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Código Logístico 59774 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-1001-6 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 0 1 6 História da Arte no Brasil Luciana Lourenço Paes IESDE BRASIL 2020 © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Wilfedor/Tetraktys/ Rodrigomarfan/ Wikimedia Commons Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P144h Paes, Luciana Lourenço História da arte no Brasil / Luciana Lourenço Paes. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 142 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-001-6 1. Artes - História - Brasil. I. Título. 20-67583 CDD: 700.981 CDU: 7(09)(81) Luciana Lourenço Paes Doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com parte da pesquisa realizada em Paris, França, junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Mestra em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada em Educação Artística, habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Gravura, pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Origens 9 1.1 Arqueologia, Antropologia e História da Arte 10 1.2 Arte pré-histórica no Brasil 11 1.3 Sítios arqueológicos paleoíndios e arcaicos no Brasil 12 1.4 Arte indígena 19 2 Barroco e Rococó 27 2.1 Arquitetura e artes visuais 28 2.2 Arquitetura jesuítica no Brasil 30 2.3 Engenhos 36 2.4 Barroco e Rococó no Nordeste 38 2.5 Barroco e Rococó no Sudeste 43 3 Da Missão Artística Francesa à Academia 53 3.1 A Missão Francesa de 1816 54 3.2 Os pintores viajantes 59 3.3 A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) 61 3.4 Romantismo e identidade nacional 63 3.5 Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) 73 3.6 Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (LAO) 78 3.7 Mulheres na Academia 80 3.8 A fotografia no Brasil 81 4 Arte moderna 88 4.1 A Semana de Arte Moderna de 1922 89 4.2 Pau-Brasil 95 4.3 Antropofagia 96 4.4 À margem do modernismo oficial 98 4.5 Cândido Portinari 100 4.6 Os Grupos Artísticos 103 4.7 Arquitetura moderna no Brasil 107 4.8 Arte Popular 110 5 Arte contemporânea 116 5.1 Museus, galerias e colecionismo privado 117 5.2 Abstração 119 5.3 Brasília 127 5.4 Arte durante a ditadura militar 129 5.5 Geração 80 133 6 Gabarito 137 A disciplina de História da Arte, centrada na arte europeia, chegou ao Brasil na metade do século XIX pela atividade dos discípulos dos artistas franceses, os quais fundaram a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1972, com a criação do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) por Walter Zanini, seguida da publicação, em 1983, dos dois volumes por ele organizados do livro História Geral da Arte no Brasil, um material considerável – incluindo arte indígena, africana e popular – foi reunido para estudo. A questão sobre o que seria uma arte brasileira nasceu no seio da Academia, na metade do século XIX, e foi objeto de debate ainda nos anos 1990. Chegou-se então à consideração de que “arte brasileira”, no sentido de um programa específico que definiria a produção feita no Brasil, não existe. O que existe é um país com uma cultura e com problemas próprios, que apresenta elementos de coesão – como a língua –, mas também elementos de disjunção e mesmo polaridades – como o alto índice de desigualdade social ou a tensão entre a capacidade de miscigenação e o passado escravista. Essa realidade se reflete, de algum modo, na produção dos artistas que vivem dentro dela. Este livro compreende primeiramente a arte pré-histórica e indígena, abrangendo a produção cerâmica e lítica e a pintura rupestre, que expressavam a cosmogonia de diferentes agrupamentos humanos dentro do território mais tarde referido como brasileiro. Depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando é instaurado o sistema colonial, a arte é marcada pela penetração e influência de estilos europeus como o barroco e o rococó, objeto de estudo do Capítulo 2. Nele destaca- se especialmente a integração entre arquitetura, pintura e escultura. O Capítulo 3 trata da arte do século XIX e acompanha a produção dos artistas ligados à Academia. As obras de arte participavam, então, de uma busca mais ampla pela ideia de nação levantada depois da Independência. APRESENTAÇÃO Vídeo Na primeira metade do século XX, período que corresponde ao Capítulo 4, os temas voltaram-se com mais intensidade à questão nacional. Foi sobretudo nesse momento, devido à atuação dos modernistas, que a indagação sobre o que seria uma arte brasileira ganhou corpo, ainda que traduzida em formas europeias. Na segunda metade do século XX, de cuja produção se ocupa o Capítulo 5, essa pergunta não perdeu, a princípio, a sua relevância, mas as respostas acompanharam transformações importantes no âmbito das técnicas artísticas. Finalmente, outra questão que se coloca em um trabalho sobre História da Arte no Brasil são as narrativas concentradas, especialmente a partir do século XIX, no eixo Rio-São Paulo. Isso ocorre, em grande parte, porque eram cidades com maior poder econômico, onde existia um mercado de arte ou onde este estava mais aquecido. É possível, certamente, estabelecer outras narrativas, com base em outros pontos de vista, deslocando esse centro. No entanto, mesmo no livro citado de Zanini, essa História da Arte dos demais Estados da Federação funciona mais como um apêndice da hegemônica. Normalmente, nos currículos dos cursos de graduação, os alunos aprendem a História da Arte no Brasil e também aquela do seu Estado. Sendo muito presente em obras de caráter generalista, não é possível furtar-se a esse conhecimento que, no momento atual, é considerado elementar no campo. Assim, este material apresenta esses conteúdos de um modo crítico e reflexivo, esperando despertar em você o interesse pela arte e pela cultura de sua comunidade local. Bons estudos! Origens 9 1 Origens Neste capítulo, estudaremos a arte produzida no Brasil antes de o país receber esse nome. Como nação, o Brasil é uma invenção do século XIX, precisamente do ano de 1822, quando foi declarada sua independência. O nome Brasil foi dado, em 1505, pelos europeus. Eles também nomearam índios as pessoas que aqui encontraram. Esses termos, entretanto, não eram as palavras que essa população nativa usava para falar do local onde morava ou de si mesma. De modo semelhante, usar a palavra arte para se referir aos objetos que produziram significa projetar um conceito da cultura europeia sobre a cultura indígena, reproduzindo, de certo modo, a lógica da coloniza- ção. A arqueologia e a antropologia, duas áreas das ciências humanas que se associam à história da arte para estudar essa produção, iden- tificaram tal perspectivacomo etnocêntrica. Os pesquisadores, contu- do, perguntam-se: é possível estudar uma cultura que não é a nossa, sem projetar nossos próprios (pré)conceitos e valores sobre ela? Até que ponto conseguimos, de fato, distanciar-nos? Quando os portugueses chegaram ao Brasil, no século XVI, esti- ma-se que havia aqui entre 2 e 4 milhões de habitantes nativos, falan- do em torno de mil línguas diferentes. Havia, portanto, uma grande diversidade. Por conta de doenças trazidas pelos europeus e dos processos de escravização e confrontos armados, essa população foi reduzida, chegando hoje a pouco mais de 850 mil habitantes, com cerca de 160 línguas e dialetos ainda vivos. Houve um apagamento. No entanto, a violência e o trauma da ocupação do Brasil pelos europeus, que impuseram sua língua, seus hábitos e sua religião aos nativos, não foram capazes de anular a presença indígena em nossa cultura e sociedade, que segue resistindo. Nas próximas páginas, abor- daremos a história da ocupação do território, hoje chamado de Brasil, antes da chegada dos europeus, por meio da análise dos objetos e das imagens que diferentes grupos humanos produziram e que sobrevi- veram a eles, funcionando, então, como testemunhos de sua cultura. 10 História da Arte no Brasil 1.1 Arqueologia, Antropologia e História da Arte Vídeo Como os povos pré-históricos não deixaram nenhum documento escrito, as culturas que se desenvolveram nesse período são estudadas principalmente por meio de seus vestígios materiais. O levantamento, a coleta, a análise e a interpretação desses vestígios são realizados pelos arqueólogos em escavações, seguidas de análises em laboratório e da publicação dos resultados. Já o estudo das culturas pré-históricas e in- dígenas, de um modo mais amplo, fica a cargo do antropólogo. Ao rea- lizar o trabalho de campo, no qual coleta dados do grupo cultural que estuda, o antropólogo escolhe um método, chamado de etnografia. Já a análise desses dados é o domínio da etnologia. O historiador da arte, por sua vez, ocupa-se da análise histórica, ou seja, inserida no tempo, de objetos ou manifestações visuais dessas culturas e, para tanto, inclui em suas fontes pesquisas arqueológicas e etnológicas. Os métodos de pesquisa no campo da arte pré-histórica mudaram ao longo do tempo. No fim do século XIX, as pinturas feitas nas paredes das cavernas eram interpretadas como expressões puramente estéti- cas; elas possuíam um valor apenas pelas suas qualidades formais. No século XX, surge a abordagem evolucionista associada ao comparati- vismo etnográfico. Nela, o comportamento de sociedades chamadas então de primitivas – e vivendo no presente – era tomado como parâ- metro para explicar a conduta de sociedades de um passado bem mais distante, uma vez que se encontrariam no mesmo “estágio evolutivo”. Tal abordagem é usada, ainda hoje, no caso de tradições que se man- tiveram no local de produção dos objetos ou imagens por sucessivas gerações e identificam-se com essa produção no presente. Ainda as- sim, os arqueólogos são cautelosos em suas interpretações, pois essas culturas mudaram ao longo do tempo. Nos anos 1960, desenvolve-se a abordagem estruturalista, segun- do a qual era preciso buscar informações sobre a arte pré-histórica olhando para as evidências desse período que chegaram até nós, e não com base na estética ou nas sociedades indígenas atuais. Os estruturalistas procuraram entender quais temas eram escolhidos e quais eram preteridos pelos homens e mulheres pré-históricos e em que medida o seu tratamento poderia configurar um conjunto coerente e organizado de símbolos. Os objetos que os arqueólogos ou antro- pólogos coletam nas escavações ou pesquisas de campo são conser- vados em instituições museológicas. Abaixo, indicamos alguns mu- seus com importantes coleções etnográficas no Brasil. São eles: • Fundação Museu do Homem Americano (FUNDHAM) – São Raimundo Nonato, Piauí. http://fumdham.org.br/ • Museu Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro. http://www.museunacional. ufrj.br/ • Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará. https://www.museu-goeldi.br/ Saiba mais Tradição é um termo usado em arqueologia para se referir a um grupo de estilos ou técnicas que persistem no tempo. Seriam indicadores de identidades étnicas. As Tradições podem ser de pintura, gravura, cerâmica e artefatos de pedra ou osso. Importante http://fumdham.org.br/ http://www.museunacional.ufrj.br/ http://www.museunacional.ufrj.br/ https://www.museu-goeldi.br/ Origens 11 Atualmente, diversos métodos coexistem, potencializados pelo desenvolvimento de novas tecnologias de análise dos materiais e pig- mentos, que possibilitaram propor datações mais precisas. As linhas de investigação ligadas à etnicidade, ou seja, às características pelas quais um grupo se define e diferencia-se de outros, têm proposto, por exem- plo, uma cronologia de estilos ou Tradições fundamentados na análise de sobreposições e recorrências formais que indicariam a participação de sucessivos grupos na produção de pinturas pré-históricas. As pes- quisas atuais tendem, ainda, a levar em consideração todo o contexto arqueológico, não somente o objeto isolado, ao buscar significados para ele. 1.2 Arte pré-histórica no Brasil Vídeo Para facilitar a compreensão do passado, os historiadores recorrem à periodização. No continente europeu, a pré-história se refere ao pe- ríodo que antecede a invenção da escrita, que se deu entre 3000 e 2000 a. C. na Mesopotâmia e no Egito. Quando aplicado ao continente ame- ricano, o termo pré-história se torna, contudo, problemático. Os maias, incas e astecas, por exemplo, cujas culturas se desenvolveram durante a pré-história, possuíam um sistema de escrita. Assim, o conceito deve ser relativizado de acordo com a cultura estudada. O principal marco histórico da América é a chegada dos europeus. No Brasil, o termo pré-história equivale a pré-cabralino ou pré-colonial, ambos usados para nos referirmos ao período anterior à chegada de Pedro Álvares Cabral, que marca o início do sistema colonial. Assim, quando Cabral chega ao Brasil, em 1500, os povos ameríndios passam a integrar essa “história” feita no Velho Mundo. As populações nativas, que viviam relativamente isoladas antes desse contato, ocuparam o território que é hoje o Brasil há pelo menos 12 mil anos e o que corresponde à América, há 16 mil anos. Assim, tratando-se da Ameríndia, o longo período anterior à chegada dos europeus é subdividido em Paleoíndio (até 10.000 AP 1 ), Arcaico (10.000 a 3.000 AP) e Formativo (3.000 a 500 AP). 1 Antes do Presente, contado, por convenção, a partir do ano de 1950. A data de início do período Paleoíndio é objeto de controvérsia entre os pesquisa- dores, oscilando entre 50.000 AP e 16.000 AP. 12 História da Arte no Brasil Quadro 1 Pré-história na Ameríndia PALEOÍNDIO Até 10.000 AP Grupos de homo sapiens ocupam o Brasil. Extinção dos mamíferos de grande porte, chamados de megafauna. ARCAICO 10.000 a 3.000 AP Transição para sociedades de caçadores-co- letores do interior, que já cultivavam algumas plantas e poderiam permanecer mais tempo em um mesmo lugar. Ocupação do litoral por grupos pescadores (povos sambaquieiros). FORMATIVO 3.000 a 500 AP Sociedades de agricultores-ceramistas. Fonte: Elaborado pelo autor. Os primeiros habitantes do gênero humano de nosso país foram os da espécie sapiens, que entraram no continente pela América do Norte. Para o movimento de ocupação da América do Sul há uma hipó- tese de que teria ocorrido pela rota das grandes bacias hidrográficas Amazônica, do São Francisco e do Prata. Os locais onde esses grupos humanos viveram são chamados de sítios pré-históricos; os mais antigos no território brasileiro datam entre 15 e 8 mil anos atrás. 1.3 Sítios arqueológicos paleoíndios e arcaicos no Brasil Vídeo As populações de caçadores-coletores que ocuparam, inicialmente, o território não conheciamainda a propriedade privada, pois a delimi- tação de terra implicada na prática da agricultura é um evento muito tardio na história. No reino animal, o gênero homo foi caçador-coletor durante mais de 2 milhões de anos; a espécie sapiens, única remanescente do gênero há 100 mil anos, desenvolveu a agricultura há apenas 10 mil anos. Os ca- çadores-coletores compunham sociedades mais igualitárias, ou menos hierárquicas, e viviam da caça de animais e da coleta de frutos e outros vegetais. Como não se fixavam por muito tempo em um mesmo local, devido à variação das condições ambientais e climáticas, não precisavam antecipar o futuro do mesmo modo que os agricultores, ao manejarem suas plantações; também não acumulavam bens, o que dificultaria seus deslocamentos. Assim, nos sítios arqueológicos do período Paleoíndio e Origens 13 do início do período Arcaico é mais comum encontrarmos objetos líticos (feitos em pedra), como ferramentas e instrumentos de caça (incluindo as pontas de lança), do que cerâmicos, que são mais frequentes no pe- ríodo Formativo, em razão de sua utilidade para o armazenamento e conservação de alimentos ligados às práticas agrícolas. Além disso, os sítios mais antigos contêm exemplos importantes de arte rupestre, ou seja a arte feita sobre um suporte fixo de pedra. No caso das pinturas, são acrescentados pigmentos à sua superfície; no caso das gravuras, são abertos sulcos sobre a pedra com o auxílio de instrumentos pontiagudos. Os pigmentos usados podem ser de origem mineral, vegetal ou animal, e a paleta, reduzida a preto, feito de ossos ou madeira calcinada, branco, utilizando o cal, e tons terrosos, do ver- melho ao amarelo, obtidos pelo uso de argilas. As pinturas poderiam ser realizadas com pastas de tinta, que permitem uma boa cobertura da superfície, ou com crayon (no sentido de materiais mais duros), que gera um acabamento irregular. Diante das pinturas e gravuras pré-históricas, as principais pergun- tas que os arqueólogos fazem são: • Quem fez? • Como fez? • Quando fez? • Por que fez? As duas primeiras são, geralmente, as mais fáceis de responder; já para as últimas, é mais difícil ou mesmo impossível encontrar uma res- posta. Os arqueólogos começam identificando os temas representados e as técnicas usadas; consiste em uma etapa mais descritiva. Para fins de documentação, eles fotografam as pinturas ou gravuras e, depois, inserem essas imagens em softwares de computador, que as recons- troem em duas ou três dimensões, gerando um registro digital bastante fiel ao original. Posteriormente, comparam a pintura ou a gravura com outras imagens rupestres e com outros vestígios arqueológicos, seja do mesmo sítio ou região, seja de locais mais afastados. A comparação é especialmente efetiva com vestígios que já puderam ser datados com mais precisão. O objetivo, além de precisar a datação, é também o de verificar a existência ou não de semelhanças e diferenças entre eles, detectando padrões que possam ajudar na distinção de uma Tradição ou de um estilo. 14 História da Arte no Brasil Os resultados da etapa descritiva e comparativa são combinados a estudos arqueométricos, ou seja, análises laboratoriais usando técni- cas da física e da química, que podem auxiliar na datação da imagem e a determinar melhor a composição e a proveniência dos materiais. É possível, assim – se não chegar a uma hipótese concreta a respeito do significado da pintura ou gravura –, ao menos traçar um perfil do grupo autor. Isso porque a arte rupestre é um modo de comunicação entre indivíduos de uma mesma comunidade; nesse sentido, constitui um in- dício de sua cultura imaterial, ou seja, de suas práticas sociais e rituais, seus conhecimentos sobre a natureza e seus procedimentos técnicos. 1.3.1 Parque Nacional Serra da Capivara (Piauí, Nordeste do Brasil) Localizado no sudeste do Piauí, esse parque ocupa áreas dos municí- pios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí. Na década de 1970, a arqueóloga Niède Guidon dirigiu uma mis- são interdisciplinar franco-brasileira que descobriu uma série de sítios arqueológicos na região e outros mais foram e continuam sendo des- cobertos. Os pesquisadores da missão criaram a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em 1986, em São Raimundo Nonato, com o objetivo de documentar, pesquisar e proteger o patrimônio ar- queológico da região. Existem mais de 900 sítios arqueológicos com pinturas e gravu- ras rupestres pré-históricas registrados no Piauí, e o Parque Serra da Capivara encerra uma grande parte deles. As pinturas ali encontradas se destacam pelo naturalismo das figuras; já as gravuras são compos- tas por grafismos geométricos. Pesquisadores concluíram, com base nas sobreposições pictóricas e em análises físico-químicas dos materiais, que as pinturas rupestres do parque foram realizadas por diferentes grupos culturais em diferentes épocas, estendendo-se por um período entre 15.000 e 6.000 anos AP. Características comuns verificadas entre imagens de diferentes sítios, permitiram agrupar essas imagens em uma mesma Tradição dominan- te no parque: a Tradição Nordeste. Ela foi dividida, por sua vez, em dois estilos: o estilo Serra da Capivara, mais antigo, e o estilo Vale da Serra Branca, mais recente, situado há cerca de 9.000 anos AP. O documentário Ateliê de Luzia: Arte Rupestre no Brasil, aborda exemplos de arte rupestre do Piauí, da Bahia e de Minas Gerais. O título refere-se ao ser humano mais antigo já encontrado nas Américas, proveniente de escavações realizadas na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Trata-se de uma mulher, que foi chamada de “Luzia”. Direção: Marcos Jorge. Brasil: Rumos Cinema e Vídeo, 2003. Disponível em: https:// vimeo.com/132775716. Acesso em: 21 out. 2020. Documentário As pesquisas de Niède Guidon no sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada, levaram-na a propor a hipótese de que o homo sapiens teria entrado no Brasil pelo mar, entre 50.000 e 30.000 AP, enquanto a hipótese mais aceita é de entrada há 12.000 AP. Segundo Guidon, nossa espécie teria construído navios e atravessado o oceano a partir da África, parando de ilha em ilha, até chegar à América. Trata-se, contudo, de uma teoria controversa no meio científico, pois suas evidências não são irrefutáveis. Curiosidade Origens 15 O estilo Serra da Capivara compreende figuras reconhecíveis e mui- to sintéticas, contendo apenas os traços essenciais para sua identifi- cação, executados com linhas e formas curvas. O preenchimento das formas é total, com apenas uma cor. As figuras de animais e humanos (alguns com máscaras que cobrem seu corpo, deixando ver apenas as pernas) aparecem interagindo, em cenas de rituais, de cópula e de caça (Figura 1). Esse aspecto narrativo é uma característica marcante da Tra- dição Nordeste em geral. Encontramos nesse estilo, também, repre- sentações de objetos e de árvores. Figura 1 Toca da entrada do Baixão da Vaca, Parque Nacional Serra da Capivara, PI Di eg o Re go M on te iro /W ik im ed ia C om m on s O outro estilo que compõe a Tradição Nordeste é o da Serra Branca, localizado no vale de mesmo nome dentro do parque. Diferencia-se do anterior pelo aumento do nível de detalhe na caracterização das figu- ras, que são preenchidas com motivos geométricos, e pela maior com- plexidade na organização do espaço. Além disso, predominam formas retangulares e cenas de luta. Atualmente, pesquisadores da Fumdham e da UFPE estão envolvi- dos na identificação de um terceiro estilo dentro da Tradição Nordes- te, o da Serra Talhada, caracterizado pela presença de grafismos de contorno aberto e figuras antropomórficas (com formas humanas) e zoomorfas (com formas animais) que, apesar de certo dinamismo, são representadas isoladamente, não dentro de cenas. A Plataforma Capivara, criada pela Fumdham, é uma base de dados que reúne informações arqueológicas sobre o Nordeste e o Semiáridobrasileiro. Nela, é possível conhecer e explorar os diversos sítios da região. Disponível em: http:// fumdham.no-ip.org:8080/ PlataformaCapivaraBeta/summa/ summa.xhtml. Acesso em: 26 out. 2020. Site http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml 16 História da Arte no Brasil 1.3.2 Parque Estadual de Monte Alegre (Pará, Norte do Brasil) A Gruta do Pilão ou Caverna da Pedra Pintada é um dos 23 sítios com arte rupestre registrados no município de Monte Alegre, na região do Baixo Amazonas. Essa concentração permitiu identificar ali um estilo: o Monte Alegre. Escavações conduzidas por Ana Roosevelt, nos anos 1990, propuseram a datação de 11.200 anos AP para a maior parte das pintu- ras na Gruta do Pilão, por meio da análise de pedaços de rocha com pig- mento que se desprenderam das paredes, foram soterrados no solo e depois descobertos em escavações. Ao determinar à qual camada esses pedaços pertenciam, foi possível datá-los. Sua pesquisa permitiu classifi- car esse sítio como um dos mais antigos da Amazônia. A gruta possui pinturas em seu interior situadas em locais escuros, observáveis apenas sob luz artificial, algo pouco comum nos sítios com arte rupestre no Brasil. Ali, o suporte também foi aproveitado para pro- jetar a ilusão de volume das figuras, como no caso de uma concavidade à qual foram acrescentados dois círculos (os olhos), usada para dar forma à representação de uma cabeça. Tanto o sítio da Gruta do Pilão quanto o que veremos a seguir possuem representações zoomórficas em maior quantidade e diversidade de espécies em relação aos demais da região. Nos anos 1980 e 1990, o sítio Serra da Lua, também em Monte Alegre, foi estudado pelos arqueólogos Mario Consens(1989) e Edithe Pereira (2012). Nele encontra-se um suporte rochoso de 320 metros, sobre o qual se distribuem de modo irregular 42 painéis ao ar livre 2 . Os temas representados incluem zoomorfos (peixes e quadrúpedes), im- pressão de mãos e grafismos puros, como círculos bicromos (em ver- melho e amarelo) e volutas. Em muitas pinturas, poderiam ser vistos a uma grande distância. Curiosidade Quanto às Tradições rupestres no Brasil, os pesquisadores trabalham com um quadro de referências estilísticas – as Tradições – ao estudar a arte rupestre mais antiga no Brasil. Contudo, não devemos considerá-las categorias estanques, pois são revistas periodicamente, à medida que as pesquisas avançam. De qualquer modo, sua diversidade traduz a diversidade dos povos que habitaram o Brasil durante a pré-história. • Tradição Amazônica • Tradição São Francisco • Tradição Planalto • Tradição Litorânea • Tradição Geométrica • Tradição Meridional • Tradição Agreste • Tradição Nordeste Painéis são grupos de motivos, muito próximos entre si, que parecem compor uma unidade. Os arqueólogos costumam isolar diferentes painéis em uma mesma parede de rocha ao estudá-los. 2 Origens 17 1.3.3 Sambaquis no Sul e Sudeste A palavra sambaqui deriva do tupi tamba (marisco) e ki (amontoa- mento). Consiste em uma colina artificial de dimensões variadas (pode chegar a 30 metros de altura), formada pelo acúmulo de conchas e areia (Figura 2). Dentro deles foram encontrados esqueletos humanos, restos de alimento e diferentes artefatos líticos e ósseos. Os sambaquis foram construídos por uma ou mais culturas pré-agrícolas, que ocuparam a costa litorânea das regiões Sul e Sudeste do Brasil a partir de 8.000 AP, vivendo sobretudo da pesca. São datados entre 7.000 e 1.000 AP, com maior difusão entre 5.000 e 3.000 AP, período no qual mudanças no ní- vel do mar e o aumento da umidade levaram à expansão das áreas de manguezais. Pela riqueza de peixes, moluscos e crustáceos, os manguezais cria- ram um ambiente favorável ao desenvolvimento dos povos samba- quieiros, cuja maioria dos sítios arqueológicos está associada a essas áreas. Os mais antigos estão localizados no litoral paranaense e sul paulista, o que indicaria um possível núcleo, por meio do qual teria se dado a expansão para o sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e para o sudeste (Rio de Janeiro e Espírito Santo). A maior concentração, con- tudo, encontra-se no estado de Santa Catarina. Figura 2 Sambaqui Figueirinha I em Jaguaruna Jo an ni s7 7 / W ik im ed ia C om m on s 18 História da Arte no Brasil Não é possível afirmar com segurança qual era a função dos sam- baquis. As ossadas neles encontradas indicam que eram locais de en- terramento, e os restos de alimento, bem como os artefatos indicam que eram locais de habitação. Em sambaquis maiores foram detecta- dos materiais de diferentes períodos na base e no topo, com uma va- riação de até mil anos entre um e outro. Portanto, não foram erguidos de uma só vez. Provavelmente, quando diferentes grupos ocupavam o local, novos acréscimos eram feitos. Entre os artefatos, destacam-se os de pedra polida. Machados, moedores, polidores e pequenas esculturas remetem a uma indústria lítica elaborada, eventualmente com artesãos especializados, dispen- sados das tarefas de caça e pesca. As peças mais misteriosas são os zoólitos, encontrados especialmente na região meridional, do Brasil até o Uruguai. Consistem em esculturas zoomórficas sintéticas ou mesmo abstratas (Figuras 3 e 4). Cavidades rasas em certas peças, lembrando superfícies para moagem, levaram alguns arqueólogos a lhes conferir uma função utilitária; porém, essa cavidade é, por vezes, tão estreita e pouco profunda que não seria capaz de conter um pro- duto, indicando uma função mais simbólica. Zoólitos foram encon- trados próximos a alguns esqueletos humanos nos sambaquis, o que nos faz pensar em objetos de devoção fúnebre. Como o número dos corpos enterrados com as esculturas é raro, talvez constituíssem uma marca de status. Os zoólitos demonstram a capacidade de observação da fauna li- torânea de seus autores. O arqueólogo e professor da UFMG, André Prous (2018), que fez um levantamento dos zoólitos nos anos 1970, afirmou que 28,5% das cerca de 180 peças conhecidas até então, per- tencentes a acervos museológicos ou coleções particulares, permitiram uma identificação mínima dos animais (por exemplo, se eram terres- tres, aquáticos ou voláteis) e, em alguns casos, da espécie e do sexo, apesar do sintetismo das formas. Uma grande parte delas, portanto, é abstrata, ao menos para nós (mas poderiam significar algo para o grupo que as produziu). Prous (2018) propôs, então, uma tipologia para os zoólitos com base no grau de realismo de cada peça (indo de 0 a 4). A recorrência de certas formas, especialmente a cruciforme, indicaria, segundo ele, uma orientação ou regra geral para a fatura, de modo que a margem de liberdade de criação era limitada. Em 2015, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, por ocasião do 34º Panorama de Arte Brasileira, sediou uma exposição que aproxi- mou a produção dos povos sambaquieiros à de artistas brasileiros contemporâneos. Eles foram convidados a criar obras que dialogassem com os objetos líticos do passado pré-histórico do Brasil, especialmente os zoólitos. Disponível em: https://mam.org. br/wp-content/uploads/2015/12/ Da-pedra-Da-terra-Daqui-MIOLO- CAPA.pdf. Acesso em: 26 out. 2020. Saiba mais Origens 19 Figura 3 Zoólito em forma de ave exibido no Museu Nacional – Rio de Janeiro Do rn ic ke /W ik im ed ia C om m on s Figura 4 Coleção de zoólitos encontrados em sambaquis, Museu do Homem do Sambaqui - Florianópolis Rp be be l /W ik im ed ia C om m on s Assim, novas pesquisas envolvendo os zoólitos continuam a investi- gar sua possível função e significado. 1.4 Arte indígena Vídeo Pouco antes da chegada do europeu, durante a fase final do período Formativo, as populações que habitavam a região amazônicabrasileira viviam em uma economia agrícola. Objetos cerâmicos das culturas ma- rajoara e tapajó, encontrados no estado do Pará e abordados no início desta seção, são a expressão de uma organização social com- plexa e hierarquizada, sustentada por um universo simbólico coerente. Além disso, como muitas populações indígenas ain- da vivem na Amazônia, os arqueólogos e antropólogos pude- ram buscar referências em seus sistemas de mitos para refletir sobre o sentido desses objetos cerâmicos de um modo que vai além deles mesmos, de suas características formais e estilísti- cas. Nessas pesquisas, tais objetos aparecem como elementos ativos no contexto de práticas ritualísticas capazes de definir identidades étnicas. Entre essas práticas, o xamanismo ocupa um lugar central. No final desta seção, abordaremos, ainda, a arte plumária indígena, uma de suas expressões visuais mais características, que avança até o período colonial, chegando aos nossos dias. Curiosidade Cerâmica são objetos feitos de argila cozida. Assim, um objeto modelado em argila se torna cerâmico apenas depois de ser queimado a altas temperaturas, seja em fogueiras ou em fornos. A pintura é feita antes da quei- ma, e a tinta usada é chamada de engobe, uma argila líquida à qual podem ser acrescentados pigmentos coloridos. A gravação das peças ocorre por meio de incisões ou excisões. Apêndices ou apliques são ornatos adicio- nados à parte externa das peças, criando volumes decorativos. https://pt.wikipedia.org/wiki/Zo%C3%B3lito https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_do_Homem_do_Sambaqui https://pt.wikipedia.org/wiki/Florian%C3%B3polis 20 História da Arte no Brasil 1.4.1 Cerâmica marajoara Em 1927, Mário de Andrade, um escritor paulista do modernismo, fez uma viagem pelo Norte e pelo Nordeste do país. Em Belém do Pará, ele visitou mais de uma vez o Museu Paraense Emílio Goeldi, fundado em 1866, e encantou-se com a cerâmica de Marajó. Não foi só Mário de Andrade que ficou impressionado com a qualidade desses objetos. O casal de arqueólogos Betty Meggers e Clifford Evans (1957), em pesquisas realizadas na região amazônica, nos anos 1940 e 1950, distinguiram cinco fases arqueológicas dos po- vos que ali habitaram. Eles incluíram na quarta fase a cerâmica ma- rajoara, feita a mão por grupos indígenas que habitaram a Ilha de Marajó, no Pará, desde cerca de 400 até 1.350 d.C. Segundo eles, tra- ta-se da fase mais evoluída na sequência de ocupação da ilha, que fica na foz do rio Amazonas (MEGGERS; EVANS, 1957). Essa cerâmica é caracterizada, primeiramente, pela variedade, pois chegaram até nós vasilhas, potes, urnas funerárias, tangas femininas (ou tapa-sexo), estatuetas, bancos, cachimbos, entre outros objetos. Em segundo lugar, é caracterizada pela abordagem de temas ligados à relação homem-animal, base do sistema de mitos de seus autores. Assim, reconhecemos, nos objetos, formas antropomorfas (lembrando humanos), zoomorfas (lembrando animais) ou as duas ao mesmo tem- po, zooantropomorfas, seres híbridos, com partes humanas e partes animais, que alguns arqueólogos chamam de quimeras. A cerâmica marajoara se caracteriza, ainda, pela constância de cer- tos padrões decorativos, com formas labirínticas, grafismos simétricos em baixo ou alto relevo, entalhes e aplicações. Ela apresenta um reper- tório de elementos formais e gráficos bem delimitado, combinados em diferentes estilos ao longo do tempo, algo muito singular no âmbito da Tradição Polícroma da Amazônia. Meggers e Evans também foram os primeiros a estabelecer uma tipologia para estudá-los. A cerâmica de Marajó foi encontrada ou escavada em aterros cha- mados de tesos, que provavelmente funcionavam como locais de habi- tação, integrados ou não a áreas de cemitério. Conhecemos hoje cerca de 400 sítios arqueológicos situados sobre tesos na região, todavia, estima-se que existiam mais. Os tesos maiores poderiam chegar a 255 Dois livros reúnem artigos importantes sobre os grafismos indígenas. São eles: Grafismos na arte indígena, editado por Lux Vidal, em 1992, e Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena, editado por Carlos Severo e Els Lagrou, em 2011. No primeiro, a arte indígena é entendida como um sistema de comunicação em si; no segundo, como um elemento integrado e significante dentro de um sistema mais amplo, que compreende a inter-relação entre práticas rituais, musicais e narrativas mitológicas. Nesse sentido, os textos deste último livro estão centrados na ideia de “agência da imagem”, um con- ceito proposto pelo antropólogo Alfred Gell, no fim do século XX, que diz respeito à capacidade da imagem de agir sobre o seu entorno. Leitura Origens 21 metros de comprimento, 30 metros de largura e 10 metros de altura. Sua função era proteger as aldeais durante os períodos de cheia. Em muitos deles, os mortos foram enterrados dentro de urnas cerâmi- cas, eventualmente com outros objetos dentro. Es- sas urnas variam em tamanho e podem ser mais ou menos elaboradas, de acordo, talvez, com o status social do indivíduo (Figura 5). No teso Belém, no rio Camutins, por exemplo, foram escavadas várias ur- nas com padrões semelhantes, sinal de que pode- riam pertencer a pessoas de uma mesma linhagem ou família. Diante dessas evidências, os arqueólogos trabalham com a hipótese de se tratar de uma so- ciedade complexa, hierarquizada, funcionando sob o regime de cacicados ou chefias locais. Nas urnas funerárias, a figura humana, quando não é o tema central, aparece associada à figura de animais. Onde o sexo pode ser identificado, as figuras humanas são sempre femininas. Quanto às tangas de cerâmica lisas ou decoradas (usadas por mulheres para cobrir a genitália e muitas delas en- contradas dentro das urnas funerárias), também apontam para um simbolismo sexual, ligado, talvez, a uma sociedade matrilinear, na qual a descendência pela mãe é a mais importante. A arqueóloga Denise Schaan, adotando um ponto de vista estrutura- lista, isolou, com base na análise de um número limitado de exemplares da cerâmica marajoara, as suas unidades mínimas significantes, combi- nadas de modo diverso em diferentes peças. Ela partiu da analogia das formas com a fauna local, destacando o processo de síntese pelo qual passaram para chegar à sua estrutura mais elementar. Schaan (2001) observou, por exemplo, que a representação do escorpião em algumas urnas está ligada à representação de qualquer tipo de olhos na arte ma- rajoara. Assim, ela inferiu dessa linguagem, por meio da análise compa- rativa, uma espécie de gramática visual. Embora seu significado esteja sujeito a diferentes interpretações, Schaan demonstrou sua coerência interna e seu potencial para a compreensão de uma cultura que esteve ativa durante centenas de anos no Brasil no período pré-colonial. Figura 5 Urna funerária decorada em relevo, c. 400-1.000 d.C., coleção Henry Law Ja st ro w/ W ik im ed ia C om m on s 22 História da Arte no Brasil 1.4.2 Cerâmica tapajônica O conjunto de objetos cerâmicos chamado de tapajônico foi produ- zido por índios que habitavam a região próxima ao encontro do rio Tapajós com o Amazonas, onde hoje está situada a cidade de Santarém, no Pará. O município de Monte Alegre, cujas pinturas rupestres, como vimos, foram datadas por Anna Roosevelt (1996) de 12.000 anos AP, fica a poucos quilômetros de Santarém. Contudo, ainda não existe um estudo cronológico-estilístico sistemático sobre os vestígios encontra- dos no local, os quais, pela sua singularidade, foram agrupados em um único complexo cultural, chamado de cultura Santarém. Sabemos ape- nas que a cerâmica tapajônica continuou a ser produzida até o início do período colonial, no século XVII, quando finalmente desapareceu. A cerâmica tapajônica, como a de Marajó, também é muito variada e marcada pelo tema da relação homem-animal, mas com padrões de- corativos próprios. Os famosos vasos de cariátides, remetendo ao nome grego dado às colunasarquitetônicas esculpidas em forma de mulheres, são peças diferenciadas, em formato de taça, com figuras humanas servindo como sustentação para a parte superior, que contém a concavidade do recipiente. Os vasos de efígie são estruturas ocas que representam figuras humanas, geralmente homens sentados, os quais ostentam um prolongamento sobre a cabeça, que funcio- na como um gargalo. Há uma variação interessante desse tipo no Museu Paraense Emílio Goeldi, na qual uma mu- lher sentada segura sobre as pernas uma vasilha. Denise Gomes (2001) associou a peça a rituais de iniciação, que celebram a passagem à vida adulta, com base em estu- dos antropológicos de indígenas que vivem na Amazônia atualmente. A autora também observou na peça a repre- sentação de figuras semelhantes a muiraquitãs (Figura 6), amuletos feitos em pedra semipreciosa, muito comuns e apreciados dentro da cultura tapajó. 1.4.3 Arte plumária A arte plumária consiste em objetos feitos com penas de aves, geralmente usados como adorno corporal. Os mais elaborados cumprem uma função ritualística. Assim, ad- A antropóloga e professora da UFRJ, Denise Gomes, no artigo de 2010 citado nas referências, defende que a cerâmica de Tapajós está ligada ao pensamento cosmológico dos povos indígenas da Amazônia, cuja instituição principal é o xamanismo. O xamã é o único capaz de incorporar o ponto de vista de outros animais, transformar-se neles e depois retornar à sua forma original durante transes extáticos. Essas metamorfoses corporais encon- tram-se representadas, segundo a interpretação de Gomes, em alguns vasos tapajônicos com figuras híbridas, meio humanas, meio animais. Saiba mais Figura 6 Muiraquitã em forma de rã. Acervo do Museu Nacional, Rio de Janeiro Do rn ic ke /W ik im ed ia C om m on s Origens 23 quirem significado apenas quando são usados durante diferentes ce- rimônias. Hoje, cerca de 30 etnias indígenas no Brasil produzem esses artefatos, cada uma com um estilo particular. Algumas, inclusive, atri- buem valores distintos ao objeto, dependendo da espécie da qual foi retirada a pena. As antropólogas Sonia Dorta e Lúcia van Velthem (1983) distinguem dois grandes estilos plumários entre os indígenas brasileiros. O primei- ro, que reúne objetos maiores, é feito com penas longas sobre suportes rígidos e por etnias como os Bororó, Karaiá, Tapirapé, Kayapó, Tiriyo e outras tribos do norte do Amazonas. O segundo, que inclui objetos me- nores e mais delicados, é feito com penas pequenas sobre um suporte flexível e por grupos como os Munduruku, Urubus-Kaapor e outros do tronco Tupi. Existem, ainda, objetos que congregam características dos dois grupos, como os produzidos pelos Tukano. No livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), o xamã Davi Kopenawa, cuja fala foi traduzida, transcrita e editada pelo antropólogo Bruce Albert, narra um mito indígena relacionado à ini- ciação de um jovem ao xamanismo. O xamã é alguém que protege a sua comunidade, interagindo e negociando com o mundo invisível dos espíritos (xapiri) durante estados alterados de consciência; a maior par- te das aldeias conta com vários deles. Entre os yanomami, os transes xamânicos são provocados pela inalação de uma substância alucinóge- na chamada yãkoana. Nesse trecho, Kopenawa descreve os adereços plumários que o filho da divindade central dos yanomami, Omama, usa durante o ritual xamânico. O filho de Omama primeiro tomou yãkoana com o pai. Depois continuou a bebê-la sozinho, mais e mais, para chamar cada vez mais espíritos e poder conhecer todos os seus cantos. Era deslumbrante quando fazia dançar suas imagens. Era um rapaz muito bonito, tinha a pele coberta de urucum bem vermelho e desenhos de um negro brilhante. Suas braçadeiras de crista de mutum prendiam muitas caudais de arara-vermelha, pin- gentes de rabo de tucano e buquês de penas paixi. Tinha os olhos escuros e os cabelos cobertos de penugem hõromae, de um branco resplandecente. Tinha também uma pele de rabo de macaco cuxiú-negro em torno da cabeça. Dançava lentamen- te, com as costas bem curvadas para trás. Ver a beleza dos xapiri o enchia de felicidade. (KOPENAWA, grifos nossos, 2015, p. 86) A passagem ilustra, enfim, a função ritualística dos adereços plumá- rios entre indígenas brasileiros. Hoje, muitos artesãos que vivem na região do Baixo Amazonas, onde estão localizadas a Ilha de Marajó e a cidade de Santarém, reprodu- zem peças da cerâmica indígena antiga em seu trabalho, respondendo a uma demanda do merca- do turístico. A relação das populações locais com seu patrimônio arqueo- lógico é um dos temas abordados no documen- tário Antiga Amazônia Presente. Direção: Silvio Luiz Cordeiro, Brasil: 2013. Disponível em: http:// amazoniantiga.tv.br/documentario/. Acesso em: 26 out. 2020. Documentário Desde os anos 1970, a fotógrafa Claudia Andujar se engajou na luta dos povos yanomami pela demarcação de seu território, na região norte da Amazônia. Ela passou longos períodos vivendo com eles. Entre 1974 e 1976, deu papel e caneta hidrográfica aos índios e pediu-lhes que representassem o seu próprio mundo. Seu elaborado universo gráfico pôde ser traduzido de uma maneira nova. Os desenhos foram publicados pela primeira vez em: ANDUJAR, Claudia. Mitopoemas Yãnomam. São Paulo: Olivetti do Brasil, 1979. Leitura 24 História da Arte no Brasil Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) recomendam que o professor de arte articule, em seu traba- lho, leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Existem várias maneiras de trabalhar os conteúdos deste capítulo com seus alunos na escola. A seguir, seguem algumas sugestões. Procure ampliá-las com base em sua própria experiência. Diante de uma das imagens de arte rupestre ou cerâmica vistas neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: Qual é o material usado? Quais são as cores? Como foram organizadas? Qual é o tamanho? Representa algo? • Quanto à construção: Como foi feito? Por que você acha isso? • Quanto à função: Para quê foi feito? Você acha que foi bem projetado, tendo em vista a sua função? • Quanto à sociedade que o produziu: quem o produziu? Quem o usou? Quando? Onde? Ele existe em outras sociedades? Trabalhe com as respostas dos alunos. Se for possível fazer as pergun- tas diante dos originais em um museu, melhor ainda. Exercícios para estimular a observação • Desenhar dois objetos etnográficos que têm a mesma função, mas for- mas diferentes, e compará-los. • Com base em um fragmento cerâmico, desenhar o objeto como imagi- na que seria (essa é, aliás, uma prática corrente em arqueologia). Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo • Modelagem em argila, criação de peça utilitária. • Criação de estampas geométricas com carimbo ou estêncil. O carimbo pode ser feito colando formas recortadas em E.V.A. sobre um pedaço de papelão; o estêncil, recortando as formas em um papel com gramatura mais grossa (os alunos podem reproduzir uma ou mais unidades mínimas significantes propostas pela arqueóloga Denise Schaal, em sua pesquisa sobre a cerâmica marajoara, e trocar as matrizes entre si, no momento da impressão, para criar diferentes composições). • Produção de tintas com pigmentos naturais (terras e areias coloridas), acrescentando água e cola. • Desenho a giz de cera sobre papel kraft amassado, simulando a textura de uma rocha (limitar as cores às mais utilizadas na arte rupestre pré-his- tórica, como marrom, vermelho, preto, branco e ocre.) HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA Origens 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos perceber, com o conteúdo trabalhado, que em pesquisas sobre a arte pré-histórica com foco em períodos mais distantes,cujos ves- tígios são escassos, as análises morfológicas e estilísticas predominam. Os arqueólogos não se sentem autorizados a afirmar categoricamente, por exemplo, que as imagens rupestres do período Paleoíndio possuíam um caráter mágico no Brasil, no sentido de dar presença ao objeto represen- tado ou materializar um desejo, porque eles não dispõem de provas. Em períodos mais recentes, contudo, quando a cultura não foi total- mente interrompida ou extinta, existe a possibilidade de relacionar ima- gens e artefatos pré-históricos ao universo das populações que ainda habitam os locais onde foram produzidos e que se identificam com eles. O termo arte é usado nesse contexto com fins didáticos, pois os obje- tos pré-históricos e indígenas não são dotados de um valor contemplativo em si mesmos, como em nossa cultura atual. Seu significado está intima- mente ligado ao seu uso. Além disso, na pré-história e na cultura indígena, a arte é a expressão de um grupo de indivíduos com hábitos e crenças co- muns; ela é um referente de sua identidade étnica, portanto não se apre- senta como o resultado da expressão de uma interioridade particular. Por meio do estudo das diversas Tradições rupestres, da cerâmica pré-histórica e da arte plumária indígena brasileira, foi possível constatar sua riqueza e diversidade. O contato com outra cultura, como a indígena, pode nos auxiliar, enfim, a fazermos a crítica de nossa própria cultura, isto é, uma autocrítica. ATIVIDADES 1. Por que estudar sociedades indígenas já extintas hoje? 2. Quais são as semelhanças e as diferenças entre a cerâmica marajoara e a tapajônica? 3. Leia o trecho a seguir, extraído dos diários de Mário de Andrade (2015). Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares [os centros urbanos] foram feitos muito às pressas, com excesso de Castro-Alves. E esta pré-noção invencível, mas invencí- vel, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... 26 História da Arte no Brasil E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. (ANDRADE, 2015, p. 67-68) O escritor faz uma observação sobre a cultura brasileira que contém, implícita, uma crítica. Que crítica é essa? Você concorda com ele? Por quê? REFERÊNCIAS ANDRADE, M. de. O turista aprendiz. Edição de texto anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. Brasília, DF: Iphan, 2015. Disponível em: http:// portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/O_turista_aprendiz.pdf. Acesso em: 26 out. 2020. CONSENS, Mario. Arte rupestre no Pará: análise de alguns sítios de Monte Alegre. 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No sistema colonial, as políticas de ocupação giram em torno de atividades extrativistas ou agrícolas, capazes de gerar riquezas não à própria colônia, mas sim à metró- pole. Essas atividades – no caso do Brasil, o cultivo da cana de açúcar e a mineração – eram realizadas por mão de obra escrava primeiro indígena e depois também africana. A Igreja teve um papel importante no processo de colonização. Como precisavam dos índios, os portugueses tentaram convertê-los à sua religião, o catolicismo. A igreja, nas religiões cristãs, é o lu- gar onde as pessoas são educadas nos valores e normas cristãos. Diferentes expressões artísticas, como a arquitetura, pintura, escul- tura e música, participam dessa experiência educativa que ocorre nas igrejas. Neste capítulo abordaremos obras de arte e arquitetura en- comendadas por ordens religiosas que se estabeleceram na América portuguesa, especialmente a dos jesuítas e franciscanos. Trabalharemos, ainda, a arquitetura dos engenhos de cana-de- -açúcar e a obra de Aleijadinho. Ao longo do texto, os principais estilos europeus ligados à gênese dessas obras – maneirismo e, so- bretudo, barroco e rococó – servem de apoio à reflexão, mas seu uso não deve se sobrepor à observação e análise de cada caso em par- ticular. Assim, devemos sempre partir das obras e usar esses estilos como chaves para compreender cada uma em sua singularidade. 28 História da Arte no Brasil 2.1 Arquitetura e artes visuais Vídeo Durante o período Colonial, a arte produzida no Brasil encontrava- -se intimamente ligada à arquitetura, sobretudo religiosa. Tanto os edi- fícios em si quanto as obras de pintura e escultura distribuídas em seu interior e exterior podem ser abordados sob uma perspectiva estéti- ca. Nesse caso, contudo, o conjunto forma um todo coerente, que não pode ser reduzido às suas partes sem prejuízo do significado. A construção de uma igreja era o resultado do trabalho cooperado de arquitetos, carpinteiros, pedreiros, canteiros, entalhadores, esculto- res, pintores e outros profissionais do campo da arte e da engenharia, muitas vezes acumulando funções. Primeiro, a ordem religiosa enco- mendava o risco, termo usado na época para se referir ao desenho do projeto. Projetos arquitetônicossão compostos por plantas baixas, que informam sobre a organização do espaço, e elevações em perspectiva, que instruem sobre a aparência externa do edifício, por meio das vistas frontal, posterior e lateral. As tecnologias de construção disponíveis, das quais o mestre de obras, assistido por pedreiros e carpinteiros, faz uso para executar o projeto, influenciam o desenho, pois cada uma possui potencial e limites próprios e permite certas soluções ao mesmo tempo que impede outras. No caso das igrejas coloniais que estudaremos neste capítulo, as principais técnicas artísticas associadas à arquitetura são: • Escultura: seja em relevo ou independente de um suporte pla- no, esculturas podem figurar na parte externa ou interna do edi- fício. No interior ganham destaque especial nos retábulos, que correspondem à parte posterior do altar. Os temas representa- dos são majoritariamente cristãos, normalmente ligados à histó- ria do padroeiro ou padroeira que dá nome à igreja. • Talha: é o nome dado aos ornamentos em relevo, esculpidos em madeira ou pedra, que revestem a arquitetura. Quando pintados, são chamados de talha dourada ou policromada. No barroco e ro- cocó representam motivos fitomórficos (em formato de cachos de uva, folhas de acanto, flores etc.) e figuras de anjos. Barroco e Rococó 29 Muito explorada na arquitetura barroca, a voluta é um ornamento em forma de espiral encontrado no capitel da coluna jônica. Já a rocalha ou rocaille – palavra francesa que quer dizer conjunto de pedras, seixos ou detritos minerais de peque- nas dimensões, de onde vem o nome rococó – é um ornamento de curvas mais orgânicas e irregulares, inspirado em formas da natureza, como conchas e folhas. O capitel da coluna jônica com volutas e, ao lado, ornamentos do tipo rocaille. M an ue l A na st ác io /W ik im ed ia C om m on s M ae rie /S hu tte rs to ck • Pintura: a técnica mais usada era o óleo ou a têmpera sobre madeira ou tela, às vezes inserida em painéis separados na de- coração em talha. O objetivo do pintor era alcançar a ilusão do espaço tridimensional. Nos tetos das igrejas, as representações em perspectiva que simulam a arquitetura, chamadas de quadra- tura, eram frequentes. • Azulejaria: expressão artística tipicamente portuguesa, que con- siste na pintura com esmaltes sobre placa de cerâmica vidrada em formato quadrado, usada como revestimento de paredes. Os azulejos encontrados na arte colonial no Brasil normalmente eram fabricados em Portugal. Dentro do contexto da arquitetura colonial, a escultura, talha, pin- tura e azulejaria são as técnicas mais usadas em trabalhos artísticos. Já os estilos referenciais, de algum modo assimilados no processo de colonização, são o maneirismo, o barroco e o rococó; eles se sucedem na Europa a partir do fim do século XVI até a metade do século XVIII e chegam tardiamente ao Brasil, pela via da Península Ibérica, espe- cialmente de Portugal. Mesmo no mundo lusitano, o barroco foi um fenômeno tardio e não teve a mesma adesão que na Itália e outros centros europeus. Essa presença tardia gerou também uma frequente sobreposição ou combinação desses estilos, bem ou malsucedida, na arte colonial brasileira, de modo que se torna, em geral, difícil estabele- cer uma filiação total e homogênea a um ou a outro. Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s A perspectiva é um modo de representação espacial criado no século XV, na Itália, que cria a ilusão de profundidade em um espaço plano, usando como referência gráfica o ponto de fuga e a linha do horizonte. Manuais com lições práticas de perspectiva circulavam entre a metrópole e a colônia. O tratado do padre jesuíta italiano Andrea Pozzo (1642-1709), Perspectiva na pintura e na arquitetura, pu- blicado entre 1693 e 1700, teve grande influência na atividade dos pintores atuantes no período colonial no Brasil. Atualmente, parte da pesquisa sobre a arte brasileira desse período gira em torno da relação das obras com a tratadística europeia. Saiba mais 30 História da Arte no Brasil Estilo Maneirismo Barroco Rococó Período na Europa Segunda metade do século XVI Século XVII Primeira metade do século XVIII Caracterís- ticas • Ambiguidade. • Ecletismo. • Tensões não resolvidas. • Na arquitetura, combina características do Renascimento, como simplicidade e estaticidade, com elementos barrocos, como planta elíptica e proporções alongadas. • Presença de fachadas com duas torres. • Movimento. • Dramaticidade. • Tensões contrabalançadas por distensões. • Presença marcante de curvas, elipses e volutas. • Acento sobre um efeito único, às custas de outros elementos da composição ou equilíbrio assimétrico. • Contraste intenso de claro-escuro. • Profusão decorativa. • Graciosidade. • Evita tensões. • Estilo de decoração interior baseado na ornamentação em rocalha. • Na arquitetura, as curvas são mais suaves e os interiores menos carregados, com mais espaços vazios. Quadro 1 Estilos artísticos europeus: séculos XVI ao XVIII. Fonte: Elaborado pelo autor Os estudos de referência a respeito da arte e arquitetura colonial no Brasil são de Bazin, Smith e Bury – um francês, outro norte-ameri- cano e outro inglês –, todos escritos na metade do século XX. Enquanto Bazin insere-se na historiografia modernista ligada a órgãos públicos oficiais brasileiros, adotando uma abordagem formalista, Smith e Bury voltam-se mais às trocas culturais entre colônia e metrópole, pensando o Brasil em um contexto global. 2.2 Arquitetura jesuítica no Brasil Vídeo A conversão dos indígenas ao catolicismo fez parte do projeto de co- lonização – a ordem religiosa da Companhia de Jesus, criada na Espanha em 1534, veio ao Brasil já em 1549, a pedido de Dom João III, rei de Por- tugal, com esse propósito. Na sequência da chegada do jesuíta Manoel da Nóbrega, estabeleceram-se no território diversos assentamentos, até a expulsão definitiva da companhia em 1759. Nesse intervalo de tempo é possível observar duas fases da arquitetura jesuítica no Brasil. O Instituto do Patrimô- nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) editou uma série chamada Roteiros do patrimônio. Por meio dela você pode conhecer mais a respeito de muitas das obras de arte e arquitetura abor- dadas neste capítulo. Os textos estão disponíveis para download. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/publicacoes/ lista?categoria=47&busca. Acesso em: 26 out. 2020. Leitura Barroco e Rococó 31 2.2.1 Fase inicial Nesse período destacam-se duas construções. A primeira, a Capela de São Miguel Arcanjo (Figura 1), que foi fundada em 1560 pelo padre espanhol José de Anchieta, sob as ordens de Manoel da Nóbrega, em Ururaí, onde é hoje o bairro São Miguel, na cidade de São Paulo. A capela era parte de um aldeamento estabelecido para a catequi- zação dos índios Guaianazes. Foi demolida e reconstruída em taipa de pilão, em 1622, data que consta no portal de entrada. Segundo o arqui- teto Lucio Costa (2010), constitui um desenho típico de capela de aldea- mento, embora acrescido do alpendre ou varanda. Por causa de uma restauração recente, foram descobertas, atrás de dois altares laterais, pinturas parietais datadas do fim do século XVII, com representações do sol e da lua, entre outros motivos ornamentais. Figura 1 Capela de São Miguel Arcanjo, em São Paulo (SP), depois de restaurada. Br un oc M ac ed o/ W ik im ed ia C om m on s Figura 2 Vista da nave principal. Br un oc M ac ed o/ W ik im ed ia C om m on s Por meio do vídeo Circuito de visitação da Capela de São Miguel Arcanjo, publi- cado pelo próprio canal da Capela, é possível realizar um tour virtual por ela, que é o primeiro edifício tombado pelo IPHAN, em 1938, onde funciona hoje um museu. Disponível em: https://youtu.be/ RH-IjsRkO5w. Acesso em: 21 out. 2020. Vídeo Atualmente, a técnica de construção taipa de pilão está sendo recuperada por sersustentável, de baixo custo e de grande durabilidade. As paredes são erguidas por meio da com- pactação, com o uso de um pilão de terra úmida dentro de uma estrutura de madeira. Depois de atingir o limite máximo de altura, a fôrma de madeira é desmontada e reposicionada, sendo reutilizada diversas vezes. Curiosidade 32 História da Arte no Brasil Em 1587, Anchieta supervisionou a construção da Igreja Nossa Senhora da Assunção, no aldeamento de Reritiba, onde hoje é a cidade de Anchieta, no Espírito Santo (Figura 3). A igreja, construída em pedra e cal, está posicionada entre a torre quadrangular com quatro sinos e a residência (chamada colégio) dos padres. A fachada é a única parte que restou do conjunto original, embora com alteração das janelas. Uma característica dessa planta são as três naves, espaço onde se reúnem os fiéis, que fica entre a entrada e o altar principal. A capela de São Miguel possui somente uma nave (Figura 2), como era o mais comum nas construções dos jesuítas. Partes de uma igreja. Igrejas são compostas por duas partes principais: (1) a nave e (2) o coro (onde fica o altar-mor). Aquelas mais elaboradas podem apresentar também (3) abside, (4) transepto, (5) naves laterais, (6) torres ocidentais e (7) cruzamento do transepto. (Planta baixa da Catedral de Colônia, usada aqui a título de exemplo). Fonte: Adaptada de Cragoe, 2016. 1 2 456 6 7 3 IE SD E S/ A Figura 3 Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Anchieta (ES). Pa no ra m io u pl oa d bo t/ W ik im ed ia C om m on s Barroco e Rococó 33 Um precedente arquitetônico importante para essas primeiras edi- ficações jesuíticas no Brasil é a Igreja de São Roque, em Lisboa – proje- tada para os jesuítas, pelo arquiteto italiano Filippo Terzi (1520-1597) –, cuja construção teve início em 1580 (Figura 4) e cujo estilo é considera- do maneirista. Figura 4 Fachada maneirista da igreja jesuítica de São Roque restaurada. F el ix L ip ov /S hu tte rs to ck Assim, tanto a igreja de São Miguel Arcanjo quanto a de Nossa Se- nhora de Assunção representam a fase inicial da arquitetura jesuítica no Brasil, cujas soluções formais são simples, adequadas às técnicas construtivas locais e lembrando, em alguns aspectos - como o contor- no da fachada, encimada por um frontão, e o teto de duas águas - São Roque, a primeira igreja dos jesuítas em Portugal. Na fase final da ar- quitetura jesuítica no Brasil, será a primeira igreja da companhia em Roma, bem como outra de Terzi construída também em Lisboa, que constituirão referências importantes. 2.2.2 Fase final Os chamados Sete Povos das Missões fizeram parte de 30 aldea- mentos conhecidos como reduções, fundados pelos jesuítas a partir de 1626, sob ordens de Felipe II, rei da Espanha e no período também rei interino de Portugal, com o objetivo de catequizar os índios Guaranis. Os Sete Povos estabeleceram-se na região fronteiriça entre o sul do Brasil, a Argentina e o Uruguai, ficando no lado oriental, onde hoje é o https://www.shutterstock.com/pt/g/flipov 34 História da Arte no Brasil Rio Grande do Sul; São Miguel, cujas ruínas encontram-se atualmente preservadas na cidade de mesmo nome, é um deles. As reduções, ao reunirem o que se encontrava disperso, consti- tuíam complexos urbanísticos formados por edificações, como igrejas, moradias, colégios e oficinas, bem como estâncias e ervais. Nelas eram praticadas a agricultura, a pecuária e o artesanato em um sistema de cooperação entre os jesuítas e os índios. O projeto da igreja de São Miguel foi feito, provavelmente, pelo pa- dre italiano Gian Batista Primoli (1673-1747), que ali chegou em 1730; estima-se que ela foi construída entre 1735 e 1747. O material utilizado foi pedra de cantaria (talhada em bloco), depois branqueada por um re- boco de tabatinga – palavra de origem tupi que significa barro branco. Uma diferença importante entre as demais construções missioneiras é a tecnologia de paredes portantes de pedra, ou seja, que sustentam por si mesmas a estrutura, sem o auxílio de vigas e colunas. Quanto ao desenho, a igreja de São Miguel foi inspirada na pri- meira igreja dos jesuítas em Roma, a Igreja de Jesus, ou Chiesa del Gesù (1568-1580), projetada pelo arquiteto italiano Giacomo Vignola (1507-1573). Na planta de Gesù, é possível visualizar a nave principal ladeada por uma série de capelas interconectadas e uma cúpula enci- mando o transepto, seguido da abside em formato semicircular. A igre- ja de São Miguel possui três naves, uma principal e duas laterais, que lembram o esquema das capelas na igreja de Gesù, embora compon- do um espaço mais amplo e aberto. Uma porta central abre-se à nave principal e duas menores às naves laterais. Havia também uma cúpula, hoje destruída, sobre a abside, a qual, nesse caso, era retangular. Ambas as fachadas são divididas em dois níveis, com frontão, volu- tas laterais (mais pronunciadas em São Miguel), três acessos térreos e uma janela central superior. Sua planta e elevação são consideradas de estilo maneirista, embora, em São Miguel, a presença da parede ondulada na fachada – duas concavidades em cada lado da porta cen- tral que se estendem verticalmente da base até o frontão – seja uma característica do estilo barroco. No edifício latino americano foi cons- truída, ainda, uma torre única onde ficava o sino, chamada de campa- nário, e um alpendre ou pórtico para abrigar as pessoas na entrada, o qual não constava no projeto original de Primoli. A igreja da Companhia de Jesus em Salvador, capital da América portuguesa entre 1549 e 1762, foi terminada em 1672 e contava, ao Para conhecer o projeto de pesquisadores da Unisinos, que apresenta uma reconstituição da redução jesuítica de São Miguel em formato digital 3D acesse o link a seguir. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=GWQOYcvcp10. Acesso em: 21 out. 2020. Site Projetado pelo arquiteto Lucio Costa com base nas moradias indígenas das reduções jesuíticas, o Museu das Missões, construído em 1940, próximo às ruínas de São Miguel, abriga hoje escul- turas e outros vestígios arqueológicos encontra- dos entre os Sete Povos das Missões Orientais. Explore o seu acervo no link a seguir. Disponível em: http:// museudasmissoes.acervos.museus. gov.br/acervo-museologico/. Acesso em: 26 out. 2020. Saiba mais https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 Barroco e Rococó 35 lado, com um colégio (Figura 5). A planta é simples, com nave única retangular, capelas laterais e desprovida de cúpula ou transepto. Altares subsidiários en- contram-se ao lado do principal e, ao fundo, há uma grande sacristia. A facha- da é sóbria e austera, com paredes pla- nas e janelas distribuídas em linhas horizontais paralelas. Além disso, apre- senta uma característica que será bas- tante recorrente na arquitetura religiosa do período Colonial no Brasil e que não existe, por exemplo, na igreja de São Mi- guel: a presença de duas torres laterais e das volutas conectando-as ao frontão. Além da igreja de Gesù de Vignola, a igreja de São Vicente de Fora, em Lis- boa – outro projeto como o da igreja de São Roque, de Filippo Terzi, este iniciado em 1582 –, também aproxima-se formal- mente da igreja de Salvador (Figura 6). Tanto esta última como São Vicente de Fora possuem: frontões menores sobre as portas e janelas; pilastras (colunas fi- xadas às paredes) seccionando a fachada em cinco partes regulares; nichos onde foram inseridas esculturas; e, finalmente, duas torres laterais cujos topos compõem um nível suplementar, sendo cada um dos níveis bem marcado pela linha horizontal das cornijas. No caso de Salvador, os ni- chos com as esculturas se sobrepõem ao cume dos frontões cortando-os, o que é uma característica do barroco. O historiador inglês Jonh Burry afir- ma que, como ocorre na igreja principal dos jesuítas em Salvador, as fachadasdas igrejas da companhia em todo o mundo Figura 5 Arquiteto desconhecido, fachada da antiga igreja do colégio dos jesuítas, construída entre 1652 e 1672, atual catedral de Salvador, na Bahia. Prburley/Wikimedia Commons Figura 6 Fachada maneirista com duas torres da Igreja São Vicente de Fora, fim do século XVI, Lisboa. Projeto de Filippo Terzi. Cavan-Images/Shutterstock https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Prburley 36 História da Arte no Brasil lusitano irão oscilar entre a igreja de Gesù, em Roma, e a de São Vicente de Fora, em Lisboa. Trata-se, de qualquer modo, de soluções maneiris- tas, pois apresentam características do barroco, como a fachada côn- cava e volutas, misturadas a outras, mais clássicas, como o predomínio das formas retas, sobretudo na planta, e torres laterais. 2.3 Engenhos Vídeo Nos séculos XVI e XVII, a principal atividade econômica da colônia era a produção de cana-de-açúcar, e o Nordeste foi um importante polo produtor. A plantação e o processamento da cana ocorriam no interior, e essa produção era escoada à metrópole pelas cidades, geral- mente localizadas à margem de rios ou no litoral. Do ponto de vista da arquitetura, esses espaços de produção eram compostos pela casa- -grande, capela, fábrica e senzala. Enquanto a casa-grande, residência fixa ou temporária do proprietário, apresenta modificações em sua for- ma de acordo com o local e o período, a senzala, habitação das pessoas escravizadas, se mantém praticamente a mesma ao longo do tempo. É possível conhecer melhor esse complexo arquitetônico no perío- do inicial da colonização por meio dos registros de pintores holandeses, como Frans Post (1612-1680), vindos durante a ocupação holandesa da capitania de Pernambuco, entre 1630 e 1654. Não se sabe, entretanto, até que ponto essas pinturas são fiéis, pois as senzalas, por exemplo, não são representadas – embora sejam descritas mais tarde, no relato de via- jantes do século XIX. As poucas senzalas que sobreviveram consistem em um edifício único com uma série de cubículos conjugados, cujas portas de entrada voltam-se para uma galeria comum e aber- ta. Cogita-se, ainda, que os africanos escravizados tenham habitado, nos engenhos, pavimentos térreos destinados a depósito ou casebres de origem africa- na, chamados de mocambos (Figura 7). Assim, várias técnicas de construção eram em- pregadas. Nas casas-grandes, capelas e fábricas eram usados, geralmente, alvenaria de pedras, tijo- los ou adobe; já nas senzalas era utilizada a taipa de pau-a-pique, na qual a argila é socada com as mãos sobre uma estrutura de madeira para elevação da parede. Mas era a capela, sobretudo, a construção feita para durar. Figura 7 Johann Moritz Rugendas, habitação de negros, litogra- fia de 1835. Jurema Oliveira/Wikimedia Commons Barroco e Rococó 37 2.3.1 Arquitetura da resistência: o quilombo Buraco do Tatu Uma das formas mais comuns de resistência à escravidão no Brasil colonial foi a fuga. Os escravizados fugidos reuniam-se em mocambos ou quilombos, que estavam situados em lugares próximos a cidades ou plantações, porém de difícil acesso. A região de produção açucareira possuía um número elevado de pessoas escravizadas e sua reunião em mocambos preocupava os co- lonos, pois possíveis rebeliões significavam uma ameaçava às bases do sistema que garantia os seus privilégios. Pouquíssimos documen- tos sobre esses assentamentos chegaram até nós, por isso a planta do Buraco do Tatu – que existia desde 1743, próximo à atual praia de Itapoã, na Bahia – é de particular importância. O desenho foi feito para ilustrar os relatórios da campanha de ataque e destruição do quilombo pelas autoridades portuguesas em 1763. As casas retangulares orga- nizadas em fileiras paralelas lembram as senzalas de engenho. A casa cerimonial em frente a uma espécie de praça (marcada com a letra H) é, contudo, encontrada em culturas africanas. Dentro dos quilombos, desenvolveram-se tradições sincréticas, ou seja, que fundiam elemen- tos brasileiros e africanos. Você pode visualizar a planta do Buraco do Tatu, conservada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, no link a seguir: Disponível em: https://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/301408. Acesso em: 26 nov. 2020. No perímetro do Buraco do Tatu, havia, ainda, uma extensa rede defensiva: os inúmeros traços pontilhados na planta representam es- tacas fincadas no solo em nível abaixo do chão e cobertas para não serem vistas por invasores; os círculos preenchidos com traços eram covas abertas, repletas de espetos e igualmente camufladas com mato e arbustos. Além disso, não há indicação de roças. De fato, raros são os casos de mocambos que desenvolveram uma economia agrícola au- tossuficiente, talvez pela própria dificuldade gerada pela condição de fugitivos, de modo que os suprimentos eram obtidos por meio de assal- tos nas estradas, incursões e extorsões. Assim, a sociedade desigual e opressiva que gerava os quilombos também os temia, tanto em razão dos assaltos quanto das ameaças de revolta. O livro Casa-grande e senzala, considerado um clássico da sociologia brasileira,busca na arquitetura recursos interpretativos para a realização de análises so- ciais. O autor os encontra nas tipologias básicas da casa-grande e da senzala, parte do complexo arqui- tetônico dos engenhos. FREYRE, G. São Paulo: Círculo do Livro, 1933. Livro Na alvenaria, as paredes são erguidas empilhando pedras, tijolos ou adobe (blocos de argila crus) com ou sem argamassa de ligação. Curiosidade Mocambo ou quilombo? Mocambo é o nome de origem africana dado aos casebres feitos de taipa de pau-a-pique e teto de palha ou telha de barro, os quais os africanos construíam para si mesmos como habitação, sendo um termo usado também para referir-se às comunidades de escravizados fugidos. A pala- vra quilombo foi introduzida no vocabulário colonial para se refe- rir ao assentamento de Palmares, no interior de Alagoas, e passou a ser utilizada como sinônimo de mocambo. Segundo Schwartz (1987), ki-lombo consistia em uma instituição africana que congregava jovens de diferentes etnias por meio de ritos iniciáti- cos e os treinava como guerreiros. Saiba mais https://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/301408. 38 História da Arte no Brasil 2.4 Barroco e Rococó no Nordeste Vídeo A economia do açúcar, baseada na mão de obra escrava, também gerou o excedente necessário para a construção de igrejas e realização de seus respectivos programas decorativos. Afinal, as ordens religio- sas, quando não possuíam engenhos e mão de obra escrava, recebiam doações dos senhores de engenho e comerciantes. Além dos jesuítas, outras ordens, como a dos franciscanos, construíram sedes na colônia. O historiador francês Germain Bazin (1956) identificou uma “escola franciscana do Nordeste”, cujo Convento de Santo Antônio, em João Pessoa, na Paraíba, seria o exemplo mais emblemático. O con- vento encantou também Mário de Andrade que, em sua viagem pelo Nor- deste, afirmou ser um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do Brasil. Foi fundado em 1589 e passou por uma série de reformas até ser concluído em 1779 (Figura 8). O convento apresenta características recorrentes nos demais con- juntos franciscanos na região, como a existência de um adro (ou pátio) em frente à igreja, que começa com uma cruz em pedra monumen- tal (o cruzeiro) e termina na galilé, um alpendre coberto e delimitado por arcos na área de entrada da igreja, em que os portões instalados nos vãos organizam a passagem. O portão da extrema direita marca o acesso dos franciscanos leigos (da Ordem Terceira); e o da extrema esquerda, dos frades (da Ordem Primeira). Os três portões ao centro abrem-se para a nave, que se comunica lateralmente com a capela da Ordem Terceira, coberta com talha dourada. Na parte externa, a torre única, um pouco recuada, quebra a simetria da fachada; já as volutas, que são umacaracterística do barroco, fazem a transição entre os di- ferentes níveis. Barroco e Rococó 39 Figura 8 Fachada da igreja do Convento de Santo Antônio, construído entre os séculos XVI e XVII, em João Pessoa (PB). Li na n/ W ik im ed ia C om m on s A pintura do teto da nave central representa alegorias da vida de São Francisco e dos franciscanos e simula um espaço arquitetônico em perspectiva (Figura 9). Sua autoria ainda está sob disputa entre os espe- cialistas; alguns a atribuem ao baiano José Joaquim da Rocha (1737- 1807), que pintou, entre outros, o teto da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador (Figura 10), mas não existe nenhuma evidência documental para apoiar a atribuição. Figura 9 Glorificação dos Santos Franciscanos, entre 1766 e 1769, igreja do Convento de Santo Antônio, em João Pessoa (PB). Figura 10 Glorificação da Imaculada Conceição, 1772-1773, Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador (BA). Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s 40 História da Arte no Brasil Dentro das igrejas, imagens deveriam servir de exemplo aos fiéis e inspirar devoção. Na pintura do teto do convento em João Pessoa, as quatro passagens mais importantes da vida de São Francisco (nas- cimento, renúncia às riquezas, recebimento dos estigmas de Cristo e exumação do corpo anterior ao seu translado a Assis) são ilustradas em medalhões ao redor da cena principal, a qual, por sua vez, retrata a Santíssima Trindade e a Virgem Maria. Rodeada de anjos em sua nu- vem, ela ergue o estandarte com o emblema da ordem mendicante. Esse grupo encontra-se logo acima de São Francisco, que irradia luz na direção de quatro santos, trajados com a mesma batina escura. As figuras femininas ao lado desses santos são alegorias dos continentes onde atuaram como missionários, da esquerda para a direita, em sen- tido horário: Europa, África, Ásia e América. Finalmente, quatro bispos, quatro cardeais e quatro papas, solenemente vestidos, contrastando com os santos franciscanos em seu voto de pobreza, encontram-se sentados de modo descontraído na balaustrada do templo. A historia- dora e professora da UFPB, Carla Mary Oliveira (2006a) questiona se não haveria na representação dos bispos, cardeais e papas uma crítica velada à hierarquia eclesiástica de Roma, em franco contraste com a atividade dos missioneiros franciscanos na América portuguesa. Além disso, no adro, na nave e no claustro há uma série de pinturas sobre azulejo, todos fabricados em Portugal. As da nave e do adro são monocrômicas, em azul, e representam respectivamente cenas da vida de José, do Egito, e da Via Crucis. No claustro, os azulejos formam uma faixa contínua acima dos arcos e decoram a parte inferior das paredes da galeria com motivos geométricos pintados em duas cores, amarelo e azul, o que indica que são mais tardios, do século XVIII. Outras duas igrejas coloniais franciscanas merecem uma menção: a do Convento (ou da Ordem Primeira) e a da Ordem Terceira de São Francisco, localizadas uma ao lado da outra na cidade de Salvador (BA). O Convento de São Francisco foi construído entre 1686 e 1723 (mas passou por alterações até o século XIX); a decoração interna é poste- rior, do segundo quartel do século XVIII. A fachada da igreja do Con- vento é composta por duas torres alongadas quadrangulares, coroadas por pirâmides. A parte inferior segue o padrão de um arco do triunfo, com três aberturas térreas, sendo a central maior do que as laterais. É arrematada, no alto, por um frontão com volutas entrelaçadas, que oferecem um contraponto ao caráter retilíneo dominante. Essas volu- A obra de referência para o estudo do azulejo no Brasil foi escrita por João Miguel dos Santos Simões e publicada em 1965, sob o título Azule- jaria portuguesa no Brasil (1500-1822). A coleção do autor, assim como manuscritos e ilustrações para o livro, encontra-se hoje no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Disponível em: https://digitile. gulbenkian.pt/. Acesso em: 21 out. 2020. Livro Barroco e Rococó 41 tas representam um avanço na direção do barroco, no qual as formas ortogonais são substituídas pelas curvas e pelos perfis em S. O exterior simples contrasta com o interior suntuoso (Figuras 11 e 12). Chamada de igreja toda de ouro, a nave principal é coberta por entalhes em alto relevo feitos em madeira de cedro e pintados de dourado. A profusão de anjos e de ornamentos representando folhas de acanto é organizada em painéis separados por frisos. Além disso, colunas sa- lomônicas emolduram o altar principal. O excesso de ornamentação e brilho produz uma sensação de irrealidade típica do barroco, no qual contornos são diluídos em direção a uma ideia de infinito. Figura 12 Interior da igreja do Convento de São Francisco, Salvador (BA), século XVIII. Figura 11 Fachada da igreja do Convento de São Francisco, em Salvador (BA), século XVIII. Fu lvi us bs as /W ik im ed ia C om m on s Fu lvi us bs as /W ik im ed ia C om m on s Sensação semelhante produz a fachada da igreja da Ordem Terceira de São Francisco (Figuras 13 e 14), logo ao lado da igreja do Convento. Trata-se de uma obra única do período Colonial no Brasil, com uma fa- chada mais propriamente barroca, cujo projeto é de autoria do mestre carpinteiro Gabriel Ribeiro (?-1719), que havia trabalhado em Portugal. A decoração in- terior da igreja do Convento, em talha de madeira, ganha aqui a fachada esculpida em pedra. Assim, o exterior carregado contrasta, ao contrário do que ocorre na igreja vizinha, com o interior mais simples. A coluna salomônica é torcida em torno do pró- prio eixo, sendo muito associada ao barroco. O arquiteto e escultor italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) utilizou-a no baldaquino sob a cúpula central da Basílica de São Pedro, no Vaticano, no monumento que marca a área onde está o túmulo do santo apóstolo. Ela é ilustrada também em manuais de arquitetura do período, como o de Giacomo Vignola (1507-1573), que projetou a igreja de Gesù, em Roma. Um exemplo pode ser visto no link a seguir. Disponível em: https://archive.org/details/gri_33125008229409/ page/64/mode/2up. Acesso em: 21 out. 2020. Saiba mais https://archive.org/details/gri_33125008229409/page/64/mode/2up https://archive.org/details/gri_33125008229409/page/64/mode/2up 42 História da Arte no Brasil Figura 13 Fachada da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador (BA). Fu lvi us bs as /W ik im ed ia C om m on s Figura 14 Detalhes da fachada. Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Figura 15 Vista do claustro da Igreja do Convento de São Francisco, em Salvador (BA). Fu lvi us bs as /W ik im ed ia C om m on s Os claustros de ambas as igrejas são decorados com azulejaria. Os 37 painéis do claustro da igreja do Convento retratam, curiosamente, deuses da mitologia pagã (Figura 15). Além disso, constituem cópias de ilustrações em gravura feitas pelo artista holandês Otto van Veen (1556-1629) para uma edição espanhola dos Emblemas, do poeta latino Horácio, intitulada Theatro moral de la vida. Um frei chamou a série de sermão de azulejos, pois veiculam lições morais como estímulos à re- flexão. A pintura dos azulejos, sempre vindos de Lisboa, é atribuída a Bartolomeu Antunes de Jesus (1668-1753). Barroco e Rococó 43 2.5 Barroco e Rococó no Sudeste Vídeo No século XVIII, Rio de Janeiro e Minas Gerais se beneficiaram da exploração do ouro aluvional, ou seja, minerado nos rios e riachos. As- sim, a capitania independente de Minas Gerais é criada pela coroa por- tuguesa em 1720 e os governadores nomeados passam a residir em sua sede, Vila Rica (atual Ouro Preto). Outras comarcas importantes eram Rio das Velhas (Sabará), Rio das Mortes (São João del Rei) e Ribei- rão do Carmo (Mariana), todas próximas ao leito dos rios auríferos. O auge da produção se deu entre 1730 e1760, quando mais de 2500 kg de ouro eram enviados anualmente a Por- tugal, por meio do porto do Rio de Janeiro, capital da colônia desde 1763, como pagamento de tributos (o quinto). Os im- postos extorsivos permaneceram mesmo durante a crise eco- nômica decorrente do declínio da produção, o que estimulou a formação de um nacionalismo precoce. Em 1789 irrompe, então, o movimento da Inconfidência (traição) Mineira, orga- nizado por filhos da elite sociocultural, já nascidos no Brasil, mas que realizaram seus estudos em Portugal, onde tiveram contato com ideias iluministas. A insurreição foi reprimida pelas autoridades e Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, o me- nos idealista do grupo e o único que não tinha origens bur- guesas, foi executado. O poeta Claudio Manoel da Costa se suicidou e Tomas Antônio Gonzaga, entre outros insurrectos, foram exilados na África. Esse preâmbulo é importante, porque foi nesse contexto de rápi- da ascensão e decadência econômica, associado a revoltas civis em nome da emancipação da colônia, que atuou Antônio Francisco Lisboa (1730/1738-1814), o Aleijadinho, considerado por muitos especialistas como o primeiro artista a criar um estilo originalmente brasileiro, ou seja, que realiza uma síntese entre elementos locais e globais. 2.5.1 “Estilo Aleijadinho” Filho do mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa e de Isabel, africana escravizada , Aleijadinho nasceu em Vila Rica e logo foi Saiba mais Na antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, cuja torre central abriga o “sino do povo”, funciona hoje o Museu da Inconfidência. O seu acervo inclui obras de arte e artesanato minei- ras produzidas entre os séculos XVIII e XIX. Disponível em: https:// museudainconfidencia.museus.gov. br/acervo-on-line/. Acesso em: 21 out. 2020. 44 História da Arte no Brasil alforriado por seu pai. Ele frequentou o Seminário dos franciscanos, onde aprendeu gramática, latim, matemática e religião, ao mesmo tempo que intervi- nha em obras do pai. Tornou-se arquiteto e, sobre- tudo, escultor, dispondo de ajudantes. Em torno dos 40 anos, contraiu uma doença – não se sabe se sífilis, lepra ou bulba –, que foi se agravando progressiva- mente até o fim de sua vida, quando passou a escul- pir com os instrumentos, formão e marreta, atados às mãos, o que torna suas realizações tardias ainda mais impressionantes. O texto fundamental sobre a vida de Aleijadinho foi escrito quarenta e quatro anos após a sua morte, em 1858, pelo professor e advogado mineiro Rodrigo Bretas, com base em pesquisas de arquivo e documentos orais coletados em Ouro Preto e cidades próximas. Além do texto, o documentário do cineasta Joaquim Pedro de Andrade, também trata de sua vida e obra e pode ser acessado pelo link a seguir. Disponível em: http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_aleijadinho Acesso em: 21 out. 2020. Documentário Quando usamos o adjetivo bor- romínico, estamos nos referindo à obra de um dos mais impor- tantes arquitetos do alto barroco italiano. Francesco Borromini introduziu a planta elíptica e a fachada sinuosa em um período em que dominavam as plantas ortogonais e as fachadas planas. No Brasil, podem ser chamadas de igrejas borromínicas: São Pedro dos Clérigos, Nossa Senhora do Outeiro, ambas no Rio de Janeiro, e Nossa Senhora do Rosário (Figura 18), em Ouro Preto. Saiba mais Pela singularidade de sua produção, o historiador inglês John Bury definiu um “estilo Aleijadinho”, que combina de modo criativo elemen- tos do barroco e do rococó. Bury considera estas obras a expressão máxima desse estilo: a fachada de Nossa Senhora do Carmo, de Ouro Preto; as Igrejas de São Francisco de Assis em Ouro Preto e em São João del Rei; e o adro do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. Todas as igrejas foram construídas com alvena- ria de pedra, normalmente o quartzito, o que permite uma elaboração formal maior do que a taipa, mais usada no início do período Colonial. A igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto, foi iniciada pelo pai do Aleijadinho, em 1766, que faleceu antes de concluí-la, ficando então a cargo de seu filho (Figura 16). Sua fachada sinuosa, formando uma linha côncava-convexa-côncava, fora usada antes pelo arquiteto italiano Fran- cesco Borromini (1599–1667) na igreja de San Carlo alle Quattro Fontane, em Roma, e se tornaria uma característica recorrente da arquitetura bar- roca. A planta retilínea é, contudo, clássica. A igreja de São Francisco de São João del Rei (Figura 17), possui a fachada reta, mas a nave oval e alongada. Esse alongamento da planta elíptica significa uma suavização própria do rococó. No entanto, o vão representado pelo óculo (a janela redonda ao centro) que interrompe a linha horizontal do entablamento é uma marca do barroco. Barroco e Rococó 45 A construção foi iniciada em 1776, por Manoel Francisco Lisboa; o corpo do edifício pertence ao maneirismo, mas a fachada apresenta características do “estilo Aleijadinho”. Projeto de Antônio Francisco Lisboa, modificado por Francismo de Lima Cerqueira (? -1808). Figura 16 Fachada da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Ouro Preto (MG). Figura 17 Fachada da Igreja de São Francisco de Assis, São João del Rei (MG). Hg sj un io r/ W ik im ed ia C om m on s O trabalho de talha e escultura da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, é de autoria de Aleijadinho e o projeto arquitetônico lhe é atribuí- do, datando de 1766 (Figuras 19 e 20). A fachada é projetada para frente, acentuando o efeito tri- dimensional mais do que a sinuosidade. Assim, as torres laterais redondas recuadas e compri- midas fazem com que a linha curva da fachada, presente na igreja do Carmo, por exemplo, ganhe o corpo do edifício. As janelas são arranjadas, como nas outras igrejas citadas, em formato de V (fenestração diagonal), tendo a porta como vértice – disposição que acentua o caráter dinâmico do desenho. Figura 18 Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto (MG), segunda metade do século XVI. Rodrigo.Argenton/Wikimedia Commons 46 História da Arte no Brasil Figura 19 Fachada da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto (MG). Figura 20 Detalhe com os relevos da porta. Fu lvi us bs as /W ik im ed ia C om m on s Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s A pintura no teto da nave (Figura 21) foi executada em 1801 pelo pin- tor e professor Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), filho de um casal de portugueses de condição modesta e cuja atuação avança até as primeiras décadas do século XIX. Consta que Ataíde dava aulas de modo informal, chegando a pedir autorização ao rei Dom João III para abrir uma aula pú- blica de desenho, pintura e arquitetura em sua cidade natal, Mariana (MG). No forro da igreja corre um tabuado que permitiu a Ataíde reali- zar uma pintura ininterrupta de grandes dimensões. Ela representa a Virgem acompanhada por anjos que tocam harpas e flautas; nos vér- tices, há os quatro doutores da Igreja (São Gregório, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Jerônimo). Alguns dos anjos e a própria Virgem possuem traços mulatos. Ataíde pintou a perspectiva de falsa arqui- tetura ou quadratura sobre o intradorso do teto, ou seja, as bordas onde ele se curva. Se nos posicionarmos logo abaixo do centro da composição, a ilusão é perfeita, e as colunas parecem retas (Figura 21). De outros pontos de vista, a curvatura do teto fica mais evidente e as colunas parecem empenar. Isso mostra que toda pintura de pers- pectiva possui um ponto de vista ideal, calculado pelo pintor, a partir do qual deve ser vista. Ataíde delimitou, nesse teto, dois espaços celestiais: o azul claro in- ferior, por trás das colunas, lugar dos doutores da Igreja, e o doura- O projeto da igreja é de 1766, mas Aleijadinho trabalhou nos relevos externos e internos de modo intermitente até 1794. Barroco e Rococó 47 do superior, emolduradopor uma forma rocaille de cujo centro a Virgem emana sua luz. Há uma ambi- guidade, pois o céu vira arquitetura: ele parece ser, ao mesmo tempo que céu, uma cobertura susten- tada pelas colunas que se abrem, no centro, para o espaço separado da aparição de Nossa Senhora. Os pontos de fuga na composição de Ataíde, localizados pelo prolongamento das linhas das colunas, conver- gem todos no corpo da Virgem. Ainda na igreja de São Francisco de Ouro Preto, Aleijadinho esculpiu os relevos da portada e do ócu- lo (Figura 20), bem como os púlpitos e lavatórios em pedra sabão ou esteatita, matéria-prima disponível na região. Trata-se de um material poroso, macio ao talhe e muito resistente a extremos de temperatu- ra. Foi com essa mesma pedra que ele esculpiu os 12 profetas do adro do santuário do Senhor Bom Je- sus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, sua última obra importante, que assumiu quando tinha quase 60 anos (Figura 22). Em geral, a arquitetura é o cenário para exibição da escultura, mas, nesse caso, a escultura adquire um valor estrutural, tornando muito difícil imaginar uma sem a outra. Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Figura 22 Adro do santuário do Senhor Bom Jesus de Mato- sinhos, em Congonhas do Campo (MG), igreja de peregrinação que fica entre São João del Rei e Ouro Preto, finalizada em 1790. Figura 21 Pintura no teto da nave da igreja de São Francisco de Assis, de Manoel da Costa Ataíde, em Ouro Preto (MG), 1801. Tetraktys/Wikimedia Commons 48 História da Arte no Brasil Aleijadinho retratou os quatro profetas maiores – Isaias, Jeremias, Ezequiel e Daniel – e oito entre os menores – Jonas, Joel, Amós, Naum, Abdias, Habacuc, Oséias e Baruc, confor- me se sucedem seus livros no Antigo Testamento. Apenas Daniel e Jonas são identificados pelos seus atributos (o leão e a baleia). Quanto aos demais, seus nomes constam em latim nos filactérios que seguram, ou seja, os rolos de perga- minho com citações bíblicas que costumam acompanhar a representação dos profetas na iconografia cristã. Cada profeta encontra-se em uma postura e faz gestos distintos. O historiador francês Germain Bazin (1970) suge- riu que Aleijadinho tenha visto uma série de gravuras floren- tinas do século XV retratando os profetas (Figuras 23 e 24). Isso explicaria, em parte, a origem das roupas e dos cha- péus exóticos que trajam. Entre 1796 e 1799, o escultor mineiro, auxiliado por seus ajudantes, também esculpiu 64 figuras em madeira policro- mada, organizadas dentro de seis capelas ao longo da la- deira que leva até o adro e a igreja de Congonhas. Dentro de cada capela, há uma cena da Via Crucis: a Ceia, o Hor- to das Oliveiras, a Prisão de Cristo, a Flagelação junto com a Coroação de espinhos, a Cruz-às-costas e, finalmente, a Crucificação. As esculturas já foram chamadas de expressio- nistas, porque a sua deformação acentua a expressão das emoções (Figura 25). Outros consideraram-nas “caricatu- rais”. Os narizes dos soldados romanos que prendem Cristo, por exemplo, são tão projetados e pontudos, que o primei- ro biógrafo do Aleijadinho, Rodrigo Bretas, se perguntou se ele não estaria zombando das autoridades portuguesas que extorquiam a população com altos impostos. Tanto nessa figura dos Passos quanto nas dos profetas, os rostos com olhos amendoados lembram feições orientais ou indígenas. Além disso, muitas das mãos possuem deformidades, como provavelmente apresentavam as próprias mãos do escultor. Poucos anos depois, Aleijadinho viria a falecer e, com ele, todo um capítulo da história da arte no Brasil. Figura 23 Profeta Ezequiel, c. 1480-90 Fr an ce sc o Ro ss el li/ W ik im ed ia C om m on s Atribuído a Francesco Rosselli (1448- 1508/27), a partir de Baccio Baldini. Gravura, 17,5 cm x 10,3 cm, British Museum, Londres. Figura 24 Aleijadinho, Profeta Ezequiel, adro do Santuário do Senhor Bom Jesus de Ma- tosinhos, Congonhas do Campos (MG). Lu is R izo /W ik im ed ia C om m on s Barroco e Rococó 49 Figura 25 Aleijadinho, Jesus na cena da Cruz-às-costas, Santuário de Congonhas do Campo (MG). Uma primeira restaura- ção das esculturas dos Passos foi feita em 1957, outra em 1974 e a última em 2004. Os profetas, por sua vez, passaram por uma restauração em 2005. A atividade de restauração, que varia de uma limpeza superficial até interferências estru- turais, busca devolver, na medida do possível, bens culturais a um estado anterior de integridade física. Enquanto a restau- ração remedia, a conser- vação previne. Conservar significa realizar ações preventivas com o intuito de evitar procedimentos de restauro. No vídeo IEPHA recupera peças sacras de igrejas de Minas, publicado pelo canal do Governo de Minas Gerais, você pode conhecer um pouco mais a respeito de procedimentos de restauração. Disponível em: https://youtu.be/ FZMnFPiqfcM. Acesso em: 21. out. 2020. Vídeo Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Assim, analisamos nesta seção algumas obras de escultura e arqui- tetura do Aleijadinho, executadas na segunda metade do séc. XVIII, que integram elementos do barroco e do rococó, o que permitiu identificar um estilo muito particular no contexto da arte colonial no Brasil. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (2017) recomendam que o professor de Arte articule em seu traba- lho leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Você pode trabalhar de várias maneiras os conteúdos deste capítulo com seus alu- nos na escola. Abaixo, seguem algumas sugestões. Procure ampliá-las com base em sua própria experiência. Diante de uma das imagens de arquitetura vistas neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: qual o material usado? Como foram organiza- das as formas? Qual a diferença entre planta e fachada? O que predomina: linhas curvas ou retas? Como o arquiteto distribuiu os vãos ou janelas? Qual a escala? Parece grande ou pequena? • Quanto à construção: como foi feita? Por que você acha isso? • Quanto à função: para que foi feita? Você acha que foi bem projetada, ten- do em vista a sua função? HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA 50 História da Arte no Brasil • Quanto à sociedade que a produziu: quem a produziu? Quem a usou? Quando? Onde? Esse tipo de edifício existe em outras sociedades? Você já viu algo parecido na cidade onde mora? Se sim, quais as diferenças e semelhanças? Trabalhe de acordo com as respostas dos alunos. Exercícios para estimular a observação: • Desenhar a fachada de duas igrejas jesuítas abordadas neste capítulo, uma do período inicial e outra do período final. Descrever as diferenças e semelhanças entre elas. • Colocar um papel transparente (vegetal ou sulfurize) sobre uma das re- produções de pintura de falsa arquitetura vistas neste capítulo e prolon- gar as linhas das colunas para descobrir onde está o ponto de fuga da perspectiva. • Ainda com papel transparente, copiar as volutas e as rocalhas, conforme ilustrado neste capítulo. Depois, em uma folha sulfite, usando lápis de cor, criar uma composição repetindo esses ornamentos. Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo: • Esculpir em uma barra de sabão em pedra (usando facas de plástico ou um lápis bem apontado) a fachada de uma igreja. Criar uma fachada mis- turando elementos daquelas que vimos neste capítulo. Realizar esboços antes de partir para o trabalho sobre a barra de sabão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na arte e arquitetura do período Colonial no Brasil, o maneirismo, o barroco e o rococó são estilos que, geralmente, não se apresentam de modo isolado, mas combinados em cada obra em diferentes proporções. Por exemplo, tanto as torres arredondadas quanto os traçados curvilíneos encontram-se, na região das minas doouro, associados a elementos do es- tilo rococó. No caso do Aleijadinho, inclusive, a unidade entre barroco e ro- cocó é tamanha que permitiu a um historiador da arquitetura distinguir um “estilo Aleijadinho”. Nas igrejas dos jesuítas, por sua vez, suas plantas e fa- chadas são maneiristas, pois preservam algumas características clássicas, porém os interiores são suntuosos e carregados, como no barroco. Essas aproximações entre diferentes estilos em obras individuais apontam para uma rede organizada de importação e circulação de infor- mações, incluindo tratados e gravuras, na qual a colônia recolocava em Barroco e Rococó 51 um outro contexto, muitas vezes de modo original, o repertório formal em uso metrópole. Assim, a comparação com o que ocorria na Europa pode esclarecer a origem de muitas soluções formais, mas a transposição não é literal e implica uma adaptação ou um uso condicionado às possibilidades e demandas locais. Não conhecemos todos os artistas que executaram as pinturas ou os trabalhos de azulejaria, em razão da ausência de documentos. Contudo, como vimos, alguns nomes individuais começam a aparecer. Como as pinturas eram feitas para inspirar devoção e educar o fiel nos valores da religião cristã, a individualidade artística era algo secundário em relação à transmissão de uma mensagem. Desse modo, mesmo que represente uma contribuição do ponto de vista da narrativa histórica, o conhecimento dos nomes não é essencial à análise das obras em si. Uma exceção, pois é um nome que se tornou muito conhecido, é o Aleijadinho. Finalmente, não podemos nos esquecer de que essas obras de arte e arquitetura foram realizadas com o excedente econômico gerado pela exploração extensiva dos recursos naturais da colônia, com uso de mão de obra escrava. A arquitetura dos engenhos é uma expressão mais direta dessa contradição; em geral, ela não figura em manuais de história da arte e foi incluída neste por ser a expressão aguda de um momento da cultura brasileira que perdura até hoje. Assim, a história da arte não diz respeito somente àquilo que agrada os olhos; ela inclui também aquilo que, por carregar verdades inconvenientes, os olhos teimam em não ver. ATIVIDADES 1. Por que usamos estilos com origem na Europa, chamados de maneirismo, barroco e rococó para analisar a arte e a arquitetura do período Colonial no Brasil? 2. Cite as técnicas de construção vistas neste capítulo e explique brevemente em que consiste cada uma. 3. Compare, de um ponto de vista arquitetônico, duas igrejas vistas neste capítulo. Indique as semelhanças e/ou diferenças entre elas. 52 História da Arte no Brasil REFERÊNCIAS ANDRADE, M. de. O turista aprendiz (1927). Brasília: Iphan, 2015. BAZIN, G. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956. BAZIN, G. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1970. BURY, J. Arquitetura e arte no Brasil colonial. Org. de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Brasília: Iphan, 2006. CONDURU, R. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2012. COSTA, L. A arquitetura dos jesuítas no Brasil (1941). ARS, v. 7, n. 16, p. 126-197, 2010. CRAGOE, C. D. Comprendre l’architecture: décoder les édifices et reconnaître les styles. Paris: Larousse, 2016. MELLO, M. Ilusão e engano na decoração do teto da nave da Capela da Ordem Terceira de São Francisco em Ouro Preto (1801): Manoel da Costa Ataíde. In: FERREIRA-ALVES, N. M. (org.). Os Franciscanos no Mundo Português II: As Veneráveis Ordens Terceiras de São Francisco. Porto: CEPESE, 2012. Disponível em: https://www.cepese.pt/portal/en/ publications/works/os-franciscanos-no-mundo-portugues-ii-as-veneraveis-ordens- terceiras-de-sao-francisco. Acesso em: 27 nov. 2020. OLIVEIRA, M. A. R. de. O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas. Brasília: Iphan, 2006. OLIVEIRA, C. M. da. S. A “Glorificação dos santos franciscanos” do Convento de Santo Antônio da Paraíba: algumas questões sobre pintura, alegoria barroca e produção artística no período colonial. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v. 3, n. 4, out./nov./dez., 2006a. SCHWARTZ, S. Mocambos, quilombos e Palmares: a resistência escrava no Brasil colonial. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, p. 61-88, 1987. SMITH, R. C. Robert Smith e o Brasil: arquitetura e urbanismo. Org. de Nestor Goulart Reis Filho. Brasília: Iphan, 2012. Da Missão Artística Francesa à Academia 53 3 Da Missão Artística Francesa à Academia Este capítulo abrange a produção artística feita no Brasil durante o século XIX. Em 1808, o príncipe de Portugal D. João VI, acompa- nhado da Corte, transferiu-se ao Brasil. Cerca de 15.000 pessoas escoltadas pela frota naval inglesa aportaram na capital da colônia, o Rio de Janeiro, fugindo de Napoleão. No mesmo ano, D. João VI decretou a abertura dos portos, quebrando o pacto colonial de mo- nopólio com a metrópole. Pouco depois, em 1815, com a queda de Napoleão, foi assinado, em Viena, o acordo de paz com a França, o que permitiu a vinda da Missão Artística Francesa ao país. De colônia, o Brasil tornou-se a sede do Império português e, em 1815, foi elevado a Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves. O período Colonial estende-se até 1822, com a declaração da inde- pendência, assinada pela princesa, depois Imperatriz, Leopoldina, dada a ausência de D. Pedro I. Depois da independência não houve, contudo, mudanças estruturais no Brasil, porém passa-se a obser- var uma busca progressiva por imagens e símbolos para represen- tar a nação nascente. Ao longo deste capítulo serão feitas referências a movimentos artísticos europeus, que configuram estilos de grupo, como o neo- classicismo, o romantismo, o realismo e o impressionismo. Um estilo pode ser individual ou de grupo. A relação entre aspectos conven- cionais (técnicas aprendidas) e individuais (o modo como tais técni- cas são articuladas subjetivamente) configura um estilo pessoal. No caso do estilo de grupo, consideramos apenas os aspectos suprain- dividuais. Assim, podemos nos referir a um estilo neoclássico ou ro- mântico, mas o modo como cada artista, em cada obra, se relaciona com as convenções artísticas de seu tempo é algo muito particular. Portanto, não deixa de ser uma redução – que funciona apenas para fins didáticos – subsumir estilos individuais em estilos de grupo. 54 História da Arte no Brasil 3.1 A Missão Francesa de 1816 Vídeo Em 26 de março de 1816, um grupo de artistas e artífices franceses desembarcou no Rio de Janeiro com o objetivo de fundar uma Escola de Artes e Ofícios. Apesar de o episódio ser referido na historiogra- fia, desde o início do século XX, como “missão”, pela análise recente de fontes documentais foi demonstrado que a iniciativa de vir ao Brasil partiu dos franceses. Ligados à máquina de estado bonapartista, tais artistas viram-se em uma situação difícil com a queda de Napoleão, em 1815. Ao mesmo tempo, além do imperativo de dotar o Rio de Janeiro de instituições ligadas aos hábitos da Corte, havia uma demanda da monarquia portuguesa, com a sede deslocada aos trópicos, por artis- tas capazes de estabelecer uma iconografia oficial, ou seja, criar a me- mória visual de seu governo. Como não existiam pintores qualificados, devido a ausência de tradição em Portugal, e como já neste período a França representava um modelo civilizatório, a disponibilidade dos ar- tistas franceses em se refugiar no Brasil não foi ignorada pelo príncipe regente. Embora a coroa não tenha custeado as despesas da viagem, logo que aqui chegaram ela garantiu-lhes sua proteção e proveu-lhes de um salário. Quem veio ao Brasil com a Missão Francesa? • Joachim Lebreton (1760-1819) – professor, administrador e legislador, secre- tário perpétuo das Belas Artes do Instituto de França, chefe do grupo. • Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – pintor de história. • Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) – pintor de paisagem e de batalhas. • Auguste Grandjean de Montigny (1776-1850) – arquiteto.• Auguste-Marie Taunay (1768-1824) – irmão de Nicolas, escultor. • Charles-Simon Pradier (1783-1847) – gravador. • François Ovide – professor de mecânica. • Jean-Baptiste Level – mestre em construção naval. • Nicolas Magliori Enout – mestre ferreiro. • Louis-Joseph Roy e seu filho Hippolyte Roy – carpinteiros e fabricantes de carros. • Fabre e Pilité – curtidores de peles. • Charles-Henri Lavasseur e Louis Symphorien Meunié – canteiros. Seis meses mais tarde, outros dois franceses juntaram-se a eles: • Marc Ferrez (1788-1850) – escultor. • Zéphyrin Ferrez (1797-1851) – escultor e gravador de medalhas. Da Missão Artística Francesa à Academia 55 Pelo decreto de 12 de agosto de 1816 foi criada a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, cujo projeto havia sido redigido por seu pri- meiro diretor, Joachin Lebreton, dois meses antes, em junho. Devido a uma série de entraves burocráticos, políticos e sociais, a escola foi aberta somente em 1826, com o nome alterado para Academia Impe- rial de Belas Artes. Já havia no Rio de Janeiro aulas de desenho em instituições de en- sino desde o fim do século XVIII, porém no contexto militar e do dese- nho aplicado à arquitetura e à engenharia. Em 1800, Manoel Dias de Oliveira (1764-1837), que estudara em Lisboa e Roma, obteve autori- zação régia para ministrar uma aula pública de Desenho e Figura. Ele pode ser incluído em um grupo de pintores atuantes na capital antes da chegada dos franceses, a chamada escola fluminense, aos quais D. João VI e sua corte dirigiram encomendas. Na verdade, o que a colônia de artistas franceses implantou efeti- vamente no Brasil foi o modelo de Academia de Arte francês, baseado, por um lado, no patrocínio estatal e, por outro, na primazia do dese- nho, na hierarquia dos gêneros pictóricos e na valorização da formação intelectual do artista. Esse modelo de ensino se contrapunha ao que predominava até então na colônia, o das corporações de ofício ou ofi- cinas, desvinculado do Estado e no qual os aprendizes recebiam uma formação sobretudo prática. No ensino acadêmico, que valorizava o desenho, um aspirante à artista começaria copiando obras de mestres consagrados, depois copiaria modelos em gesso, progredindo de objetos inanimados a fi- guras humanas representadas pela estatuária antiga e, finalmente, chegaria ao ponto máximo do programa, o desenho de modelo vivo. O gênero pictórico de maior prestígio no meio acadêmico era o da pin- tura de história, seguido pelo retrato, pintura de animais, paisagem e natureza-morta. Na tradição Acadêmica, pensar uma composição his- tórica a óleo em uma tela de grandes dimensões – o tipo de obra mais apreciado nas exposições (na França chamadas de salões) – significava fazer uma série de estudos prévios, de detalhe e de conjunto, para pon- derar a melhor solução visual. O neoclassicismo, absorvido pela Academia francesa, foi o esti- lo oficial do império napoleônico e Jacques-Louis David, seu principal Arte acadêmica é aquela produzida por artistas vinculados ao sistema de ensino acadêmico e considerada como arte oficial. Contudo, dependendo do contexto, “arte acadêmica” pode carregar um juízo de valor, de- notando uma arte convencional e retrógada. Saiba mais 56 História da Arte no Brasil expoente. Representa um novo retorno, depois do Renascimento, à Antiguidade Clássica e serviu à propaganda imperial napoleônica. Na pintura, a composição é sóbria e equilibrada, as formas são idealizadas, apresentam um modelado linear, no qual a aplicação das cores limita- -se às zonas demarcadas pelas linhas, e um acabamento de superfície liso, pois não vemos as marcas do pincel. Já os temas são recolhidos da história greco-romana e da mitologia clássica, especialmente aque- les que encerram exemplum virtutis (exemplos de virtude). Os princi- pais pintores da chamada Missão Francesa, Nicolas-Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, foram treinados, na França, nesse estilo. Taunay veio ao Brasil com a família aos 60 anos de idade, já com uma produção consolidada. Tornou-se membro da Academia france- sa em 1784. Passou três anos como pensionista, estudando em Roma e, depois da Revolução Francesa, executou uma série de encomendas de Napoleão. Em Paris, notabilizou-se sobretudo pela pintura de paisa- gens, sendo chamado por um crítico do período de David das pequenas telas. Nos cinco anos que permaneceu no Brasil, pintou cerca de trinta. Uma delas – A vista do outeiro, praia e igreja da Glória (Figura 1) – mostra, em primeiro plano, no canto inferior direito, algumas pessoas escra- vizadas carregando um casal nos ombros até o barco (Figura 2) . Em Cascatinha da Tijuca (Figura 3), por outro lado, quem trabalha é o pintor, enquanto o africano escravizado o observa com os braços cruzados. Taunay precisou conciliar a paleta e os esquemas compositivos neoclássicos com a paisagem e a luz dos trópicos. Ele precisou con- ciliar as figuras heroicas e idealizadas presentes nessas composições, como estava acostumado a pintá-las na França, com a realidade bem menos virtuosa da escravidão, condenada recentemente pelos seus compatriotas da Assembleia Nacional, em sua Declaração dos diretos do homem e do cidadão de 1789. Seu primeiro artigo afirmava que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito”; o segundo, que a liberdade é “um direito natural e imprescritível” que consiste “em poder fazer tudo o que não prejudica o outro” (FRANÇA, 1789). Taunay retornou à França em 1821. Da Missão Artística Francesa à Academia 57 Figura 1 Vista do outeiro, praia e igreja da Glória, de Taunay Figura 2 Detalhe da pintura anterior mostrando pessoas escravizadas carregando um casal e sua bagagem até o barco e outros à beira da praia. TAUNAY, N.C. Vista do outeiro, praia e igreja da Glória, c. 1817, óleo sobre tela, 48,5 x 37 cm, Museus Castro Maia, Rio de Janeiro. Figura 3 Cascatinha da Tijuca, de Taunay (1821) W ik im ed ia C om m on s TAUNAY, N. C. Cascatinha da Tijuca, c. 1821, óleo sobre tela, 53 x 37 cm, Museu do Primeiro Reinado (Casa da Marquesa de Santos), Rio de Janeiro. 58 História da Arte no Brasil Jean-Baptiste Debret ocupava o posto de pintor de história dentro do grupo e sua formação e expe- riência no ateliê de David o prepararam para pintar retratos do monarca, de sua corte e da aristocracia local (Figura 4). Debret permaneceu no Brasil duran- te 15 anos e nesse período retratou também a vida e os costumes locais. Quando retornou à França, ele publicou, entre 1834 e 1839, em três tomos, o Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, com cerca de 156 litografias executadas com base em desenhos e aquarelas realizados no período brasileiro. As ima- gens da publicação vinham acompanhadas de tex- tos explicativos escritos pelo artista. Trata-se de uma obra muito volumosa para os padrões da literatura de viagem que então se publicava na Europa, tan- to que foi um fracasso editorial. Na verdade, mais do que um pintor viajante, cuja atividade está ligada à ilustração científica ou ao pitoresco local, Debret prestou atenção às relações que se estabeleciam en- tre as pessoas nessa nova sociedade. Além disso, ele viveu a transição para a independência, declarada em 1822, com otimismo. Na litografia Uma senhora brasileira em seu inte- rior, publicada no tomo 2 de Viagem Pitoresca e His- tórica ao Brasil, Debret nos informa, em seu texto, que “a população brasileira, privada das Luzes [...], limitou a educação das mulheres ao simples cuidado da casa” (DEBRET, 1834-1838). Na Figura 5, a senhora ao centro está sentada em um mó- vel tipo canapé, com a filha pequena sentada à sua frente, sendo alfa- betizada. Um macaco encontra-se atado, por uma corrente, ao braço do móvel. Aos pés da senhora, duas mulheres escravizadas ocupam-se com trabalhos de costura e um jovem também escravizado vem trazer- -lhe um enorme copo de água. A cena seria uma representação de um interior tranquilo, não fosse o chicote dentro do cestologo ao lado da senhora da casa. Debret escreve que o instrumento de correção é usado o tempo todo para ameaçar os africanos escravizados (e o macaco). Ele observa, ainda, que aos bebês negros “foi permitido compartilhar os privilégios do macaquinho” (DE- BRET, 1834-1838). Um deles segura, como o animal de estimação, uma fruta. Segundo o francês, “essa pequena população nascente, fruto da escravidão, torna-se ao crescer um objeto de especulação muito lucra- Figura 4 Retrato de João VI, de Debret (1817) W ik im ed ia C om m on s DEBRET, J. B. Retrato de D. João VI, 1817, óleo sobre tela, 60 x 42 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro Da Missão Artística Francesa à Academia 59 tivo ao proprietário e, em um inventário, é arrolada como um imóvel” (DEBRET, 1834-1838). Figura 5 Uma senhora brasileira em seu lar, de Debret (1823) W ik im ed ia C om m on s DEBRET, J.B. Uma senhora brasileira em seu lar. 1823, litografia aquarelada à mão: 16 cm × 22 cm. Instituto Durango Duarte, Manaus. Debret frisa, no último parágrafo de sua legenda, que quando de- senhou essa “cena silenciosa”, ela estava presente em cada casa da cidade. Mas, em 1830, depois da Independência, as filhas de classes mais baixas já eram educadas na dança, na música e na língua france- sa, “uma educação que lhes permitiria formar estabelecimentos mais vantajosos” (DEBRET, 1834-1838). 3.2 Os pintores viajantes Vídeo Costuma-se chamar de pintores viajantes os artistas que acompa- nhavam as expedições científicas pelo Brasil, realizando registros da flora e da fauna locais, bem como dos povos nativos. Depois da aber- tura dos portos, em 1815, o Brasil atraiu muitos estrangeiros movidos por uma curiosidade etnográfica. O que há neste lugar? Que tipo de vegetação e de animais? Como é o clima? Quem são as pessoas? Como vivem? São, todas, perguntas que essas imagens respondem. A Missão Científica Austríaca, que acompanhou a arquiduquesa Leopoldina ao Brasil, aonde veio casar-se com Dom Pedro de Alcântara, 60 História da Arte no Brasil em 1817, trouxe o pintor paisagista Thomas Ender (1793-1875). Antes de retornar a Viena, em 1818, o pintor realizou cerca de 800 desenhos, guaches e aquarelas do Rio e de cidades do interior, como São Miguel e São Paulo. Essas técnicas, pela sua portabilidade, eram as mais usa- das entre os pintores quando diante dos motivos. Depois, dentro do estúdio, usavam esses esboços feitos ao ar livre como base para criar composições maiores, a óleo. Esse é o caso da Vista do Rio de Janeiro (Figura 6) que Ender executou anos depois de sua estadia na cidade, já em Viena, com base em seus registros em aquarela. Figura 6 Vista do Rio de Janeiro, de Ender (1837) W ik im ed ia C om m on s ENDER. T. Vista do Rio de Janeiro, 1837, 126.5 x 189 cm (com moldura), Gemäldegalerie der Akademie bildenden Künste, Viena. Comparando com os estudos em aquarela, Ender definiu melhor, no quadro a óleo, os detalhes da vegetação em primeiro plano, onde inseriu também algumas figuras humanas, a maior parte pessoas es- cravizadas. Essas figuras também eram concebidas, nos estudos, sepa- radas da paisagem e repetem-se em diferentes composições. Muitas delas foram retiradas de álbuns do pintor e engenheiro militar portu- guês Joaquim Cândido Guillobel (1787-1859). Outros pintores também usaram figuras de costumes como as de Guilhobel em suas repre- sentações do Brasil, a exemplo do alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Da Missão Artística Francesa à Academia 61 Rugendas veio ao Brasil em 1821, acompanhando a Missão Cien- tífica Russa, liderada pelo naturalista Georg Heinrich von Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Rio de Janeiro desde 1813. Rugendas ficou hospedado, como os demais integrantes da missão, na Fazenda Man- dioca, propriedade de Langsdorff, mas a expedição atrasou devido ao processo da independência. Ele teve um desentendimento com o côn- sul e afastou-se do grupo, seguindo viagem pelo interior por conta pró- pria. Retornou à Europa em 1825 e publicou, entre 1827 e 1835, cem litografias baseadas nas obras realizadas no Brasil, acompanhadas de textos de Victor Aimé Huber, no livro Viagem pitoresca ao Brasil (em edi- ção bilíngue francês-alemão). Pensado como um livro de viagem para o grande público, foi, ao contrário do de Debret, um grande sucesso edi- torial. Contudo, especialmente nas cenas cotidianas e retratos etnográ- ficos, Rugendas idealiza as formas com base nos cânones clássicos e, assim, afasta-se do registro documental. Comparando seus desenhos feitos no Brasil às litografias publicadas, também é possível perceber como a vegetação é alterada. Ainda assim, o conjunto de sua produção no país é uma fonte importante para o conhecimento da sociedade e da paisagem brasileira do século XIX. O Museu Nacional, aberto em 1818, abriga importantes coleções an- tropológicas e de história natural (paleontologia, botânica, zoologia, mine- ralogia). No ano de 2018, contudo, um incêndio de grandes proporções des- truiu quase a totalidade dessas coleções. Conheça mais em: http://www. museunacional.ufrj.br/ .Acesso em 27 out. 2020 Saiba mais 3.3 A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) Vídeo O projeto de ensino da colônia de artistas franceses instalados no Rio de Janeiro demorou a sair do papel. Depois da morte de Lebreton, em 1819, o pintor português Henrique José da Silva ( 1772 - 1834) foi designado diretor da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Pelo de- creto de 12 de novembro de 1820 que se seguiu, foi criada a Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil. A exclusão do ensino dos ofícios e, portanto, a alteração do projeto inicial de Lebreton, é um exemplo dos desacordos entre a nova direção e o núcleo francês, que dificultou a implementação do novo sistema de ensino. O prédio onde funcionaria a Academia no Rio de Janeiro, projetado por Grandjean de Montigny, o principal arquiteto da Missão Francesa, foi iniciado em 1816 e previa dois pavimentos. Em 1823, por motivos eco- nômicos e para acelerar a conclusão, o arquiteto reduziu a planta a um único pavimento, mantendo do segundo andar apenas o pórtico com o frontão (Figura 7). O frontão de origem grega e as janelas enquadradas http://www.museunacional.ufrj.br/ http://www.museunacional.ufrj.br/ 62 História da Arte no Brasil por pilastras são características da arquitetura neoclássica. A construção foi terminada em 1826 e demolida em 1937, sendo o pórtico transferido ao Jardim Botânico. As esculturas, relevos e ornamentos da fachada, do vestíbulo e da sala do modelo foram executados pelos irmãos Marc e Zéphyrin Ferrez. Figura 7 Academia Imperial de Belas-Artes, projeto de Grandjean de Montigny DEBRET. J.B. Academia Imperial de Belas-Artes (elevação e planta de 1826), projeto de Grandjean de Montigny publicado no livro de Debret, Viagem Pitoresca e HIstórica ao Brasil, 1834-1839. A Academia brasileira, diferente de seu modelo francês contempo- râneo, concentrava em si o ensino da teoria, do desenho e também o de pintura, escultura e gravura. Não havia ensino formal artístico fora dos seus domínios, como era o caso na França. Debret, nomeado pintor de história em 1820, começou a dar aulas em uma das salas do prédio, ainda inacabado, em 1823, obtendo ainda algumas melhorias em termos de infraestrutura pouco antes da aber- tura oficial da instituição, em 1826. Esta foi, de certo modo, a primeira turma da Academia Imperial de Belas Artes e a produção de muitos desses primeiros alunos, como Simplício de Sá (1785-1839) e Francisco Pedro do Amaral (1790-1831), representa uma transição do estilo co- lonial para o neoclássico (Figuras 8 e 9). Convém lembrar que formas ligadas ao período Colonial não desapareceram com a produção aca- dêmica, mas coexistiram ou se integraram a esse novo código visual. W ik im ed ia C om m on s Da Missão Artística Francesa à Academia 63 Figura 8 Retrato de Antônio Luís Pereira da Cunha, Marquêsde Inhambupe, de Sá (1825) W ik im ed ia C om m on s Figura 9 Retrato de Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos, de Amaral (1826) W ik im ed ia C om m on s SÁ, S. Retrato de Antônio Luís Pereira da Cunha, Marquês de Inhambupe, 1825, óleo sobre tela, 198 x 131cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. AMARAL, F. P. Retrato de Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos, c. 1826, 140 x 87 cm. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Debret também organizou e primeira exposição pública de arte no Brasil, aberta em 2 de dezembro de 1829, na Academia. No catálogo, que ele mesmo custeou, constam 33 trabalhos dos professores e 82 dos alunos. Em 1830, antes de seu retorno à França, organizou ainda uma segunda exposição. 3.4 Romantismo e identidade nacional Vídeo O ensino na Academia consolida-se nas décadas de 1830 a 1850, durante a direção de Félix-Émile Taunay, entre 1834 e 1851, e de Ma- nuel de Araújo Porto-Alegre, entre 1854 e 1857. Após a independência, sobreveio um período de grande ufanismo no reino emancipado de Portugal. A Academia teve participação importante em um projeto po- lítico e social mais amplo de construção da imagem da nação nascente. Particularmente, por meio dos gêneros da paisagem e da pintura de história, incluindo aqui o subgênero do indianismo, pintores e esculto- res se viram diante do desafio de pensar sobre o significado do Brasil e de ser brasileiro. Nesse momento, era o Romantismo o movimento de 64 História da Arte no Brasil maior impacto na Europa e muitos dos seus valores – como o interesse pelas diferenças culturais e o retorno à natureza – adequaram-se à essa busca por uma identidade coletiva em âmbito local. 3.4.1 Paisagem Félix-Émile Taunay (1795-1881), filho de Nicolas-Antoine Taunay, assumiu a cátedra de pintura de paisagem na Academia, quando seu pai retornou à França, e foi também professor de desenho e francês de D. Pedro II, que subiu ao trono em 1840, após declarada a sua maio- ridade. À frente da direção da Academia, Taunay instituiu o prêmio de viagem à Europa. O concurso estreitou os laços da instituição com a França e a Itália. A Academia escolhia os locais e professores com quem os alunos estudariam e exigia-lhes o envio regular de cópias de obras dos principais museus europeus, exercendo o monitoramento e o controle de suas atividades. Taunay instituiu também as Exposi- ções Gerais de Belas-Artes, onde eram exibidos anualmente trabalhos de professores, alunos e mesmo de artistas das províncias. A primeira, que teve lugar em 1840, foi visitada pelo próprio Imperador D. Pedro II, o qual se tornaria um importante mecenas das artes e da ciência. Na Exposição Geral de 1843, estava presente a tela Vista de um mato virgem que está se reduzindo a carvão, pintada por Taunay (Figura 10). Há nela um contraste evidente entre o terreno do morro que ocupa o lado esquerdo da composição, pontuado por tocos de árvore cujos troncos recém abatidos são empilhados por africanos escravizados mais à fren- te, e a exuberância da mata atlântica preenchendo todo o lado direito. As figuras centrais do quadro são a enorme figueira e o pau de mulato que apoia um de seus galhos: provavelmente, as próximas a tomba- rem. No texto do catálogo, escrito pelo próprio Taunay, abaixo do título do quadro lê-se: “a desaparição dos mais belos exemplares do reino vegetal nos arredores da cidade ameaça a esta, segundo cálculos irre- fragáveis, com diminuição das águas vivas e elevação do grau médio de calor, dois males reciprocamente ativos” (LEVY, 2003, vol. 1, p. 37). O pintor, informado por discussões contemporâneas promovidas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 e do qual era membro, registra um fato que ocorria diante de seus olhos e cujas consequências foram irreparáveis: a destruição sistemática, ao longo do século XIX, da mata atlântica, reduzida hoje a apenas 7% de sua cobertura original. Da Missão Artística Francesa à Academia 65 Figura 10 Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão, de Taunay (1843) W ik im ed ia C om m on s TAUNAY, F. E. Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão, 1843, óleo sobre tela, 134 x 195 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. O artista que sucederia a Taunay na direção da Academia, Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), escreveu, em seu poema “A Des- truição das florestas”, publicado três anos após a exibição da pintura Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão: Vinde comigo, brasileiros sábios, Ao lugar onde outrora se ostentava Cheio de vida, de fragrância e esmalte Monumento votado a infindos seres Odoroso teatro, onde mil cenas A terra erguera ao som do hino eterno Das várias estações! Vinde comigo Prantear desse templo viridante As ruínas majestosas convertidas Em toros calcinados, e alva cinza![...] (PORTO-ALEGRE, 1863, p. 71) Araújo Porto-Alegre nasceu na província do Rio Grande do Sul e, já no Rio, fez parte da primeira turma de pintura de história de Debret. Passou alguns anos estudando em Paris, para onde foi junto com o mestre, retornando em 1837. Participou da fundação de revistas que marcaram o movimento romântico, como Nitheroy (1836), Minerva Bra- 66 História da Arte no Brasil siliense (1843) e Guanabara (1849). Além de poemas e peças de teatro, escreveu textos de crítica para jornais cariocas e aquele que é conside- rado o primeiro ensaio sobre as belas artes brasileiras, “Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense”, de 1841, publicado na revista do IHGB, do qual foi membro e secretário. Ocupou a cátedra de pintura de história da AIBA entre 1837 e 1848. Em 1854, assumiu o cargo de diretor da instituição, promovendo uma série de reformas estruturais, tanto no edifício quanto nos estatutos. Ele tornou mais claras as atri- buições dos profissionais, ampliou o período de estadia dos laureados, com prêmio de viagem na Europa, e reestruturou a grade de discipli- nas, alterando seus programas e introduzindo novas cátedras, como as de desenho geométrico, desenho de ornatos, matemáticas aplicadas e história das belas-artes. Sua produção em artes visuais é pequena. Particularmente impor- tante são suas representações, realizadas entre os anos 1850 e 1860, da floresta brasileira. Um estudo em sépia sobre papel, do ano de 1853, mostra dois homens brancos, um carregando uma arma de fogo, ou- tro uma pasta com folhas de papel, talvez um artista, penetrando uma densa floresta. Araújo Porto-Alegre defendia, em consonância com o universo da ilustração científica, que era necessário ir a campo para reproduzir a selva tropical fielmente, de modo a evitar vícios de compo- sição. Embrenhar-se nela, contudo, não era uma ação razoável, dada as dificuldades de circulação e as ameaças representadas pela presença de insetos e animais. Na composição de Porto-Alegre, a selva parece um bosque onde os dois homens passeiam tranquilamente, não um ambiente hostil. O olhar do artista que a elegeu como tema terminou por domesticá-la para o consumo turístico. Tanto foi assim, que a ima- gem foi litografada e incluída, sob o título de Floresta Virgem 1 , no ál- bum O Brasil pitoresco e monumental: o Rio de Janeiro e seus arrabaldes, encomendado pelo imperador D. Pedro II e publicado, em 1856, pelo holandês Pieter Godfred Bertichen (1796-1866). 3.4.2 Pintura de história Araújo Porto-Alegre esteve por trás, ainda, da concepção do quadro que já foi chamado de certidão de nascimento visual do país: Primeira Missa no Brasil (Figura 11). Ele foi pintado entre 1859 e 1860 pelo então aluno da AIBA, Vítor Meireles de Lima (1832-1903), em Paris, onde reali- A imagem está disponível em: https://www.brasilianaicono- grafica.art.br/obras/18089/ floresta-virgem. Acesso em: 27 out. 2020. 1 https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18089/floresta-virgem https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18089/floresta-virgem https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18089/floresta-virgemDa Missão Artística Francesa à Academia 67 zava sua formação, financiado pela bolsa de viagem. Nascido na Ilha do Desterro, atual Florianópolis, Meireles conquistou o prêmio de viagem da AIBA em 1852. Partiu a Roma, onde estudou com Tommaso Minardi e Nicola Consoni até 1856, ano em que se mudou para Paris, onde fre- quentou o ateliê de Léon Cogniet. Da Europa, Meireles correspondia-se com Araújo Porto-Alegre des- de que este assumiu a direção da Academia, em 1854. O diretor con- seguiu uma primeira prorrogação da bolsa, em decorrência da revisão dos estatutos da instituição. No fim do prazo da segunda prorroga- ção, ele conseguiu ainda uma terceira, de dois anos, com o compro- misso de Meireles realizar uma grande composição original. Depois de muito estudo e reflexão e, provavelmente, por influência de Araújo Porto-Alegre, o pintor escolheu o episódio da primeira missa no Brasil, narrado na carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão que fazia parte do grupo de portugueses que aqui aportaram, em 1500, liderados por Ca- bral. Caminha descreve a cena do culto católico que teria congregado navegadores e índios: Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre Frei Henrique [...]. Ali estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles [os índios], assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. [...] Estiveram assim conosco até acabada a comunhão [...]. Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comun- gando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos. (CAMINHA,1500) Araújo Porto-Alegre aconselha o pintor mais de uma vez a ler a carta de Caminha com atenção. Lembra-lhe de colocar algumas embaíbas no quadro, além de árvores altas, com coqueiros ou palmitos entre elas, bem como um homem de armas com o pendão da Ordem de Cristo. Meireles realizou uma série de estudos preparatórios em desenho, tan- 68 História da Arte no Brasil to das figuras e dos acessórios quanto da paisagem ao fundo, conser- vados no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Além disso, procurou documentar-se na biblioteca Sainte-Geneviève, em Paris, pois visava à exatidão histórica, à representação de roupas e adereços próprios ao século XVI e às diferentes culturas abordadas. O quadro foi o primeiro de um artista brasileiro a ser exposto no Salão de Paris, em 1861. No ano seguinte, é pendurado nas paredes da Academia, por ocasião da Exposição Geral. Um crítico da época notou a semelhança do quadro com o Primeira Missa em Cabília, do pintor francês Horace Vernet, que figurou no Salão parisiense de 1855, uma representação simbólica do domínio francês sobre a colônia argelina, na África (Figura 12). Apesar de o crítico acusar Meireles de plágio, é preciso lembrar que a ideia de originalidade artística, no século XIX, era diferente da nossa, herdada do modernismo. Para os modernistas, ser original era romper com o passado, criando algo novo por oposição; para os acadêmicos que lhe antecederam, ser original era aperfeiçoar o passado, criando algo novo por semelhança. Figura 11 Primeira missa no Brasil, de Meireles (1860) W ik im ed ia C om m on s Figura 12 Primeira Missa em Cabília, de Vernet (1854) W ik im ed ia C om m on s MEIRELES, V. Primeira missa no Brasil, 1860, óleo sobre tela, 268 x 356 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. VERNET, H. Primeira Missa em Cabília, 1854, óleo sobre tela, 194 x 123 cm. Musée Cantonal des Beaux-Arts de Lausanne, França Da Missão Artística Francesa à Academia 69 Depois de seu retorno ao Brasil, Vítor Meireles assumiu a cadeira de pintura de história na Academia. Junto com o paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), foi um dos artistas mais contempla- dos com encomendas oficiais durante o Segundo Reinado (1840-1889). Os dois chegaram a se encontrar em Paris, em maio de 1859, quando Meireles estava envolvido com o projeto da Primeira missa. Este teria lhe pedido que o ajudasse a se lembrar das matas virgens brasileiras, pois já estava há muitos anos na Europa e a memória lhe falhava, ao que Américo respondeu com um desenho. Pedro Américo foi admitido na AIBA em 1854, quando tinha ape- nas 11 anos, mas só pôde começar efetivamente os estudos em 1856, obtendo tantas premiações que o diretor da instituição, Araújo Porto-Alegre, mais tarde seu sogro, apelidou-o de “papa-medalhas”. An- tes de terminar o curso, em 1859, D. Pedro II concedeu-lhe uma pensão para prosseguir sua formação na Europa, onde permaneceu até 1864. Retornou para concorrer à cátedra de Desenho na AIBA, que obteve, mas só começou a lecionar, efetivamente, em 1870, quando assumiu a disciplina de História da Arte, Estética e Arqueologia. Foi nesse perío- do que recebeu a encomenda do Estado monárquico brasileiro para pintar a Batalha do Avaí, uma entre as muitas da guerra recente (1864- 1870) entre o Brasil e o Paraguai (Figura 13). Figura 13 Batalha do Avaí, de Américo (1877) AMÉRICO, P. Batalha do Avaí, 1872-1877, óleo sobre tela, 6 x 11 m. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. O filme O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, é basedado na carta de Caminha e reconstrói a pintura de Vítor Meireiles em uma cena. Foi realizado com o apoio do Ministério da Cultura, em 1937. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=RibykMldK1U&ab_ channel=FABIANOFARIAS. Acesso em: 27 out. 2020. Filme https://www.youtube.com/watch?v=RibykMldK1U&ab_channel=FABIANOFARIAS https://www.youtube.com/watch?v=RibykMldK1U&ab_channel=FABIANOFARIAS https://www.youtube.com/watch?v=RibykMldK1U&ab_channel=FABIANOFARIAS 70 História da Arte no Brasil A imensa tela (6 x 11 m) foi executada em Florença, entre 1874 e 1877. A vitória brasileira ocorreu às margens do rio Avaí e seu principal “herói” foi o Duque de Caxias. No entanto, não o vemos em combate no quadro, mas apontando para algo do alto de seu cavalo, no lado es- querdo da composição, a farda desabotoada, enquanto um capitão ao seu lado observa a batalha de binóculos. Em um plano mais próximo, o general Osório empunha sua espada enquanto avança, de um modo quase distraído, na direção das tropas paraguaias. Suas figuras são es- vaziadas de heroísmo e perdem-se no turbilhão e no calor da refrega. A orientação da composição é, de fato, a de uma elipse que gira em torno de seu centro (local ocupado pelo horizonte claro que se abre, atrás da fumaça, ao fundo). Como observou o historiador e professor da Unicamp, Jorge Coli, a batalha não é construída em torno da figura do herói, antes segue as suas próprias leis. Seu movimento em turbi- lhão, que funde céu, terra e personagens, a afasta do estilo neoclássico em direção ao romantismo. O próprio artista se retratou no quadro, de modo um tanto romântico, como um soldado raso, o único cuja ponta da baioneta está manchada de sangue, os olhos arregalados de espan- to, bem no meio da composição. Américo, apesar de não ter visitado o local, manteve uma corres- pondência com o Duque de Caxias a respeito do fato, o qual chegou a enviar-lhe, em Florença, uniformes militares para auxiliar no processo de reconstituição histórica. Mesmo assim, quando exposta, em 1879, na AIBA, foi objeto de polêmica pela concepção idealizada. Encontra- va-se, na exposição, ao lado da Batalha dos Guararapes (1879), de Vítor Meireles, aquela que expulsou os holandeses do território brasileiro.A comparação entre as duas foi constante na imprensa, que contrasta- va a estaticidade e inação da última com o movimento e a energia da pintura de Américo. Apesar das diferenças, ambos beberam na fonte da História do Brasil, antiga ou recente, para dar-lhe um corpo e uma presença no imaginário coletivo. 3.4.3 Indianismo Essa participação no projeto de construção da nacionalidade, na qual a arte torna-se uma forma de escrita da História do Brasil, não es- teve livre da criação de mitologias e o índio – presente no território an- tes do português e do africano – foi posto no centro de uma demanda Da Missão Artística Francesa à Academia 71 pela origem. O movimento indianista se desenvolveu na literatura com o romance Iracema (1865), de José de Alencar, o poema I-Juca-Pirama (1851), de Gonçalves Dias, e na música, com a ópera O guarani (1870), de Carlos Gomes. Ele teve manifestações também nas artes visuais. Francisco Manuel Chaves Pinheiro (1822-1884) foi aluno da Acade- mia e substituiu seu professor, Marc Ferrez, na ca- deira de Escultura, a partir de 1850. Na terracota Índio simbolizando a nação brasileira, de 1872, o pro- jeto do indianismo aparece já no título (Figura 14). Um índio atlético, com traços europeus, em pé, em uma posição herética, segura o cetro e o escudo im- perial e é coberto pelo manto real, conservando de seus costumes apenas o cocar e a tanga. A posição rígida e equilibrada, os contornos bem definidos e mesmo a temática, que busca transformar o índio em um herói nacional, permitem associar a escultu- ra ao estilo neoclássico trazido pelos professores franceses. Já na pintura Moema, de Vítor Meireles, que rece- beu pouca atenção quando exposta na AIBA, em 1866, o indianismo aparece em uma chave mais romântica, movimento no qual a imagem da bela mulher morta teve grande circulação (Figura 15). Meireles baseou-se em um episódio do poema épico do Frei José de Santa Rita Durão, “Caramuru” (1781). A índia Moema perse- gue a nau que leva à Europa Diogo Álvares Correia e Paraguaçu, a filha do chefe dos Tupinambá, mas acaba morrendo afogada. Como na pintura executa- da posteriormente, de outro aluno da Academia, Ro- dolfo Amoedo (1857-1941), intitulada O último Tamoio (1883), o corpo do índio aparece morto (Figura 16) . A morte de Moema reforça o laço entre o português e o indígena, entre Diogo e Paraguaçu. Já a morte de Aimberê, chefe dos Tamoios e líder da rebelião contra os portugueses, ocorre nos braços do padre Anchieta, quase como Jesus chorado por Maria, e como que compensa, em sua atmosfera de martírio, a violência do encontro entre o português e o indígena. Em ambos os casos o indí- gena é vencido e redimido pelo amor do europeu. Figura 14 Índio simbolizando a nação brasileira, de Pinheiro (1871) W ik im ed ia C om m on s PINHEIRO, C .Índio simbolizando a nação brasileira, também chamado Alegoria do Império Brasileiro, 1871, terracota, 192 x 75 x 31 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. 72 História da Arte no Brasil Figura 15 Moema, de Meireles (1866) W ik im ed ia C om m on s MEIRELES, V. Moema, 1866, óleo sobre tela, 196 x 130 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo. Figura 16 O último Tamoio, de Amoedo (1883) W ik im ed ia C om m on s Amoedo, R, O último Tamoio, 1883, óleo sobre tela, 180 x 261 cm. Museu Nacional de Belas Arte, Rio de Janeiro. Assim, tanto por meio da pintura de história, cujo indianismo pode ser considerado um subgênero, quanto de paisagem, artistas brasilei- ros ligados à Academia e aos cânones neoclássicos contribuíram, espe- cialmente pela escolha dos temas, à construção do projeto de nação no período pós-independência. Da Missão Artística Francesa à Academia 73 3.5 Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) Vídeo Durante o Segundo Reinado, artistas brasileiros ligados à Academia Imperial buscaram representar temas nacionais usando formas euro- peias. Até 1880, tais formas oscilaram entre o neoclassicismo e o ro- mantismo. A partir de então, a pintura absorve outros movimentos e estilos vigentes na Europa, especialmente na França, ao longo do sécu- lo XIX, como realismo, impressionismo e simbolismo. Próximo à proclamação da República, dois episódios marcaram a história da Academia no Brasil: a atuação de Georg Grimm como pro- fessor de paisagem, entre 1882 e 1884, e a disputa entre o grupo dos modernos e dos positivistas, em 1888. Georg Grimm (1846-1887) nasceu na Baviera, Alemanha, estudou na Academia de Artes de Munique e passou um longo período, a partir de 1871, viajando pelo Sul da Europa, o Oriente próximo e o Norte da África. Em torno de 1878 chegou ao Brasil e, em 1882, realizou uma exposição no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro com 128 paisa- gens dos lugares pelos quais passou. Foi, na sequência, contratado como professor de Paisagem da Academia. No primeiro dia de aula, pediu que os alunos reunissem seus materiais e lhe acompanhassem para pintar ao ar livre. A pintura de paisagem foi ensinada, como gêne- ro distinto, desde a fundação da Academia, mas, mesmo que os alunos realizassem esboços fora, as aulas ocorriam dentro do ateliê. Grimm introduziu a prática de realizar a tela final diante do motivo, como fa- ziam os impressionistas, na França, desde os anos 1870. Ele desligou-se da Academia em 1884, mas foi seguido por um grupo de alunos – entre eles, Antônio Parreiras (1860- 1937), Hipólito Caron (1862-1892) e Giovanni Battista Castag- neto (1851-1900) – que se reuniam para pintar em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, particularmente na praia de Boa Viagem, em Niterói. Essa escola de paisagem baseada na pintura ao ar livre, que teve início na Academia, mas flores- ceu à sua margem, ficou conhecida como Grupo Grimm. Nas paisagens que vimos dos Taunay, o ponto de vista é dis- tanciado, pois há um interesse documental dirigindo o pintor. Grimm e alguns de seus discípulos pintaram paisagens em um registro mais romântico, pois adotam um ponto de vista aproxi- Saiba mais O grupo de artistas – incluindo Claude Monet e Pierre-Auguste Renoir – cujas pinturas foram recusadas nos Salões parisienses e que se reuniram para expor de forma independente, entre 1874 e 1886, foram chamados de “impressionistas”. O estilo impressionista caracteriza-se por efeitos fugazes de luz traduzidos em pinceladas rápidas, supressão dos contornos das formas e fuga dos tons sombrios. 74 História da Arte no Brasil mado, que incorpora o espectador à cena (Figura 17). Ao mesmo tempo, o desenho preserva a estrutura e solidez das formas. Castagneto, contu- do, desenvolveu um estilo mais propriamente impressionista (Figura 18). Em 1891, viajou por conta própria para a França, residindo em Toulon até 1894, onde sua pincelada torna-se mais rápida e fragmentada. As formas perdem o contorno nítido, sendo a paisagem construída pela re- lação entre as manchas de cor. Castagneto não está tão interessado na paisagem em si, como ela existe na realidade, mas no modo como os seus olhos a apreendem em um determinado momento do dia, sob uma dada luz e atmosfera. Figura 17 Vista do Morro do Cavalão, de Grimm (1884) GRIMM, J. G. Vista do Morro do Cavalão, Niterói, RJ, 1884, óleo sobre tela, 110 x 84 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Figura 18 Trecho da praia de São Roque em Paquetá, de Castag- neto (1898) CASTAGNETO, G. Trecho da praia de São Roque em Paquetá, RJ, 1898, óleo sobre madeira, 32 x 40 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Outro episódio importante que ocorreu na Academia, no fim do século XIX, foi a divisão, provocada por uma insatisfação generalizada com o programa acadêmico, dos alunos e professores em dois gru- pos, ambos reivindicando a reforma do ensino artístico. O grupo dos modernos pleiteava a atualização do corpo docente, bem como o res- tabelecimento do prêmio de viagem, extinto desde 1884. O grupo dos positivistas, mais radical, demandava liberdadetotal de ensino. Con- trariados, os modernos chegaram a se afastar da instituição e abrir um Ateliê Livre no centro do Rio de Janeiro. Da Missão Artística Francesa à Academia 75 Com o advento da República, contudo, dois membros do grupo dos modernos foram nomeados, pelo novo governo, à direção da Acade- mia e instados a elaborar um projeto de reforma. Em 1890, então, ela passou a se chamar Escola Nacional de Belas-Artes; as Exposições Ge- rais, por sua vez, tiveram o nome alterado para Salões Nacionais. Os professores Vítor Meireles e Pedro Américo foram aposentados com- pulsoriamente e restabeleceu-se, em 1892, o prêmio de viagem. Por meio de concurso, ele foi concedido a um dos líderes dos modernos, o pintor Eliseu D’Ângelo Visconti (1866-1944). Antes de abordar a obra de Visconti, convém um comentário a respeito de seu contemporâneo, o pintor José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899). Ambos adiantam questões que serão desenvolvidas na arte brasileira em um período posterior – a identidade nacional e a relação entre arte e indústria – e podem ser considerados, com justiça, precursores. 3.5.1 Almeida Júnior Natural de Itu, em São Paulo, Almeida Júnior matri- culou-se na Academia em 1869 e cursou a disciplina de pintura de história com Vítor Meireles. Mesmo sen- do um aluno de destaque, não concorreu ao prêmio de viagem, preferindo retornar à sua terra natal para lecionar desenho e pintura. O Imperador D. Pedro II, em uma viagem à província de São Paulo, admirado, concedeu-lhe uma bolsa para estudar em Paris, onde frequentou, de 1876 a 1882, as aulas de Alexandre Ca- banel na École des Beaux-Arts. Suas pinturas desse pe- ríodo, como Descanso do modelo (1882), são marcadas pelo realismo, um estilo que nunca mais abandonou. Quando retornou ao Brasil, realizou uma exposição de sucesso no Rio de Janeiro, mas novamente deci- diu regressar a Itu, quando se dedica, então, a temas regionalistas. Data desse período Caipira picando fumo. A tela foi pintada em 1893 (Figura 19). Nela vemos um homem sob o sol, vestindo uma camisa aberta até o peito, en- quanto a barra das calças de brim erguidas, sujas de terra vermelha, deixam ver uma parte da ceroula. Está Figura 19 Caipira picando fumo, de Almeida Júnior (1893) W ik im ed ia C om m on s ALMEIDA JÚNIOR, J. F. de. Caipira picando fumo, óleo sobre tela, 202 x 141cm, 1893. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo. 76 História da Arte no Brasil sentado sobre os degraus de uma escada rústica de madeira, que dá para a porta entreaberta de uma casa feita de taipa de pau a pique. Quase não há diferença de tom entre o chão e a parede da casa. Mes- mo a cor da pele do homem é terrosa. Figura e fundo estão organica- mente integrados. No exato centro geométrico da composição, a única diagonal do quadro (representada por uma faca) se encontra com os dois polegares das mãos, o rolo de tabaco e a linha invisível que o olhar do homem lhes dirige. Estamos diante de um caipira, fruto da mistura entre o bandeirante português e o indígena, do interior paulista, con- centrado numa tarefa cotidiana, simples, banal. A proximidade do pintor com o universo do homem que retrata aliada à linguagem instrumental do realismo, que rejeita a beleza em nome da verdade, permite que Almeida Júnior represente não “o” caipi- ra, como um tipo (do mesmo modo que o indígena fora representado pelos europeus nos séculos XVI e XVII), mas sim “um” caipira específico. Ele está, com efeito, tratando de um tema nacional, mas não grandi- loquente ou monumental, tal qual um fato histórico, e o faz pondo de lado as idealizações consagradas pela Academia, agora Escola de Belas Artes. O escritor modernista Mário de Andrade tomou-o como parâme- tro máximo para avaliar, em obras de arte produzidas no Brasil, a qua- lidade das relações entre a cultura europeia do centro e a pós-colonial da periferia e Monteiro Lobato referiu-se à sua obra como “a madruga- da do dia seguinte”(LOBATO, 1959, p.79). 3.5.2 Eliseu Visconti Visconti veio da Itália ao Brasil ainda criança. Iniciou seus estudos em 1882, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Frequentou as aulas ministradas pelos dissidentes modernos da Academia, no barra- cão improvisado no centro da cidade. Venceu o primeiro concurso da República na ENBA e partiu, no início de 1893, para França, ingressando no ateliê de William Bouguereau, na Academia Julian. Foi aprovado no teste para ingresso na École des Beaux-Arts, conquistando o 7° lugar entre 321 candidatos. Mas abandonou-a no ano seguinte para se ma- tricular no curso de artes decorativas da Escola Guérin, onde estudou com Eugène Grasset, expoente do estilo Art Nouveau. Retornou ao Brasil em 1900 e realizou, no ano seguinte, uma in- dividual na ENBA, apresentando 60 quadros e 28 projetos de “arte Da Missão Artística Francesa à Academia 77 aplicada às indústrias artísticas”, dentre os quais destacam-se dese- nhos para luminária, cerâmica, vitrais, estampas de tecido e papel de parede. Visconti seguiu criando projetos para anúncios, cartazes, capas de revista, selos, embalagens, ex-libris, entre outros, mas a maioria não saiu de papel. Nos quatro anos em que lecionou na ENBA, lutou, em vão, pela implantação do ensino das artes decora- tivas na instituição, que faria, em sua opinião, avançar a indústria, ainda muito incipiente, no país. A obra pictórica de Visconti transita entre a retratística, a pai- sagem e as cenas alegóricas ou de gênero, ligadas ao ambiente do- méstico. Também experimentou com diferentes estilos, em especial o impressionismo e o simbolismo, mais especificamente, a pintura pré-rafaelita. Seu trabalho mais monumental é a decoração interna do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em cujo pano de boca (a cortina do palco) pintou A influência das artes sobre a civilização (1908). Tela imensa, de 15 x 15 metros, executada em Paris, representa uma grande alegoria da arte, a mulher alada de braços abertos ao centro, pairando sobre uma procissão circular, na qual são representadas outras alego- rias (da Poesia, da Ciência, da Verdade) junto a personagens históricos ilustres, tanto brasileiros, quanto estrangeiros (Figura 20). Figura 20 A influência das artes sobre a civilização, de Visconti (1908) W ik im ed ia C om m on s VISCONTI, E. A influência das artes sobre a civilização, pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1902-1908, óleo sobre tela, 15 x 15 m, Teatro Municipal, Rio de Janeiro. O Projeto Eliseu Visconti foi criado, em 2004, por Tobias Visconti, neto do artista, com o objetivo de preservar e divulgar a obra do avô. Em parceria com a historiadora da arte Mirian Seraphim, especialista na obra de Visconti, ele desenvolveu um website que reúne o catálogo completo da obra do pintor e sua fortuna crítica. Disponível em: https:// eliseuvisconti.com.br/. Acesso em: 27 out. 2020. Saiba mais https://eliseuvisconti.com.br/ https://eliseuvisconti.com.br/ 78 História da Arte no Brasil Nesta seçāo abordamos as mudanaças que se processaram no ensino acadêmico na ENBA durante a primeira República, as quais acompanharam a pe- netração de estilos como realismo, impressionismo e simbolismo no Brasil. Tais estilos foram, paulati- namente, ao longo ainda do início do séc. XX, sen- do institucionalizados ou incorporados ao currículo acadêmico. Tanto o Grupo Grimm, quanto Almeida Júnior e Eliseu Visconti atuaram nesse contexto. Pa- ralelamente, a demanda por ensino técnico especia- lizado, voltado para o setor industrial, crescia. Simbolismo, Art Nouveau e Pré-Rafaelismo, são movimentos e tendências estilísticas que se desenvolveram no fim do século XIX e início do XX, na Europa. O Simbolismo é figurativo, de temática espiritualista ou fantástica. A pintura pré-rafaelita, contemporânea do movimento Arts and Crafts na Inglaterra, voltou-se a artistas do Proto-Renascimento italiano (anteriores a Rafael), adotando cores mais puras e luz homogênea, bem como temáticamedieval. Já o Art Nouveau manifestou-se especialmente no campo da decoração. É um estilo que preconiza as linhas curvas, os arabescos e as estilizações finas e delicadas a partir de motivos da natureza. Saiba mais 3.6 Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (LAO) Vídeo O projeto original do líder da chamada Missão Artística Francesa, Joachim Lebreton, de implantação de um ensino artístico no Brasil, in- cluía o ensino dos ofícios, entendidos como trabalhos manuais ligados à produção industrial e à construção civil. Assim, entre os professores franceses emigrados, havia carpinteiros, construtores navais, curtido- res de peles, gravadores de moedas, ferreiros e canteiros. O próprio nome da instituição foi, em um primeiro momento, Escola Imperial de Artes, Ciências e Ofícios. Porém, esse projeto não se efetivou logo de início. Seguindo uma tendência progressiva, desde o fim do século XVIII, na Europa, o ensino dos ofícios foi excluído, inicialmente, da agenda da Academia, o que promoveu, ao longo do século XIX, a separação entre “artes liberais” ou “maiores” e “artes utilitárias” ou “menores”. No projeto de reforma que Araújo Porto-Alegre empreendeu quan- do foi nomeado diretor da AIBA, em 1854, constava um programa de ensino industrial com aulas de desenho geométrico, desenho de orna- tos, escultura de ornatos e matemáticas aplicadas, inauguradas, com efeito, em 1856. A partir de 1860, com o acréscimo da aula de desenho de modelo vivo e de história da arte (algo geralmente reservado aos alunos de belas artes), elas passaram a ser ministradas no período no- Da Missão Artística Francesa à Academia 79 turno, o que garantiu um número maior de matrículas. Duraram até 1888. Assim, houve, de fato, um ensino técnico dentro da AIBA, ainda que paralelo e não integrado ao de belas artes. Ele era ofertado também pelo Liceu de Artes e Ofícios, inaugura- do em 1858, no Rio de Janeiro, pela Sociedade Propagadora das Be- las Artes (SPBA). Foi uma iniciativa importante de educação popular e muitos alunos que ingressaram na Academia na segunda metade do século XIX, como Visconti, passaram primeiro por essa escola. Dirigida inicialmente pelo professor de arquitetura da AIBA, Francisco Joaquim Béthencourt da Silva (1831-1911), tinha por missão “propagar e desen- volver, pelas classes operárias, a instrução indispensável ao exercício racional da parte artística e técnica das artes, ofícios e indústrias”(apud CARDOSO,2008). Sua grade curricular tornou-se mais completa que aquela das aulas noturnas da Academia, e integraram o seu corpo do- cente alguns dos professores da AIBA, como Vítor Meireles e Rodolfo Amoedo. O Brasil era, ainda no fim do século XIX, um país de economia agrária, baseada sobretudo na exportação do café. Ele exportava matéria-pri- ma e importava produtos finais, quando poderia produzir, de um modo menos custoso e mais eficiente, ele próprio o produto final. Bastava in- vestir maciçamente em educação e pesquisa. Muitos intelectuais, entre eles Ruy Barbosa (1849-1923), acreditavam que o desenvolvimento in- dustrial representava o progresso rumo à civilização. Barbosa, em seus pareceres sobre a reforma do ensino primário, secundário e superior apresentados à Câmara dos Deputados, em 1882 e 1883, incluiu o ensi- no de desenho, antes estritamente relacionado ao ensino técnico e ar- tístico, como uma das bases da formação cidadã, desde a infância até a vida adulta, em todas as camadas sociais. Seu objetivo com a proposta de universalização do ensino do desenho era formar não só melhores profissionais no campo industrial, como também uma massa consumi- dora, capaz de adotar critérios estéticos em suas escolhas. Não apenas a indústria se beneficiaria dessa educação estética das massas, como também a própria arte. 80 História da Arte no Brasil 3.7 Mulheres na Academia Vídeo Apesar de não termos citado, até agora, artistas mulheres, isso não significa que elas não existiram no Brasil do século XIX. Os caminhos para se estabelecerem como profissionais nesse campo eram muito mais restritos do que os dos homens, em parte por conta do papel social que lhes era atribuído de esposa e mãe. Mulheres foram acei- tas legalmente na Escola Nacional de Belas Artes a partir de 1892 (na École des Beaux-Arts de Paris a frequência só se daria, efetivamente, em 1900). Antes disso, em 1881, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro introduziu aulas para mulheres, o que fez com que o número de matrículas quase dobrasse – de 1.300 por ano, na década de 1870, para 2.500 no início das classes femininas. Havia, portanto, uma demanda reprimida. Embora limitada ao campo das artes aplicadas, essa era uma alternativa à profissionalização enquanto o acesso à ENBA perma- necia-lhes vetado. Até conquistarem o direito à formação profissional, eram tidas pela crítica como simples “amadoras”. Um dos grandes empecilhos ao ingresso de mulheres nas Acade- mias de arte foi o ensino do nu, pois feria os costumes tradicionais, constituindo um tabu social. No entanto, tratava-se de uma disciplina fundamental na formação de qualquer aspirante à artista do período, o que, de saída, já colocava as mulheres em uma posição de desvan- tagem em relação aos seus pares masculinos. Na ENBA, embora na legislação constasse que as turmas seriam separadas por sexo, na prá- tica, elas foram mistas até 1896. Nesse contexto, raras foram as mulhe- res que se matricularam nas aulas de modelo vivo. Até a virada para o século XX, apenas duas escultoras ousaram fazê-lo: Julieta de França (1872-1951) e Nicolina Vaz de Assis (1874-1941). Julieta de França nasceu em Belém, no Pará; ingressou na ENBA em 1897, onde foi-lhe concedido, em 1900, o prêmio de viagem na área de escultura. Em Paris, foi aluna de Antoine Bourdelle e Auguste Rodin, ex- pondo nos Salões. Retornou ao Brasil em 1907, quando submeteu um projeto ao concurso para o monumento comemorativo à República. A obra foi rejeitada pelo júri. Inconformada, Julieta voltou à Paris com o objetivo de coletar pareceres favoráveis de seu projeto junto a escultores de renome. De posse dessas críticas, pediu ao júri que reconsiderasse O livro Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras, da socióloga e professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Ana Paula Cavalcanti Simioni, analisa as causas da in- visibilização da trajetória das artistas no Brasil, que considera serem principalmente duas: o acesso desigual à forma- ção artística e o papel desempenhado pelos críticos de arte. SIMIONI, A. P. C. São Paulo: Edusp, 2020. Livro Da Missão Artística Francesa à Academia 81 a decisão, mas mantiveram a negativa. Depois desse episódio, embora continuasse produzindo, o nome da escultora caiu no esquecimento. A campineira Nicolina Vaz de Assis estudou na ENBA e na Academia Julian, em Paris, financiada pelo Estado de São Paulo, no mesmo pe- ríodo em que lá estava Julieta. Foi aluna de Alexandre Falguière. Retor- nou ao Brasil também em 1907, quando executou uma série de obras públicas, com destaque para a encomenda de uma fonte para a praça Júlio Mesquita, em São Paulo, obra realizada entre 1913 e 1923, com elementos do estilo art nouveau. Em sua palestra no ciclo de conferências A Presença Feminina na His- tória Brasileira (IEB- USP), Simioni aborda a obra das escultoras que primeiro cursaram a disciplina de modelo vivo na ENBA, Ju- lieta de França e Nicolina Vaz de Assis. Disponível em: https://youtu. be/6pIWBEsDt2k. Acesso em : 27 out. 2020. Vídeo 3.8 A fotografia no Brasil Vídeo A técnica da fotografia chegou ao Brasil nos anos 1840. O artista francês Hercule Florence (1804-1879), que substituiu Rugendas na Missão Langsdorff, realizou experiências fotoquímicas precursoras em seu laboratório na Vila de São Carlos (atual Campinas), a partir de 1833, que culminaram na descoberta iso- lada e independente de um proces- so fotográfico.Oficialmente, contudo, a invenção é atribuída ao francês Louis Daguerre e considera- -se o ano de 1839 como marco ini- cial. O daguerreótipo foi apresentado à monarquia brasileira já em 1840, pelo abade Louis Compte, conforme notícia publicada em 17 de janeiro no Jornal do Commercio. Segundo o historiador e profes- sor da USP Boris Kossoy (2012), ao longo do século XIX verificam-se duas grandes vertentes da fotogra- fia no Brasil: o registro da paisagem urbana, rural e natural e o retrato de estúdio. Nesses dois registros, a fotografia poderia apresentar uma função documental, turística ou memorial. Figura 21 Eugen Keller e sua babá, fotografados por Henshel W ik im ed ia C om m on s HENSHEL, A. Eugen Keller e sua babá, c. 1874, 9 x 5,7 cm. https://youtu.be/6pIWBEsDt2k https://youtu.be/6pIWBEsDt2k 82 História da Arte no Brasil Pela credibilidade como documento, a fotografia passou a ser usada como técnica de registro nas missões científicas. Entre 1875 e 1876, o fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923) acompanhou as expedições da Co- missão Geológica do Império pela costa e parte do sertão do Brasil, dirigidas pelo geólogo Charles Frederick Hartt. Ferrez fotografou a ca- choeira de Paulo Afonso, no interior da Bahia, durante a expedição. Antes, a pedido de D. Pedro II, ela havia sido objeto da lente de Augusto Stahl (1828-1877) e depois foi incluída, com alterações, em um álbum de 1868 publicado pelo fotógrafo Augusto Riedl (1836-?). A foto de Stahl também serviu de modelo para pinturas. Assim, além de documentar visualmente a paisagem, no contexto das expedições, a fotografia tam- bém poderia servir de modelo para pintores. Fotos que retratam africanos escravizados em diversas profissões, feitas dentro do estúdio, eram levadas por viajantes à Europa como “lembrança do Brasil”. Ferrez, mas também o alemão Alberto Henschel (1827-1882) e o português José Christiano de Freitas Jr. (1832-1903) rea- lizaram retratos posados “para exportação” desse tipo. Já as fotografias das amas de leite com os filhos dos senhores da casa grande eram incluídas nos álbuns de família (Figura 21). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) recomendam que o professor de Arte articule em seu traba- lho leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Você pode trabalhar de várias maneiras os conteúdos deste capítulo com seus alu- nos na escola. Abaixo, seguem algumas sugestões. Procure ampliá-las a partir de sua própria experiência. Diante de uma das imagens de pinturas e gravuras vistas neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: qual o material usado? O que foi representado? O que essas pessoas estão fazendo? Como se vestem? O que poderiam estar falando? Você consegue reconhecer quais árvores o artista pintou? Como foram organizadas as formas no espaço? Qual área é mais ilumina- da? Há algo que chama mais a atenção? Por quê? • Quanto à construção: como foi feito? Por que você acha isso? • Quanto à função: para quê foi feito? • Quanto à sociedade que o produziu: quem a produziu? Quando? Onde? Trabalhe a partir das respostas dos alunos. É interessante, se possível, le- vá-los a museus que possuem coleções ligadas ao séc. XIX, especialmente às Academias de arte regionais. A Academia do Rio de Janeiro foi a primeira, mas outras foram surgindo mais tarde, em outros estados do Brasil. HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA Da Missão Artística Francesa à Academia 83 Exercícios para estimular a observação: • Estudo de composições: copiar as linhas de contorno de uma das compo- sições vistas neste capítulo com papel transparente (vegetal ou sulfurizê) e marcar com lápis de cor os diferentes planos (do primeiro, passando pelos intermediários, até o fundo). Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo: • Pintura de história: escolher uma notícia recente, publicada em jornal, e representá-la por meio de desenho, sem usar palavras, com lápis grafi- te sobre folha sulfite A4. Transferir o desenho a um papel em tamanho maior (no mínimo A3). Usar o método da grade, quadriculando o esboço e a folha A3 para copiar o desenho de cada quadrado menor em cada quadrado maior, ampliando-o. • Pintura de paisagem: com uma prancheta, papel sulfite A4 e lápis grafi- te, desenhar árvores e outras plantas do jardim da escola ou de um par- que da cidade. Em sala, combiná-las numa única composição, num papel maior, desenhando direto com tinta guache. Não inventar novos elemen- tos, usar apenas os que desenhou ao ar livre. Nessa aula é possível estabe- lecer uma parceria com o professor de Ciências ou Biologia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por mais que o crítico Gonzaga Duque afirmasse, no fim do século XIX, que “a arte de pintar estava paralisada neste país” (DUQUE,1995), onde copiava-se, segundo ele, o que já estava ultrapassado na Europa, é inegável que a Academia e a Escola de Belas Artes contribuíram para o aprimoramento artístico de muitas gerações de artistas brasileiros. É cer- to que os parâmetros estilísticos utilizados eram europeus mas os temas voltaram-se para questões nacionais. Ao compararmos as pinturas de história – o gênero de maior prestígio na hierarquia acadêmica – executa- das pelos membros da Missão Artística Francesa de 1816, como Debret, com as pinturas de história executadas depois, pelas primeiras gerações de alunos da Academia, notamos uma virada em direção à exaltação da nação independente. Havia uma grande curiosidade entre os europeus a respeito das novas terras americanas, e os registros visuais que foram feitos pelos viajantes permanecem importantes referências para o estudo da paisagem e da sociedade brasileira do período. Ainda assim, é necessário olhar para 84 História da Arte no Brasil essas obras com cautela, tomando-as não por documentos fiéis, mas por criações artísticas baseadas em um ponto de vista pessoal. A longevidade do regime escravocrata entre nós chocou-se com os valores iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade dos artistas franceses. Se, em um primeiro momento, quando o neoclassicismo é a tônica artística dominante nas paisagens e cenas de gênero, africanos es- cravizados são frequentemente retratados, em um segundo momento, quando o romantismo ascende, a figura do índio é mais recorrente. Seria contraditório, de fato, construir uma imagem heroica e inspiradora da na- ção brasileira que incluísse a escravidão. Finalmente, a preocupação com a qualidade estética dos produtos in- dustriais começa a acentuar-se no país especialmente a partir do fim do século XIX, embora já existissem cursos técnicos na Academia e no Liceu de Artes e Ofícios desde os anos 1850. A industrialização era a grande esperança de emancipação econômica do país recém-saído do regime escravocrata. Nesse período, ainda, as mulheres conquistam espaço nas instituições de ensino oficiais. ATIVIDADES 1. Observe as gravuras abaixo, de Rugendas e Debret, retratando o mercado de africanos escravizados no século XIX, no Brasil. Descreva cada uma, apontando as semelhanças e diferenças entre elas. RUGENDAS, J. M. Mercado de escravos, Paris, FR, 1835, litografia (colorida a mão), 35,5 x 51,3 cm. Coleção particular. Da Missão Artística Francesa à Academia 85 DEBRET, J. B. Boutique de la rue du Val-Longo. Paris, FR, 1835, litografia sobre papel, 32,5 x 47,3 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil. Coleção Brasiliana. 2. Leia o trecho abaixo, escrito pelos viajantes alemães Johan Baptist von Spix e Carl von Martius, que percorreram as províncias do Brasil entre 1817 e 1820. Eles se referem ao projeto de fundação de uma Academia de arte no país. Ao passo que a Europa considerava a fundação de tal estabeleci- mento [a Academia de Belas Artes] concludente prova, como pa-recia, do rápido desenvolvimento do novo Estado, nota-se, todavia, com observação mais rigorosa, que atualmente tal fundação não corresponde, de modo algum, às necessidades do povo, e, portan- to, não pode ainda ser aqui desenvolvida. Diversos artistas franceses, [...] tendo à frente Lebreton, [...] foram chamados da França para despertar e animar, com suas obras e lições, o senso artístico dos brasileiros; [...] não se tardou, porém, a reconhecer que aqui só se poderia estabelecer as belas artes, quando as artes mecânicas, que satisfazem às primeiras necessida- des, houvessem feito o preparo para aqueles [...]. Também a necessária consequência do grau atual da civilização do Brasil é que o habitante deste país tropical, todo cercado de fantás- ticas, pinturescas e poéticas belezas naturais, sente-se mais perto do gozo espontaneamente oferecido por estes tão ditosos céus, do que da arte que só se atinge com esforço. Essa razão caracteriza a direção que tomam as tentativas artísticas e científicas, em toda a América, e deve ter mostrado ao Regente que aqui se devia pri- meiro cuidar da fundação dos alicerces do Estado antes mesmo de pensar em seu embelezamento pelas artes. 86 História da Arte no Brasil Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820, ed. Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação, 1976, p. 49-50. Os viajantes alemães se mostram favoráveis ou desfavoráveis ao estabelecimento de uma Academia de arte no país? Por quê? 3. Quais foram os estilos artísticos mais presentes na produção acadêmica durante o período Imperial? Descreva cada um deles. REFERÊNCIAS BARATA, M. Manuscrito inédito de Lebreton: sobre o estabelecimento de dupla escola de artes no Rio de Janeiro, em 1816. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, n. 14, p. 283-307, 1959. Disponível em: http:// portal.iphan.gov.br//uploads/publicacao/RevPat14_m.pdf. Acesso em: 27 out. 2020. BARBOSA, R.; VIEIRA, J. G. Discursos e trabalhos parlamentares: Centenário do Marquês de Pombal – O desenho e a arte industrial. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde; [S.l.]: Casa de Rui Barbosa, 1948. (Obras completas de Rui Barbosa, v. 9, t. 2, 1882). BERTICHEM, P. G. O Brasil pitoresco e monumental. Rio de Janeiro: Imperial de Rensburg, 1856. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/ icon393044/icon393044.htm. Acesso em: 27 out. 2020. BRASILIANA Fotográfica. Brasiliana Fotográfica Digital, 2020. Disponível em: http:// brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/. Acesso em: 27 out. 2020. 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As vanguardas internacionais reivindica- ram a ruptura com a tradição, que poderia vir acompanhada de uma crença no progresso ou de uma crítica à ordem social burguesa. Neste período, a formação dos artistas brasileiros continuou a ocorrer na Europa. Quando retornaram ao Brasil, trouxeram na bagagem movimentos como o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo e o Surrealismo. Inicialmente, abordaremos a Semana de Arte Moderna de 1922 e os seus antecedentes. Em seguida, apresentaremos análises dos dois manifestos do poeta Oswald de Andrade – Pau-Brasil e Antropófago –, que marcam etapas do desenvolvi- mento das ideias modernistas expressas em 1922. De modo breve, podemos afirmar que os modernistas buscaram criar uma arte propriamente brasileira, ainda que fazendo uso de um vocabulário formal europeu. Uma seção deste capítulo é dedicada a artistas que atuaram à margem do movimento. Também veremos que nos anos 1930 o associativismo tor- nou-se uma estratégia de atuação para fazer frente ao domínio das Academias de arte. Uma menção será feita, ainda, aos pri- mórdios da arquitetura moderna no Brasil e à valorização da arte popular durante essa “redescoberta” do país. O capítulo se encerra em torno do fim da Segunda Guerra, pouco antes do processo de internacionalização que marca, no início dos anos 1950, a passagem do moderno ao contemporâneo. Arte moderna 89 4.1 A Semana de Arte Moderna de 1922 Vídeo Embora o Rio de Janeiro, capital federal na época, continuasse sendo o centro político do país, o centro econômico passou a ser em São Paulo, em vista da expansão da produção de café, cujo exceden- te gerado foi investido na indústria. Com a onda de imigração euro- peia para substituir a mão de obra escrava nas lavouras e preencher lacunas no incipiente setor industrial, passa então a existir um gran- de cosmopolitismo urbano, que está na base do advento do modernismo. Mário de Andrade, em uma conferência de 1942 sobre o movi- mento modernista, distinguiu nele dois momentos principais: o pri- meiro, “heroico” ou “destruidor”, teve início com a exposição de Anita Malfatti, em 1917, e terminou com a Semana de Arte Moderna de 1922; o segundo, durante os anos 1930 e 1940, correspon- deu à fase construtiva, marcada pela ação de diferentes gru- pos artísticos. Filha de pai italiano e mãe norte-americana, Anita Malfatti (1889-1964) passou um período em Berlim, onde estudou com Lovis Corinth; depois morou em Nova York, onde estudou na Art Students League, com Homer Boss. Fora do Brasil, ela teve contato com o Expressionismo alemão e com um tipo de pin- tura dele derivada, mais experimental, de gestos largos, pince- lada aparente e cores fortes, que não correspondiam às cores dos objetos representados na realidade. Um ano depois de seu retorno a São Paulo, em dezembro de 1917, Malfatti expôs suas obras, especialmente as do pe- ríodo nova-iorquino, em um sobrado na rua Líbero Badaró, pois não havia, ainda, galerias de arte na cidade. A exposição contou com 53 quadros, entre eles O homem amarelo, A ven- tania, Mulher de cabelos verdes, A boba e A estudante. Inicial- mente, ela vendeu 11 quadros, mas uma crítica de Monteiro Lobato publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 1917, reper- cutiu de modo negativo e o público recuou. Para visualizar a obra A estudante, de Malfatti, acesse o link a seguir. Disponível em: https://masp.org.br/acervo/obra/a-estudante. Acesso em: 3 nov. 2020. Saiba mais Com origem na Alemanha, o Expressionismo foi um movimento artístico do início do século XX, que via na arte uma forma de expressão das emoções. Sua principal característica é a deformação da figura. Artistas do grupo A Ponte pintavam com cores fortes e gestos largos. Já Wassily Kandinsky e Paul Klee, do grupo O cavaleiro azul, romperam com a figuração, porque entendiam a abstração como uma linguagem capaz de estabelecer outra realidade, ligada ao mundo interior. Para Klee, “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”(KLEE,2001). https://masp.org.br/acervo/obra/a-estudante 90 História da Arte no Brasil Em seu texto, Lobato admira o talento de Malfatti, mas lamen- ta o fato de ela tê-lo colocado a serviço de uma estética “caricatu- ral”, cujo único propósito era chocar o público. Para ele, a artista deveria representar o mundo visível tal qual ele aparecia diante de seus olhos, bem aos moldes acadêmicos. Outro crítico, Nestor Pes- tana, na mesma linha de Lobato, elogiou os abacaxis da tela Negra Baiana, cujo nome depois foi alterado para Tropical, e desaprovou o desenho anatômico. Lobato chegou a afirmar que Malfatti estava fazendo “arte teratológica”, sendo a teratologia o ramo da ciência que estuda a má-formação dos fetos. O crítico provavelmente não sabia, mas Malfatti nascera com uma deformação na mão direita, que costumava manter oculta sobre um lenço. Embora muitas das palavras do artigo devam ter calado fundo na artista – considerando que Lobato era uma das mais importantes personalidades literárias do país na época – não devemos superestimar o seu impacto sobre sua produção posterior, pois ela não estava sozinha em sua opção por uma linguagem moderna. No mesmo ano de 1917, por exemplo, Malfatti foi aceita no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e faria parte, ainda, da comissão organizadora do Salão Revolucionário de 1931. Após a expo- sição de 1917, ganharia uma bolsa do Estado de São Paulo para um pe- ríodo de estudos na França. Além disso, intelectuais e artistas partiriam em sua defesa. Mário de Andrade chegou a propô-la em casamento para ajudá-la financeiramente no momento que, em decorrência das críticas conservadoras, não conseguia vender seus quadros. A indignação dos artistas e escritores modernos com relação à re- cepção da exposição de Malfatti foi canalizada ao evento da Semana de Arte Moderna (SAM), que teve lugar no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, às vésperas das comemorações do centenário da Independência do Brasil, que se concretizariam com a Exposição Universal do Rio de Janeiro, a partir do dia 7 de setembro. A SAM foi patrocinada por Paulo Prado, cafeicultor, investidor finan- ceiro e mecenas do modernismo, que arrecadou fundos também com outros barões do café. Além de uma exposição de artes plásticas no sa- guão do Teatro, a Semana contou com apresentações musicais, confe- rências sobre artes plásticas, leituras de textos literários e espetáculos de dança. Seus propositores desejavam romper com a arte ensinada Arte moderna 91 nas Academias. As vaias, nesse caso, eram tão esperadas que, segundo o relato da patrona do modernismo Yolanda Penteado, Paulo Prado recrutou pessoas para puxá-las com o público. Só assim o evento não pareceria, segundo ele, uma “festinha de São Paulo”. A SAM não tinha um programa estético definido. O poeta Oswald de Andrade, um dos organizadores, afirmou que seu propósito era “acer- tar o relógio” da arte brasileira: não criar algo novo, mas atual. Foi uma manifestação pública bastante noticiada na época e até hoje é relem- brada de modo sistemático pelas instituições culturais de São Paulo. Além de Malfatti, também expuseram na Semana, entre outros, Emilio Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e Victor Brecheret. Emi- liano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo (1897-1976), conhecido como Di Cavalcanti, nasceu no Rio de Janeiro e estudou inicialmente Direito. Atuou também como caricaturista e ilustrador, aspecto que marcou sua obra pictórica, haja vista a série de desenhos Os fantoches da meia-noite, de 1921, que exibiu na SAM. Para visualizar a obra Os fantochesda meia-noite, de Cavalcanti, acesse o link a seguir. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35294/ilustracoes-de-fantoches-da-meia-noite. Acesso em: 3 nov. 2020. Depois do evento, partiu para Paris, onde impressionou-se com a pintura de Pablo Picasso, em especial com o seu período pré-cubista. Sua obra incorporou para sempre a síntese formal da figura humana feminina de matriz cubista, que ele suaviza e adapta ao gosto do nacio- nalismo, tornando-se, então, o “pintor das mulatas”. O pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) viveu a maior parte da vida fora do país, em Paris. No entanto, sua obra é mar- cada pela temática nacionalista. Iniciou sua formação na Escola Nacional de Belas Artes e complementou-a em Paris, na Academia Julian, entre outras instituições. Retornou ao Brasil em 1915, residindo no Rio de Janeiro e, anos mais tarde, enviou oito pinturas para a SAM. Sua pintu- ra tem características do Art déco, do cubismo e da arte indígena, por conta da rigidez simétrica, da síntese formal e da geometrização das figuras. A paleta de cores normalmente reduz-se a tons terrosos. Além de pintor, foi também poeta. No livro Lendas, crenças e talismãs dos índios da Amazônia (1923), bem como em Algumas vistas de Paris (1925), o contato com a cerâmica marajoara e a inversão paródica dos Nos vídeos Semana de Arte Moderna, da TV Cultura, e Documentário 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, da Globo News, a história da SAM é contada com mais detalhes, inclusive por alguns de seus parti- cipantes. Disponível em: https://youtu.be/LdO_ ebONK9I. Acesso em: 6 nov. 2020. Disponível em: https://youtu.be/ K8c4FP1OV1I. Acesso em: 6 nov. 2020. Vídeo https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35294/ilustracoes-de-fantoches-da-meia-noite https://youtu.be/K8c4FP1OV1I https://youtu.be/K8c4FP1OV1I 92 História da Arte no Brasil relatos dos viajantes estrangeiros pelo Brasil, respectivamente, inscre- vem as obras, pela abordagem que promovem da cultura nacional, nos quadros do modernismo oficial. Em Lendas, crenças e talismãs dos índios da Amazônia, as ilustrações que Vicente do Rego Monteiro fez para os textos em francês de Pierre- -Louis Duchartre – adaptações de mitos e lendas da região amazôni- ca – resultaram, em parte, do contato com as coleções etnográficas do Museu Nacional do Rio de Janeiro, especialmente as relativas à cultura marajoara (Figura 1). Já em Algumas vistas de Paris – livro que relaciona texto e imagem de um modo não meramente ilustrativo, mas constitu- tivo –, o artista assume a perspectiva de um chefe indígena brasileiro (escrevendo em francês) que visita Paris, o centro da civilização ociden- tal no momento, e registra sua impressão sobre seus principais monu- mentos por meio de esquemas gráficos sintéticos e modulares, quase ideogramas. Você pode visualizar uma pintura de Vicente do Rego Monteiro no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/atirador-de-arco-vicente-do-rego- monteiro/6wEB8nwfZKv05g?hl=pt-BR. Acesso em: 10 nov. 2020. Figura 1 DUCHARTRE, Pierre-Louis (autor); MONTEIRO, Vicente do Rego (ilustrador). Légendes, croyances et talisman des indiens de l’Amazone. Paris: Tolmer, 1923. O Cubismo se desenvolveu na Europa, nos anos 1910. Pintores como Pablo Picasso e Georges Braque romperam com a perspectiva de um único ponto de vista, somando vários pontos de vista na representação dos objetos. O Art Déco, inspirado na forma fracionada cubista, foi um movimento, no campo das artes decorativas, que se expandiu da Europa a outros continentes, durante os anos 1910 e 1930. Em oposição às delicadas curvas e formas orgânicas do Art Nouveau, o Art Déco baseia-se em linhas retas e ortogonais. Saiba mais Arte moderna 93 Victor Brecheret (1894-1970) chegou ao Brasil, vindo da Itália, com 10 anos de idade. Após cursar o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, voltou, em 1913, a seu país natal para estudar escultura. Via- jou pela Europa e conheceu a obra de Constantin Brancusi, Antoine Bourdelle e Ivan Mestrovic. Também foi influenciado, como Vicente do Rego Monteiro, pelo estilo Art Déco. Um ano depois de seu re- torno ao Brasil, recebeu, em 1920, a encomenda do Monumento às Bandeiras, que só foi iniciado, efetivamente, em 1936, sendo fina- lizado em 1953 (Figura 2). Na SAM expôs, entre outras esculturas, uma cabeça de Cristo, conhecida como Cristo de trancinhas, que foi comprada por Mário de Andrade; expôs também Soror Dolorosa, ad- quirida, por sua vez, pelo poeta Guilherme de Almeida. O grupo escultórico do Monumento às Bandeiras, que fica em frente ao Parque Ibirapuera, em São Paulo, apresenta um movi- mento de flecha, orientado para a frente, presidido por dois ca- valeiros. As demais figuras, bandeirantes portugueses, bem como indígenas, caboclos e africanos, seguem-se atrás, em fila, ajudando a carregar uma jangada. Apesar da aparente cooperação, é necessá- rio lembrar que as bandeiras foram expedições organizadas pelos portugueses para explorar jazidas minerais e para destruir agru- pamentos missioneiros indígenas e quilombolas. A composição de Brecheret apresenta um equilíbrio simétrico, todos os corpos são geometricamente estilizados e suas posturas rígidas e hieráticas que, mesmo quando trocam o passo, acentuam a impressão de peso e colam ainda mais os 240 blocos de granito à terra, são con- trabalançadas pelo movimento unidirecional de avanço. Monteiro Lobato, que não entendeu a pintura de Malfatti, reconheceu pron- tamente, por outro lado, em um artigo para a Revista do Brasil, o gênio artístico de Brecheret. 94 História da Arte no Brasil Figura 2 Monumento às bandeiras, de BRECHERET, 1920-1953, granito, 50 (c) x 15 (l) x 6 (h) metros, Parque Ibirapuera, São Paulo. W ilf re do r/ W ik im ed ia Co m m on s O grupo dos escritores e poetas ligados à SAM, logo após seu desfecho, reuniu-se em torno da revista Klaxon (Figura 3), que signi- fica buzina, em francês, elegendo para logotipo o desenho de uma câmera cinematográfica – a criação artística, segundo o editorial de abertura, mais representativa da época. Editada entre 1922 e 1923, a Klaxon foi criada para amadurecer as ideias defendidas durante a Semana. Tal processo de reflexão se deu, sobretudo, pela acomodação de dualidades: internacional/nacional; natureza/cultura; civilização/barbárie; passado/fu- turo. Como resolver essas tensões na busca de uma arte, mais do que feita no Brasil, brasileira? Do ponto de vista do projeto gráfico, Klaxon tem algumas semelhanças com a edição realizada pela Editora francesa La Sirène (A Sereia) do romance O fim do mundo, filmado pelo anjo de N.-D. [Notre-Da- me] (1919), escrito por Blaise Cendrars (1887-1971). Projeto e ilustrações ficaram a cargo do pintor Fer- nand Léger (1891-1955), que desenhou o logotipo da editora para acompanhar especificamente esta publicação: uma “sereia moderna” formada por cin- co alto-falantes dispostos em círculo ao redor de um eixo. Esses dois nomes, Cendrars e Léger, são importantes para a continuidade da história do mo- dernismo brasileiro. Todos os números da revista Klaxon encontram-se disponíveis na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP. Disponível em: https://digital.bbm. usp.br/handle/bbm/6863. Acesso em: 3 nov. 2020. Leitura Figura 3 Capa da Klaxon, agosto 1922 Ar tu r V az /W ik im ed ia C om m on s https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/6863 https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/6863 Arte moderna 95 4.2 Pau-Brasil Vídeo Outra artista célebre do modernismo foi Tarsila do Amaral (1888-1973), que nasceu em uma fazenda de café do interior paulista, no seio de uma família de ricos proprietários rurais. Não participou da SAM, pois se encontrava em Paris estudando pintura. Recebeu a notí- cia do evento por meio de uma carta de Anita Malfatti, que conhecera quando ambas frequentaram, em São Paulo, o ateliê do pintor acadê- mico de naturezas-mortas PedroAlexandrino. Tarsila retornou a São Paulo em junho de 1922 e integrou com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia o Grupo dos Cinco. Nessa época, começou a namorar Oswald, depois se casaram e viveram juntos por dez anos. A afinidade entre os dois era tanta que Mário de Andrade os chamava de Tarsiwald. Foi durante o período em que esteve casada com Oswald que Tarsila produziu suas obras mais icônicas. O casal, em 1923, conheceu em Paris o poeta Blaise Cendrars, cujo livro Folhas da estrada (1924) foi publicado com um desenho de Tarsila na capa, com base em uma pintura de 1923 chamada A negra. Em 1926, Cendrars renovaria a colaboração escrevendo alguns poemas para o catálogo da primeira exposição de Tarsila em Paris, na Galeria Percier. Ainda em Paris, Tarsila mostrou a pintura A negra ao seu professor Fernand Léger e teve a sua aprovação. Léger, cujo estilo deve algo ao Cubismo, exerceu uma influência prolongada sobre a artista. Imagens de obras de Tarsila do Amaral estão disponíveis em seu site oficial. Disponível em: http://tarsiladoamaral.com.br/obras/. Acesso em: 11 nov. 2020. A tela A negra foi pintada com base em uma fotografia, provavel- mente de uma criada de Tarsila. No autorretrato com o manto verme- lho, do mesmo ano de 1923, Tarsila se representa na mesma posição da negra. Até onde vai, contudo, essa identificação? Em 1924, o casal Tarsila e Oswald, acompanhados de Cendrars, realizaram uma viagem pelo Brasil, passando pelo Rio e pelas cidades históricas do interior de Minas Gerais. Dessa experiência resultou uma série de pinturas de cores puras e “caipiras” (verde, rosa e azul), retra- tando a paisagem urbana dos trópicos, com indústrias, ferrovias, árvo- res e favelas. Essa fase de Tarsila ficou conhecida como Pau-Brasil, da qual faz parte, por exemplo, a obra Morro da favela. http://tarsiladoamaral.com.br/obras/ 96 História da Arte no Brasil O nome da fase – Pau-Brasil – tem origem em um manifesto de mes- mo título que Oswald escreveu depois da viagem com Cendrars, no qual afirma que é chegada a hora de se despir da herança colonial e de buscar as raízes brasileiras. Em alguns momentos, Oswald parece descrever as pinturas que Tarsila estava fazendo: A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. [...] O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamen- to técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. [...] Nossa época volta ao sentido puro. Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz. [...] Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça cré- dula [...] e a geometria [...]. O contrapeso da ingenuidade nativa para inutilizar a adesão aca- dêmica. [...] Apenas brasileiros de nossa época [...]. Práticos. Experimentais. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pito- rescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. (ANDRADE, 1924, grifos do original) A afinidade entre Tarsila e Oswald foi, enfim, nutrida por esse inte- resse pelo Brasil, por sua cultura e paisagens naturais, e dela resultaram obras de pintura e literatura que marcaram o movimento modernista. A parceria entre os dois foi renovada, ainda, na fase seguinte da pinto- ra, chamada de Antropofágica. 4.3 Antropofagia Vídeo Em janeiro de 1928, Tarsila pintou um quadro para presentear Oswald em seu aniversário, o qual retrata uma figura andrógina nua, vista de perfil, sentada em um promontório verde, com a cabeça apoia- da em uma das mãos, em pose meditativa. A cabeça é minúscula em comparação à mão e ao pé direitos, mais próximos ao solo. Ao fundo, no centro, um sol amarelo e um cacto verde destacam-se sobre o fun- do azul. Há poucos elementos, sobriedade, simplicidade, formas com passagens mínimas de luz e sombra. O casal chamou a obra de Abaporu, que em tupi-guarani significa homem que come carne humana. Algumas etnias indígenas brasileiras praticavam, de fato, o canibalismo e acreditavam que, ao devorar aque- les que admiravam, incorporariam suas qualidades. No vídeo A negra – Tarsila do Amaral, a antropóloga e professora da USP, Lilia Schwarcz, por ocasião de uma retrospectiva recente de Tarsila do Amaral no MASP, propõe uma leitura da obra A negra, que destaca os estereótipos nela reproduzidos a respeito do negro no Brasil. Schwarcz estabelece, ainda, uma análise comparativa entre A negra e Autorretrato (Manteau Rouge), pendurados lado a lado na exposição Tarsila Popular, de 2019, no MASP. Disponível em: https://youtu. be/as1N_HYuYz8. Acesso em: 3 nov. 2020. Vídeo Os exemplares da Revista de Antropofagia encon- tram-se disponíveis para consulta na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP. Disponível em : https://digital.bbm. usp.br/handle/bbm/7064. Acesso em: 3 nov. 2020. Leitura https://youtu.be/as1N_HYuYz8 https://youtu.be/as1N_HYuYz8 https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064 https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7064 Arte moderna 97 A obra Abaporu pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://coleccion.malba.org.ar/abaporu/. Acesso em: 3 nov. 2020. A tela Abaporu levou Oswald a escrever o Manifesto Antropófago, publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia, em maio de 1928, dirigida inicialmente por Antônio de Alcântara Machado e Raul Bopp e ativa até agosto de 1929. No manifesto, o tom de Oswald é ainda mais enfático ao propor um modelo para uma arte nacional com base na assimilação de influências estrangeiras, que deveriam, portanto, passar pelo filtro da realidade local. Nosso passado colonial é simultaneamente objeto de crítica e da consciência de que não é possível isolar-se de influências externas. Oswald escreve: Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filo- soficamente. [...] Tupy, or not tupy that is the question. Contra todas as catequeses. [...] Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fron- teiriço, continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Contra todos os importadores de consciência enlatada. [...] Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. [...] Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha des- coberto a felicidade. (ANDRADE, 1928, grifos do original) Oswald conclui o texto datando-o do ano “374 de deglutição do Bispo Sardinha”, um padre que veio ao Brasil para catequizar os ín- dios, mas terminou devorado em um rito canibal. Além de Abaporu, outras telas de Tarsila da chamada fase antropofágica são Urutu, A Lua, Sol Poente, Floresta e Antropofagia. Outro artista que teve uma presença importante dentro do mo- dernismo foi Lasar Segall (1889-1957). No fim de sua “fase brasilei- ra”, que vai de 1924 a 1928, o pintor de origem russa e formação alemã radicado em São Paulo pintou a tela Bananal. Como estran- geiro, Segall estava fazendo o processo defendido por Oswald no Duas obras literárias marcam o período antropofágico na arte brasileira. A primeira é Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, um romance experi- mental (uma “rapsódia”, segun- do seu autor), que se vale da oralidade brasileira para narrar a busca do protagonista, um índio negro da tribo dos tapanhumas, pelo Muiraquitã, uma pedra preciosa que lhe foi deixada por Ci, Mãe do Mato, e que acaba nas mãos de um colecionador que mora em São Paulo. ANDRADE, M. de. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. A segunda obra literária funda- mental do período antropofágico é Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, um longo poema em verso livre, narrado em primeira pessoa. Ele abre com a imagem do protagonista que mata CobraNorato (segundo a lenda indíge- na, filho de uma índia com um boto-cor-de-rosa) para vestir sua pele e conquistar a filha da rainha Luzia depois de atravessar a floresta Amazônica. BOPP, R. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. Leitura https://coleccion.malba.org.ar/abaporu/ 98 História da Arte no Brasil Manifesto Antropófago em sentido contrário: estava digerindo a cul- tura brasileira com seu olhar e experiência europeus. A primeira ex- posição do artista no país foi realizada em São Paulo, em 1913, mas talvez por se tratar de um pintor vindo de outro contexto, não gerou tanto escândalo como a posterior de Anita Malfatti. A obra Bananal (1927), de Segall pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/bananal/0wHysrMlTJq97Q. Acesso em: 3 nov. 2020. A obra de Segall, como a de Malfatti, foi influenciada pelo ex- pressionismo, evidente na construção da fisionomia do “ex-escravo” no quadro do Bananal. O velho Olegário posou para Segall quando o artista visitou uma fazenda de café. A interpretação geométrica das folhas das bananeiras ao fundo é de matriz cubista e aponta para mudanças que se operaram em seu estilo – no tratamento da cor, da luz e das formas – desde que chegou ao Brasil, no fim de 1923. A proporção da cabeça, pequena em relação ao fundo, leva à dúvida se estamos diante de um retrato ou de uma paisagem. Fundo e fi- gura se interpenetram sem se fundirem totalmente: o negro é uma parte do bananal, do mesmo modo que o bananal é uma parte do negro. Mário de Andrade observa nesse “quadro lindo” como o vo- lume que Segall conferiu ao pescoço acentua o caráter escultural da cabeça, criando um ambiente, como é próprio da escultura, mais do que decorando uma superfície. 4.4 À margem do modernismo oficial Vídeo Alguns artistas, mesmo participando de algum modo do movi- mento modernista, mantiveram-se à sua margem, porque suas obras não tinham aspectos nacionalistas evidentes. O conjunto da produção da própria Malfatti parece um pouco deslocado nesse sen- tido, o do nacionalismo. O ilustrador e gravador que passou longo tempo na Suíça, Oswaldo Goeldi (1895-1961), por exemplo, enviou alguns trabalhos à SAM. Contudo, suas vistas cruas e soturnas, nada turísticas ou propriamente “brasileiras”, da cidade do Rio de Janeiro não poderiam ser facilmente instrumentalizadas pela obsessão mo- dernista com as raízes. Nas gravuras de Goeldi estamos diante de paisagens urbanas e humanas que poderiam existir em outras cida- des do mundo. O tom surrealista de algumas delas, por outro lado, https://artsandculture.google.com/asset/bananal/0wHysrMlTJq97Q Arte moderna 99 parece ser mais o reflexo do ambiente carioca do que propriamente a opção por uma corrente estética. A obra de Goeldi pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/jardim-tropical-oswaldo-goeldi/ vgG3BI1RGfaRxA. Acesso em: 3 nov. 2020. O artista brasileiro que primeiro experimentou o estilo surrealis- ta foi o paraense, que viveu no Rio de Janeiro, Ismael Nery (1900-1934). Depois de uma passagem pela Escola Nacional de Belas Artes, estu- dou em Paris e percorreu a Europa e o Oriente Médio. Em seu retor- no, conheceu o poeta Murilo Mendes, que, após a morte prematura do artista, teve um papel importante na divulgação de sua obra. Em sua segunda viagem à Europa, no ano de 1927, Nery tornou-se ami- go de Marc Chagall. Ao lado do cubismo picassiano, a influência de Chagall é notória em sua produção, especialmente em suas compo- sições de atmosfera onírica, com figuras flutuantes. A grande questão da obra de Nery é o corpo. Em boa parte dela, corpos femininos e masculi- nos se perdem um no outro, gerando figuras se- xualmente ambíguas (Figura 4). Em muitas telas é feita uma referência direta à sua esposa, a poeta Adalgisa Nery. Ele próprio era também poeta e em alguns versos de Eu (1933) reconhecemos motivos recorrentemente explorados em sua pintura: Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas. Eu sou o que não existe entre o que existe. Eu sou tudo sem ser coisa alguma. Eu sou o amor entre os esposos, Eu sou o marido e a mulher, Eu sou a unidade infinita. […] (NERY, 2009, p. 81) A obra escultórica de Maria Martins (1894-1973), mais tardia, foi concebida na intersecção entre o surrealismo e o dadaísmo. Esposa do diploma- ta Carlos Martins, realizou boa parte dela fora do país, em contato com artistas da vanguarda euro- peia exilados em Nova York, entre eles Max Ernst e Marcel Duchamp. Nos bronzes O impossível e O implacável, da metade dos anos 1940, figuras an- Do rn ic ke /W ik im ed ia C om m on s Figura 4 Figura, de Ismael Nery (c.1927-1928) NERY, I. Figura. Óleo sobre tela, 105 x 69,2 cm, Museu de Arte Contemporânea, USP, São Paulo. https://artsandculture.google.com/asset/jardim-tropical-oswaldo-goeldi/vgG3BI1RGfaRxA https://artsandculture.google.com/asset/jardim-tropical-oswaldo-goeldi/vgG3BI1RGfaRxA 100 História da Arte no Brasil tropomórficas com tentáculos no lugar do rosto ensaiam um diálogo difícil ou movem-se, impetuosas, para a frente. Sem qualquer ligação com a realidade exterior, elas condensam afetos violentos em formas estranhas, apenas remotamente humanas. Não apresentam, de qual- quer modo, nenhuma marca de brasilidade que tornasse sua inserção nos quadros do modernismo algo fácil. Jorge de Lima (1893-1953) é hoje mais conhecido como poeta, mas realizou uma série de fotomontagens nos anos 1930 e 1940 reunidas no livro Pintura em pânico, publicado em 1943, com prefácio de Muri- lo Mendes. Essa técnica consiste no recorte e na colagem de imagens que circulam nos meios de comunicação em massa sobre um suporte plano, que depois pode ser fotografado novamente, caso o trabalho venha a figurar em uma outra publicação. O artista é, nesse caso, um organizador de imagens preexistentes, e não um criador de imagens que não existem ainda. Segundo o crítico e professor da USP, Tadeu Chiarelli, o espaço con- tínuo e onírico que compõe as cenas insólitas das fotomontagens de Lima é semelhante ao das fotomontagens surrealistas, especialmente as de Max Ernst. Para Chiarelli, o título do livro, Pintura em pânico, indi- caria a consciência do autor do potencial de ruptura da fotomontagem com a tradição da pintura ocidental, acadêmica ou não, em especial com a ideia de obra de arte como objeto único, do quadro como um repositório de formas originais e do artista como um sujeito singular e determinado. 4.5 Cândido Portinari Vídeo Antes de passar aos grupos artísticos que se formaram após a Semana de 22, convém deter-se na obra do pintor que representou, de certo modo, o triunfo do modernismo na cena artística brasileira: Cândido Portinari (1903-1962) – artista oficial da Era Vargas absorvido pela máquina do Estado e consagrado em vida. Nasceu em Brodósqui, interior de São Paulo, filho de imigrantes italianos de condição humil- de. Na adolescência, trabalhou como pintor e artesão de estuque em igrejas e casas da cidade. Em 1918, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a frequentar o curso livre da ENBA. Recebeu o prêmio de viagem no Salão Nacional de Belas Artes, em 1928. Passou dois anos Arte moderna 101 em Paris, de onde retornou em 1930, década em que pintou compulsi- vamente e da qual data a obra Café. A obra Café pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/caf%C3%A9-candido-portinari/ qAEbEUVuIQs9Hg?hl=pt-BR. Acesso em: 11 nov. 2020. Aprendeu lições do expressionismo e do cubismo, em especial da tela que retrata os massacres da Guerra Civil Espanhola – Guernica, de Picasso –, mas nunca se esqueceu completamente das lições acadêmi- cas. Elas estão presentes, sobretudo, na concepção espacial que, seme- lhante à dos italianos do Quatrocentos, com perspectiva mais intuitiva, cuida de reservar a cada figura um lugar na narrativa. Artista de grande apuro técnico, Portinariassimilou diferentes orientações estilísticas, das quais soube se servir de acordo com sua adequação ao tema, o qual abrangeu, em boa parte de sua obra, a realidade social e histórica brasileira. Filiou-se ao Partido Comunista em 1945 e concorreu, em 1947, a uma cadeira no Senado pelo Estado de São Paulo. Seu programa polí- tico, coerente com suas origens, centrou-se na defesa do campesinato: a situação do camponês no Brasil, afirmou o pintor ao Jornal Hoje de 17 de janeiro de 1947, é pior do que a de um cão. Sim, por- que os cachorros pelo menos podem escolher onde se deitam e têm liberdade de ação, enquanto que o nosso caboclo tem que se sujeitar às fétidas pocilgas que o senhor da terra lhe dá para morar, ficando tão endividado diante do regime do vale, que só fugindo da fazenda poderá temporariamente fugir da escravi- dão. Paga o nosso homem do campo pelo crime de ser trabalha- dor. (PORTINARI,1947) Portinari perdeu por uma margem pequena de votos em um pleito eleitoral cuja lisura foi contestada. O artista abordou o tema dos retirantes desde os anos 1930 até a sua morte. Nas duas telas do MASP, a deformação é um modo de acen- tuar os efeitos severos da fome e da despersonalização que é o pro- duto da miséria. Segundo Portinari, tal solução formal foi-lhe possível somente após passar pela experiência de Guernica, evidente na pintura O último baluarte, de 1942. Ele mostrou quadros da série dos Retirantes a um escritor brasileiro que retratou igualmente a vida dura do serta- Você pode visualizar as duas pinturas de Portinari dos Retirantes que estão no MASP nos links a seguir. Disponível em: https://masp.org.br/ acervo/obra/retirantes. Acesso em: 26 nov. 2020. Disponível em:https://masp.org.br/ acervo/obra/crianca-morta. Acesso em: 26 nov. 2020. Site https://artsandculture.google.com/asset/caf%C3%A9-candido-portinari/qAEbEUVuIQs9Hg?hl=pt-BR https://artsandculture.google.com/asset/caf%C3%A9-candido-portinari/qAEbEUVuIQs9Hg?hl=pt-BR https://masp.org.br/busca?search=portinari Acesso em : 29 out. 2020 https://masp.org.br/busca?search=portinari Acesso em : 29 out. 2020 https://masp.org.br/busca?search=portinari Acesso em : 29 out. 2020 https://masp.org.br/busca?search=portinari Acesso em : 29 out. 2020 102 História da Arte no Brasil nejo, Graciliano Ramos. Em uma carta ao pintor, de 13 de fevereiro de 1946, o autor de Vidas Secas (1938) escreve: Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações, no en- tanto, a deformação e a miséria existem fora da arte e são culti- vadas pelos que nos censuram. O que às vezes pergunto a mim mesmo, Portinari, com angústia, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a traba- lhar? Desejaremos realmente que elas desapareçam ou seremos também exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? Dos quadros que V. me mostrou [...] o que mais me comoveu foi aquela mãe a segurar a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem misé- ria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza. Felizmente, a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá.(RAMOS,1946) Todavia, o pincel de Portinari não se ocupou apenas do sofrimento e da injustiça social. Para o poeta Manuel Bandeira, fora a “estupenda” galeria de retratos, o melhor de sua obra emana de sua infância no campo. As obras Futebol, Brodowski, Crianças brincando, Meninos pulan- do carniça, Meninos com balões, estão entre muitas outras que retra- tam jogos e brincadeiras infantis, ora de perspectivas distanciadas, ora aproximadas, ora revelando apenas as técnicas do corpo, ora também o rosto dos protagonistas. Portinari recebeu inúmeras encomendas públicas ao longo da carreira. Em 1941, por exemplo, pintou os painéis O Descobrimento, A entrada, A catequese e O garimpo nas antessalas da Fundação Hispâ- nica na Biblioteca do Congresso, em Washington. Entre 1952 e 1956, próximo ao fim da vida, pintou os painéis Guerra e Paz para a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Todas obras que falam do Brasil, direta ou indiretamente, com grandiloquência e simplicidade. Faleceu como viveu, trabalhando, vítima de envenenamento pelo con- tato progressivo com o chumbo das tintas. O artigo de jornal sobre a candidatura de Portinari ao Senado e a carta de Graciliano Ramos ao pintor foram consulta- dos no site do Projeto Portinari, criado pelo filho do artista, João Cândido, em 1979, em honra à me- mória do pai. Seu objetivo é realizar o levantamento da obra do artista e a organização da documen- tação que se produziu ao redor dela, proceden- do à sua digitalização. Até agora, o projeto já registrou 5.300 pinturas, desenhos e gravuras e mais de 25 mil documen- tos, entre textos, cartas e fotografias. Disponível em: http://www. portinari.org.br/#. Acesso em: 3 nov. 2020. Saiba mais http://www.portinari.org.br/ http://www.portinari.org.br/ Arte moderna 103 4.6 Os Grupos Artísticos Vídeo Nos anos 1930, após a queda da bolsa de valores de Nova York, que teve reflexos sobre a economia cafeeira, tem início o período co- nhecido como Grande Depressão. No Brasil, a pauta principal do debate estético é a questão do papel social do artista. O associativismo, marca de independência com relação às instituições culturais e de ensino, tor- na-se, na década de 1930, uma estratégia de atuação no campo da arte. A Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) foi uma iniciativa de Mário de Andrade, que contou com a adesão entusiástica de Lasar Segall, concretizada, efetivamente, no ano de 1932, em São Paulo. Congregou artistas, músicos, escritores e patronos das artes ligados ao primei- ro modernismo, com o objetivo, segundo seus estatutos, de estreitar as relações entre artista e público. Para tanto, a entidade promoveu exposições, concertos, conferências e confraternizações, como festas de ano novo e bailes de carnaval. Em 1933, organizou a 1ª Exposição de Arte Moderna com obras de artistas nacionais e estrangeiros. No mesmo ano, com o dinheiro arrecadado durante o Carnaval da SPAM, o grupo alugou a sua sede no Palacete de Campinas, Praça da República, onde realizou uma segunda exposição. Dívidas e dissensões internas, contudo, levaram à sua extinção, em 1934. Um dia após a fundação da SPAM, em 24 de novembro de 1932, foi criado o Clube dos Artistas Modernos (CAM), também na capital pau- lista, no primeiro andar do edifício da rua Pedro Lessa, n. 2. Ao lado de Flávio de Carvalho (1899-1973), idealizador e diretor do CAM, os artistas Di Cavalcanti, Antônio Gomide (1895-1967) e Carlos Prado (1908-1992), cujos ateliês funcionavam no mesmo prédio, participaram da imple- mentação do projeto. Diferentemente da SPAM, contudo, tinha um ca- ráter antielitista, que foi afirmado ao longo de uma atuação tão crítica quanto anárquica. Promoveu exposições, palestras, concertos e con- fraternizações. Depois de uma mostra de gravuras de Käthe Kollwitz (1867-1945) e outra de cartazes russos, Carvalho organizou, entre agos- to e outubro de 1933, em parceria com o psiquiatra Osório Cesar, o Mês das crianças e dos loucos, expondo pinturas, desenhos e esculturas de crianças e internos do Hospital Juqueri, paralelamente à realização de uma série de conferências de especialistas sobre o tema. O CAM foi fechado pela polícia no fim do mesmo ano de 1933, em reação à mon- 104 História da Arte no Brasil tagem da peça de Carvalho O Bailado do Deus Morto, sobre a relação dos homens contemporâneos com o Deus do monoteísmo. Além de curador e teatrólogo, Flávio de Carvalho foi também escri- tor, artista visual, arquiteto, designer e engenheiro. É certamente uma das personalidades mais versáteis, polêmicas e complexas do moder- nismo. Sua produção gráfica e pictórica é de vertente expressionista. Mário de Andrade, por exemplo, escreveu que, diante do seu retrato feitopelo artista, sentia-se assustado, pois via ali o lado sombrio de sua personalidade, o lado que procurava esconder dos outros. A obra Retrato de Mário de Andrade, pode ser vista no link a seguir. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1411/retrato-de-mario-de-andrade. Acesso em: 3 nov. 2020. A Série trágica, nove desenhos realizados por Carvalho no dia 19 de abril de 1947, retrata, sob diferentes ângulos, o rosto de sua mãe mor- rendo, uma elaboração gráfica da experiência psicológica da perda que foi muito criticada em seu tempo. Carvalho realizou também três intervenções públicas, que cha- mou de Experiências, numerando-as (1, 2 e 3), comumente lidas como precursoras das performances dos anos 1960. Pouco se sabe sobre a Experiência n. 1. A segunda, no entanto, cujo objetivo era estudar a psi- cologia das multidões, rendeu um livro, no qual o artista a descreveu e analisou. No dia 8 de junho de 1931, ele andou na direção contrária de uma procissão de Corpus Christi, em São Paulo, vestindo um boné de veludo verde. Na época, as pessoas descobriam a cabeça em manifes- tações religiosas como um sinal de respeito e o gesto chocou os fiéis que acompanhavam o cortejo. Flávio precisou fugir para não ser lin- chado, refugiando-se em uma leiteria, onde foi resgatado pela polícia. Declarou que, com a ação, pretendia “determinar se a força da crença era maior que a força da lei ou do respeito à vida humana”(CARVA- LHO,2001). Na Experiência n. 3, datada de 1956, Carvalho desfilou pelas ruas do centro de São Paulo vestindo o seu new look, ou traje tropical: saia plissada, blusa de manga curta alternando listras opacas e trans- parentes, meia arrastão e sandálias – roupas mais adequadas, segundo ele, ao clima brasileiro. Entre 1937 e 1939, Carvalho integrou a organização dos Salões de Maio, ao lado dos críticos Quirino da Silva e Geraldo Ferraz, destina- https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1411/retrato-de-mario-de-andrade Arte moderna 105 dos a acolher arte moderna nacional e estrangeira. Em 1939, rompeu com os colegas e organizou a terceira e última edição do evento sozi- nho, ocasião em que editou a Revista Anual do Salão de Maio (RASM). Nela, publicou um manifesto que abre com a frase: “Entre as coisas que marcam mais fortemente a revolução estética estão: – um abandono gradativo da percepção meramente visual e um desenvolvimento mais intenso da percepção psicológica e da percepção mentalista do mun- do”(RASM, 1939). Um pequeno resumo de suas ideias sobre arte, que oscilam entre a ação sobre a matéria e a própria ação como meio de expressão, no contexto de uma busca sistemática e em diferentes fren- tes pela compreensão da irracionalidade do comportamento humano. Outra importante agremiação artística paulistana constituída nos anos 1930, mais precisamente a partir de 1934, é o Grupo Santa Helena. Tem início com Francisco Rebolo (1902-1980) e Mario Zanini (1907-1971), que alugaram duas salas no Palacete Santa Helena (mais tarde demolido para dar lugar à Estação Sé do Metrô), com vistas a instalar seus ateliês. Próximo ao local, frequentavam o curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas Artes, onde conheceram outros pintores “amadores” que se juntariam a eles no edifício. Assim, também passaram a se reunir para trocar conhecimentos técnicos e participar de sessões de modelo vivo Manoel Martins (1911-1979), Fulvio Pennac- chi (1905-1992), Aldo Bonadei (1906-1974), Clóvis Graciano (1907-1988), Alfredo Volpi (1896-1988), Humberto Rosa (1908-1948) e Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972). Durante o dia, exerciam profissões como pintor de paredes, bordador, torneiro, fresador, ourives, açougueiro e ferreiro. À noite, pintavam no Santa Helena e, nos fins de semana, saíam para pin- tar ao ar livre. Atuaram no espaço entre a Academia e a arte de vanguar- da, não sendo possível associá-los nem a uma, nem a outra tendência e, excetuando Rizzotti, Bonadei e Zanini, todos eram autodidatas. Os santelenistas demoraram a ser percebidos pela crítica. Quem primeiro os notou foi o pintor Paulo Rossi Osir (1890-1959). Realizaram uma exposição organizada por Rossi Osir, em 1937, a 1ª Exposição da Família Artística Paulista (FAP), na qual figuraram também outros artis- tas, entre eles, Anita Malfatti e Hugo Adami (1899-1999). Por ocasião da 2ª Exposição da FAP, em 1939, Mário de Andrade escreveu um artigo para o jornal O Estado de São Paulo, no qual se mostrava surpreendido pela qualidade técnica de suas pinturas. A terceira exposição da FAP ocorreu no Rio de Janeiro, em 1940. Mais tarde, Mário definiria as ca- A RASM encontra-se dis- ponível para consulta na Biblioteca Brasiliana Guita e José MIndlin, da USP. Disponível em: https:// digital.bbm.usp.br/ view/?45000033262#page/1/ mode/2up . Acesso em: 10 nov. 2020. Leitura https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033262#page/1/mode/2up https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033262#page/1/mode/2up https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033262#page/1/mode/2up https://digital.bbm.usp.br/view/?45000033262#page/1/mode/2up 106 História da Arte no Brasil racterísticas que permitiriam, segundo ele, referir-se ao Santa Helena como uma escola: o apuro artesanal, o desprezo pelo individualismo virtuosista e a origem proletária. Recentemente, a crítica observou as afinidades estilísticas do grupo Santa Helena (mais restrito do que a FAP) com o movimento italiano do Novecento. No período em que integrou o Santa Helena, Alfredo Volpi pintou paisagens urbanas, marinhas e figuras de santos. Durante toda a vida, ele preparou suas tintas, pregou os sarrafos para montar seus chassis e esticou suas telas. Mesmo nas obras iniciais, mais descritivas, já é possível notar que seu problema é, como ele mesmo afirmou, “de for- ma, cor e linha”. Trilhou o caminho da figuração à abstração sozinho e, durante a década de 1950, chegou, passando pela geometrização e jus- taposição das fachadas das casas, à geometrização e justaposição das bandeirinhas das festas juninas. Soube vê-las como signos plásticos e foi, apesar da origem humilde e da trajetória isolada, um dos artistas que melhor realizou a síntese entre o local e o universal, tão cara aos modernistas. A obra Bandeiras, de Volpi pode ser visualizada no link a seguir . Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/bandeiras/7gEeoOBr_lmseA. Acesso em: 4 nov. 2020. Paralelamente, na cidade do Rio de Janeiro, em 1931, é constituí- do outro grupo artístico, denominado Núcleo Bernardelli, nome que presta homenagem a representantes dos modernos que chegariam à direção da Escola Nacional de Belas Artes no período da República, im- plementando reformas. Do mesmo modo, seus integrantes desejavam alterar a estrutura do ensino na ENBA, abrindo, ao mesmo tempo, o acesso dos artistas modernos ao Salão e aos prêmios de viagem inter- nacional, concedidos apenas aos acadêmicos. Ainda no ano de 1931, o arquiteto Lúcio Costa assumiu a direção da ENBA e trabalhou no mes- mo sentido, reunindo um grupo de artistas modernos para selecionar os trabalhos exibidos no Salão Nacional de Belas Artes, por exemplo. Contudo, permaneceu apenas um ano no cargo. Somente em 1940 foi criada uma seção moderna dentro do Salão, sendo Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) o primeiro artista premiado, com a tela Léa e Maura. Novecento é o italiano de No- vecentos, ou seja, século XX. Na Itália, o Novecento é equivalente ao movimento mais geral de retorno à ordem do período entreguerras (1919-1939) na Europa. Foi um antídoto, segun- do sua principal articuladora, a crítica de arte Margherita Sarfatti, contra o Romantismo e o Impressionismo. Trata-se de um estilo que, nas suas diferen- tes vertentes (Neorrenascentista, Arcaico-mítica e Cezanniana) faz uso da figuração, mesclando naturalismo e idealização. Apresenta também uma nova preocupação com os aspectos artesanais da linguagem da pintura. Os principais artistas associados ao Novecento são AchilleFuni, Mario Sironi e Arturo Tosi. Saiba mais https://artsandculture.google.com/asset/bandeiras/7gEeoOBr_lmseA Arte moderna 107 A tela Léa e Maura, de Guignard, pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/l%C3%A9a-e-maura-alberto-da-veiga- guignard/yAEbWfihHFYINw. Acesso em: 4 nov. 2020. José Pancetti (1902-1958), declaradamente influenciado por outro integrante do Núcleo Bernadelli, o polonês Bruno Lechowski (1887- 1941), foi o primeiro artista moderno a conquistar o prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional, em 1941. Filho de imigrantes italianos, foi marinheiro e iniciou seus estudos em pintura como autodidata. Ficou conhecido especialmente por suas marinhas. Em suas telas, a constru- ção em perspectiva tem como base a observação, os enquadramentos são inusitados e as áreas de cor seguem a estrutura do desenho. Os integrantes do Núcleo Bernardelli se reuniram para pintar nos porões da ENBA até 1936. Mudaram-se depois para a praça Tiraden- tes, onde permaneceram até 1941, quando o grupo se extinguiu, rea- lizando nesse intervalo de tempo quatro exposições. Não havia uma orientação estética comum, funcionando nos moldes de um ateliê livre. Assim, tendências diversas, como impressionismo, pós-impressionis- mo, o retorno à ordem e a abordagem de temáticas sociais conviveram. 4.7 Arquitetura moderna no Brasil Vídeo Em sua atuação como arquiteto, Flávio de Carvalho, que se formou em Engenharia pela Universidade de Durham, Inglaterra, participou de uma série de concursos de projetos arquitetônicos, entre eles o do Palácio do Governo do Estado de São Paulo, de 1927, e o interna- cional para o Farol de Colombo, na República Dominicana, de 1928. A apresentação gráfica de caráter mais artístico e a concepção dos edi- fícios como uma associação de blocos geométricos simples, despidos de ornamentação, constituem aspectos modernos de suas propostas. Seus únicos projetos efetivamente construídos, contudo, são o conjun- to de casas da Alameda Lorena, em São Paulo (1936-1938) e a Fazen- da Capuava (1939), em Valinhos, sua residência particular. Tanto esta quanto o projeto do Farol associam formas modernas e pré-colombia- nas (na silhueta trapezoidal e na decoração interna), realizando o ideal antropofágico dos modernistas brasileiros. https://artsandculture.google.com/asset/l%C3%A9a-e-maura-alberto-da-veiga-guignard/yAEbWfihHFYINw https://artsandculture.google.com/asset/l%C3%A9a-e-maura-alberto-da-veiga-guignard/yAEbWfihHFYINw 108 História da Arte no Brasil Assim como Carvalho, o arquiteto russo naturalizado brasileiro Gregori Warchavchik (1896-1972) é considerado o precursor da arqui- tetura moderna no Brasil. A casa que construiu para morar em São Paulo, na rua Santa Cruz, finalizada em 1927, apresenta um desenho limpo e geométrico, amplas superfícies transparentes obtidas pelo em- prego do vidro, bem como mobiliário e acabamentos desenhados pelo próprio arquiteto. As restrições construtivas não permitiram que fosse feita em concreto, material mais corrente na arquitetura moderna, mas em alvenaria de tijolos (cujo revestimento simula o concreto armado) com cobertura convencional de telha de barro. Em outra casa, a da rua Itápolis, no bairro do Pacaembu, concluída em 1929, o arquiteto seguiu os mesmos princípios gerais de racionali- dade, embora com diferenças quanto à planta e à distribuição – mais assimétrica – dos vãos e volumes. O repertório formal de Warchavchik estava ancorado no chamado Estilo Internacional, dos anos 1920, que priorizava a funcionalidade no projeto de edificações e objetos cotidianos. Em vigor nos anos 1920, no contexto do “retorno à ordem”, o chamado Estilo Inter- nacional foge às referências históricas e ao ornamento e busca à articulação entre espaços simples, limpos e amplos, recorrendo a materiais como vidro, aço e con- creto armado. Seus expoentes são Walter Gropius, Mies Van der Rohe e Le Corbusier. Gropius dirigiu durante anos a Bauhaus, uma escola alemã de design e arquitetura que procurou integrar o trabalho do artista e do artesão. Ele dizia que “a arquitetura é uma arte coletiva”, o que implica uma colaboração que vai do desenho do menor ob- jeto doméstico até o do espaço urbano, “da colher à cidade”. Os arranha-céus projeta- dos pelo alemão Mies van der Rohe eram estruturas de aço monumentais recobertas com vidro, feitas apenas de linhas e ângulos retos. Ele costumava repetir: “menos é mais”. O francês Le Corbusier, por sua vez, ficou conhecido pela afirmação de que “a casa é uma máquina de morar”. Suas casas em forma de caixa – planas, puras, pre- cisas, com fileiras regulares de janelas e planos térreos abertos – se tornaram, pela facilidade da reprodução em larga escala, parte da paisagem urbana das cidades. A casa modernista de Warchavchik da rua Itápolis foi aberta à visi- tação durante um mês no ano de 1930, com o intuito de apresentar ao público local uma nova proposta de morar. A exposição foi uma espé- cie de segundo tempo da Semana de Arte Moderna de 1922, uma vez que foram exibidas no interior da casa obras dos mesmos artistas que participaram ou gravitaram em torno da SAM. É possível visualizar uma imagem da Fazenda Capuava no link a seguir. Disponível em: https:// enciclopedia.itaucultural.org.br/ obra35653/fazenda-capuava- valinhos-sao-paulo. Acesso em: 4 nov. 2020. Site A Exposição da Casa Modernista, em 1930, foi filmada pela pro- dutora Rossi e o filme, disponi- bilizado pelo projeto Intermeios da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Disponível em: https://youtu.be/ wTKa-f26AzU. Acesso em: 4 nov. 2020. Vídeo https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35653/fazenda-capuava-valinhos-sao-paulo https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35653/fazenda-capuava-valinhos-sao-paulo https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35653/fazenda-capuava-valinhos-sao-paulo https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35653/fazenda-capuava-valinhos-sao-paulo https://youtu.be/wTKa-f26AzU https://youtu.be/wTKa-f26AzU Arte moderna 109 Alguns anos depois, em 1936, o ministro Gustavo Capanema enco- mendou ao arquiteto Lúcio Costa (1902-1998) o projeto do edifício do recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP, atual Palácio Capanema), no Rio de Janeiro. Lúcio Costa formou uma equipe, entre outros, com Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) e o jovem Oscar Niemeyer (1907-2012), estagiando há um ano no seu escritório. Le Corbusier é contratado como conselheiro durante a concepção do pro- jeto e passa um mês no Rio, em 1937. O francês discorda do local cedi- do pelo Estado para construção do edifício e realiza um projeto para outro terreno, que, todavia, não é obtido. A equipe brasileira refaz o projeto para o antigo terreno, mantendo os princípios do original, de- pois do retorno de Le Corbusier à França, enviando-lhe posteriormente fotos de uma maquete. Lúcio Costa conta que o segundo desenho de Le Corbusier é, na verdade, um decalque da foto da maquete que lhe foi enviada. No edifício final (Figura 5), estão presentes os “cinco pontos da nova arquitetura” elencados por Le Corbusier: 1) os pilotis (as colunas re- dondas monumentais), que transformam o térreo em um espaço aberto à circulação; 2) o teto-terraço, oposto ao teto tradicional inclina- do, que torna essa área, normalmente fechada, acessível, sob a forma de um jardim; 3) a planta livre, cujas paredes fixas são suprimidas, pois já não exercem função estrutural, em favor de estruturas móveis; 4) as janelas em fita, possí- veis também em razão do sistema de paredes portantes; e 5) a fachada livre, que, pelo uso do vidro, permite ver através do edifício. Os painéis no exterior e interior são obras de Portinari e os jardins foram projetados por Roberto Burle Marx (1909-1994). Burle Marx nasceu em São Paulo e estudou na Alemanha, onde entrou em contato com exemplares da flo- ra brasileira em museus botânicos. Retornou ao Brasil e se instalou no Rio deJaneiro, ingressan- do na ENBA. Foi quando fez, em 1932, a convite de Lúcio Costa, seu primeiro jardim. Em 1949, adquiriu um terreno em Campo Grande, no Rio O projeto de Le Corbusier para o edifício do MESP econtra-se disponível no site da Fondation Le Corbusier. Disponível em: http://www. fondationlecorbusier.fr/corbuweb/ morpheus.aspx?sysId=13&Iri- sObjectId=4948&sysLangua- ge=fr-fr&itemPos=124&item- Sort=fr-fr_sort_string1%20 &itemCount=215&sysParentNa- me=&sysParentId=65. Acesso em: 4 nov. 2020. Saiba mais Jc va sc ~c om m on sw iki /W iki m ed ia C om m on s Figura 5 Ministério da Educação e da Saúde Pública, iniciado em 1937, finalizado em 1944 e inaugurado em 1945, no Rio de Janeiro. http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysId=13&IrisObjectId=4948&sysLanguage=fr-fr&itemPos=124&itemSort=fr-fr_sort_string1%20&itemCount=215&sysParentName=&sysParentId=65 110 História da Arte no Brasil de Janeiro, onde manteve até a sua morte uma coleção de plantas co- letadas em expedições pelo Brasil, que estudava, catalogava e utilizava nos trabalhos de paisagismo. Salvou muitas da extinção em razão do avanço do desflorestamento, realizando nos jardins, portanto, também uma ação preservacionista. Além disso, descobriu mais de 50 novas espécies, entre elas a Heliconia hirsuta Burle-marxii. Em sua atuação como arquiteto paisagista, Burle Marx valorizou a vegetação nativa brasileira. Pensava os jardins como massas co- loridas, dispondo arbustos e árvores no espaço de acordo com as mudanças de cor que se processariam no decurso das estações. Fu- gindo à estilização dos jardins europeus, suas composições, inicial- mente dominadas por linhas curvas e formas orgânicas, foram se tornando mais geométricas a partir dos anos 1950. É o autor, entre outros projetos, dos jardins do complexo da Pampulha (1942-1945), em Belo Horizonte, do Museu de Arte Moderna (1954-1956) e do Aterro do Flamengo (1961-1965), no Rio de Janeiro. Realizou, ainda, três projetos para os jardins do Parque Ibirapuera, em São Paulo (o primeiro em 1953), que, contudo, não foram executados. 4.8 Arte Popular Vídeo Acompanhando o interesse renovado pela questão nacional, muitos intelectuais e artistas procederam, no segundo quarto do século XX, a um “levantamento” do Brasil. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artís- tico Nacional (SPHAN, hoje IPHAN) foi criado pela Lei n. 378, de 1937, por determinação do ministro Gustavo Capanema, “com a finalidade de promover, segundo o artigo 46, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional”. Seu primeiro diretor, Rodrigo Melo Franco Andrade, esteve à frente da redação do decreto, publicado no fim do mesmo ano, que regulamentava as atividades do novo órgão, cujas discussões haviam sido iniciadas já no ano anterior com Mário de Andrade, o qual em sua definição de patrimônio artístico inclui não só a cultura erudita, como também a popular. Foi, ele mesmo, um impor- tante pesquisador na área do folclore e da música brasileira. A série de televisão Um pé de quê?, apresentada pela atriz Regina Casé, realizou um episódio sobre a obra de Burle Marx. Nele, são mostrados seus principais projetos de jardins, bem como o Sítio Burle Marx, tombado pelo IPHAN em 1985, que conserva uma coleção botânico-paisagística, artística e arquitetônica, além de funcionar como centro de estudos. Disponível em: https://youtu.be/ Kdfi9aSsvGY. Acesso em: 6 nov. 2020. Vídeo https://youtu.be/Kdfi9aSsvGY https://youtu.be/Kdfi9aSsvGY Arte moderna 111 Durante o modernismo, houve uma valorização de trabalhos artís- ticos mais espontâneos, que não apresentavam as marcas constritivas da civilização, como o dos povos ditos “primitivos”, das crianças e dos doentes mentais, atraindo a atenção de colecionadores. Nesse con- texto, é lançado um novo olhar à arte popular, ou seja, aquela feita por pessoas que não passaram por uma formação institucionalizada, aprendendo sozinhas ou no contexto de tradições familiares. O termo em francês arte naïf, que em português significa ingênua, também é usado no Brasil como sinônimo de arte popular. Em inglês, usa-se o termo outsider art (arte que está fora de um dado campo). Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), o Mestre Vitalino, nasceu e viveu na zona rural da cidade de Caruaru, em Pernambuco. Começou a modelar o barro ainda criança, com os restos da produção de uten- sílios domésticos feitos pela mãe, sua primeira escultura foi o Caçador de gato maracajá. A peça Caçador de gato maracajá pode ser vista no link a seguir. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/ca%C3%A7ador-de-on%C3%A7a-mestre- vitalino/GwGMcseuKEgCtA?hl=pt-br. Acesso em: 4 nov. 2020. Desde então, criou peças de cerâmica figurativa representando o imaginário e o cotidiano da população do sertão nordestino, que de- pois vendia na Feira de Caruaru. “Era mais importante, relata o cera- mista, que eu aprendesse a usar minhas mãos que minha cabeça. Na minha terra, as mãos produzem comida e a cabeça só produz confu- são”. Sua obra se tornou mais conhecida no país com a sua participa- ção na 1ª Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana, organizada pelo educador Augusto Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 1947. Vitalino desenvolveu um repertório de temas e formas que foi reproduzido e referenciado por outros artesãos da região. Seus bois, cangaceiros e retirantes, em versões derivadas, alcançaram o interior das casas bra- sileiras de diferentes estratos sociais. Além do Museu do Barro, em Caruaru, e do Museu do Homem do Nordeste, em Recife, outro local onde é possivel ver a obra de mestre Vitalino é a casa onde viveu seus últimos anos de vida, transformada em instituição cultural e administrada por um de seus filhos, Severino Vitalino. Saiba mais https://artsandculture.google.com/asset/ca%C3%A7ador-de-on%C3%A7a-mestre-vitalino/GwGMcseuKEgCtA?hl=pt-br https://artsandculture.google.com/asset/ca%C3%A7ador-de-on%C3%A7a-mestre-vitalino/GwGMcseuKEgCtA?hl=pt-br 112 História da Arte no Brasil Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) recomendam que o professor de Arte articule em seu traba- lho leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Você pode trabalhar de várias maneiras os conteúdos deste capítulo com seus alu- nos na escola. A seguir, apontamos algumas sugestões, procure ampliá-las combase em sua própria experiência. Diante de uma das imagens de obras de artistas vistas neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: qual o material usado? Você consegue dizer o que o artista representou? Como é a relação entre figura e fundo? As cores correspondem às cores dos objetos como são na realidade? Por que usar cores não locais? Qual o efeito que a defor- mação ou geometrização das figuras gerou? Isso desperta alguma emoção em você? Qual a relação entre o título e a imagem? Que outro título você daria a obra? Por quê? • Quanto à construção: como foi feita? Por que você acha isso? Quais dificuldades o artista pode ter enfrentado durante o processo? • Quanto à função: Para que foi feita? • Quanto ao indivíduo e à sociedade que o produziu: quem a produ- ziu? Para quem? Quando? Onde? Existe alguma evidência na própria obra que indique o local onde foi feita? Trabalhe com base nas respostas dos alunos. É interessante, se possí- vel, levá-los a museus que têm coleções de arte moderna. Lembre-se: o contato com a reprodução não substitui o contato com o original – eles se complementam. Exercícios para estimular a observação: • Desenho ditado: escolher uma das imagens vistas neste capítulo e descrevê-la para os alunos como se fossem instruções para de- senhar. O exercício pode ser feito com lápis grafite e folha sulfite A4. Dê preferência às composições com menos elementos, mais simples. Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo: • Quadro vivo: escolher cinco pinturas figurativas de artistas do mo- dernismo brasileiro. Dividir a turma em cinco grupos. Cada um deve “encenar” uma das obras. Eles podem discutir em uma aula e apre- sentar na seguinte, trazendo elementos de casa para compor cená- rio e figurino. (Continua) HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA Arte moderna 113 • Colagem surrealista: com a técnica do recorte e colagem de ima- gens de revista ou jornal, criar uma composição sobre o tema Brasil. Depois, discutir com a turma os possíveis estereótipos que foram reproduzidos. Por que associamos a ideia de Brasil a eles? Esse exercício pode ser feito em parceria com o professor de Língua Portuguesa e os alunos podem usar a mesma técnica para ilustrar um texto modernista. Neste capítulo, citamos dois: Macunaíma, de Mário de Andrade; e Cobra Norato, de Raul Bopp. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Que é a nossa arte?”, indagava Menotti del Picchia em sua palestra durante a Semana de 22. Os modernistas tentaram responder a essa questão em suas obras, e cada resposta representa uma solução de com- promisso entre nacionalismo e vanguarda. O espírito associativo das revistas prolongou-se na formação de gru- pos. O CAM e o Grupo Santa Helena contaram com artistas como Flávio de Carvalho e Alfredo Volpi, duas modernidades distintas, mas que rea- lizaram, ao lado das fases Pau-Brasil e Antropofágica de Tarsila, sínteses bem-sucedidas entre a cultura universal e local. Contudo, não podemos nos esquecer de artistas como Oswaldo Goeldi, Ismael Nery, Maria Martins e Jorge de Lima que, mesmo alheios às demandas do modernismo oficial, construíram obras igualmente coerentes e capazes de, por contraste, ver a caricatura que, muitas vezes, resultou da busca voluntária e artificial pe- las raízes. Nossa arquitetura moderna, com Warchavchik e o grupo de Lúcio Costa envolvido com o projeto da sede do Ministério da Educação e Saúde, se- guiu as tendências ditadas pelo estilo internacional, conciliando-as com as limitações materiais impostas pelo meio. O modernismo também promoveu a pesquisa etnográfica e folclórica, levando à criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O conceito de patrimônio era largo. Mário de Andrade, o grande paladino do modernismo, colecionou arte popular e desenhos infantis e dedicou- -se a analisá-los. Aliado a esse aspecto inclusivo, devemos acrescentar, conforme Mário em sua conferência de 1942, outras duas importantes conquistas do modernismo: o direito permanente à pesquisa estética e a atualização da inteligência artística brasileira. 114 História da Arte no Brasil ATIVIDADES 1. O que é arte de vanguarda? Cite alguns movimentos de vanguarda vistos neste capítulo. 2. Explique o que foi o chamado movimento antropofágico no contexto do modernismo brasileiro. 3. No dia 30 de outubro de 2016, o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, e a estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, amanheceram pichados com o mesmo padrão de tinta colorida (azul, amarela e vermelha). Em muitas reportagens que circularam na imprensa na época, a intervenção foi considerada apenas um ato de vandalismo que gerou ônus para o Estado e não foi discutida em profundidade. Na verdade, o ato pode ser lido também no contexto de um movimento global que questiona as homenagens públicas a figuras históricas que promoveram a escravidão e o massacre de índios e negros, como é o caso, em São Paulo, dos bandeirantes. Outras matérias explicaram esse ponto de vista. Em uma delas, publicada no jornal El País de 4 de setembro de 2017, o índio guarani e professor Jurandir Martim conta como, antes das pichações, já havia se impressionado ao ver a estátua de Borba Gato: “Essa é a parte mais difícil do ensino de história: explicar para crianças por que homens que foram responsáveis por massacres e escravidão de indígenas ainda são homenageados em todas as partes”. Qual a sua opinião a respeito dessa intervenção sobre o Monumento às Bandeiras? REFERÊNCIAS ALMEIDA, P. M. de. O Grupo do Santa Helena. In: ALMEIDA, P. M. de. De Anita ao museu. São Paulo: Perspectiva, 1976. (Coleção Debates, n. 133). AMARAL, A. Artes plásticas na Semana de 22. 6. ed. 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Do mesmo modo, os estilos de grupo dão progressivamente lugar a um conjunto heterogêneo de poéticas individuais. Os anos 1950 testemunharam a passagem do nacionalismo de Vargas ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, que in- vestiu na indústria e criou Brasília. Acompanhando o processo de modernização das grandes cidades, surgiram museus de arte nas principais capitais do país. Soma-se a isso o advento das Bienais. Em âmbito internacional, o centro artístico deslocou-se de Paris para Nova York, já que a Europa saiu arruinada da Segunda Guerra. Enquanto nos anos 1950 a abstração é a linguagem dominan- te, nos anos 1960 e 1970, durante a ditadura militar, verifica-se um retorno à figuração que passa pela Arte Pop e, respondendo à censura, os artistas realizam obras em que o resultado final não é tão importante quanto a ideia e o processo. Finalmente, nos anos 1980, verifica-se o retorno à pesquisa de materiais, no contexto de um novo interesse pelo aspecto artesanal do ofício. Arte contemporânea 117 5.1 Museus, galerias e colecionismo privado Vídeo Após a Segunda Guerra Mundial, em consequência do desenvolvi- mento econômico e urbano, surge uma infraestrutura de mercado no Brasil no campo das artes visuais. Em 1947, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) abre suas portas no prédio, ainda inacabado, do jornal Diários Associados. Somente em 1968 se mudaria para a sede atual na Avenida Paulista (Figura 1). Ele nasceu da coleção internacional reunida pelo magnata das comunicações, Francisco de Assis Chateaubriand, incluindo obras de artistas antigos e modernos, como Ticiano, Rembrandt, Velásquez, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Renoir, Matisse, Picasso, entre outros. Figura 1 Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand C ar l H á/ W ik im ed ia C om m on s Figura 2 Museu de Arte Moderna de São Paulo Be ta co m m an dB ot / W ik im ed ia C om m on s Figura 3 Museu de Arte Moderna do Rio de JaneiroJc va sc ~c om m on sw ik i/ W ik im ed ia Co m m on s 118 História da Arte no Brasil Os Museus de Arte Moderna (MAM) de São Paulo (Figura 2) e do Rio de Janeiro (Figura 3) foram fundados em 1948, com o objetivo de reunir um acervo apenas de arte moderna. Em São Paulo, o MAM foi financia- do pelo industrial Ciccillo Matarazzo e inaugurado no mesmo edifício do MASP com a exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo. O MAM do Rio, por sua vez, criado pelo industrial Raymundo de Castro Maya, abriu com a exposição Pintura europeia contemporânea, em sua sede provisória no Banco Boavista. Ambos foram transferidos a suas sedes atuais, respectivamente, no Ibirapuera e no Parque do Flamengo, no fim da década de 1960. O modelo institucional dos MAMs foi, a princí- pio, o do Moma, de Nova York. Em 1946, inclusive, Nelson Rockefeller, então presidente do Moma e secretário de estado norte-americano, doou 13 obras para incentivar a criação dos MAMs. No fim dos anos 1940 e início dos anos 1950, ocorre a abertura, no Rio de Janeiro, das galerias Tenreiro, Barcinsky, Oca, Gea, Piccola Gale- ria e Petite Galerie e, em São Paulo, a Domus, Ambiente e uma filial da Tenreiro. Ocupavam-se não apenas do comércio de quadros modernos, funcionando também como antiquário e loja de móveis. Assim, as obras eram comercializadas mais como um complemento à decoração. Na vi- rada para os anos 1960, contudo, as galerias se especializam, quando aparecem, em São Paulo, a São Luís, a Astreia, Atrium, a Novas Tendên- cias, a Mirante das Artes e a Selearte e, no Rio, a nova Petite Galerie, a Bonino e a Relevo. Antes do aparecimento dessas galerias as obras eram compradas diretamente com os artistas e não por intermédio dos marchands. O colecionismo privado entre a alta burguesia ganha, assim, um novo estímulo. Ela passa a consumir arte moderna e, ao fazê-lo, associa a própria imagem a valores intelectuais e inovadores. Ao mesmo tempo, a crítica de arte se desenvolve e se profissionaliza, separando-se do mundo da literatura, de onde praticamente todos os críticos até então vinham. Há uma atividade intensa nos jornais e revistas, muitos dos críticos mantendo neles colunas regulares. Em 1949, no Rio de Janeiro, Sérgio Milliet, Mario Pedrosa, Mario Barata e Antonio Bento fundaram a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), realizando seu primei- ro congresso, em 1951, no MASP, mesmo ano da 1ª Bienal. Mario Pedrosa (1900-1981) foi um dos críticos de arte latino-a- mericanos mais importantes do século XX. Engajou-se no debate político, sendo exilado durante a ditadura de Vargas e a militar. Participou da organização de diferentes edições da Bienal e promoveu os grupos Ruptura, Frente e o Neoconcreto. Propôs, em 1978, após o incêndio que destruiu a maior parte do acervo do MAM-RJ, o projeto do Museu das Origens para substituí-lo, no qual a arte moderna seria exposta em diálogo com a arte indígena, africana e popular – uma iniciativa de descolonização da arte brasileira que, todavia, não se efetivou. Saiba mais Arte contemporânea 119 5.1.1 Bienal Internacional de São Paulo Por iniciativa de Cicillo Matarazzo, a 1ª Bienal de São Paulo ocorreu entre outubro e dezembro de 1951, vinculada ao MAM-SP. Contou com a participação de 729 artistas de 25 países diferentes, totalizando 1.854 obras expostas. Figura 4 Capa do Catálogo da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo M an ue lvb ot el ho /W ik im ed ia C om m on s Aobra de Victor Brecheret pode ser visualizada no link a seguir. Disponível em: https://www.artsy.net/artwork/victor-brecheret-o-indio-e-a-suacuapara . Acesso em: 16 nov. 2020. Seu modelo foi a Bienal de Veneza, cuja primeira edição ocorrera em 1895. O 1º prêmio de escultura nacional foi dado a Victor Brecheret, pela obra O índio e a suaçuapara que, apesar de abstrata, induz, pelo título, à busca da figura. Já o prêmio internacional foi dado ao suíço Max Bill, por Unidade Tripartida, uma obra que evoca um conceito matemá- tico, construída a partir da articulação entre duas fitas de Moebius 1 . O site Bienal de São Paulo disponibiliza informações, documentos e imagens a respeito de cada uma de suas edições. Nele, consta uma foto da obra Unidade Tripartida, de Max Bill. Disponível em: http://www. bienal.org.br/exposicoes/1bienal/ fotos/3815. Acesso em: 9 nov. 2020. Site Consiste em uma fita cujas ex- tremidades são coladas uma na outra girando uma das pontas. Cria-se, assim, uma superfície contínua que aparenta ter dois lados, quando, na verdade, tem apenas um. Leva o nome do matemático alemão August Möbius, que a estudou na metade do século XIX. 1 5.2 Abstração Vídeo Arte abstrata é aquela que não apresenta formas reconhecíveis e emerge na cena artística, sobretudo, depois da invenção da fotografia, que tomou parte do mercado dos pintores, os quais foram confronta- dos, então, com a necessidade de reinventar sua prática. 120 História da Arte no Brasil Enquanto no Brasil pesquisas abstratas começam a ser desenvolvi- das de modo sistemático a partir dos anos 1950, na Europa e na Rússia elas existem desde os anos 1910 – lideradas por artistas como Wassily Kandinsky e por movimentos como o Construtivismo e o Neoplasticis- mo. Mesmo com a emergência dessas pesquisas no Brasil, continuou a ser produzida paralelamente a arte figurativa de cunho social, em especial nos Clubes da Gravura de Porto Alegre e Bagé, no Rio Grande Sul, depois estendidos a outros estados. Kandinsky Wassily Kandinsky pintou sua pri- meira obra abstrata em 1910. Não se ateve a esquemas geométricos rígidos, pois estava interessado na relação entre a abstração e estados emocionais. No fim da vida, foi atraí- do por pesquisas em biologia celular; nesse período, seus quadros asseme- lham-se a imagens de laboratório vis- tas no microscópio. Figura 5 Fuga, de Wassily Kandinsky (1914) Óleo sobre tela, 129,5 x 129,5 cm. Beyeler Foundation, Basiléia, Suíça. A1 AA 1A /W ik im ed ia C om m on s Construtivismo O construtivismo nasceu na Rússia, com a Revolução Socialis- ta de 1917, pela atuação de artistas como Alexsander Rodchenko, Natalia Goncharova e Vladimir Tatlin. Produ- ziam pensando nessa nova sociedade, mais igualitária. Seus quadros e es- culturas apresentavam formas geo- métricas simplificadas, que refletiam o mundo industrial ao seu redor. Na linha do construtivismo, o russo Ka- simir Malevich destacou-se por uma simplificação formal ainda mais radi- cal, chegando, em 1918, ao quadrado branco sobre fundo branco. Figura 6 Composição suprematista: branco sobre branco, de Kasimir Malevich, 1918 Óleo sobre tela, 79,4 x 79,4 cm. Museu de Arte Moderna de Nova York. St ol bo vs ky /W ik im ed ia C om m on s Gravura é um conjunto de técni- cas de reprodução de imagem. De acordo com a natureza da matriz, as técnicas podem ser classificadas em xilogravura (sobre madeira); calcogravura (sobre metal); litogravura (sobre pedra) e serigrafia (sobre tela de seda). Por não existir um único original, são trabalhos artísticos mais acessíveis e democráticos. Além dos Clubes da Gravura gaúchos, outros centros de produção e ensino surgiram no Brasil, na segunda metade do século. XX, especialmente a partir dos ateliês do MAM-RJ e do MASP, este inaugurado por Poty Lazarotto. Saiba mais Arte contemporânea 121 Neoplasticismo Finalmente, os holandeses Piet Mondrian e Theo Van Doesburg lança- ram, em 1918, a revista De Stijl (Neo- plasticismo). Mondrian, outro radical, acreditava que todas as formas do mundo poderiam ser reduzidas a li- nhas horizontais e verticais. Do mes- mo modo, limitou sua paleta apenas às cores primárias - azul, amarelo, ver- melho - mais o preto e branco. Figura 7 Composição com vermelho, amarelo, azul e preto, de Piet Mondrian, 1921 Óleo sobre tela, 59.5 x 59.5 cm. Museu Municipal de Haia, Holanda. Ha nn ol an s/ W ik im ed ia C om m on s Podemos distinguir três vertentes principais da arte abstrata no Brasil nos anos 1950 e início dos anos 1960: o concretismo, o neocon- cretismo e a corrente informal. 5.2.1 Concretismo O grupo Ruptura realizou uma primeira exposição em 1952, no MAM-SP. Waldemar Cordeiro (1925-1973), a figura central, expôs ao lado de Lothar Charoux (1912-1987), Geraldo de Barros (1923-1998), Anatol Wladyslaw (1913-2004), Luis Sacilotto (1924-2003), entre outros. Na ocasião, distribuíram uma folha com um pequeno manifesto, no qual rejeitavam qualquer tipo de trabalho artístico que reproduzisse a realidade, fosse ele acadêmico ou moderno. Eram contra a expressão de sentimentos ou emoções na arte e contra a ideia de gênio artís- tico. Consideravam a obra um mero produto, e o artista um tipo de operário. Estavam preocupados com os efeitos que as formas, linhas e cores, relacionadas de um determinado modo no espaço, produziam na percepção do espectador, independentemente de qualquer assunto ou tema. O Manifesto grupo ruptura, produzido por Waldemar Cordeiro em 1952, pode ser lido na íntegra no link a seguir. Disponível em: https:// artsandculture.google.com/ asset/manifesto-grupo-ruptura/ wwHniamcAKZdzg. Acesso em: 25 nov. 2020. Leitura https://artsandculture.google.com/asset/manifesto-grupo-ruptura/wwHniamcAKZdzg https://artsandculture.google.com/asset/manifesto-grupo-ruptura/wwHniamcAKZdzg https://artsandculture.google.com/asset/manifesto-grupo-ruptura/wwHniamcAKZdzg https://artsandculture.google.com/asset/manifesto-grupo-ruptura/wwHniamcAKZdzg 122 História da Arte no Brasil Os artistas concretos dedicaram-se ao estudo das teorias da Gestalt (“forma”, “padrão”, “configuração”, em alemão), desenvolvidas no cam- po da psicologia, que versam sobre os fenômenos perceptivos como efeitos de relações dinâmicas entre as partes e o todo e entre o todo e contextos mais amplos. Não vemos nada isoladamente, nem de modo fixo, mas sempre dentro de determinados contextos que mudam a todo momento. Alguns princípios básicos dos sistemas gestálticos são: • reificação – quando a percepção completa partes que faltam em uma forma; • multiestabilidade – ambiguidade de certas formas fazendo com que possam ser interpretadas, ao mesmo tempo, de modos diferentes; • constância – quando objetos são reconhecidos como invariáveis em tamanho e massa, apesar de distorções geradas por diferen- tes pontos de vista. Figura 8 Ilustração dos princípios da reificação, multiestabilidade e constância Na ilustração do conceito de reificação completamos o triângulo em nossa mente; na multiestabilidade é possível afirmar que o cubo está apontado para cima e para baixo, assim como que a imagem mostra dois rostos e uma taça; e na constância sabemos que o objeto em si não mudou de tamanho ou de forma apesar das distorções operadas pelos diferentes pontos de vista. Waldemar Cordeiro foi um pioneiro, no Brasil e no mundo ocidental, no campo da arte feita no computador. Realizou experiências com arte tecnológica no fim da carreira, a partir do final da década de 1960. Em 1971, organizou a exposição Arteônica: o uso criativo de meios eletrôni- M in tz l/ W ik im ed ia C om m on s Para conhecer mais sobre a trajetória e obra de Waldemar Cordeiro, acesse seu site oficial. Disponível em: https://www. waldemarcordeiro.com/. Acesso em: 6 nov. 2020 Site Arte contemporânea 123 cos nas artes, na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Nela, expôs obras suascomo: A mulher que não é BB (as iniciais da atriz francesa Brigite Bardot), realizada a partir da foto do rosto de uma mulher vietnamita tirada durante a guerra com os Estados Unidos. Você pode ampliar a imagem da obra A mulher que não é BB para ver melhor como foi feita no link: Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/a-mulher-que-n%C3%A3o-%C3%A9-bb- waldemar-cordeiro/1AGGG7oU7B_rNg. Acesso em: 9 nov. 2020. Nessa e em outras imagens semelhantes, Cordeiro trabalhou com equipamentos muito rudimentares - computadores de output alfanumérico e plotters (impressoras de desenho vetorial usadas em arquitetura). Com a colaboração do físico e programador Giorgio Moscati, Cordeiro reduzia imagens fotográficas, muitas circulando na mídia, a unidades mínimas que eram, ao invés do pixel, letras, números e sinais gráficos. A partir da imagem selecionada, Cordeiro definia uma escala de valores tonais e a transformava em uma sequência alfanumérica. Por exemplo, onde havia uma área totalmente preta em uma foto, viria impressa a sequência “/ZXMHO”; descendo apenas um tom na escala, seria impressa a mesma sequência, mas sem a última letra e assim sucessivamente até chegar ao branco total, que equivaleria ao branco do papel. Assim, agrupadas em diferentes quantidades no espaço da folha, essas sequências indicavam as diferentes tonalidades do preto e do branco da foto, reconstruindo a imagem numericamente, seguindo, portanto, o princípio da imagem digital. 5.2.2 Neoconcretismo O Neoconcretismo nasceu a partir de uma dissidência dos artistas concretos que produziam no Rio de Janeiro, ligados ao grupo Frente, os quais se posicionaram contra o excesso de rigidez e intelectualismo de seus colegas paulistas. Entre eles, estavam Ivan Serpa (1923-1973), Lygia Clark (1920-1988), Lígia Pape (1929-2004), Hélio Oiticica (1937-1980), Franz Weissmann (1911-2005), Amilcar de Castro (1920-2002) e Willys de Castro (1926-1988). No manifesto do grupo publicado no Jornal do Brasil, em 1959, o poeta Ferreira Gullar afirma que “o neoconcreto nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o pro- blema da expressão” (AMARAL,1977). Entendiam a obra de arte não No catálogo da exposição Waldemar Cordeiro: Fan- tasia Exata, realizada em 2013, no Itaú Cultural, em São Paulo, foram publica- dos, além de textos críticos sobre sua obra, outros de autoria do próprio artista. Disponível em: http:// d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/ wp-content/uploads/2015/05/ publicacao_waldemarcordeiro.pdf. Acesso em: 25 nov. 2020. Leitura No vídeo Waldemar Cordeiro: Fantasia Exata, Giorgio Moscati, físico e programador com quem Cordeiro dividiu a autoria de muitas obras, fala sobre a parceria. Disponível em: https://youtu. be/SICpg0-qllA. Acesso em 6 nov. 2020. Vídeo http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/05/publicacao_waldemarcordeiro.pdf http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/05/publicacao_waldemarcordeiro.pdf http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/05/publicacao_waldemarcordeiro.pdf http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/05/publicacao_waldemarcordeiro.pdf 124 História da Arte no Brasil como uma máquina ou um objeto, mas, antes, como um “organismo vivo”. Assim, muitas das pesquisas individuais de artistas ligados ao neoconcretismo desenvolveram-se no sentido de retirar a obra de arte de sua posição tradicional dentro do espaço do museu e de envolver o espectador de forma ativa em sua concepção e estrutura. Mineira residente no Rio de Janeiro, com formação no Brasil e na França, Lygia Clark realizou, em sua fase concreta, pinturas que ques- tionavam os limites da imagem bidimensional. Na série Quebra da Moldura, dos anos 1950, ela integra a moldura à própria composição. Nos subsequentes Contra-relevos, Casulos e Trepantes, as formas geo- métricas planas vão ganhando cada vez mais o espaço tridimensional. Na série Bichos, por exemplo, esculturas feitas com placas de alumínio ligadas umas às outras por um sistema de dobradiças, o espectador é convidado a manipular a obra, alterando suas formas. Sua pesquisa penetra posteriormente o campo da psicanálise e da terapêutica, como em Objetos relacionais, dos anos 1970, que Clark colocava sobre o cor- po das pessoas, proporcionando-lhes experiências sensoriais integrais, que iam além do mero estímulo visual. Nessa fase, suas obras tocam as linguagens da performance e da instalação. Em uma exposição individual de Lygia Clark no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 2014, muitas dessas obras foram exibidas. O Moma disponibilizou em seu site áudios em português a respeito delas. Disponível em: https://www.moma.org/audio/playlist/181?locale=pt . Acesso em: 9 nov. 2020. Hélio Oiticica possui uma trajetória semelhante à de Clark. Ela disse que os dois eram como uma luva: ela seria a parte de dentro, que toca a mão; ele, a parte de fora, que toca o mundo. Ela envolvida com o estu- do do psiquismo humano, voltava seu trabalho ao interior; ele envolvi- do com a comunidade carioca, voltava seu trabalho ao exterior. Oiticica produziu inicialmente, nos anos 1950, quadros geométricos com for- mas dinâmicas, como os Metaesquemas. As cores ganharam o espaço tridimensional primeiro nos Bólides, caixas coloridas com gavetas que o espectador poderia abrir. Dentro, havia diferentes materiais, como pigmentos ou terra coletada da favela da Mangueira. Depois, com os Penetráveis, expandiu a geometria aos domínios da instalação. O proje- to dos Parangolés tem início em 1964, quando começou a frequentar a escola de samba da Mangueira. Eram pedaços de tecido colorido ajus- tados de modo livre sobre o corpo. Para ativar a obra, contudo, esse corpo deveria dançar e, assim, movimentar a cor no espaço. A estreia Performance são ações realizadas em tempo real por artistas ou agentes por ele designados, seja no espaço público ou privado de museus e galerias, e na presença do espectador. Elas podem ser registradas em fotografia ou vídeo. Nesta reportagem, duas artistas contemporâneas de Recife falam sobre seu trabalho com a performance. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=NmHT9um8p0w&fea- ture=youtu.be&ab_channel=- TVPE . Acesso em: 6 nov.2020 Vídeo No fim dos anos 1960, o termo instalação foi cunhado para descrever obras tridimensionais concebidas para o espaço em que serão vistas. Os elementos que as compõem não são necessariamente feitos pelo próprio artista (podem ser produtos industriais, por exemplo). Também chamadas de ambientes, mobilizam o corpo do espectador, que precisa se deslocar no espaço para se relacionar com elas, muitas vezes de forma interativa. Curiosidade https://www.moma.org/audio/playlist/181?locale=pt https://www.youtube.com/watch?v=NmHT9um8p0w&feature=youtu.be&ab_channel=TVPE https://www.youtube.com/watch?v=NmHT9um8p0w&feature=youtu.be&ab_channel=TVPE https://www.youtube.com/watch?v=NmHT9um8p0w&feature=youtu.be&ab_channel=TVPE https://www.youtube.com/watch?v=NmHT9um8p0w&feature=youtu.be&ab_channel=TVPE Arte contemporânea 125 dos Parangolés se deu na mostra Opinião 65, quando passistas da Man- gueira, vestindo a obra, entraram sambando nas salas do MAM-RJ. A Tropicália (ou Tropicalismo) foi um movimento mais amplo den- tro da cultura brasileira, abrangendo o cinema e a música, durante os anos 1960. O nome tem origem na instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, montada em 1967, por ocasião da exposição Nova Objetivi- dade Brasileira, no MAM-RJ. Consistia em um ambiente semelhante a um jardim, com plantas e pássaros vivos, descrito pelo artista como “labirinto”. O caminho percorrido pelo espectador era pontuado por estruturas lembrando a arquitetura das favelas, dando para um espa- ço escuro com um monitor de tevê ligado. No mesmo ano de 1967, o compositor Caetano Veloso escreveu a canção Tropicália, que abre um dos discos mais emblemáticos do movimento. O escultore programador visual mineiro Amilcar de Castro foi in- fluenciado pela obra de Max Bill e criou sua primeira escultura cons- trutiva em 1953, exposta na 2ª Bienal de São Paulo. Depois de uma passagem pelo grupo neoconcreto, recebeu, em 1967, uma bolsa da Fundação Guggenheim, para realizar um projeto artístico em Nova York. É especialmente conhecido pelo procedimento escultórico siste- mático do corte e da dobra em grandes chapas de ferro. Da superfície plana cortada e dobrada nascem suas esculturas (Figura 9). A linha que dará origem ao corte é estudada pelo artista em seus desenhos. Além disso, seu trabalho como diagramador no Jornal do Brasil, nos anos 1950, constitui um ponto de inflexão importante na história do design gráfico brasileiro. Figura 9 Escultura de Amilcar de Castro M ag nu s M an sk e/ W ik im ed ia C om m on s Escute a canção Tropicália, de Caetano Veloso. Disponível em: https://youtu.be/1Z1qNsm- -NUk. Acesso em: 25 nov. 2020. Música https://youtu.be/1Z1qNsm-NUk https://youtu.be/1Z1qNsm-NUk 126 História da Arte no Brasil 5.2.3 Abstração Informal Na base do trabalho dos artistas ligados à corrente informal encon- tra-se a negação da racionalidade e das tendências construtivas geo- métricas, em favor de uma abordagem mais espontânea e emotiva do processo de criação. A abstração informal teve uma penetração parti- cularmente forte entre artistas nipo-brasileiros, como Manabu Mabe (1924-1997), Flavio Shiró (1928-) e Tomie Ohtake (1913-2015). Seus trabalhos apresentam paralelos com o dos expressionistas abstratos norte-americanos. Tomie Ohtake começou a se dedicar intensamente à atividade artís- tica perto dos 40 anos de idade, quando seus filhos, os arquitetos Ruy e Ricardo, já eram maiores. Apreciava as pinturas do norte-americano Mark Rothko e executou grandes telas com formas simples, de contor- nos irregulares e ângulos chanfrados, com áreas de textura em cores sobrepostas e vibrantes. Em um conjunto dos anos 1960, as chamadas pinturas cegas, feitas em alguns momentos com os olhos vendados, a artista realiza composições abstratas com maior gestualidade. Entre suas inúmeras obras públicas, uma das mais conhecidas são os painéis de mosaico da estação de metrô da Consolação, na cidade de São Pau- lo. No processo de construção da escultura monumental do porto de Santos (Figura 10), inaugurada em 2008, em homenagem ao centenário da imigração japonesa no Brasil, Tomie precisou acrescentar nervuras à forma central ondulada para solucionar problemas de engenharia. Ela fez, então, com que ondas a atravessassem perpendicularmente, repetindo as mesmas formas iniciais, porém em uma outra direção. Figura 10 Escultura de Tomie Ohtake no porto de Santos, 2008, 15 (h) x 20 (l) x 2 (c) m Ge ra rd us /W ik im ed ia C om m on s O Expressionismo abstrato foi um movimento do pós-guerra que reuniu artistas cuja obra incorporava a linguagem da abstração de um modo mais pessoal. Jackson Pollock estendia telas de grandes dimensões no chão do ateliê e caminhava ao seu redor pingando tinta de um modo ao mesmo tempo automático e controlado, uma técnica chamada dripping. Mark Rothko, por sua vez, realizou pinturas em grande formato com poucas cores, obtidas a partir de sobreposições de camadas de tinta em áreas retangulares, de contorno indefinido, chamadas de pinturas de campo de cor. Saiba mais No documetário Tomie, dirigido por Tizuka Yamasaki e publicado pelo canal Instituto Tomie Ohtake, pode ser visto o processo de construção da escultura no porto de Santos. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=x_cA_ c6UcQg&feature=youtu.be&ab_ channel=InstitutoTomieOhtake. Acesso em: 9 nov. 2020. Documentário Arte contemporânea 127 5.3 Brasília Vídeo O projeto da mudança da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília teve início em 1957, um ano depois da posse do presidente Juscelino Kubitschek, conhecido como o realizador. A construção da cidade era um dos itens de seu Plano de Metas, cujo objetivo era ace- lerar o desenvolvimento do Brasil, conforme seu slogan “cinquenta anos em cinco”. A transferência da capital, apesar de prevista na Constituição, não foi um ponto pacífico. O principal argumento a favor era o de incluir regiões até então isoladas do país no processo de desenvolvimento econômico e social, expandindo-o do litoral para o interior. O princi- pal argumento contra era o da diluição do debate político por meio do isolamento do centro do poder, pois a população carioca era predo- minantemente urbana e alfabetizada, ao contrário das comunidades do Centro-Oeste. Uma matéria do jornal Tribuna da Imprensa de 1° de novembro de 1956, por exemplo, questionava: “Por força de secular trabalho de unificação, todos os caminhos vão para o Rio. E agora?” Do ponto de visa do urbanismo e da arquitetura, contudo, o projeto foi um êxito, tanto pela sua escala, quanto pela sua qualidade estética. A decisão do arquiteto Lucio Costa de parti- cipar do concurso para o projeto urbanístico foi tomada de últi- ma hora, de modo que apresentou ao júri internacional apenas algumas folhas A4 com uma série de croquis. Embora a apre- sentação fosse despretensiosa, a ideia era forte: o desenho do plano inicial, ou piloto, nasceu do gesto simples de alguém que marca um local em um mapa com uma cruz. Para adaptar a cruz às condições do relevo, Costa curvou um dos eixos para baixo, enquadrando ambos em um triângulo equilátero . Nas duas asas, construídas ao longo do eixo rodoviário horizontal, Costa desenhou as áreas residenciais em um sistema de superquadras (Figura 11), que consiste em quadras de um tamanho acima da média, medindo cerca de 280 metros, ladeadas de árvores, com edifícios bai- xos, e intercaladas por áreas onde se concentram o comércio, restau- rantes, escolas, bancos e outros equipamentos comunitários. Era, de fato, uma proposta nova de habitação e o processo de adaptação dos moradores foi lento. Saiba mais Os croquis foram digita- lizados e encontram-se disponíveis no site da Associação Casa de Lucio Costa. Disponível em: http://www. jobim.org/lucio/bitstream/ handle/2010.3/1376/III%20B%20 02-01094%20L.pdf?sequence=3 . Acesso: 9 nov. 2020. http://www.jobim.org/lucio/bitstream/handle/2010.3/1376/III%20B%2002-01094%20L.pdf?sequence=3 http://www.jobim.org/lucio/bitstream/handle/2010.3/1376/III%20B%2002-01094%20L.pdf?sequence=3 http://www.jobim.org/lucio/bitstream/handle/2010.3/1376/III%20B%2002-01094%20L.pdf?sequence=3 http://www.jobim.org/lucio/bitstream/handle/2010.3/1376/III%20B%2002-01094%20L.pdf?sequence=3 128 História da Arte no Brasil Figura 11 Um dos primeiros projetos de Brasília, de autoria de Lucio Costa Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Na extremidade do eixo monumental (a ponta do “avião”), Costa concentrou os edifícios que serviriam de sede ao poder público, todos projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012): o Supremo Tri- bunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, próximos uns aos outros na Praça dos Três Poderes, bem como a Catedral Metro- politana e os prédios dos diferentes ministérios. As colunas do Palácio do Planalto (Figura 12), onde fica o gabinete do presidente da república, já foram consideradas as mais belas de- pois das gregas. Suas curvas finas estão presentes também na estru- tura que envolve a planta redonda da Catedral (Figura 13). Para sua construção, assim como de todos os demais projetos de Niemeyer em Brasília, foi fundamental a parceria com o engenheiro Joaquim Cardozo (1897-1978), que fez o cálculo das estruturas. As bases das colunas e da catedral, por exemplo, que apenas tocam o solo com uma extremidade em ponta, resultaram de fórmulas de Cardozo. Sem ele, nenhum dos desenhos teria saído do papel, pois, apesar da tecnologia do concreto armado ter ampliado o vocabulário formal da arquitetura, as soluções de Niemeyer, aparentemente simples, eram particularmente comple- xas em termos construtivose, ainda, nem sempre tão adequadas, por conta dos espaços abertos amplos e das paredes curvas, às funções de determinados edifícios. Arte contemporânea 129 Figura 12 Palácio do Planalto, projetado por Oscar Niemeyer, em foto de 2012 Figura 13 Catedral de Brasília, em foto de 2016 Ga st ão g ue de s/ W ik im ed ia C om m on s Ro dr ig om ar fa n /W ik im ed ia C om m on s Brasília foi inaugurada em 1960. A princípio, contaria com a apre- sentação da Sinfonia da Alvorada, composta por Vinicius de Moraes e Tom Jobim a pedido de Niemeyer, mas o evento não se concretizou. O poema sinfônico, gravado em disco em 1961, divide-se em cinco mo- vimentos que contam a história da empreitada: O planalto deserto, O homem, A chegada dos candangos (os trabalhadores vindos de outras regiões que ergueram Brasília), O trabalho e a construção e, finalmente, Coral. O álbum Brasília, Sinfonia Da Alvorada, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, pode ser ouvido no site do poeta. Disponível em: http://www. viniciusdemoraes.com.br/pt-br/ musica/discos/brasilia-sinfonia-da- alvorada. Acesso em: 9 nov. 2020 Música 5.4 Arte durante a ditadura militar Vídeo O golpe militar de 1964 instaurou no país um regime político auto- ritário. No ano seguinte, a mostra Opinião 65, no MAM-RJ, apresentou artistas brasileiros e estrangeiros produzindo obras sintonizadas com uma tendência global de retorno à figura, após a onda abstrata, que passava pelo filtro da arte pop e de seu interesse pela cultura visual da sociedade do consumo. Essa produção foi reunida sob o termo Nova Fi- guração. Entre os brasileiros, participaram, entre outros, Carlos Vergara (1941-), Antonio Dias (1944-2018), Wesley Duke Lee (1931-2010) e Rubens Gerchman (1942-2008). Em 1967 muitos dos artistas que ex- puseram nessa mostra reapareceram, ao lado de outros, como Carlos Zilio (1944-) e Nelson Leirner (1932-2020), na coletiva Nova Objetividade Brasileira, também no MAM-RJ. As manifestações da arte pop no Brasil responderam, portanto, à suspensão dos direitos democráticos e à consequente sucessão de 130 História da Arte no Brasil episódios de violência arbitrária contra pessoas que se opunham ao regime. Se na arte pop norte-americana a cultura de massa era exal- tada, pois seus artistas olhavam com certo otimismo e prazer para o mundo que os rodeava, em suas manifestações no Brasil os signos da sociedade do consumo eram objeto de apropriação só na medida em que poderiam ser usados na elaboração de uma crítica velada ao auto- ritarismo político. As pinturas (que podem incorporar objetos) de Antonio Dias, reali- zadas nesse período, são concebidas dentro da linguagem gráfica das histórias em quadrinhos. Nota sobre a morte imprevista é dividida em quadros, dentro dos quais são distribuídas figuras desenhadas com li- nhas de contorno rígidas e pintadas com cores puras, apenas preto, branco, vermelho e amarelo. Elas participam de cenas não narrativas, que se relacionam entre si sem compor uma continuidade dramática. Há referências à morte, nas caveiras; a desastres ocasionados pelo ho- mem, na fumaça em forma de cogumelo; à violência animal, na pata de um felino com unhas afiadas. Há, ainda, armas de fogo, máscaras de gás, líquidos vazando e fragmentos de corpos. O tipo de codificação visual que a obra propõe afirma, no título e no conjunto descrito de signos, a violência. A quebra de qualquer lógica associativa racional, contudo, protege o trabalho de interpretações literais. A obra Nota sobre a morte imprevista pode ser visualizada em: Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/nota-sobre-a-morte-imprevista-antonio-dias/ oAE4O2kZ6Z6b8g . Acesso em: 9 nov. 2020. Em resposta à retirada de uma obra da exposição Proposta 65, na FAAP, em São Paulo, pela censura, Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros e Nelson Leirner, em um gesto solidário de protesto, retiraram tam- bém as suas. Uniram-se, então, para formar uma cooperativa, a qual se associaram quatro alunos de Lee: José Resende (1945-), Carlos Fajardo (1941-), Luiz Paulo Baravelli (1942-) e Frederico Nasser (1945-). Juntos, abriram também uma galeria para divulgar suas ideias, posicionando-se contra práticas de cerceamento da liberdade de criação. Com a Rex Gallery and Sons e o jornal-boletim Rex Time, consolidava-se o Grupo Rex, que durou cerca de um ano – de 1966 a 1967. Seu fim foi celebra- do com a Exposição-não-exposição, na qual Nelson Leirner convocou o público a arrancar e levar embora as obras da parede da galeria. Os artistas da arte pop norte-americana, como Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Claes Oldenburg, produziram, a partir dos anos 1960, obras figura- tivas sem retornar à tradição acadêmica, voltados, antes, à cultura popular. A base dessa nova figuração residia na prática de apropriação de imagens circulando nos meios de comu- nicação em massa, bem como de objetos produzidos em série. Warhol repete em uma mesma composição imagens do rosto de Marylin Monroe; Lichtenstein amplia quadros de histórias em quadrinhos e Oldenburg reproduz em grande escala ou com materiais inusitados objetos do cotidiano. Saiba mais https://artsandculture.google.com/asset/nota-sobre-a-morte-imprevista-antonio-dias/oAE4O2kZ6Z6b8g https://artsandculture.google.com/asset/nota-sobre-a-morte-imprevista-antonio-dias/oAE4O2kZ6Z6b8g Arte contemporânea 131 A produção de Leirner é bem-humorada, sem deixar de ser crítica, ou seja, provoca o riso inteligente. Em A-doração (altar para Roberto Car- los) , de 1966, o espectador, depois de passar por uma catraca, penetra em um nicho protegido por uma cortina, dentro do qual o espera uma imagem do rosto do cantor Roberto Carlos, cujos contornos piscam em neon. Ao redor, há uma série de outras imagens de santos católicos, também iluminadas. A obra A-doração (altar para Roberto Carlos) pode ser visualizada em: Disponível em: https://masp.org.br/acervo/obra/adoracao-altar-para-roberto-carlos. Acesso em: 9 nov. 2020. Nesta obra de Leirner, o tema da fama e da celebridade, tão caro à arte pop, é explicitamente comparado ao fenômeno da idolatria e da fé religiosa, que pode, por sua vez, ser considerada uma forma de escapis- mo ou alienação, sobretudo tendo em vista o contexto da época. Essa ironia está presente também na obra Porco empalhado em engradado de madeira e presunto, igualmente do ano de 1966, enviado pelo artista ao IV Salão de Brasília . A obra foi aceita pelo júri, composto por críticos eminentes, como Mario Pedrosa, Walter Zanini e Frederico Morais. O próprio artista, no entanto, questionou a decisão. Em um outro projeto envolvendo o Porco, não realizado, Leirner planejou condecorá-lo, em uma performance, pelos serviços prestados ao país. A obra Porco empalhado em engradado de madeira e presunto pode ser visualizada em: Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra5980/o-porco. Acesso em: 9 nov. 2020. O Ato Institucional n. 5, decretado em dezembro de 1968, institucio- nalizou a prática da censura e acirrou ainda mais o aparelho repressivo estatal. Os artistas que se opunham ao governo, considerados subver- sivos, foram perseguidos, presos, torturados, exilados ou mesmo mor- tos. Para escapar da censura, as obras ficaram cada vez mais cifradas e herméticas. Foi necessário também buscar locais alternativos para exibição e circulação fora das instituições tradicionais, como museus e galerias, bastante visados pelos aparelhos de controle. Representante da arte conceitual – porque estava voltada mais aos processos do que ao seu produto final (a obra de arte) – o jovem Cildo Meireles (1948-) ganhou o primeiro prêmio no Salão da Bússola, pro- movido pelo MAM-RJ, em 1969, evento que projetou a chamada gera- ção AI-5. Frederico Morais referiu-se à produção dessa geração como No vídeo Visita guiada com o curador Paulo Mi- yada à exposição “Ai-5 50 Anos - Ainda Não Terminou De Acabar”, publicado no canal Instituto Tomie Ohtake,é possível percor- rer a exposição de 2018, que abordou a produção artística do período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985. Para o curador, uma das contri- buições da arte em tem- pos antidemocráticos “é a capacidade de ampliar o campo do que pode ser dito e sentido frente aos limites e interdições da linguagem”. Algumas obras censuradas e des- truídas foram reconstruí- das especialmente para a mostra. Disponível em: https://youtu.be/ YY1nkn8gUv8. Acesso em: 9 nov. 2020. Vídeo https://masp.org.br/acervo/obra/adoracao-altar-para-roberto-carlos 132 História da Arte no Brasil “arte-guerrilha”, pois defendia uma atuação crítica radical como meio de resistência, com base em ações pontuais e efêmeras, que seriam lembradas apenas pelo registro fotográfico ou fílmico. Cildo Meireles propôs, para a exposição Information, de 1970, no Moma-NY, o trabalho Inserções em circuitos ideológicos, intervenções fei- tas em objetos cotidianos de circulação em massa. O Projeto Coca-Cola, por exemplo, consistia em gravar sobre as garrafas de vidro retorná- veis do refrigerante opiniões críticas e depois devolvê-las à circulação. O artista inscreve em letras brancas, abaixo da marca Coca-Cola, frases como “marca registrada de fantasia” ou “yankees go home” (americanos, voltem para casa). O projeto Coca-Cola pode ser visualizado em: Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/inserções-em-circuitos-ideológicos-1-–- projeto-coca-cola-cildo-meireles/jwGieNKwb6Ydjw. Acesso em: 25 nov. 2020. Já no Projeto Cédulas, ele carimba sobre notas de um cruzeiro a frase “quem matou Herzog?”, referindo-se ao jornalista, professor e militante de esquerda, Wladimir Herzog, que foi preso, torturado e morto pelos militares em 1975. O governo divulgou a morte como suicídio, contu- do, no laudo constavam fotografias que desmentiam a alegação, como aquela em que Herzog aparece enforcado com os joelhos tocando o chão, sem a suspensão do corpo. Foi somente em 2012 que a pergunta de Cildo Meireles foi devidamente respondida, quando ocorreu a reti- ficação do registro de óbito de Herzog, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, passando a constar que morreu em decorrência de lesões e maus-tratos sofridos dentro das dependências do Exército, em São Paulo (CNV, 2014). O Projeto Cédulas pode ser visualizado em Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/inser%C3%A7%C3%B5es-em-circuitos- ideol%C3%B3gicos-projeto-c%C3%A9dulas-cildo-meireles/8gE9m4t21caEDw. Acesso em: 9 nov. 2020. A instalação Desvio para o vermelho, concebida a partir de 1967 e montada apenas em 1984, suscita diferentes interpretações relaciona- das à prática do colecionismo, da apropriação e da violência durante a ditadura. Consiste em três ambientes geminados: no primeiro, chama- do Impregnação, são reunidos em uma sala de estar objetos, móveis e obras de arte da cor vermelha; no segundo, Entorno, uma pequena garrafa caída no chão entorna uma quantidade de líquido vermelho https://artsandculture.google.com/asset/inserções-em-circuitos-ideológicos-1-–-projeto-coca-cola-cildo-meireles/jwGieNKwb6Ydjw https://artsandculture.google.com/asset/inserções-em-circuitos-ideológicos-1-–-projeto-coca-cola-cildo-meireles/jwGieNKwb6Ydjw Arte contemporânea 133 muito maior do que poderia conter; no terceiro, Desvio, uma pia branca fixa à parede em um ângulo de 45° em relação ao chão e com a torneira aberta jorrando continuamente um líquido vermelho (cuja linha obe- dece, de modo inusitado, à mesma inclinação de 45°) é o único objeto iluminado dentro de uma sala escura. Você pode ver os três ambientes no final desta apresentação de obras de Cildo Meireles pertencentes ao acervo do Museu de Inhotim, em Minas Gerais. Disponível em: https://artsandculture.google.com/exhibit/cildo-meireles-no-inhotim/vgIieasGE-00LQ. Acesso em: 9 nov. 2020. Com obras como a de Antonio Dias, Nelson Leirner e Cildo Meireles, vimos como artistas responderam de forma crítica ao contexto político que os cercava, fazendo uso, além das linguagens mais tradicionais, de outras como a instalação, a performance e também a intervenção urbana, ligada especialmente à arte conceitual. 5.5 Geração 80 Vídeo A produção artística realizada durante o período da redemocrati- zação não era assim tão enigmática ou mesmo tão crítica à realidade social, voltando-se mais à pesquisa de materiais. A exposição Como vai você, geração 80?, que ocorreu em 1984, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, reuniu obras de artistas, sobretu- do cariocas e paulistas, representativos dessa nova geração, a maioria formada pela própria EAV ou pela FAAP e pela Escola Brasil: (grafada assim, com dois pontos, para indicar seu caráter aberto), em São Pau- lo. Esta última foi uma iniciativa de alguns integrantes do Grupo Rex e funcionou entre 1970 e 1974. A proposta de Resende, Fajardo, Baravelli e Nasser não foi estruturada em torno de um currículo com disciplinas fixas, que os alunos frequentavam isoladamente para aprender histó- ria, teorias, métodos e técnicas. Baseou-se, antes, em experiências e práticas de ateliê. As únicas quatro disciplinas levavam o nome de cada professor e consistiam na abertura de seus ateliês para que os alunos tivessem contato com o cotidiano de um artista profissional, bem como desenvolvessem uma pesquisa própria sob sua orientação. Leda Catunda (1961-), Sergio Romagnolo (1957-) e José Leonilson (1957-1993) estavam entre os 123 artistas que expuseram em Como vai você, geração 80? Enquanto Catunda se apropria de materiais encon- trados no comércio, como flanelas, cobertores, toalhas, plásticos e te- cidos, pintando sobre eles em um diálogo com imagens que já contêm, 134 História da Arte no Brasil Romagnolo reproduz em três dimensões objetos industriais, como carros, pneus, botijões de gás e latas de lixo, usando plástico aquecido moldado com as mãos. Ver, por exemplo, a acrílica sobre cobertor Onça Pintada I, 1984, de Leda Catunda. Disponível em: http://www.ledacatunda.com.br/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_Artista=90&cod_Serie=2. Acesso em: 9 nov. 2020. Uma das esculturas de plástico modelado de Sérgio Romagnolo pode ser visualizada em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra7125/botijao-de-gas. Acesso em: 9 nov. 2020. Leonilson, apesar da vida breve (faleceu aos 36 anos de idade, ví- tima de AIDS), deixou uma obra extensa, catalogada pela família por meio do Projeto Leonilson. Existem em suas pinturas, desenhos e bor- dados – centrados na expressão da subjetividade – certas recorrências que permitem delimitar um repertório restrito de elementos, os quais têm origem em suas experiências cotidianas, como por exemplo: a es- cada, o livro, a espada, o átomo, o coração, a cruz, o copo, o relógio, o rosto vazio etc. Tais elementos interagem entre si com palavras no espaço do plano de um modo cada vez mais econômico, em termos de forma, e delicado, em termos de conteúdo. Esse aspecto poético, auto- biográfico e intimista de sua obra, especialmente a do último período, contrasta com a produção de tom mais explicitamente político ou mes- mo com aquela de sua própria geração, fundamentada na investigação dos procedimentos e materiais no processo de criação. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) recomendam que o professor de arte articule em seu traba- lho leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Você pode trabalhar de várias maneiras os conteúdos deste capítulo com seus alunos na escola. Abaixo, seguem algumas sugestões. Procure ampliá-las a partir de sua própria experiência. Diante de uma das imagens de obras de artistas vistos neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: isso é um desenho, uma pinturaou uma escul- tura? Qual o material usado? O artista representou algo? Como as formas estão distribuídas no espaço? Há áreas de maior destaque? Qual a relação entre o título e a obra? • Quanto à construção: como foi feita? Por que você acha isso? Quais difi- culdades o artista pode ter enfrentado durante o processo? • Quanto ao indivíduo e a sociedade que o produziu: quem a produziu? Para quem? Quando? Onde? Por que é considerada uma obra de arte? HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA (Continua) O documentário Leonilson, sob o peso dos meus amores, dirigido por Carlos Nader, em 2012, conta a história de Leo- nilson, usando imagens de arquivo, depoimentos do artista e de pessoas próximas. Disponível em: https://youtu. be/8TKHN2LcChA . Acesso em: 9 nov. 2020. Documentário http://www.ledacatunda.com.br/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_Artista=90&cod_Serie Arte contemporânea 135 Trabalhe a partir das respostas dos alunos. É interessante levá-los a museus ou outras instituições que possuem coleções de arte contemporânea. Exercícios para estimular a observação: - Caminhando: a partir da obra Caminhando (1964), de Lygia Clark, cortar com tesoura uma tira grossa de papel sulfite, depois de colar as pontas uma na outra, como em uma fita de Moebius. Entrar com a ponta da tesoura em um ponto qualquer da fita e cortá-la longitudinalmente até o limite máximo, sem jamais separar as partes. Observar como a passagem do bidimensional ao tridimensional se processa nessa atividade. Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo: - Escultura com corte e dobra: criar o projeto de uma escultura para um es- paço público a partir de um quadrado ou círculo de papel triplex de cerca de 20 cm, utilizando apenas um corte e uma dobra. Para pensar na escala, desenhar um corpo humano simples em pequenas dimensões e comparar com o tamanho da escultura em papel. - Instalação: dividir a turma em grupos. A partir dos móveis da sala de aula e dos materiais dos alunos, realizar uma proposta de instalação com base em um conceito expresso apenas por uma palavra, por exemplo, medo, chuva, vermelho etc. Defender a obra, explicando a relação entre sua configuração e o conceito proposto. CONSIDERAÇÕES FINAIS O experimentalismo presente hoje na arte feita no Brasil tem origem na Antropofagia e no Neoconcretismo. O modelo de linguagem proposto pela Antropofagia defendia a assimilação de influências externas a par- tir de questões postas pelo contexto local. Uma espécie de solução de compromisso, em tempos pós-coloniais, entre nacionalismo e globaliza- ção. Com o Neoconcretismo, em especial pela atuação de Oiticica e Clark, aspectos fundamentais da prática contemporânea da arte emergem no país de modo, muitas vezes, pioneiro, a saber: a superação da superfície plana do quadro, a fusão das diferentes linguagens artísticas, a aproxima- ção entre arte e vida como extensão da integração entre a espacialidade da obra e o espaço real e, finalmente, a participação ativa do espectador. Depois de um período de repressão política e de uma série de inter- dições impostas aos artistas, a partir dos anos 1980 a arte parece ter se constituído no espaço, como afirmou Pedrosa, do “exercício experimental da liberdade”. Tanto a institucionalização e mercantilização de práticas, como a instalação e a performance, quanto novas ondas de censura va- 136 História da Arte no Brasil lorizam, por oposição, a necessidade de preservar esse espaço – o da arte – como o lugar por excelência da atividade crítica e da construção de modelos alternativos. ATIVIDADES 1. O que é arte contemporânea? 2. Descreva as semelhanças e as diferenças entre a produção de Lygia Clark e Hélio Oiticica. 3. Pesquise um artista contemporâneo brasileiro que não foi citado neste capítulo (ou que foi citado, mas cuja produção não foi comentada). Depois de descrever brevemente sua trajetória, escolha uma de suas obras e compare com uma das obras vistas neste capítulo. A comparação pode ser feita por oposição ou por semelhança. REFERÊNCIAS AMARAL, A. A (Org.). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php. Acesso em: 9 nov. 2020. BRETT, G. Um salto radical. In: ADES, D. et al. Arte na América Latina: a era moderna, 1820- 1980. São Paulo: Cosac & Naify, 1997, p. 253-283. BUENO, M. L. O mercado de galerias e o comércio de arte moderna: São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1950-1960. Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 2, p. 377-402, maio/ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v20n2/v20n2a06.pdf. Acesso em: 9 nov. 2020. CANTON, K. Retrato da arte moderna: uma história no Brasil e no mundo ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CHIARELLI, T. Arte internacional brasileira. 2. ed. São Paulo: Lemos, 2002. HERKENHOFF, P. Tomie Ohtake: na trama espiritual da arte brasileira. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2003. (Catálogo de exposição) ITAÚ CULTURAL. Enciclopédia, 2020. Página inicial. Disponível em: https://enciclopedia. itaucultural.org.br/. Acesso em: 9 nov. 2020. LUZ, A. A. da. Arte no Brasil no séc. XX. In: RIBEIRO, M. A.; PEREIRA, S. G.; LUZ, A. A. da. História da Arte no Brasil: textos de síntese. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2013. PEDROSA, M. Política das artes: textos escolhidos I. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1995. PEDROSA, M. Forma e percepção estética: textos escolhidos II. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1996. PEDROSA, M. Acadêmicos e Modernos: textos escolhidos III. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1998. PEDROSA, M. Modernidade cá e lá: textos escolhidos IV. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 2000. Gabarito 137 GABARITO 1 Origens 1. Essa é uma resposta pessoal. Nossa sugestão seria a seguinte resposta: Porque nos permite conhecer melhor o nosso passado, o que nos dá condições para sermos críticos em relação ao presente e, assim, mudar o futuro. 2. Semelhanças: variedade de tipos e presença de temas marcados pela relação entre seres humanos e animais. Diferenças: cada uma apresenta padrões gráficos próprios. Além disso, a tapajônica possui mais apliques ou relevos. 3. Mário de Andrade afirma que as heranças indígena e africana existem no brasileiro apenas na aparência, na superfície. Ele localiza essa herança em sua fisionomia, em sua música, em sua gastronomia, em algumas palavras de sua língua; contudo, em seu íntimo, o brasileiro se permitiu tornar-se aquilo que, justamente pelo que lhe é imposto de fora, como o clima e o tipo de alimentação, nunca poderia de fato ser, mas apenas imitar. Ele aponta para um conflito entre uma cultura originária, própria do local, e outra imposta, vinda de fora. No fim, a que foi imposta penetrou mais fundo do que a originária, que o brasileiro, em sua opinião, passou a carregar apenas superficialmente. A segunda parte da pergunta é uma reflexão pessoal. 2 Barroco e Rococó 1. Porque, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, o Brasil foi colônia de Portugal; ou seja, fazia parte do reino de Portugal, de modo que havia uma circulação e troca constante, via marítima, entre a metrópole e a colônia. Gravuras e livros impressos, como tratados de arquitetura e de pintura, chegavam da Europa, junto com materiais e profissionais especializados para executar as obras necessárias à exploração econômica do novo território. Assim, os edifícios que foram construídos na América portuguesa, sejam eles religiosos ou civis, apresentavam formas parecidas com as que já existiam em edifícios de mesmo tipo na metrópole. Os portugueses trouxeram consigo a própria cultura visual, o que justifica o uso de estilos com origem europeia comouma referência para analisá-la. 138 História da Arte no Brasil 2. Taipa de pilão: as paredes são erguidas por meio da compactação, com o uso de um pilão de terra úmida dentro de uma estrutura de madeira. Taipa de pau-a-pique: as paredes são erguidas por meio da compactação de terra úmida, com o uso das mãos, sobre uma estrutura de madeira. Alvenaria de pedra, tijolo ou adobe: as paredes são erguidas empilhando pedras, tijolos ou adobe (blocos de argila crus), com ou sem argamassa de ligação. 3. Resposta pessoal. Sugestão: As igrejas de São Miguel, em São Paulo e de São Miguel das Missões, na cidade de mesmo nome, no Rio Grande do Sul, representam respectivamente a fase inicial e final da arquitetura jesuítica no Brasil. Apresentam algumas diferenças e semelhanças, em termos arquitetônicos, conforme discriminaremos a seguir. Fachada: A fachada de ambas possui alpendre ou varanda (ainda que, no último caso, seja uma adição tardia sobre o projeto original do arquiteto Vignola). A de São Paulo apresenta dois níveis, totalmente planos, fenestração em V, com um óculo no topo, logo abaixo do encontro entre as duas águas do telhado. A do Rio Grande do Sul é mais simétrica e elaborada, possui pilastras que seccionam a fachada verticalmente e cornijas, que a seccionam horizontalmente, além de volutas laterais que unem o primeiro ao segundo nível, o qual é encimado pelo frontão. Planta: Enquanto a igreja de São Paulo apresenta apenas uma nave central, a do Rio Grande do Sul possui três naves, uma central e duas laterais. Apesar dessa diferença, ambas as plantas são retilíneas. Técnicas de construção: A igreja de São Paulo foi construída com a técnica da taipa de pilão, já a do Rio Grande do Sul, com alvenaria de pedra talhada em bloco e reboco de tabatinga (cujo acabamento é semelhante ao da cal). 3 Da Missão Artística Francesa à Academia 1. Na gravura de Rugendas, vemos três grandes grupos de homens e mulheres negras: um em primeiro plano, reunido ao redor de uma tigela sobre uma fogueira; outro numa diagonal próxima à parede, à esquerda; outro na diagonal próxima à parede oposta. Há três homens brancos na cena, todos estão totalmente vestidos. Um deles, em pé, ao centro da sala, parece olhar os desenhos que um dos jovens negros Gabarito 139 faz sobre a parede. Depois de desenhar alguns homens de perfil abaixo de uma janela com grades, um deles com chapéu de soldado, agora ele desenha uma caravela, a mesma que está no mar, ao fundo. Outro homem branco está sentado diante de um livro sobre uma mesa, ao lado do qual estão algumas pilhas de moedas. Todos estão dentro de uma sala, cuja abertura em três arcos na frente sustenta, ao centro, uma imagem da virgem. A cena ocorre sob os olhos da santa. Na paisagem ao fundo, no alto, vemos também a torre de uma igreja, com a cruz sobre o cume. Na gravura de Debret, há menos pessoas e estão dentro de uma sala fechada; a porta apenas entreaberta ao fundo. Os únicos objetos que vemos na sala são um vaso redondo para líquidos e um chicote pendurado ao seu lado, no canto inferior direito. Quatro grupos bem distintos ocupam o espaço. Todos os homens negros estão muito magros e com a cabeça raspada. O homem branco, totalmente vestido e com um chapéu de abas largas aponta para uma criança diante de um outro homem branco, sentado de braços cruzados sobre uma cadeira. As semelhanças entre as obras são a proporção de homens negros em relação aos brancos e o modo como estão distribuídos no espaço. Já as diferenças são o estado de saúde dos homens negros em cada imagem, as características da arquitetura de cada sala, o fundo aberto em uma paisagem e fechado em outra, a presença de símbolos religiosos em uma e não em outra, que, em compensação, possui um vaso e um chicote. 2. Desfavoráveis. Parece-lhes que é necessário primeiro organizar o Estado, fortalecer suas bases e prover a população dos bens mais básicos à vida antes de oferecer-lhes objetos artísticos que não possuem utilidade imediata. Spix e Martius consideram que o Brasil precisa, naquele momento, primeiro, de artesãos e artífices, que introduzam o gosto e a sensibilidade artística entre a população por meio dos objetos cotidianos e só depois de artistas. 3. Neoclassicismo e romantismo. O Neoclassicismo representa um novo retorno à Antiguidade Clássica e se deu, na Europa, na segunda metade do século XVIII e início do XIX, muito ligado às ideias iluministas. Na pintura, a composição é sóbria e equilibrada, as formas são idealizadas, apresentam um modelado linear, no qual a aplicação das cores limita-se às zonas demarcadas pelas linhas, e um acabamento de superfície liso, pois não vemos as marcas do pincel. Já os temas são recolhidos da história greco-romana 140 História da Arte no Brasil e da mitologia clássica, especialmente aqueles que encerram lições morais e exemplos de virtude. O Romantismo, um movimento que ocorre na Europa a partir do fim do século XVIII e durante a primeira metade do XIX, foi uma espécie de reação ao Iluminismo. Na pintura, os temas são paisagens desoladas, de rochas e altas montanhas, marinhas tempestuosas, naufrágios, lendas folclóricas, culturas exóticas (especialmente do Oriente), massacres e mortes violentas. A composição apresenta mais movimento, explorando orientações diagonais e elípticas ou espirais. A pincelada é mais rápida e solta, não respeitando linhas de contornos e os contrastes entre luz e sombra, mais intensos e dramáticos. 4 Arte Moderna 1. É aquela feita na primeira metade do século XX, na Europa, cujo propósito é romper com a tradição e o ensino acadêmico da arte, no qual a imitação da natureza é um elemento central. Alguns exemplos de movimentos de vanguarda são o Expressionismo, o Cubismo, o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo. 2. Ele surgiu a partir da publicação, em 1928, do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. Oswald criou um modelo de autonomia de linguagem para a arte feita no Brasil: deglutir a cultura estrangeira, fazendo-a, então, passar pelo filtro da cultura local. Ou seja, nem copiar o que vem de fora, nem ignorar a sua existência. 3. Resposta pessoal. Sugestão: por um lado, a interferência direta sobre a superfície do grupo escultórico de Brecheret pode, de fato, ser considerada um ato de vandalismo, pois há um propósito destrutivo. Ele não foi, contudo, gratuito, mas politicamente motivado. Seus autores não concordam com as homenagens prestadas pelo Estado aos bandeirantes nesses monumentos, os quais foram, no passado, responsáveis pela escravização e morte de milhares de índios e negros. Os autores da intervenção tentaram chamar a atenção da sociedade para essa questão. A solução, contudo, não é destruir a obra de Brecheret, pois tal questão não existia no tempo em que ele fez a escultura: ela pertence aos tempos atuais. Fazer a obra desaparecer não irá, tampouco, fazer a história desaparecer. O importante é as pessoas conhecerem o que a escultura representa e refletirem criticamente sobre ela. Gabarito 141 5 Arte contemporânea 1. Literalmente, é a arte feita no presente. Por exemplo, para as pessoas do século XIX, as pinturas de Victor Meirelles eram arte contemporânea. Na história da arte escrita até o momento, contudo, arte contemporânea abrange a produção artística do período do pós-guerra (a partir de 1945) até os dias atuais. 2. Semelhanças: ambos partem de obras planas e buscam, depois, tirar esse plano da parede, vendo-o não tanto como uma superfície, mas, antes, como um objeto. Além disso, ambos trabalharam com um vocabulário formal abstrato-geométrico e transformaram, em suas proposições, o espectador em um participador. Diferenças: Clark, na obra madura, desenvolve pesquisas ligadas à psicanálise e ao campo terapêutico, interessando-se pelo psiquismo humano. Já Oiticica aprofunda os laços com a comunidade local, haja vista suas obras feitas em colaboração com a escola de samba da Mangueira, preservando,ao lado dos estímulos sensoriais e perceptivos, um aspecto político em sua produção. 1. Resposta pessoal. Sugestão: você pode pesquisar, por exemplo, a produção em fotografia de Geraldo de Barros, exibida na mostra Fotoformas, que ficou em cartaz durante o início do ano de 1951, no MASP. Entre os concretos, neoconcretos e informais, não nos aprofundamos na obra de artistas importantes, como Luis Sacilotto, Abraham Palatnik, Ivan Serpa, Ligia Pape, Franz Weissman, Willis de Castro, Manabu Mabe e Flavio Shiró. O mesmo vale para artistas que atuaram no período da ditadura militar, como Wesley Duke Lee, Carlos Vergara, Rubens Gerchmann e Carlos Zílio. A performance A obra é o corpo, de Antonio Manuel, um colega de geração de Cildo Meireles não citado no texto, também pode ser um objeto de estudo interessante. Você pode, ainda, escolher como objeto a obra de um dos professores da Escola Brasil: ou de outros integrantes da geração 80, como Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Alex Vallauri ou Ana Maria Tavares (a lista completa dos artistas que expuseram em Como vai você, geração 80? pode ser consultada neste site: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/ evento83465/como-vai-voce-geracao-80). O mais interessante neste exercício, contudo, seria que você pesquisasse um artista próximo do seu próprio contexto, talvez mesmo de sua cidade. Código Logístico 59774 ISBN 978-65-5821-001-6 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 0 1 6 Página em branco Página em branco