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DOENÇA INFLAMATÓRIA PÉLVICA (DIP) Definição A Doença Inflamatória Pélvica (DIP) é definida como um quadro infeccioso que acomete o trato genital superior feminino, isto é, acima do orifício interno do colo do útero, podendo envolver endométrio, miométrio, tubas uterinas e ovários e ainda disseminar-se para a cavidade pélvica. Trata-se, portanto, de um conjunto de doenças inflamatórias/infecciosas. Não se incluem nessa definição os processos infecciosos ou inflamatórios decorrentes de manipulações cirúrgicas prévias ou do ciclo gravídico-puerperal. Figura 11.1 - (A) Exame especular visualizando processo inflamatório da cérvice uterina com saída de exsudato mucopurulento e (B) imagem laparoscópica com salpingite e líquido purulento na cavidade Etiopatogenia Diversos agentes causadores de vulvovaginites e cervicites podem estar envolvidos na etiopatogenia. Porém, os agentes sabidamente mais importantes são Neisseria gonorrhoeae (é uma bactéria diplococo gram-negativo, não flagelado, não formador de esporos, não hemolítico, aeróbio ou facultativamente anaeróbio; causadora da gonorréia) e Chlamydia trachomatis (é uma bactéria não usualmente corada pelo GRAM, mas determinada como gram negativa por conta de seu peptídeoglicano fino; causadora da clamídia). Além destes, há notável quantidade de patógenos que compõem a flora polimicrobiana característica da doença inflamatória pélvica. Esses micro-organismos podem ser bactérias Gram positivas e Gram negativas aeróbias e anaeróbias, entre as quais salientamos microorganismos comuns da microbiota vaginal – Gardnerella vaginalis (causadora da Gardnerella), Haemophilus influenzae, Streptococcus agalactiae –, além de Mycoplasma hominis, Escherichia coli e Ureaplasma urealyticum. Nas pacientes usuárias de DIU, pode ocorrer DIP por Actinomyces israelii (causadora da actinomicose). O protozoário Trichomonas vaginalis (causadora da tricomoníase) costuma provocar, mais frequentemente, vulvovaginite. Todavia, em alguns casos pode evoluir também para DIP. A diferença do agente etiológico principal se traduz no quadro clínico diverso. Quando a DIP é causada pelo gonococo (N. gonorrhoeae), o quadro clínico tende a ser mais exuberante, com dor pélvica aguda, leucorreia purulenta abundante e instalação mais abrupta dos sintomas; quando causada, basicamente, pela clamídia, o quadro tende a ser mais insidioso e menos exuberante, com sintomas de longo prazo e de menor intensidade, muitas vezes só se revelando pelas consequências tardias de infertilidade por fator tuboperitoneal. Obviamente, nem sempre essa regra é exata; pode haver uma miscelânea da intensidade de sintomas e do tempo de aparecimento. Fisiopatologia A ascensão das bactérias pela vagina e pelo colo do útero acontece, preferencialmente, no período pós-menstrual, quando condições locais de pH, abertura do orifício uterino e contratilidade uterina favorecem a dinâmica ascendente. Os agentes ascendem pela endocérvice, causando endocervicite aguda, continuam a subir pelo endométrio, provocando endometrite, e progridem até as tubas, levando à salpingite. Quando se encontra dentro das tubas, a infecção pode seguir dois cursos: se as fímbrias se ocluírem como meio de proteção, a infecção ficará restrita àquele ambiente, levando ao aparecimento de piossalpinge no quadro agudo e hidrossalpinge como consequência futura por destruição do epitélio endotubário. Nos casos em que não houve tempo de as tubas se ocluírem, a infecção pode atingir a cavidade pélvica, desenvolvendo pelviperitonite com abscesso no fundo de saco de Douglas ou no tubo ovariano. Nessas circunstâncias, o material purulento pode atingir as goteiras parietocólicas, e no lado direito chega à cápsula de Glisson, levando à peri-hepatite, denominada síndrome de Fitz-Hugh-Curtis, com dor e desconforto que simulam quadro de colecistite aguda (por ser no quadrante superior esquerdo). Fatores de risco Alguns fatores são considerados de risco para o desenvolvimento da DIP: 1. Vulvovaginites e/ou cervicites concomitantes; 2. Múltiplas parcerias sexuais; 3. Início precoce da vida sexual; 4. Faixa etária abaixo dos 25 anos; 5. Nuliparidade; 6. Classes econômica e social baixas; 7. História prévia de DIP ou infecções sexualmente transmissíveis; 8. Tabagismo; 9. Dispositivo intrauterino – somente nos primeiros 20 dias após a inserção; 10. Uso de tampões e duchas vaginais; 11. Não uso de preservativos nas relações sexuais. Diagnóstico Deve basear-se nos sinais e nos sintomas durante anamnese e exame físico detalhados. Eventualmente, necessita de complementação com exames subsidiários. O diagnóstico clínico permanece como a abordagem principal na DIP. Na anamnese e no exame físico, as principais queixas e achados na DIP são dor pélvica, corrimento vaginal, dispareunia, dor à palpação uterina e/ou anexial ao toque bimanual, dor à mobilização do colo uterino e massa ou espessamento anexial. Esses sintomas podem ser isolados ou coexistir. Há uma corrente de estudos que defende a subdivisão dos critérios para DIP em maiores, menores e específicos – ou elaborados –, segundo a qual são necessários, para o diagnóstico, três critérios maiores + um critério menor ou a presença de um critério elaborado. Subdivisão dos critérios: 1. Critérios maiores: a. Dor à palpação anexial; b. Dor à mobilização do colo uterino; c. Dor pélvica infrapúbica. 2. Critérios menores: a. Febre: temperatura oral > 38,3 °C ou temperatura axilar > 37,5 °C; b. Secreção vaginal e/ou endocervical purulenta; c. Massa pélvica; d. Leucocitose ao hemograma; e. Proteína C reativa elevada; f. Mais de cinco leucócitos por campo de aumento em secreção de endocérvice avaliada à microscopia; g. Comprovação laboratorial de infecção cervical por gonococo, Chlamydia ou Mycoplasma. 3. Critérios elaborados: a. Evidência histopatológica de endometrite; b. Presença de abscesso túbulo-ovariano ou no fundo de saco de Douglas aos exames de imagem; c. Laparoscopia evidenciando doença inflamatória pélvica. Exames subsidiários – podem ser solicitados, mas não são necessários quando o quadro clínico é típico: 1. Leucograma: monitorização da infecção e sua evolução com a terapêutica; 2. Urocultura: afastamento de infecção urinária; 3. Provas de atividade inflamatória – velocidade de hemossedimentação, proteína C reativa: costumeiramente elevadas; 4. Microscopia vaginal: presença de polimorfonucleares; 5. Pesquisa microbiológica: a. Cultura de material da endocérvice com antibiograma ou NAAT para N. gonorrhoeae; b. Pesquisa de clamídia no material da endocérvice, uretra, de laparoscopia ou punção de fundo de saco posterior; 6. Provas de funções renal e hepática e coagulograma: casos de comprometimento sistêmico; 7. Ultrassonografias pélvica e transvaginal: avaliação de coleções ou de abscessos pélvicos; 8. Tomografia computadorizada/ressonância nuclear magnética: avaliação de coleções pélvicas, localização precisa e análise da extensão do processo, bem como acometimento de estruturas adjacentes e exclusão de diagnósticos diferenciais; 9. Videolaparoscopia: diagnóstico e tratamento; 10. Beta-HCG: afastamento de complicações obstétricas; 11. Sorologias: afastamento de infecções sexualmente transmissíveis. Diagnósticos diferenciais A DIP tem, como diferenciais, as doenças infecciosas e inflamatórias que apresentam sintomas semelhantes – dor pélvica ou abdominal, febre e comprometimento do estado geral. Assim, os diferenciais podem ser outras ginecopatias ou doenças não ginecológicas. Dor no abdome inferior associada a quadro febril na mulher é queixa frequente nos prontos-socorros e um desafio diagnóstico devido às suas possíveis causas. Diagnóstico diferencial: 1. Causas ginecológicas: a. Vulvovaginites; b. Cervicites; c. Pólipos; d. Endometriose; e. Torção de ovário, ruptura de cisto deovário; f. Degeneração de mioma, torção de mioma. 2. Causas obstétricas: a. Gravidez ectópica; b. Abortamento séptico. 3. Causas não ginecológicas: a. Apendicite: é uma inflamação aguda do apêndice vermiforme, classicamente resultando em dor abdominal, anorexia e dor à palpação abdominal. O diagnóstico é clínico, frequentemente suplementado com TC ou ultrassonografia. O tratamento consiste na remoção cirúrgica do apêndice. b. Diverticulite: é a inflamação com ou sem infecção de divertículos, que pode causar a formação de fleimão da parede intestinal, peritonite, perfuração, fístula ou abscesso. O sintoma primário é dor abdominal. O diagnóstico é por TC. O tratamento é feito com repouso intestinal, às vezes antibióticos e, ocasionalmente, cirurgia. c. Litíase urinária (ou nefrolitíase): é uma patologia designada pela formação de cálculos, popularmente denominados “pedras”, no trato urinário. Os cálculos ureterais são formações endurecidas localizados nos ureteres, resultantes do acúmulo de cristais já existentes na urina. d. Infecção do trato urinário ou digestivo; e. Doenças inflamatórias intestinais: retocolite ulcerativa (RCU), doença de Crohn (DC) e síndrome do intestino irritável (SII). Condutas e opções terapêuticas O tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível com antibioticoterapia de amplo espectro contra os principais agentes causadores da doença, pois atrasos nessa etapa podem implicar graves danos ao sistema reprodutivo feminino. Se não houver critérios de internação, a terapêutica deve ser ambulatorial, com antibióticos visando à cobertura de flora polimicrobiana Gram positiva e Gram negativa, tanto aeróbia quanto anaeróbia. Segundo o Ministério da Saúde, os esquemas possíveis estão relacionados no Quadro 11.1. Quadro 11.1 - Esquemas terapêuticos para doença inflamatória pélvica A indicação de associação do metronidazol envolve a coexistência de anaeróbios muito frequentemente nas pacientes com DIP. Portanto, o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com ISTs (última edição 2019) recomenda a sua associação à doxiciclina – antibiótico para Chlamydia – e à ceftriaxona – antibiótico para o gonococo. A maioria dos guidelines não tem mais recomendado o uso de quinolonas para o tratamento do gonococo, tendo em vista o surgimento de cepas resistentes. Observe que a primeira opção para tratamento hospitalar inclui a ceftriaxona, a doxiciclina e o metronidazol. Os critérios de internação hospitalar são: 1. Abscesso tubo-ovariano; 2. Gravidez; 3. Ausência de resposta clínica após 72 horas do início de antibioticoterapia oral; 4. Intolerância a antibióticos orais ou dificuldade para seguimento ambulatorial; 5. Estado geral grave, com vômitos e febre; 6. Dificuldade para exclusão de emergências cirúrgicas – exemplos: apendicite, gravidez ectópica. Preconiza-se a melhora clínica das pacientes com DIP nos 3 primeiros dias após o início do tratamento antimicrobiano. Em caso de piora do quadro, devem-se considerar outros exames de imagem, como ultrassonografia pélvica transvaginal, ressonância nuclear magnética ou tomografia computadorizada axial, para avaliar diagnósticos diferenciais ou complicações da DIP. Também se orienta retorno ambulatorial para seguimento na primeira semana após a alta hospitalar, observando-se abstinência sexual até a resolução clínica. Não há evidências que indiquem a necessidade de remoção do DIU nas portadoras de DIP. Entretanto, esse assunto ainda é motivo de controvérsia entre os principais guidelines sobre o tema. Segundo o Ministério da Saúde, não é necessária a remoção. Caso exista indicação, a retirada deve ser realizada somente após as 2 primeiras doses do esquema antibiótico. Nesse contexto, as pacientes devem ser orientadas sobre o uso de preservativo masculino ou feminino. Não se deve descuidar do tratamento dos parceiros sexuais, com ceftriaxona, 500 mg, IM, dose única, e azitromicina, 1 g, VO, dose única. Esse tratamento deve ser instituído após a convocação do parceiro para realizá-lo. Esquemas de tratamento para doença inflamatória pélvica Conduta no abcesso tubo-ovariano A presença de abscesso tubo-ovariano é uma ameaça à vida, por isso o tratamento é feito em unidade hospitalar. A escolha da terapia antimicrobiana de largo espectro com ou sem abordagem cirúrgica vai depender da condição clínica da paciente e da característica do abscesso com sinais sugestivos de ruptura. A maioria das pacientes é candidata a manejo com antibiótico venoso com cefoxitina e doxiciclina (Quadro 11.1) e monitorização clínica e laboratorial por 48 a 72 horas. As candidatas ao tratamento medicamentoso são apenas pacientes hemodinamicamente estáveis, sem sinais de ruptura do abscesso tubo-ovariano, com boa resposta clínica ao uso do esquema antibiótico. O tamanho do abscesso não indica obrigatoriamente tratamento cirúrgico – quando há ausência de outras indicações para esse tipo de intervenção. Os critérios para falha do antimicrobiano são: persistência ou início de febre; dor abdominal persistente ou com piora; aumento da massa pélvica; piora/persistência da leucocitose; sinais de sepse. Deve-se repetir o exame de imagem a cada 3 dias ou antes, em caso de piora clínica. Em caso de má resposta em 72 horas ou se, já de início, há abdome agudo, indica-se o tratamento cirúrgico que, se possível, deve acontecer por via laparoscópica. Os objetivos da videolaparoscopia são avaliar a cavidade – visão ampla – e delimitar a real extensão do processo patológico, evitando condutas desnecessariamente agressivas. Além disso, com essa técnica, é possível colher a secreção purulenta para análise da flora envolvida, lavar a cavidade evitando a formação de aderências e afastar outros diagnósticos diferenciais. Ademais, deve ser usado tratamento sintomático com analgésicos, antitérmicos e antieméticos. Principais características da doença inflamatória pélvica 1. Os agentes etiológicos mais comuns são Neisseria gonorrhoeae e Chlamydia trachomatis; 2. A via de infecção é a ascendente. A sintomatologia da N. gonorrhoeae é mais aguda e abrupta, enquanto os sintomas da C. trachomatis apresentam-se mais insidiosos, causando aderências pélvicas e abscessos tubo-ovarianos cronicamente; 3. Os principais fatores de risco são promiscuidade, vulvovaginites, pacientes jovens, nuliparidade, tabagismo e classe econômica baixa; 4. Os principais diagnósticos diferenciais são apendicite, gravidez ectópica, cervicites, endometriose, doença de Crohn, nefrolitíase etc.; 5. A DIP leve a moderada é tratada ambulatorialmente, enquanto a DIP grave deve ser tratada em ambiente hospitalar, utilizando-se antibioticoterapia polimicrobiana e, se necessário, tratamento cirúrgico, sendo a via laparoscópica a preferencial. Figura 11.2 - Conduta diante de suspeita Figura 11.3 - Aderências peri-hepáticas: sequelas da síndrome de Fitz-Hugh-Curtis Complicações Um dos objetivos do tratamento é procurar impedir a complicação imediata mais comum, o abscesso tubo-ovariano. A complicação tardia mais frequente é a infertilidade, por volta de 30%; além disso, aumentam as chances de gravidez ectópica em até 10 vezes. As sequelas de DIP não tratada são causas muito prevalentes de infertilidade no Brasil. Outras complicações são algia pélvica crônica, hidrossalpinge e síndrome de Fitz-Hugh-Curtis – aderências peri-hepáticas. QUESTÃO 1: Quais são as indicações de internação nas pacientes com doença inflamatória pélvica? A doença inflamatória pélvica (DIP) ocorre pela ascensão de germes no trato reprodutor feminino. Os dois principais agentes etiológicos são o gonococo e a Chlamydia. O tratamento pode ser ambulatorial ou hospitalar. As indicações de internação são: abscesso tubo-ovariano, gravidez, ausência de resposta clínica após 72 horas do início de antibioticoterapiaoral, intolerância a antibióticos orais ou dificuldade para seguimento ambulatorial, estado geral grave, com vômitos e febre, dificuldade para exclusão de emergências cirúrgicas, por exemplo: apendicite, gravidez ectópica.
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