funciona para compras
parceladas. Ao comprar um produto parcelado, o consumidor já recebe uma espécie
de caderneta com os boletos de todas as parcelas mensais daquela compra.
Segundo dados de pesquisa realizada pela Confederação Nacional de
Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em
agosto de 2019, 49% dos brasileiros fizeram uso de algum tipo de crédito para
realizar suas compras. De acordo com o levantamento, 47% dos consumidores têm
acesso a pelo menos um cartão de crédito, 30% têm algum tipo de crédito pessoal
em andamento, 19% têm limite de cheque especial aprovado e 18% conta com
algum tipo de crediário no momento. Dentre os índices, o estudo destaca que o
10 Disponível em clientesa.com.br/estatisticas/69767/cartoes-de-loja-impulsionam-fidelidade.
Acesso em 19 dez. 2020.
58
crediário vem perdendo cada vez mais espaço, tendo reduzido 10 p.p. entre janeiro
e agosto de 2019.
3.2.2.3. A obsolescência programada
O conceito de obsolescência por si só indica o processo pelo qual algo perde
sua função de uso. Tal conceito pode ser transposto para a esfera da sociedade de
consumo, a partir do momento em que a obsolescência é utilizada como estratégia
de estímulo ao consumo pelas empresas. Segundo Bauman (2008), a principal
forma que um consumidor tem de enfrentar sua insatisfação é descartando aqueles
objetos que a causam. Para o autor, “a sociedade de consumidores desvaloriza a
durabilidade, igualando ‘velho’ a ‘defasado’, impróprio para continuar sendo utilizado
e destinado à lata de lixo.”.
Para Leonard (2011), a obsolescência surge como mecanismo de fomento ao
consumo por uma incapacidade da manutenção de uma “regra” vendida
anteriormente aos consumidores. A regra inicial era que o consumidor necessitava
de apenas uma unidade de cada produto. Com o aumento da produção, passou-se a
transmitir aos consumidores a noção de que o ideal seria possuir mais de uma
unidade de cada produto (LEONARD, 2011). No entanto, em algum momento todos
teriam alcançado um limite de saturação do número de carros, roupas, televisores e
de produtos acumulados no geral de modo que já não faria mais sentido comprar
uma enésima unidade de cada um deles. Assim, surge a estratégia da
obsolescência como mecanismo de perpetuar esse ciclo de compra, não mais para
se estocar mais uma unidade de determinado produto, mas para substituir uma
unidade “obsoleta” por uma nova.
Em termos teóricos, pode-se fazer uma distinção entre três tipos de
obsolescência: tecnológica, percebida e programada (LEONARD, 2011). Sendo o
último deles, o motor mais cruel de reforço aos ciclos de consumo, ao qual Latouche
(2012) também faz referência. A obsolescência tecnológica contempla um processo
de substituição raro derivado de um avanço tecnológico que torna de fato a versão
anterior ultrapassada, colocando-a em desuso. A substituição do telégrafo pelo
telefone talvez seja o exemplo mais concreto disso, mas também pode-se mencionar
59
a substituição expressiva das máquinas de escrever pelos computadores e também
dos aparelhos de fax por uma combinação de impressoras multifuncionais e de
e-mails como canais de envio dos documentos.
A obsolescência percebida, por sua vez, é resultado de percepções, gostos e
desejos pessoais dos indivíduos consumidores. Combinada com as estratégias
publicitárias, ela torna um produto obsoleto devido unicamente à existência de um
mesmo produto mais recente e com variações sutis de forma, de tamanho, de
aparência, entre outras características. Essa estratégia também é utilizada em
produtos tecnológicos, quando os televisores de tela plana foram lançados, por
exemplo, representavam uma mudança mais radical em termos de design do que de
tecnologia quando comparados aos televisores de tubo.
O setor onde essa estratégia está mais consolidada é o de moda, com a
lógica das grandes marcas fast-fashion. Tal lógica de produção e distribuição é
caracterizada pela rápida rotação de coleções de roupas nas lojas físicas dessas
varejistas. Tomando como exemplo o caso apresentado por Leonard (2011) da H&M,
expoente sueca do setor, cujo ciclo de produção desde a concepção dos modelos
até sua disponibilização nas lojas durava menos de 20 dias em 2008. O foco desse
modelo são produtos que estejam cada vez mais alinhados aos gostos dos
consumidores e às novas tendências. Assim, pequenas variações de modelos e
estampas são suficientes para tornar a coleção anterior obsoleta e sugerir a
necessidade da aquisição dos novos produtos.
O último tipo, a obsolescência programada, expõem o fato de no próprio
projeto do produto existir uma tomada de decisão racional que prioriza outros fatores
como custo e design em detrimento da durabilidade. A partir do momento em que os
produtos já são concebidos sabendo que eles possuem um prazo para se tornarem
obsoletos, caracteriza-se um processo intencional de realimentação do ciclo de
consumo, no qual a empresa produtora detém um controle sobre a recorrência das
compras de seus clientes.
Um primeiro exemplo são aqueles produtos que foram projetados para ter
uma vida útil tão curta que pode ser medida em horas ou até minutos, como os
produtos de embalagens e utensílios descartáveis. Numa sorveteria, quando um
cliente pede um sorvete de copo, tanto o copo quanto a espátula utilizada para
60
comer terão vida útil igual ao tempo que o cliente leva para comer o sorvete. Neste
caso, tem-se um tipo específico de obsolescência programada,que é a
obsolescência instantânea.
No entanto, o principal exemplo de setor que utiliza a obsolescência
programada é o de eletrônicos. Os smartphones, por exemplo, após alguns anos de
uso começam a apresentar problemas como a bateria já não dura o quanto deveria,
a tela pode estar rachada ou com o sistema touch screen funcionando parcialmente,
além de problemas com a saída de áudio ou com a saída para conectar o
carregador, entre muitos outros. Nesses casos, o consumidor estaria diante de duas
possibilidades: buscar uma assistência técnica e prolongar a vida útil do aparelho ou
simplesmente tratá-lo como obsoleto, descartá-lo e comprar um novo aparelho de
celular. Assim, algumas estratégias podem ser utilizadas pelas empresas para
favorecer a tomada de decisão pela segunda opção, como: reduzir os prazos de
assistência técnica gratuita, não disponibilizar peças de reposição de modelos
antigos no mercado ou disponibilizá-las com preço elevado. Dessa forma, na
percepção imediatista do consumidor, acaba sendo mais caro prolongar a vida útil
do aparelho que comprar um novo.
No caso das empresas de celulares, elas também podem programar a
obsolescência dos modelos também a partir da sua conectividade com novos
aplicativos ou novas atualizações do sistema. É possível, por exemplo, que celulares
já tidos como fora de linha não sejam mais compatíveis com novos aplicativos
disponíveis em suas lojas virtuais. Há ainda alguns exemplos mais graves como o
caso da Apple e da Samsung que foram multadas pelo governo italiano em 2018 por
infringirem o código do consumidor italiano ao forçarem os usuários do Iphone 6 e
do Galaxy Note 4 a realizarem atualizações de software que reduziam a vida útil
desses modelos.11
O documentário espanhol, “Comprar, tirar, comprar – La historia secreta de la
obsolescencia programada”, dirigido por Cosima Dannoritzer em 2010, revela que tal
estratégia já era adotada desde 1920 por algumas empresas. No caso do cartel
11 Reportagem publicada em 24/10/2018 pelo site da revista Época Negócios. Disponível em:
https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2018/10/apple-e-samsung-sao-multadas-por-obsole
scencia-programada.html Acesso em 23 abr. 2020.
61
Phoebus, primeiro cartel mundial fundado em 1924, que reunia todos os principais
fabricantes de lâmpadas em todo o mundo, observou-se a orientação de que só
poderiam ser comercializadas lâmpadas que tivessem um limite de 1.000 horas de
duração. Assim, os fabricantes passaram a ajustar seus projetos originais que
chegavam a durar até 2.500 horas, de modo a produzir lâmpadas mais frágeis para
cumprir com a nova norma. O documentário mostra, inclusive, que aqueles
fabricantes que seguissem comercializando lâmpadas com vida útil maior que mil
horas seriam multados. Apesar do cartel ter terminado em 1939, estima-se que a
vida útil das lâmpadas incandescentes até hoje seja de 1.000 horas.
O documentário também mostra os registros da primeira vez em que o termo
“obsolescência programada” foi utilizado. Dado o cenário de crise econômica após
1929, muitas pessoas não acreditavam que o plano de intervenção do Estado na
economia proposto por Franklin Roosevelt, o New Deal, conseguisse por si só
retomar o crescimento econômico a partir da geração de empregos através do
investimento em obras públicas, dentre outras medidas. Nesse contexto, o corretor
de imóveis Bernard London chegou a divulgar, sem sucesso, através de panfletos
com o título “Acabando com a Depressão através da Obsolescência Planejada”. A
ideia de London era a criação de uma agência governamental encarregada de definir
as datas de validade de alguns produtos. Quando chegada a data, os consumidores
entregariam esses produtos à agência do governo que se encarregaria de destruição
dos mesmos.
Apesar deste conceito ser mais compreensível quando aplicado a produtos,
também há exemplos de obsolescência programada no setor de serviços. Para
Monteiro (2016), um serviço torna-se obsoleto a partir do momento em que “perde
sua eficácia, seja porque as variáveis e componentes que compõem o serviço já não
surtem mais efeito, ou seja porque já está desgastado na percepção do cliente”. O
autor exemplifica a contratação de um serviço de controle de pragas, no qual é
possível que a técnica utilizada pela empresa tenha uma eficácia curta, logo as
pragas ressurgem e o cliente precisa contratar novamente o serviço. Muitas vezes, a
prestadora de serviço utiliza dessa assimetria de informação no momento da venda,
como por exemplo, oferecendo uma garantia do serviço inferior ao tempo de eficácia
62
realmente comprovada para não precisar arcar com um novo serviço de maneira
gratuita.
No caso das prestadoras de serviços de telefonia, por exemplo, como estão
sempre disputando novos clientes, elas frequentemente lançam planos mais baratos
abrangendo mais serviços. No entanto, ao descontinuar os planos antigos, elas
acabam não comunicando àqueles usuários que já são seus clientes. Assim, o que
acontece é que um usuário antigo passa a pagar caro por um plano que não existe
mais, enquanto os usuários novos têm mais vantagens. Quando esse usuário antigo
percebe essa diferença e busca contratar um novo plano, ele pode estar sujeito a
um período de permanência de até 12 meses, no caso das operadoras brasileiras.
Assim, essas empresas utilizam a obsolescência de seus serviços como forma de
fidelização de seus clientes.
3.3. Direcionadores de Implementação
Como toda utopia não concretizada, esboçar uma definição do que seria a
sociedade de decrescimento por si só, sem fazer uma mera oposição ao desejo de
não ser uma sociedade de consumo não é tarefa fácil. Latouche (2010) inclusive se
afasta ainda mais de propor uma definição quando reafirma que existe uma matriz
de alternativas de sociedade, já que elas devem respeitar as especificidades de
cada local. De todo modo, uma sociedade de decrescimento seria uma sociedade
em que o indivíduo é algo mais que um consumidor, as relações interpessoais se
baseiam na colaboração e o ambiente deixa de ser um mero cenário e passa a estar
integrado de maneira harmoniosa com o estilo de vida local.
Diante de tantos “não-ser” encontrados na literatura sobre a sociedade de
decrescimento, Cuvillier (2018) realiza um excelente trabalho de compilação de
conceitos sobre o que é a sociedade de decrescimento e os apresenta através de
um Diagrama de Causa e Efeito. Dessa forma, a autora entende que para atingir o
decrescimento, é necessária uma sociedade autônoma, pautada na simplicidade, na
convivialidade e na justiça social, que respeite o meio ambiente e que preze pela
qualidade de vida e pela qualidade dos postos de trabalho disponíveis.
63
FIGURA 5 - DIAGRAMA CONCEITUAL DE CAUSA E EFEITO PARA O DECRESCIMENTO
Fonte: Cuvillier (2018, p.44)
É interessante observar que no diagrama a autora posiciona o consumo em
duas frentes: primeiro como ação que impacta diretamente num estilo de vida mais
simples e depois como ação capaz de expressar um respeito ao meio ambiente. Tal
preocupação ambiental para o decrescimento não tem o foco do consumo
sustentável como discutido anteriormente, mas sim o de romper com padrões
materialistas e de supervalorização dos objetos para além de suas funcionalidades
intrínsecas. Outro ponto de destaque é que produtividade é apresentada como um
conceito que fica unicamente relacionado à qualidade do trabalho. Nesse sentido, da
mesma forma que a busca excessiva pela produtividade pode piorar o desgaste
psicológico do indivíduo no trabalho, o decrescimento também defende que a
incorporação de ganhos produtivos deve beneficiar principalmente as condições de
trabalho do indivíduo. Já em termos econômicos, a principal crítica do diagrama
aparece na crítica aos modelos prontos desenvolvimentistas como limitadores de
uma sociedade autônoma.
Até hoje, foram observadas algumas iniciativas que se aproximam do discurso
decrescentista tais como ecovilas, Associaçõespara Manutenção da Agricultura
64
Camponesa (AMAP) na França e adeptos da simplicidade voluntária12 13
(LATOUCHE, 2009). No Brasil, Boccato-Franco e Nascimento (2013) também
apontam uma aproximação entre o decrescimento e a Rede Brasileira de Bancos
Comunitários, principalmente por essas experiências colocarem a solidariedade
como objetivo primário do processo de produção, ao invés do lucro.
De forma geral, apesar de não apontar uma experiência como modelo correto
a ser seguido, Latouche (2009, 2010) descreve um conjunto de direcionadores
capazes de contribuir para um círculo virtuoso rumo à sociedade do decrescimento.
Devido à semelhança na escrita, tais direcionadores ficaram conhecidos como os 8
R’s, são eles: reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir,
reutilizar e reciclar.
Reavaliar está alinhado com a ideia de desconstruir o imaginário social sobre
quais valores são mais importantes numa sociedade. O autor defende que os
valores mercantis da sociedade de consumo, tais como o individualismo, o ter para
ser, e a relação de exploração irresponsável do meio ambiente, devem ser
substituídos por valores como altruísmo, reciprocidade e respeito pelo entorno.
Uma vez que os valores prioritários na sociedade de decrescimento foram
reavaliados, é preciso reconceituar outros pares estruturais como riqueza e pobreza,
ou escassez e abundância. Para a sociedade de consumo, riqueza é sinônimo de
acumulação capital e de bens materiais, que muitas vezes são adquiridos pelo
gatilho da escassez utilizado nas estratégias publicitárias. Latouche (2009, 2010)14
afirma que o conceito de riqueza deve ser medido em termos de bem relacionais
baseados em reciprocidade, compartilhamento, conhecimento, amor e amizade. E o
conceito de pobreza, inversamente, deve ser determinado por aquelas pessoas que
ainda sobrevivem em meio à “multidão solitária” capitalista ao invés de viver numa
14 Consiste em despertar nos indivíduos uma sensação de perda. Dessa forma, com medo de
ficar sem um produto ou serviço, a pessoa efetiva a compra.
13 Termo conceituado por Elgin (1977) faz referência a um estilo de vida onde haja uma busca
por viver de maneira exteriormente simples, reduzindo os níveis de consumo, mas interiormente rica,
com um propósito de buscar autoconhecimento e espiritualidade em comunidade.
12Grupo que atua há mais de 18 anos na França promovendo a compra de alimentos
diretamente dos produtores rurais, mediante ao pagamento adiantado que confere segurança para o
produtor e para o comprador que tem mais confiança sobre a procedência dos produtos (CHIAPPE,
2019)
65
“comunidade solidária”. Sobre o par escassez e abundância, o autor salienta que
esse par deve embasar a ideia de uma vida em harmonia com o meio ambiente,
respeitando os recursos escassos, ao passo que se dispõem de uma abundante
variedade de recursos naturais.
A direção de reestruturar diz respeito a uma desmercantilização do aparelho
produtivo. Numa sociedade do decrescimento, a produção deve adequar-se às
novas necessidades da comunidade e não aos interesses do capital sobre qual
produto é mais lucrativo. Se para determinada comunidade o transporte por
automóveis não é uma necessidade, as fábricas automobilísticas atuais poderiam
ser substituídas por fábricas de geradores de energia, por exemplo (LATOUCHE,
2009).
O quarto direcionador, redistribuir, compreende a distribuição de riqueza e
acesso aos recursos naturais de maneira igualitária tanto entre os países, quanto
dentro de cada sociedade, de suas gerações e de seus indivíduos (LATOUCHE,
2009). A distribuição de riqueza a partir da reestruturação das relações sociais
contribui para reduzir o nível de consumo por desejo e status, no qual aquelas
pessoas que detêm menor poder de compra, desejam consumir itens básicos para
um outro grupo de pessoas que detém mais poder de compra. Além disso, a
reconceituação de riqueza, contribui para reduzir o poder daqueles que apenas
acumulavam bens e dinheiro. Latouche (2009) também sugere que uma medida
para regulamentar o acesso aos recursos naturais seria a partir da pegada
ecológica. Assim, a população de cada território deveria adotar níveis de consumo
compatíveis com a capacidade ecológica do mesmo.
O quinto direcionador, relocalizar, diz respeito a pensar a economia, a cultura
e a política numa escala local. Logo, defende-se que a produção e o consumo dos
bens essenciais sejam feitos localmente, e financiados por uma poupança coletada
localmente (LATOUCHE, 2009). Além disso, é importante que as comunidades
locais tenham autonomia para definir seus rumos, se opondo claramente a um
molde desenvolvimentista capitalista que é vendido como algo facilmente replicável
em qualquer cenário. Naturalmente, esse recorte do território local colabora para o
desenvolvimento de relações sociais colaborativas entre indivíduos que
66
compartilham de uma mesma cultura e para reforçar positivamente os
direcionadores anteriores.
Os três últimos direcionadores — reduzir, reutilizar e reciclar — são também
conhecidos na literatura como os 3 R’s da ecologia, atuando diretamente no ciclo
econômico do “compre, desfrute e jogue fora”. Logo, numa sociedade de
decrescimento, é necessário reduzir o consumo para minimizar o início desses
ciclos, e aumentar a reutilização e a reciclagem dos produtos para maximizar sua
vida útil, reduzindo o descarte. No caso do decrescimento, o reduzir ganha maior
destaque pois além da redução do consumo, tem-se também a redução dos níveis
de produção e a redução dos níveis de trabalho.
Apesar de todos os direcionadores terem sua importância, entende-se que
alguns deles são mais estratégicos por terem uma correlação com os demais
(LATOUCHE, 2009). Por isso, apesar de frequentemente tais direcionadores serem
apresentados em forma de círculo, com setas de causa e efeito diretas de acordo
com a ordem de exposição feita anteriormente, optou-se por organizá-los a partir de
um mapa conceitual, no qual observa-se claramente o papel estratégico atrelado a
reavaliar, reduzir e relocalizar (Figura 6).
FIGURA 6 - MAPA CONCEITUAL DOS DIRECIONADORES DE IMPLEMENTAÇÃO DA
SOCIEDADE DO DECRESCIMENTO
Fonte: Elaboração própria com base em Latouche (2009, p.58)
Reavaliar é a base de todos os conceitos. Não é possível pensar em uma
nova sociedade, se os mesmos valores e objetivos individualistas, competitivos e
exploratórios da sociedade de consumo forem mantidos. Assim, uma vez
67
reavaliados os valores prioritários, faz-se necessário também reconceituar alguns
outros valores complementares, para que haja de fato uma quebra do imaginário
coletivo dominante. Reavaliar também serve como base para reduzir que condensa
todos os pilares práticos de discurso do decrescimento, e como base para relocalizar
que torna a gestão dessa mudança mais factível e coerente com o discurso de
respeito às singularidades de cada região.
Uma vez que relocalizar confere protagonismo ao território comunitário,
torna-se mais fácil pensar numa redistribuição de riqueza e numa reestruturação da
produção com foco nas necessidades locais. Por outro lado, o direcionador de
reduzir atua diretamente para frear o ciclo de consumo assim como os
direcionadores de reutilizar e reciclar. Dessa forma, uma concepção alternativa de
sociedade não pode ser baseada apenas em práticas de reciclagem e uma
distribuição de renda mais igualitária, por exemplo, mas sim no tripé conceitual que
representa uma maior ruptura com o modelo hegemônico atualmente.
68
4. UMA ESCALA DO CRESCIMENTO AO DECRESCIMENTO
Nos capítulos 2 e 3, foram expostos diversos pontos de contrastes entre a
teoria econômica hegemônica responsável por moldar uma sociedade de consumo e
a teoria alternativa do decrescimento responsável por preconizar a utopia da
sociedade de decrescimento. Com o objetivo de avaliar sistematicamente se uma
proposta alternativa à sociedade de consumo de fato se aproxima do caminhorumo
à sociedade de decrescimento, foi montada uma escala de avaliação a partir de
critérios qualitativos com base na escala de julgamento de Saaty.
Para isso, os critérios de avaliação serão inicialmente definidos e
caracterizados. Posteriormente, eles serão hierarquizados e terão diferentes pesos
atribuídos de acordo com sua importância. Assim, espera-se obter ao final da
avaliação um valor numérico numa escala cuja pontuação mínima seja o equivalente
à sociedade de consumo e a pontuação máxima seja o equivalente à sociedade do
decrescimento. Dessa forma, será possível discutir se certa alternativa é de fato um
caminho viável rumo ao decrescimento e quais são seus principais pontos de
interseção com cada um dos extremos, entendendo as forças e os desafios dessa
proposta.
4.1. Definição dos Critérios de Intersecção
A partir de toda base teórica apresentada, foram elaborados critérios que
abrangem tanto o que a sociedade de decrescimento pretende ser — com base nos
seus direcionadores de implementação — quanto o que a sociedade de
decrescimento não quer ser — a partir das suas críticas e oposições à sociedade de
consumo. Dessa forma, optou-se por segmentar os critérios em quatro macro
grupos: Reavaliação de Premissas da Economia Hegemônica, Redução dos Ciclos
de Consumo, Redução dos Níveis de Produção e Redução dos Níveis de Trabalho.
Com isso, foram listados ao todo doze critérios, conforme apresentados no Quadro
4.
69
QUADRO 4 - CRITÉRIOS PARA ANÁLISE DE AFINIDADE COM A PROPOSTA DE UMA
SOCIEDADE DE DECRESCIMENTO
CRITÉRIO GRUPO DE CRITÉRIOS
1 Abandono da perseguição pelo Crescimento Econômico
Reavaliação de
Premissas da
Economia
Hegemônica
2 Visão Holística e Autônoma de Desenvolvimento
3 Valorização das Riquezas Não-monetárias
4 Incorporação Autônoma de Inovações Tecnológicas
5 Indiferença aos efeitos da Publicidade
Redução dos
Ciclos de Consumo
6 Redução do Crédito como Estímulo ao Consumo Individual
7 Preferência por Produtos mais Duráveis
8 Práticas de Reutilização e Reciclagem
9 Produção em Escala Local Redução dos
Níveis de Produção10 Produção Ambientalmente Sustentável
11 Tempo Livre Disponível Redução dos
Níveis de Trabalho12 Qualidade dos Postos de Trabalho
Fonte: Elaboração própria
No grupo de Reavaliação de Premissas da Economia Hegemônica, o primeiro
critério escolhido para ser uma sociedade de decrescimento é a necessidade de
abandonar a perseguição pelo crescimento econômico (1), o principal contraponto
da crítica econômica dessa teoria. Além disso, é necessário uma recolonização do
imaginário social, valorizando riquezas não-monetárias (3), como a cooperação, e o
ser como mais importante que o ter.
Esse critério também contribui para uma visão menos economicista,
auxiliando na concepção de um desenvolvimento que não seja primordialmente
econômico (2), nem que seja imposto, ou seja, cada região deve ter autonomia
suficiente para elaborar e perseguir seu próprio modelo de desenvolvimento. De
maneira análoga, cada região também deve ter autonomia para incorporar
inovações tecnológicas (4) na otimização de seus processos produtivos sem que
70
isso seja uma mera réplica de modelos tecnológicos já prontos e naturalmente
atrasados.
Além de reavaliar e reconceituar alguns aspectos-chave da economia do
crescimento, é preciso também avaliar os pilares de redução dos níveis de consumo,
produção e trabalho que irão viabilizar uma sociedade de decrescimento compatível
com os recursos naturais e o bem-estar social. Assim, no grupo de Redução dos
Ciclos de Consumo, os critérios escolhidos visam contribuir para frear os três
catalisadores desses ciclos de consumo e descarte.
Para isso, é preciso que se diminua o protagonismo da publicidade na
sociedade (5), contribuindo para que novas compras não sejam pautadas em
desejos inconscientes. Também é necessário dificultar o acesso ao crédito para
fomentar o consumo individual em suas diferentes formas (6). Em contrapartida, não
se exclui a possibilidade de que comunidades ao nível local estabeleçam uma
relação colaborativa para a construção de um sistema de crédito em prol do
desenvolvimento da região, por exemplo. Por fim, era necessário ao menos um
critério que contribuísse para frear a obsolescência programada. No entanto, apenas
os redirecionadores de reutilização e reciclagem (8) a fim de prolongar a vida útil dos
produtos não pareciam suficientes. Isso porque a obsolescência programada parte
muito do desenho dos produtos por parte das produtoras. Dessa forma, é preciso
que uma sociedade de decrescimento opte pelo consumo de produtos
intrinsecamente mais duráveis (7) sejam esses produzidos localmente ou não.
Por fim, nos grupos de Redução dos Níveis de Produção e dos Níveis de
Trabalho, é preciso inicialmente reestruturar a produção para que ela tenha uma
escala local (9) com o objetivo de atender as necessidades da região (tanto em
termos de produtos e serviços, como também de empregos). Com isso, por mais que
naturalmente haja uma redução no volume produzido em si quanto comparado ao de
grandes corporações multinacionais, por exemplo, os ganhos de produtividade
seguem sendo perseguidos, não mais em prol do lucro, mas em prol de uma melhor
qualidade nos postos de trabalho (12) e da utilização não-exploratória dos recursos
naturais disponíveis (10). Decorrente da redução da produção e dos níveis de
trabalho, é esperado que haja um aumento do tempo livre, que numa sociedade de
decrescimento deve ser utilizado para atividades não-monetárias (11). É esperado
71
que esse tempo dê espaço a atividades ambientalmente sustentáveis que em geral
requerem mais tempo e também a uma maior participação dos indivíduos na vida
em comunidade.
Por fim, é válido ressaltar um desafio adicional que é almejar uma utopia na
qual o único referencial existente está no campo teórico. Por isso, diferentemente do
arcabouço de critérios proposto por Cuvillier (2018), buscou-se definir critérios
amplos, que não precisem variar de acordo com cada experiência analisada.
Enquanto Cuvillier (2018) defende que os critérios e subcritérios podem ser
validados e redefinidos de acordo com o grupo estudado para que sejam resultado
de uma construção coletiva dos integrantes da experiência analisada. Os critérios
aqui elencados buscam trazer o que cada experiência deveria perseguir para se
tornar uma sociedade de decrescimento. Entretanto, como cada uma delas fará para
alcançar esses objetivos pode variar muito. Por isso, essas peculiaridades de como
cada comunidade irá alcançar o decrescimento não devem influenciar nos
parâmetros de análise.
4.2. Hierarquização dos Critérios para Criação da Matriz de Avaliação
Uma vez definidos e apresentados os critérios, foi observada a necessidade
de estabelecer uma hierarquia entre eles. Por mais que todos contribuam para
compor uma sociedade de decrescimento, a contribuição isolada de cada critério é
diferente. Até porque alguns deles de maneira isolada podem ser facilmente
absorvidos pela sociedade de consumo, se afastando ainda mais do objetivo de
haver uma intersecção com a sociedade de decrescimento.
Práticas de reciclagem e reutilização de embalagens, por exemplo, já são
utilizadas por diversas empresas que oferecem espaços em suas lojas para que os
consumidores retornem as embalagens após o uso. Para citar um exemplo, no
Brasil, desde 2006 o Boticário desenvolve o programa de logística reversa “Boti15
Recicla”, que recolhe embalagens de cosméticos de diferentes fabricantes para
15 Disponível em https://www.boticario.com.br/boti-recicla/. Acesso em 30 dez. 2020.
72
reaproveitá-las em itens de decoração de suas lojas físicas. Em 2020 , a empresa16
incorporou o projeto em sua estratégia publicitária, reforçando o posicionamento
socioambiental da marca. Obviamente, tal prática pode até contribuir para gerar uma
maior conscientização social em prol do meio ambiente, mas está longe de
promover de maneira isolada uma rupturaem prol de uma sociedade de
decrescimento.
Já em termos de qualidade dos postos de trabalho, por exemplo, desde a
década de 80 a Great Place to Work® atua na certificação de empresas como bons
lugares para se trabalhar. Tal processo toma como base uma extensa pesquisa de
clima organizacional respondida pelos funcionários baseada em mais de 50
perguntas para compor o que eles chamam de Trust Model©. Nessa pesquisa são
avaliadas 5 macro categorias que contemplam desde a credibilidade e respeito dos17
gestores, percepção de práticas justas dentro do ambiente de trabalho até o
sentimento de orgulho de trabalhar em determinada empresa e o sentimento de
comunidade existente entre os funcionários. É interessante observar que dentre as
afirmações abordadas nessa pesquisa de clima surgem algumas com bastante
afinidade com a proposta do decrescimento como “Posso ser eu mesmo no meu
ambiente de trabalho”, “Sinto-me bem pela forma como contribuímos para a
comunidade”, “Este é um lugar psicologicamente e emocionalmente saudável para
se trabalhar”, “Os chefes confiam que fazemos um bom trabalho sem necessidade
de supervisioná-lo constantemente” ou ainda “Posso tirar um tempo livre para
resolver assuntos pessoais quando necessário”. No entanto, analisando as
empresas melhores colocadas no Ranking Nacional de Grandes Empresas em 2020
, observa-se algumas como Magazine Luiza (2º lugar), Mercado Livre (10º) e Itaú18
Unibanco (13º) que claramente contribuem para a manutenção da sociedade de
consumo a partir das suas atividades fins.
Todos esses aspectos subjetivos de análise levantados acima, foram
contemplados na hora de avaliar a importância relativa entre os doze critérios
18 Disponível em https://gptw.com.br/ranking/melhores-empresas/?ano=2020&tipo=brLatam&
ranking=nacional&corte=Grandes. Acesso em 20 jan. 2021.
17 Disponível em https://www.greatplacetowork.com/trust-model. Acesso em 20 jan. 2021.
16 Disponível em https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2020/11/25/o-boticario
-sobe-o-tom-na-pauta-socioambiental.html. Acesso em 30 dez. 2020.
73
propostos para a elaboração da matriz intercritérios. Para determinar os indicadores
hierárquicos de cada par, foram adotadas as seguintes premissas:
● Critérios dentro de um mesmo macro grupo são igualmente
importantes. Com exceção dos critérios Práticas de Reutilização e
Reciclagem (8) e Qualidade dos Postos de Trabalho (12), por poderem
facilmente ser absorvidos pela sociedade de consumo como descrito
anteriormente.
● Os critérios do macro grupo de Reavaliação de Premissas da
Economia Hegemônica são sempre mais importantes que os demais,
por ser o principal contraponto da teoria do decrescimento.
● Os critérios do macro grupo de Redução dos Níveis de Produção são
mais importantes que os demais por contemplarem os indicadores de
“Reduzir” e “Relocalizar” que já se mostraram essenciais para a
construção de uma sociedade de decrescimento.
● Os critérios do macro grupo de Redução dos Ciclos de Consumo são
ligeiramente mais importantes que os critérios de Redução dos Níveis
de Trabalho por se afastarem mais de uma sociedade de consumo.
Com exceção da comparação entre os dois critérios referentes à
obsolescência (Preferência por produtos mais duráveis (7) e Práticas
de Reutilização e Reciclagem (8)) e a Qualidade dos Postos de
Trabalho (12). Considera-se que esses critérios são de igual
importância pois todos de maneira individual, não são capazes de
configurar uma sociedade de decrescimento.
● Quanto maior a afinidade percebida entre dois critérios, menor é a
importância relativa de um sobre o outro. Por exemplo, Práticas de
Reutilização e Reciclagem (8) e Produção Ambientalmente Sustentável
(10) apesar de estarem em grupos hierarquicamente distintos, estão
intimamente ligados numa sociedade de decrescimento. Assim como a
Incorporação Autônoma de Inovações Tecnológicas (4) e a Produção
em Escala Local (9). Apesar de estarem em grupos diferentes, ter uma
produção em escala local contribui na construção desse movimento de
autonomia.
74
Com isso, foi elaborada uma matriz de hierarquia entre critérios apresentada
no Quadro 5, cuja razão de consistência calculada foi de 4,763%, valor dentro do
intervalo necessário para considerar consistente a hierarquia proposta (<10%). Já no
Quadro 6 é apresentada a matriz final para análise de determinada iniciativa como
próxima ou não de uma sociedade de decrescimento. Nela é apresentada a
hierarquia final entre os critérios e seus respectivos pesos obtidos através do vetor já
normalizado numa escala de 0 a 1.
Além disso, o Quadro 6 também já apresenta um espaço de avaliação para
essa matriz de critérios com base numa pontuação de 0 a 3. Na qual 0 indica
Totalmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento e 3 indica Totalmente
Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento. Os valores intermediários indicam
Parcialmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento (1) e Parcialmente
Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento (2). Obtendo assim uma
pontuação que pode ir de 0 a 3 pontos, onde 0 é o mais próximo de uma sociedade
de consumo e 3 por sua vez é o idealizado pela sociedade de decrescimento.
75
QUADRO 5 - MATRIZ DE HIERARQUIA ENTRE CRITÉRIOS
Fonte: Elaboração própria
76
QUADRO 6 - CRITÉRIOS E PESOS DE AVALIAÇÃO DA AFINIDADE COM A PROPOSTA DE UMA
SOCIEDADE DE DECRESCIMENTO
Fonte: Elaboração própria
Analisando o resultado obtido, observa-se que a matriz reflete bem as
premissas de superioridade de um macro grupo sobre o outro. Além disso, vale
ressaltar a preponderância dos critérios do grupo econômico: o quarto colocado tem
quase três vezes o peso do quinto colocado (0,173 vs. 0,059). Já em termos de
preocupação ambiental, que é um fator bastante defendido pelo decrescimento,
acredita-se que a Produção Ambientalmente Sustentável reflete uma proximidade da
sociedade de decrescimento por refletir um comportamento mais estrutural que
simples práticas individuais ou isoladas de Reutilização e Reciclagem.
Quanto aos critérios relacionados aos mantenedores da sociedade de
consumo, observa-se uma leve preferência por aqueles que atuam no início de
novos ciclos de consumo: publicidade e o acesso ao crédito. Também pode-se
verificar uma proximidade dos pesos atribuídos aos três últimos colocados. Como os
critérios 8 e 12 já foram amplamente discutidos, vale ressaltar apenas o critério 11
que aparece em último lugar uma vez que se entende que possuir tempo livre de
77
atividades monetárias serve como base para a construção de postos de trabalho
com mais qualidade, para a adoção de práticas de estilo de vida mais sustentáveis,
etc. Logo, ele facilita alguns critérios melhor posicionados, no entanto por si só não
configura uma sociedade de decrescimento.
Quanto à aplicação dessa matriz avaliativa um dos grandes desafios diz
respeito ao fato que a sociedade de decrescimento tal como descrita por Latouche
proporciona uma multiplicidade de alternativas e caminhos, uma vez que preza-se
totalmente pela autonomia local. Assim, espera-se que a matriz de avaliação
proposta seja utilizada para responder questões como “o quanto determinada
experiência / teoria tem afinidade com a proposta do decrescimento". Pode-se até
utilizá-la para entender questões como "qual é a melhor forma de se atingir o
objetivo do critério X?”, certamente uma experiência A que obteve uma avaliação 3
em tal critério será melhor que uma experiência B que obteve uma avaliação 1. No
entanto, entre a experiência A e uma experiência C que também obteve um 3, não
se pode afirmar com essa matriz que o método utilizado por A é melhor ou pior que
o método utilizado por C. Em resumo, cabe à pessoa que está conduzindo a
avaliação atribuir a pontuação de acordo com o referencial teórico do decrescimento
e não partir de uma comparação entre alternativas. Dessa forma, busca-se dar
espaço às infinitas possibilidades já conhecidas e ainda inimagináveis de se atingiro
decrescimento.
78
5. O DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO ESTADO DE TRANSIÇÃO
Sabendo que o decrescimento se apresenta como uma teoria de extremo
rechaço à economia hegemônica na sociedade atualmente, é ilusório acreditar que a
implementação de uma sociedade de decrescimento seria viável no curto prazo.
Assim como a própria cultura do consumo levou décadas para moldar o imaginário
coletivo, a descolonização de tais valores também não será um processo rápido.
Além disso, acredita-se que uma sociedade alternativa à sociedade de consumo é
mais do que algo necessário, é algo possível. Por isso, devido a uma aproximação
conceitual entre alguns direcionadores apresentados para uma sociedade de
decrescimento e o conceito de desenvolvimento local, defende-se que este se
apresenta como um modelo viável para orientar esse caminho de transição.
O conceito de desenvolvimento local passa a ganhar força a partir da década
de 80, reunindo perspectivas de diferentes campos de conhecimento, como a
economia, a geografia e a sociologia, para pensar em um modelo alternativo de
desenvolvimento que contemple as especificidades de cada cenário. O conceito
ganhou mais impulso na década de 90, junto com outras iniciativas que abordavam
a temática da sustentabilidade ambiental, tal como a Agenda 21 Local , que19
compreende um processo de planejamento participativo em prol da construção de
um Plano Local de Desenvolvimento Sustentável. Tais processos, tinham a
preocupação de se afastar de qualquer centralidade economicista e acabaram
embasando projetos de desenvolvimento local nas décadas subsequentes, que em
sua grande maioria também passaram a desvincular-se dessa visão. Essa
necessidade de se opor ao molde pronto de desenvolvimento da economia
hegemônica deve-se principalmente à falência desse modelo quando aplicado aos
países subdesenvolvidos e de forma geral à indiferença desse modelo frente às
desigualdades sociais geradas.
Nesse sentido, o desenvolvimento local busca desvincular-se da visão
economicista de desenvolvimento, atribuindo um caráter mais humano a este
19 A Agenda 21 Local foi um desdobramento da Agenda 21, plano de ação global elaborado
pela ONU em prol do desenvolvimento sustentável, que foi adotado a partir da Conferência Mundial
do Meio Ambiente no Rio de Janeiro em 1992. Disponível em
https://antigo.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21.html Acesso em: 16 mai. 2021.
79
conceito, ao considerar que o indivíduo deve atuar simultaneamente como
beneficiário e sujeito do processo de desenvolvimento do seu entorno (MARTINS,
2002). Ao mesmo tempo, a natureza local desse desenvolvimento que irá abranger20
aspectos socioeconômicos, faz referência não somente à escala na qual as decisões
norteadoras desse processo serão tomadas, mas principalmente a uma afinidade
cultural entre os indivíduos participantes.
Em suma, González (1998) define o desenvolvimento local como um
”movimiento fundamentalmente endógeno, que surge de la iniciativa de la sociedad
civil, vinculada a un territorio y a una historia concreta, fundamentada en la
valorización y utilización de los recursos locales con los que cuenta”. Essa definição
de desenvolvimento local aproxima-se de uma perspectiva “empreendedora” deste
conceito, na qual busca-se potencializar as competências locais para aproveitar as
oportunidades proporcionadas pelos mercados externos (MELLO, 2014). Sob tal
perspectiva, ao mesmo tempo em que a comunidade critica a réplica dos modelos
de desenvolvimento já estabelecidos, ela também consegue coexistir e compor o
tecido socioeconômico capitalista do seu entorno. Por isso, essa foi a abordagem
escolhida para embasar as reflexões acerca do tema neste trabalho, por entender
que ela se aproxima mais da economia capitalista e que portanto, poderia atuar
como primeira etapa nesse caminho de transição.
A seguir, neste capítulo será discutido como se dá esse processo de
formação de uma comunidade orientada para o desenvolvimento local, bem como os
riscos atrelados e o papel dos atores envolvidos. Em seguida, serão apresentadas
algumas discussões sobre como o desenvolvimento local aborda questões como
produção, trabalho e consumo. Ajudando a embasar, assim, a avaliação de quais
aspectos o desenvolvimento local se aproxima de uma sociedade de consumo e em
quais outros se aproxima de uma sociedade de decrescimento. Dessa forma será
20 Segundo Pecqueur (2005), o termo mais adequado seria “desenvolvimento territorial” ao
invés de “desenvolvimento local”, uma vez que esse desenvolvimento não deve ser vinculado à uma
dimensão de algo “pequeno”, mas sim à localização do território. Neste trabalho, no entanto, os dois
termos serão considerados como sinônimos. Além disso, vale ressaltar que não há uma regra quanto
à escala do território para que seja considerado um desenvolvimento local. De modo geral, verifica-se
uma comunidade, um bairro ou até mesmo uma região, desde que as premissas de identificação com
o território sejam satisfeitas.
80
possível discutir a viabilidade dessa alternativa como um caminho de transição de
fato.
5.1. Direcionadores para a Implementação do Desenvolvimento Local
Apesar do desenvolvimento local também seguir a premissa de que sua
implementação deve se adaptar às especificidades de cada território, evitando
reproduzir o erro de preconizar um desenvolvimento único para todas as regiões,
notou-se que para tal algumas pré-condições deveriam ser satisfeitas. Primeiro, é
necessário que o coletivo de indivíduos tenha uma identificação com o território. A
partir dessa identidade territorial, é possível observar o surgimento de um
sentimento de cooperação e solidariedade social em prol da manutenção daquele
território comum. Esse sentimento de pertencimento a um grupo social é o que
corrobora para um aumento da participação coletiva nos processos de tomada de
decisão que concernem tal território, desencadeando na construção coletiva de um
processo de desenvolvimento local (ARAÚJO et al., 2017).
Para que esse encadeamento de fatos ocorra, é fundamental que haja uma
reavaliação e reconceituação dos valores daquela comunidade, assim como é
necessário para a construção de uma sociedade de decrescimento. No entanto,
sabendo que o ponto de partida desse processo de construção do desenvolvimento
local é a sociedade de consumo, é importante ressaltar alguns desafios a serem
superados em cada etapa (Figura 7).
FIGURA 7 - RISCOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO LOCAL
Fonte: Elaboração própria
81
Por exemplo, uma identificação com o território sob a mentalidade
individualista de maximização dos benefícios do Homo economicus é incapaz de
construir um sentimento de solidariedade social. Além disso, pensando sob uma
mentalidade mercantilista, aqueles territórios que possuem recursos escassos
podem sofrer com a emigração de seus habitantes em busca de outros locais mais
propícios para atingir seus objetivos individuais. Tal risco, além de impedir a
construção de laços de solidariedade social, demonstra que a identificação com o
território sob a ótica de preservá-lo não conseguiu ser construída, impossibilitando
um processo de desenvolvimento local desde seu primeiro requisito.
Na etapa seguinte, pode ser que a identificação com o território tenha se dado
sob uma lógica de preocupação e preservação ambiental, no entanto não tenha sido
suficiente para recolonizar o imaginário social, fazendo com que alguns indivíduos
sigam interagindo com o restante da comunidade orientados por uma busca
constante por status e poder. Nesse sentido, haveria uma competição no nível
individual na qual os “vencedores” teriam mais direito a usufruir dos recursos
comuns, por exemplo. Há também a possibilidade de haver uma disputa simbólica
em torno dos pressupostos normativos que deveriam pautar o processo de
desenvolvimento (FLORIT, 2016). Nesse caso, caberia aos “vencedores” definir qual
modelo de desenvolvimento seria aplicado àqueleterritório.
Para minimizar tal risco, seria desejável que a comunidade inserida no
território tivesse uma mínima coesão quanto à concepção holística de
desenvolvimento que deseja construir para si. Uma vez que, em níveis extremos, a
competição nesta etapa pode gerar um conflito de disputa pelo próprio território.
Assim, os riscos atrelados a essas duas primeiras etapas mostram a importância de
reavaliar as premissas comunitárias antes de mais nada, de modo que o
subconsciente coletivo esteja orientado a maximizar o bem-estar social e a
manutenção dos recursos naturais.
Antes de discutir os desafios inerentes à etapa de participação coletiva, é
importante trazer o conceito de participação em si. Para Bordenave (1985), a
participação é não só um instrumento para a resolução de problemas, mas
primariamente um processo inerente à natureza humana enquanto seres sociais que
82
buscam prazer ao satisfazer suas necessidades afiliativas, sentir-se parte da criação
de algo maior e também ser valorizados pelos demais. Dessa forma, no processo de
busca por um desenvolvimento centrado no ser humano, a pré-condição de
participação torna-se uma das chaves para que este ser atinja seu pleno potencial
na sociedade.
Nesta etapa, um dos riscos é que haja uma hierarquia de opiniões e ideias,
em que algumas pessoas julguem ser mais capacitadas para tomar decisões em
prol do grupo, e o fazem de maneira unilateral considerando apenas suas
impressões pessoais. Isso acontece quando a participação se dá apenas segundo
uma lógica instrumental na qual o indivíduo escolhe fazer as coisas com os demais
por julgar ser mais eficiente ou adquirir algum benefício do coletivo em prol
individual, e não segundo uma lógica afetiva de quem sente prazer em fazer as
coisas em conjunto (BORDENAVE, 1985). Esse é um dos principais riscos dessa
etapa uma vez que se a comunidade não adotar uma postura ativa de ser gestora do
seu próprio desenvolvimento, participando dessa construção, ela pode acabar
apenas reproduzindo em menor escala a lógica de seguir modelos de
desenvolvimento pensados de cima para baixo.
Evidente que dependendo da decisão, das pessoas afetadas e da natureza
de cada comunidade, essa participação coletiva pode se dar em diferentes níveis.
Para um processo de desenvolvimento local, a participação coletiva será tão melhor
quanto maior for o grau de participação dos indivíduos e se diferenciará mais das
estruturas hierárquicas top-down quanto menor for o grau de controle por parte de
alguns membros (Figura 8). Dessa forma, o formato de máxima participação coletiva
é o da autogestão na qual a comunidade será a responsável por definir seus
objetivos, como atingi-los e quais os controles necessários para avaliar o progresso,
sem referência a uma autoridade ou a um modelo externo. (BORDENAVE, 1985).
83
FIGURA 8 - GRAUS E NÍVEIS DE PARTICIPAÇÃO DENTRO DE UM COLETIVO
Fonte: Elaboração própria com base em Bordenave (1985, p.31)
No entanto, a principal dificuldade imposta por esses graus de participação é
que geralmente o processo de desenvolvimento local ocorre naquelas comunidades
que já sofrem com as desigualdades provocadas pelo modelo de desenvolvimento
hegemônico. Essas pessoas, em geral, já são negligenciadas de espaços
participativos de tomada de decisão, desde esferas familiares até esferas política e
cidadã. Os graus de participação aos quais elas estão acostumadas são geralmente
os graus inferiores, recebendo apenas informação sobre decisões já tomadas ou
participando obrigatoriamente de espaços de decisão (como o voto eleitoral no
Brasil, por exemplo). Dessa forma, faz-se necessário a criação de espaços
acolhedores nos quais esses grupos tenham confiança e liberdade para elaborar
suas ideias e também tenham voz para tomar decisões sobre assuntos relevantes.
Assim, espera-se que elas desenvolvam a habilidade de atuar como protagonistas
frente ao futuro do seu próprio território.
Outro risco desta etapa é que as decisões tomadas pelo coletivo se
sobreponham às vontades individuais. Por exemplo, se alguém tiver habilidades
para desenvolver certa atividade produtiva, mas ela não for a atividade escolhida
para pautar o desenvolvimento do território, é possível que a pessoa acabe por
abdicar de suas próprias escolhas. Ou ainda, pode ser que ela seja impedida pelo
84
coletivo de seguir um caminho distinto. Apesar de não ser um risco direto à
construção de uma experiência de desenvolvimento local, é um risco do indivíduo
ser protagonista do desenvolvimento do território, mas acabar coadjuvante frente à
própria trajetória.
Uma vez que as pré-condições para um processo de desenvolvimento local
estejam satisfeitas, é necessário que cada comunidade explore o potencial do
território, seus recursos disponíveis (tanto naturais quanto humanos) e suas
habilidades empreendedoras em prol de melhorar a qualidade de vida local
(GONZÁLEZ, 1998). A combinação eficiente desses três fatores irá potencializar o
processo de desenvolvimento. O território, neste caso, pode atuar tanto como ponto
de alavanca desse processo, quanto como um ponto de estrangulamento
dependendo de aspectos como a acessibilidade de sua localização, seus recursos
naturais disponíveis, as competências contidas nos seus saberes locais e sua
infraestrutura disponível.
É importante salientar, no entanto, que independente do empreendimento
escolhido, ele estará sujeito às forças de mercado externas. Por mais que elas não
devam ser determinantes nessa escolha, é fundamental levá-las em consideração
para que a atividade escolhida seja capaz de alavancar as competências inerentes
ao território, conferindo uma vantagem competitiva no longo prazo para a
comunidade.
Supondo que uma determinada comunidade ABC tenha escolhido a
agricultura orgânica como atividade produtiva em potencial. Seus produtos atendem
às necessidades locais em primeira instância e a parte do excedente produtivo é
comercializada fora do território, cuja renda obtida é essencial para a complementar
o estilo de vida da comunidade. O que fazer se em dado momento o mercado não
for mais capaz de absorver a oferta de alimentos orgânicos, preferindo consumir
alimentos ofertados por uma famosa marca do segmento por um custo mais baixo,
por exemplo? Nesse cenário, a comunidade deve tomar a decisão pautando não só
as demandas do mercado, mas primordialmente o seu bem-estar. Caso contrário, se
a decisão for tomada levando apenas em consideração o que o mercado “quer”,
considerando mudar completamente o tipo de empreendimento, por exemplo, há um
85
risco inerente que os atores locais percam o protagonismo do seu próprio
desenvolvimento.
5.2. O Papel dos Atores Envolvidos no Desenvolvimento Local
Mais que empresas ou instituições governamentais, o protagonismo num
cenário de desenvolvimento local é dado aos próprios indivíduos que compõem o
território. Não quer dizer, no entanto, que outras instâncias não tenham sua
importância e seu papel em facilitar esse processo de desenvolvimento, mas sim
que elas não devem ser as responsáveis pelo processo de tomada de decisão, que
deve ocorrer de maneira coletiva de baixo para cima.
Como dito anteriormente, isso é feito através da identificação dos recursos
disponíveis com maior potencial para gerar desenvolvimento, sejam eles
econômicos, humanos, culturais ou ambientais. Em geral, essas comunidades
valorizam primordialmente os recursos humanos, seus conhecimentos
não-transferíveis, seus saber-fazer particulares que são capazes de produzir novos
conhecimentos e práticas coletivas que podem lhe conferir fatores de diferenciação
frente ao que já está disponível na sociedade (PECQUEUR, 2005). Por fim, é
necessário que os indivíduos estejam de fato dispostos a assumir o protagonismo do
seu próprio processo de desenvolvimento socioeconômico, dispondo de um espírito
empreendedor que seja capaz de reunir o melhor desses recursos ao desenvolver
soluções e projetos para beneficiara comunidade (GONZÁLEZ, 1998).
Apesar do protagonismo ser dos indivíduos membros da comunidade, as
instituições governamentais também assumem um papel relevante no cenário de
desenvolvimento local. Segundo Pecqueur (2005), ao Estado cabem pelo menos
três funções primordiais: redistribuir riqueza entre os territórios para minimizar
desigualdades espaciais, mediar os interesses das instâncias locais, nacionais e
internacionais, e também assegurar que a coordenação das comunidades locais se
dê ora de maneira vertical (no que diz respeito à hierarquia de poderes
governamental) e ora de maneira horizontal (no que diz respeito à relação entre
projetos governamentais e os atores locais).
86
O papel das instituições públicas também contempla o incentivo a
empreendimentos de produtos ou serviços não necessariamente voltados para o
mercado, estimulando a produção local de uma oferta mais diversificada de bens
(PECQUEUR, 2005). Dessa forma, o Estado fomenta que os territórios não sejam
obrigados a se submeter a uma lógica de produzir apenas aquilo que tem valor no
mercado, conferindo certo grau de autonomia para que as comunidades tomem suas
decisões quanto aos melhores empreendimentos em prol do bem-estar comum.
Assim, a produção em escala local busca atender primeiramente às necessidades
da comunidade e, depois sim, escoar parte dela para atender a demandas do
mercado externo.
Com isso, o papel das empresas ou cooperativas locais está atrelado
primeiramente a atender as necessidades locais, tanto em termos de produção,
como em termos de geração de emprego. Além disso, elas não podem perder de
vista o mercado externo, já que a comunidade local deve ser capaz de coexistir em
harmonia com o entorno globalizado, por isso é necessário orquestrar os recursos
disponíveis de maneira tal que seja possível ter uma escala produtiva competitiva
com o mercado do entorno (GONZÁLEZ, 1998).
Há que se ressaltar, no entanto, que o papel das instituições públicas nem
sempre será de incentivo. Dependendo do quão alinhado o plano do governo vigente
estiver com as premissas do desenvolvimento local, o Estado pode assumir um
papel no qual suas políticas dificultem a produção local. Além disso, dependendo da
infraestrutura e dos recursos naturais disponíveis no território em questão, pode ser
de interesse do próprio Estado ter controle sobre o mesmo, dificultando que práticas
de participação coletiva se estabeleçam.
Não só isso, como também grandes empreendimentos tradicionais pautados
pela lógica de crescimento da sociedade de consumo, também podem querer
disputar pelo uso de determinado território para suas atividades produtivas. Esse
risco é observado principalmente em comunidades localizadas na fronteira de
regiões de expansão de atividades econômicas. São elas as que mais sofrem
pressões constantes pelo deslocamento compulsório do território ou ainda pela
descontinuidade de suas atividades produtivas locais (DIAS et al., 2013).
87
Nesses casos, um Estado pautado nas premissas economicistas de
desenvolvimento pode apoiar a instalação dessas grandes corporações em
detrimento de empreendimentos locais, utilizando como base o discurso de que elas
são a melhor forma de garantir emprego, renda e progresso para sua região. Esse
tipo de lógica, pode culminar no fenômeno que Acselrad (2004 apud DIAS et al.,
2013) denomina de chantagem da localização, no qual são estimuladas guerras
fiscais entre diferentes estados e unidades administrativas em prol de garantir o
crescimento econômico para sua região.
Quando tal disputa envolve territórios ricos em recursos naturais, ela não se
dá apenas no nível de impostos, visando baratear os custos de produção, mas
também na flexibilização da legislação ambiental com o objetivo de acelerar o
processo de instalação industrial. Dessa forma, as grandes empresas conseguem
exercer suas atividades produtivas sob uma lógica contrária à do desenvolvimento
local que defende a coexistência harmônica com o entorno ambiental.
Devido a uma mudança recorrente nas diretrizes econômicas das diferentes
instâncias estatais, o papel dos órgãos públicos frente às corporações privadas e às
comunidades locais, pode emergir em conflitos socioambientais. Tais conflitos
também são orientados pela noção de injustiça ambiental, premissa básica de
sociedades pautadas no modelo econômico hegemônico no qual os órgãos políticos
acreditam que a maior carga de danos ambientais pode ser destinada a
comunidades marginalizadas pelo capital (ACSELRAD, 2004 apud DIAS et al.,
2013). Assim, tanto instâncias públicas quanto privadas podem assumir um papel de
frear o processo de desenvolvimento local, tirando o protagonismo da comunidade
em determinar seu próprio processo de desenvolvimento.
5.3. Um Olhar sobre Produção, Trabalho e Consumo
As experiências de desenvolvimento local também apresentam um leque de
possibilidades no que diz respeito ao modo como encaram consumo, produção e
trabalho. Em linhas gerais, como dito anteriormente, a produção segue um viés
empreendedor de fortalecer os saberes locais e pensar primeiramente na satisfação
das necessidades locais antes de atender ao mercado externo. Dessa forma, a
88
produção local é responsável não só por suprir parcela significativa da demanda
local, como também pela geração de postos de trabalho e distribuição de renda na
comunidade.
Além disso, como o desenvolvimento local se caracteriza justamente por não
reproduzir lógicas pré-moldadas recebidas num processo de cima para baixo, as
tecnologias utilizadas para aprimorar nos processos produtivos, em geral, são
tecnologias sociais . Essas melhorias nos processos produtivos prezam21
primariamente pela melhora na qualidade de trabalho para os indivíduos e também
pela maior preservação do meio ambiente. Assim como observado na literatura do
decrescimento, o desenvolvimento local também enxerga uma hierarquia entre
tecnologias de matrizes sustentáveis sendo superiores a tecnologias que utilizam
recursos não-renováveis, justamente por esse apelo comum à preservação
ambiental.
Quanto ao trabalho, é curioso observar que em geral o desenvolvimento local
promove uma redução do desemprego na sociedade capitalista, uma vez que
consegue absorver essa mão de obra ociosa através da sua produção local. A
organização do trabalho frequentemente se dá através de associações ou
cooperativas, nas quais os integrantes possuem alto grau de participação.
Entretanto, mesmo tendo influência sobre seus postos de trabalho, nem sempre isso
implica em qualidade e segurança dos postos de trabalho, nem em uma maior
quantidade de tempo livre de atividade produtiva. Por vezes, a construção dessa
organização de trabalho pode estar sujeita aos mesmos padrões da sociedade
capitalista como longas jornadas para atingir um excedente produtivo.
Supondo como exemplo determinada comunidade cuja atividade produtiva
principal seja a agricultura. Naturalmente, essa é uma atividade produtiva que exige
elevado grau de esforço físico, que em geral seria associado com uma menor
qualidade no posto de trabalho. Pela perspectiva do desenvolvimento local, o fato
desse posto de trabalho conferir maior ou menor qualidade de vida para o
21 Tecnologias Sociais são orientadas para o uso sustentável dos recursos disponíveis
localmente, para a gestão e concepção coletiva, e para abarcar as particularidades regionais
(DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004 apud HENRIQUES; NEPOMUCENO; ALVEAR, 2015),
opondo-se claramente à tecnologia convencional transposta de maneira top-down pelo mercado para
as comunidades locais.
89
trabalhador que o executa não é capaz de interferir na classificação da experiência
como um exemplo de desenvolvimento local.
Já no âmbito do escoamento da produção, Mance (2004) destaca a
possibilidade de criação de Feiras Solidárias que englobem diferentes produtores
locais e facilitem o acesso dos produtos ao mercado externo. Há também a
possibilidade de criação de Cooperativasde Consumo e Grupos de Aquisição
Solidária, facilitando a conexão entre produtores, comerciantes intermediários e
consumidores finais, buscando fortalecer o arranjo sócio-produtivo local (MANCE,
2004). Essas iniciativas contribuem com um ganho de escala, fortalecendo as
produtoras locais frente a marcas já estabelecidas no mercado capitalista, e
exemplificando pilares de cooperação e solidariedade entre localidades que em um
mercado tradicional seriam concorrentes. Mais do que isso, as associações entre
diferentes produtores locais também são uma forma de escoar a produção para um
mercado dentro dessa rede. Dessa forma, moradores de determinado local, podem
buscar consumir de outras experiências locais aqueles produtos que não produzem
internamente, fortalecendo ainda mais essa rede e se opondo ao mercado oriundo
da economia hegemônica.
Outra prática comum no contexto de experiências de desenvolvimento local é
a criação de Bancos Comunitários. Segundo o Instituto Banco Palmas, primeiro
Banco Comunitário do país, esse tipo de instituição “é um instrumento de promoção
do desenvolvimento econômico responsável pela execução dos serviços financeiros
da comunidade”. Nesses bancos é comum que sejam utilizadas moedas específicas,
conhecidas como moedas sociais . Estima-se que hoje no Brasil circulem mais de22
100 tipos de moedas sociais gerenciadas por Bancos Comunitários.
Esses bancos se caracterizam por serem geridos pela comunidade civil e
criados em prol do desenvolvimento da comunidade. Em geral são oferecidos
serviços como linha de crédito produtivo para negócios locais e também para o
consumo individual. As linhas orientadas para o consumo individual são ofertadas a
22 São moedas que valem apenas para o comércio local, obrigando que a riqueza gerada pela
comunidade seja reinvestida nela mesma. Vale ressaltar que as moedas sociais são lastreadas junto
ao Real, e que não substituem a moeda oficial do país. Disponível em
https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2019/08/moedas-sociais-saiba-como-funciona-econ
omia-alternativa-no-brasil.html Acesso em: 17 fev. 2021.
90
partir da moeda social local, contribuindo para incrementar a dinâmica econômica do
entorno. Vale ressaltar que há uma premissa básica nesse modelo de
desenvolvimento de que o comércio local já foi idealizado para atender às
necessidades primárias da comunidade. Dessa forma, as moedas sociais visam
garantir que esse consumo fique retido no entorno local. Assim, o consumo
incentivado com esse crédito é diferente daquele fruto de falsas necessidades
despertadas pela sociedade de consumo capitalista.
No caso do Banco Palmas, é importante pontuar que também é ofertado um
serviço de fundo solidário para compras conjuntas, no qual um grupo de pessoas
ligadas à mesma atividade produtiva fazem uma lista de compras de insumos e o
próprio banco negocia com os fornecedores. Esses produtores também têm a
possibilidade de parcelar o valor total da compra com o banco em até seis vezes,
além de conseguir descontos decorrentes da compra em maior escala. Esse tipo de
experiência reforça os valores solidários aparecendo inclusive nas relações de
negócio, mostrando que na comunidade passou por um processo de reconceituar
seus valores prioritários.
5.4. Avaliação de Afinidade com a Proposta da Sociedade de
Decrescimento
Uma vez abordados os fundamentos teóricos do desenvolvimento local,
pretende-se avaliá-lo de acordo com a matriz de afinidade proposta no capítulo 4 a
fim de discutir se experiências desse tipo de fato são um caminho de transição rumo
à sociedade de decrescimento. Como essa afinidade será medida no campo teórico,
e o desenvolvimento local dá certa autonomia a cada experiência local de definir
suas práticas locais, é possível que experiências específicas se aproximem um
pouco mais ou menos da proposta do decrescimento.
A seguir, serão detalhadas as notas dadas a cada um dos critérios:
91
1. Abandono da perseguição pelo Crescimento Econômico
Nota: 0 - Totalmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: As experiências sob a ótica do desenvolvimento local não
buscam uma saída da economia capitalista ou deixam de almejar o
crescimento econômico. Assim como na economia hegemônica, o
crescimento econômico é tido como um meio de melhora no bem-estar da
comunidade.
2. Visão Holística e Autônoma de Desenvolvimento
Nota: 3 - Totalmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: O desenvolvimento local surge como uma crítica ao modelo
hegemônico de desenvolvimento, buscando desvincular-se da visão
economicista, atribuindo um papel de protagonista aos indivíduos locais e
tendo a identificação com o território como um requisito.
3. Valorização das Riquezas Não-monetárias
Nota: 2 - Parcialmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: O estabelecimento de relações pautadas na cooperação e na
solidariedade podem ser observadas não só entre os membros locais, mas
também entre eles e o meio ambiente. De toda forma, considera-se que esse
não é um fator determinante na classificação de uma experiência de
desenvolvimento local. Assim, há uma mínima afinidade neste aspecto com a
sociedade de decrescimento, mas que dependendo do contexto prático pode
seguir havendo uma supervalorização de itens materiais.
4. Incorporação Autônoma de Inovações Tecnológicas
Nota: 2 - Parcialmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Assim como na teoria do decrescimento, o desenvolvimento
local aposta por tecnologias sustentáveis e autônomas, evitando replicar
modelos externos. Entretanto, por não ser um fator determinante para a
classificação de determinada experiência como desenvolvimento local, foi
atribuída a pontuação de afinidade mínima.
92
5. Indiferença aos efeitos da Publicidade
Nota: 0 - Totalmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Não há na teoria do desenvolvimento local qualquer aspecto
que faça uma oposição clara aos efeitos da publicidade no tecido social.
6. Redução do Crédito como Estímulo ao Consumo Individual
Nota: 1 - Parcialmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Em termos teóricos, não há nenhuma restrição de acesso ao
crédito seja por meio de bancos tradicionais ou comunitários. Entretanto, há
um esforço em produzir internamente os bens necessários, minimizando a
necessidade de busca por crédito individual para consumo externo. Além
disso, em algumas experiências como no caso dos bancos comunitários, a
oferta de crédito com base nas moedas sociais atua como forma de reforçar o
consumo em escala local e contribuir para o desenvolvimento econômico da
região.
7. Preferência por produtos mais duráveis
Nota: 2 - Parcialmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Devido à premissa de identificação territorial nas experiências
de desenvolvimento local, existe uma tendência pelo consumo de produtos
mais duradouros como forma de mitigar o impacto ambiental. Entretanto, não
é um requisito para a classificação de alguma experiência segundo o
desenvolvimento local.
8. Práticas de Reutilização e Reciclagem
Nota: 2 - Parcialmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: A mesma justificativa do critério anterior, existe uma tendência
à prática de reciclagem e reutilização dos materiais, porém não é um requisito
para classificar uma experiência segundo o desenvolvimento local.
93
9. Produção em Escala Local
Nota: 3 - Totalmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Condição primária para classificar determinada experiência
segundo o desenvolvimento local, assim como um dos direcionadores de
implementação da sociedade de decrescimento.
10.Produção Ambientalmente Sustentável
Nota: 3 - Totalmente Verificado como o Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: As experiências de desenvolvimento local pressupõem algum
tipo de atividade produtiva, somadaao fator de identificação e preservação do
território. Dessa forma, ter uma produção ambientalmente sustentável é como
um pré-requisito assim como na sociedade de decrescimento.
11. Tempo Livre Disponível
Nota: 1 - Parcialmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Acredita-se que a nota deste critério pode variar amplamente
de acordo com a experiência analisada. Em termos teóricos, observa-se uma
tendência a ter maior tempo livre disponível, uma vez que estaria diretamente
ligado ao bem-estar e às práticas sustentáveis. Por outro lado, não é
garantido que este tempo livre esteja apartado de atividades produtivas sejam
elas remuneradas, sejam elas em prol do desenvolvimento comunitário.
12.Qualidade dos Postos de Trabalho
Nota: 1 - Parcialmente Oposto ao Idealizado pelo Decrescimento
Justificativa: Acredita-se que a nota deste critério pode variar amplamente
de acordo com a experiência analisada. No campo teórico, há uma tendência
à concepção de postos de trabalho com maior qualidade para os ocupantes,
devido à preocupação com o bem-estar social. Entretanto, na prática, não é
garantido que todos os postos de trabalho sejam assim, podendo variar de
acordo com a disponibilidade de mão de obra e até com a infraestrutura
disponível no local.
94
QUADRO 7 - MATRIZ DE AFINIDADE DO DESENVOLVIMENTO LOCAL COM O
DECRESCIMENTO
Fonte: Elaboração própria
Com base nas notas determinadas, o desenvolvimento local aparece com
uma pontuação de 1,756 numa escala de afinidade de 0 a 3 com a teoria de
decrescimento econômico. Apesar do número absoluto indicar que em termos
teóricos o desenvolvimento local se aproxima mais de uma sociedade de
decrescimento do que de uma sociedade de consumo, é válido ressaltar novamente
que em termos práticos, dependendo da experiência de desenvolvimento local
analisada essa afinidade pode variar tanto para mais quanto para menos.
Além disso, aprofundando a análise no resultado de cada um dos macro
critérios, vemos que a principal afinidade reside no campo da produção, uma vez
que as duas teorias enxergam o fator local como preponderante para se opor ao
modelo hegemônico. Já em termos econômicos, a principal afinidade está no fato do
desenvolvimento local se opor à visão economicista do desenvolvimento, pautando
sua alternativa na autonomia que cada território possui de definir como alcançar
esse desenvolvimento mais holístico. No entanto, é difícil que a pontuação deste
último macro-critério seja máxima, uma vez que visando coexistir com a sociedade
95
de consumo, o desenvolvimento local não se opõe à busca pelo crescimento
econômico que é a principal crítica do decrescimento neste aspecto.
FIGURA 9 - PERCENTUAL DA PONTUAÇÃO TOTAL OBTIDO EM CADA MACRO GRUPO
Fonte: Elaboração própria
Na Figura 9, é possível observar qual percentual da pontuação máxima foi
obtido em cada um dos macro grupos. Conforme discutido, a tendência é que nos
critérios do grupo Redução dos Níveis de Produção a pontuação seja sempre
máxima, por conta dos pré-requisitos teóricos do desenvolvimento local. No grupo
de Reavaliação de Premissas da Economia Hegemônica, pode haver uma variação
dependendo de experiências específicas, mas não é esperado que atinja o 100%
por conta da valorização do crescimento econômico.
Por outro lado, os critérios referentes à Redução dos Ciclos de Consumo e
Redução dos Níveis de Trabalho são aqueles que apresentam maior risco de uma
experiência de desenvolvimento local se aproximar de uma mera reprodução da
sociedade de consumo em menor escala. Em termos de níveis de trabalho, há um
risco de reproduzir a lógica produtivista ainda que seja em prol da comunidade local.
Já do ponto de vista do consumo, há o risco de manter níveis consideráveis de
compra sob a lógica de comprar “o produto certo, do fornecedor certo” que se
aproxima do discurso sustentável capitalista e que é uma das críticas do
decrescimento. Dessa forma, espera-se uma maior volatilidade nas pontuações aqui
obtidas de acordo com a experiência analisada.
96
Isso acontece justamente por não haver uma fórmula pronta sobre o que uma
comunidade sob a lógica do desenvolvimento local deve ou não seguir, algumas
experiências práticas podem ter maiores graus de oposição à sociedade de
consumo e, consequentemente, mais afinidade com a proposta do decrescimento.
Assim como numa sociedade de decrescimento, o desenvolvimento local defende a
autonomia de cada região enquanto tomadora de decisão do seu processo de
desenvolvimento, permitindo um leque de possibilidades sobre as práticas aplicadas.
97
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente projeto de graduação surgiu do intuito de apresentar um
contraponto à sociedade de consumo: a teoria do decrescimento econômico.
Entretanto, sabe-se que os valores da economia hegemônica hoje estão tão
intrínsecos no tecido social que a implementação de uma sociedade de
decrescimento seria extremamente lenta e difícil. Por defender que mesmo assim,
uma sociedade de decrescimento deveria ser o cenário de sociedade ideal,
buscou-se estudar os principais norteadores desse caminho de transição do
consumo ao decrescimento.
Acredita-se que uma das contribuições centrais deste trabalho esteja
justamente na construção de uma ferramenta de análise que permitiu entender os
principais pontos de intersecção entre a utopia da sociedade de decrescimento e
determinada teoria ou experiência. Uma vez que no contexto econômico atual, é
muito comum que até mesmo as insatisfações socioambientais individuais sejam
incorporadas pelo capitalismo, torna-se essencial saber quais são esses norteadores
rumo à uma sociedade de decrescimento. Dessa forma, espera-se evitar que
experiências camufladas num discurso raso de preocupação socioambiental sejam
tidas como alternativas à sociedade de consumo.
Assim, buscou-se aplicar a matriz de afinidade elaborada à teoria do
desenvolvimento local visando alcançar o objetivo do presente trabalho de analisar
se essa teoria era capaz de nortear experiências nesse caminho de transição rumo
ao decrescimento ou não. Como existem diversas experiências orientadas pelo
desenvolvimento local mapeadas na literatura, obviamente não era esperado que
houvesse uma afinidade plena entre essa teoria e o decrescimento. Caso contrário,
a sociedade do decrescimento não precisa mais ser considerada uma utopia, mas
sim uma realidade.
A partir da pontuação obtida (1,756), pode-se concluir que a teoria do
desenvolvimento local apresenta 58% de afinidade com a teoria que embasa a
sociedade de decrescimento. Sendo que o principal ponto de afinidade reside no
fato de ambas partilharem da premissa de que uma produção a nível local é
determinante para garantir melhores condições de desenvolvimento. Além disso, as
98
duas teorias acreditam num desenvolvimento autônomo e holístico, que contemple
também aspectos socioambientais além do mero dinamismo econômico. Por outro
lado, o desenvolvimento local não pressupõe nenhuma crítica ao crescimento
econômico como motor do desenvolvimento econômico, nem aos indicadores
utilizados para medi-lo.
Vale ressaltar, no entanto, que este trabalho foi pautado inteiramente numa
análise de afinidade teórica. Dada a dificuldade de transpor a proposta do
decrescimento para o campo prático, acreditava-se que analisar especificamente
uma experiência de desenvolvimento local, poderia enviesar o resultado obtido. Uma
vez que, assim como o decrescimento, a proposta do desenvolvimento defende que
cada experiência construa suas práticas sociais de maneira autônoma. Por isso,
optou-se por manter o escopo deste trabalho sob uma perspectiva mais macro.
Dessa forma, uma vez percebida tal afinidade no campo teórico, é desejado
que em estudos futuros, essa análise possa ser replicada num nível mais micro, a
partir da análise de experiências específicas. Assim, será possível compreender e
tangibilizar alguns exemplos práticos de como se aproximar dessa utopia do
decrescimento.É sugerido também que a pessoa que estiver conduzindo tal
avaliação passe por um processo mínimo de imersão nessa experiência,
observando as dinâmicas locais e entrevistando alguns participantes, reforçando,
assim, o propósito de trazer resultados mais tangíveis com a realidade.
Por fim, espera-se que o presente trabalho tenha contribuído também para
endossar a literatura no campo da engenharia e da economia com reflexões acerca
de perspectivas alternativas ao modelo hegemônico atual. Além disso, deseja-se
que ele também contribua para ampliar a compreensão do senso comum de que a
sociedade de consumo em que se vive hoje não pode ser entendida como algo
dado, mas sim como resultado de um processo histórico que ajudou a fortalecer o
sistema econômico capitalista. Dessa forma, é preciso que todos que assim como
Robert Kennedy acreditam que o PIB mede tudo “exceto aquilo que faz a vida valer
a pena”, também acreditem que a construção de modelos alternativos à sociedade
de consumo são não só necessários, como também possíveis.
99
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