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Código Logístico 59774 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-1001-6 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 0 1 6 História da Arte no Brasil Luciana Lourenço Paes IESDE BRASIL 2020 © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Wilfedor/Tetraktys/ Rodrigomarfan/ Wikimedia Commons Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P144h Paes, Luciana Lourenço História da arte no Brasil / Luciana Lourenço Paes. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 142 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-001-6 1. Artes - História - Brasil. I. Título. 20-67583 CDD: 700.981 CDU: 7(09)(81) Luciana Lourenço Paes Doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com parte da pesquisa realizada em Paris, França, junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Mestra em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada em Educação Artística, habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Gravura, pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Origens 9 1.1 Arqueologia, Antropologia e História da Arte 10 1.2 Arte pré-histórica no Brasil 11 1.3 Sítios arqueológicos paleoíndios e arcaicos no Brasil 12 1.4 Arte indígena 19 2 Barroco e Rococó 27 2.1 Arquitetura e artes visuais 28 2.2 Arquitetura jesuítica no Brasil 30 2.3 Engenhos 36 2.4 Barroco e Rococó no Nordeste 38 2.5 Barroco e Rococó no Sudeste 43 3 Da Missão Artística Francesa à Academia 53 3.1 A Missão Francesa de 1816 54 3.2 Os pintores viajantes 59 3.3 A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) 61 3.4 Romantismo e identidade nacional 63 3.5 Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) 73 3.6 Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (LAO) 78 3.7 Mulheres na Academia 80 3.8 A fotografia no Brasil 81 4 Arte moderna 88 4.1 A Semana de Arte Moderna de 1922 89 4.2 Pau-Brasil 95 4.3 Antropofagia 96 4.4 À margem do modernismo oficial 98 4.5 Cândido Portinari 100 4.6 Os Grupos Artísticos 103 4.7 Arquitetura moderna no Brasil 107 4.8 Arte Popular 110 5 Arte contemporânea 116 5.1 Museus, galerias e colecionismo privado 117 5.2 Abstração 119 5.3 Brasília 127 5.4 Arte durante a ditadura militar 129 5.5 Geração 80 133 6 Gabarito 137 A disciplina de História da Arte, centrada na arte europeia, chegou ao Brasil na metade do século XIX pela atividade dos discípulos dos artistas franceses, os quais fundaram a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1972, com a criação do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) por Walter Zanini, seguida da publicação, em 1983, dos dois volumes por ele organizados do livro História Geral da Arte no Brasil, um material considerável – incluindo arte indígena, africana e popular – foi reunido para estudo. A questão sobre o que seria uma arte brasileira nasceu no seio da Academia, na metade do século XIX, e foi objeto de debate ainda nos anos 1990. Chegou-se então à consideração de que “arte brasileira”, no sentido de um programa específico que definiria a produção feita no Brasil, não existe. O que existe é um país com uma cultura e com problemas próprios, que apresenta elementos de coesão – como a língua –, mas também elementos de disjunção e mesmo polaridades – como o alto índice de desigualdade social ou a tensão entre a capacidade de miscigenação e o passado escravista. Essa realidade se reflete, de algum modo, na produção dos artistas que vivem dentro dela. Este livro compreende primeiramente a arte pré-histórica e indígena, abrangendo a produção cerâmica e lítica e a pintura rupestre, que expressavam a cosmogonia de diferentes agrupamentos humanos dentro do território mais tarde referido como brasileiro. Depois da chegada de Pedro Álvares Cabral, quando é instaurado o sistema colonial, a arte é marcada pela penetração e influência de estilos europeus como o barroco e o rococó, objeto de estudo do Capítulo 2. Nele destaca- se especialmente a integração entre arquitetura, pintura e escultura. O Capítulo 3 trata da arte do século XIX e acompanha a produção dos artistas ligados à Academia. As obras de arte participavam, então, de uma busca mais ampla pela ideia de nação levantada depois da Independência. APRESENTAÇÃO Vídeo Na primeira metade do século XX, período que corresponde ao Capítulo 4, os temas voltaram-se com mais intensidade à questão nacional. Foi sobretudo nesse momento, devido à atuação dos modernistas, que a indagação sobre o que seria uma arte brasileira ganhou corpo, ainda que traduzida em formas europeias. Na segunda metade do século XX, de cuja produção se ocupa o Capítulo 5, essa pergunta não perdeu, a princípio, a sua relevância, mas as respostas acompanharam transformações importantes no âmbito das técnicas artísticas. Finalmente, outra questão que se coloca em um trabalho sobre História da Arte no Brasil são as narrativas concentradas, especialmente a partir do século XIX, no eixo Rio-São Paulo. Isso ocorre, em grande parte, porque eram cidades com maior poder econômico, onde existia um mercado de arte ou onde este estava mais aquecido. É possível, certamente, estabelecer outras narrativas, com base em outros pontos de vista, deslocando esse centro. No entanto, mesmo no livro citado de Zanini, essa História da Arte dos demais Estados da Federação funciona mais como um apêndice da hegemônica. Normalmente, nos currículos dos cursos de graduação, os alunos aprendem a História da Arte no Brasil e também aquela do seu Estado. Sendo muito presente em obras de caráter generalista, não é possível furtar-se a esse conhecimento que, no momento atual, é considerado elementar no campo. Assim, este material apresenta esses conteúdos de um modo crítico e reflexivo, esperando despertar em você o interesse pela arte e pela cultura de sua comunidade local. Bons estudos! Origens 9 1 Origens Neste capítulo, estudaremos a arte produzida no Brasil antes de o país receber esse nome. Como nação, o Brasil é uma invenção do século XIX, precisamente do ano de 1822, quando foi declarada sua independência. O nome Brasil foi dado, em 1505, pelos europeus. Eles também nomearam índios as pessoas que aqui encontraram. Esses termos, entretanto, não eram as palavras que essa população nativa usava para falar do local onde morava ou de si mesma. De modo semelhante, usar a palavra arte para se referir aos objetos que produziram significa projetar um conceito da cultura europeia sobre a cultura indígena, reproduzindo, de certo modo, a lógica da coloniza- ção. A arqueologia e a antropologia, duas áreas das ciências humanas que se associam à história da arte para estudar essa produção, iden- tificaram tal perspectivacomo etnocêntrica. Os pesquisadores, contu- do, perguntam-se: é possível estudar uma cultura que não é a nossa, sem projetar nossos próprios (pré)conceitos e valores sobre ela? Até que ponto conseguimos, de fato, distanciar-nos? Quando os portugueses chegaram ao Brasil, no século XVI, esti- ma-se que havia aqui entre 2 e 4 milhões de habitantes nativos, falan- do em torno de mil línguas diferentes. Havia, portanto, uma grande diversidade. Por conta de doenças trazidas pelos europeus e dos processos de escravização e confrontos armados, essa população foi reduzida, chegando hoje a pouco mais de 850 mil habitantes, com cerca de 160 línguas e dialetos ainda vivos. Houve um apagamento. No entanto, a violência e o trauma da ocupação do Brasil pelos europeus, que impuseram sua língua, seus hábitos e sua religião aos nativos, não foram capazes de anular a presença indígena em nossa cultura e sociedade, que segue resistindo. Nas próximas páginas, abor- daremos a história da ocupação do território, hoje chamado de Brasil, antes da chegada dos europeus, por meio da análise dos objetos e das imagens que diferentes grupos humanos produziram e que sobrevi- veram a eles, funcionando, então, como testemunhos de sua cultura. 10 História da Arte no Brasil 1.1 Arqueologia, Antropologia e História da Arte Vídeo Como os povos pré-históricos não deixaram nenhum documento escrito, as culturas que se desenvolveram nesse período são estudadas principalmente por meio de seus vestígios materiais. O levantamento, a coleta, a análise e a interpretação desses vestígios são realizados pelos arqueólogos em escavações, seguidas de análises em laboratório e da publicação dos resultados. Já o estudo das culturas pré-históricas e in- dígenas, de um modo mais amplo, fica a cargo do antropólogo. Ao rea- lizar o trabalho de campo, no qual coleta dados do grupo cultural que estuda, o antropólogo escolhe um método, chamado de etnografia. Já a análise desses dados é o domínio da etnologia. O historiador da arte, por sua vez, ocupa-se da análise histórica, ou seja, inserida no tempo, de objetos ou manifestações visuais dessas culturas e, para tanto, inclui em suas fontes pesquisas arqueológicas e etnológicas. Os métodos de pesquisa no campo da arte pré-histórica mudaram ao longo do tempo. No fim do século XIX, as pinturas feitas nas paredes das cavernas eram interpretadas como expressões puramente estéti- cas; elas possuíam um valor apenas pelas suas qualidades formais. No século XX, surge a abordagem evolucionista associada ao comparati- vismo etnográfico. Nela, o comportamento de sociedades chamadas então de primitivas – e vivendo no presente – era tomado como parâ- metro para explicar a conduta de sociedades de um passado bem mais distante, uma vez que se encontrariam no mesmo “estágio evolutivo”. Tal abordagem é usada, ainda hoje, no caso de tradições que se man- tiveram no local de produção dos objetos ou imagens por sucessivas gerações e identificam-se com essa produção no presente. Ainda as- sim, os arqueólogos são cautelosos em suas interpretações, pois essas culturas mudaram ao longo do tempo. Nos anos 1960, desenvolve-se a abordagem estruturalista, segun- do a qual era preciso buscar informações sobre a arte pré-histórica olhando para as evidências desse período que chegaram até nós, e não com base na estética ou nas sociedades indígenas atuais. Os estruturalistas procuraram entender quais temas eram escolhidos e quais eram preteridos pelos homens e mulheres pré-históricos e em que medida o seu tratamento poderia configurar um conjunto coerente e organizado de símbolos. Os objetos que os arqueólogos ou antro- pólogos coletam nas escavações ou pesquisas de campo são conser- vados em instituições museológicas. Abaixo, indicamos alguns mu- seus com importantes coleções etnográficas no Brasil. São eles: • Fundação Museu do Homem Americano (FUNDHAM) – São Raimundo Nonato, Piauí. http://fumdham.org.br/ • Museu Nacional do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro. http://www.museunacional. ufrj.br/ • Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará. https://www.museu-goeldi.br/ Saiba mais Tradição é um termo usado em arqueologia para se referir a um grupo de estilos ou técnicas que persistem no tempo. Seriam indicadores de identidades étnicas. As Tradições podem ser de pintura, gravura, cerâmica e artefatos de pedra ou osso. Importante http://fumdham.org.br/ http://www.museunacional.ufrj.br/ http://www.museunacional.ufrj.br/ https://www.museu-goeldi.br/ Origens 11 Atualmente, diversos métodos coexistem, potencializados pelo desenvolvimento de novas tecnologias de análise dos materiais e pig- mentos, que possibilitaram propor datações mais precisas. As linhas de investigação ligadas à etnicidade, ou seja, às características pelas quais um grupo se define e diferencia-se de outros, têm proposto, por exem- plo, uma cronologia de estilos ou Tradições fundamentados na análise de sobreposições e recorrências formais que indicariam a participação de sucessivos grupos na produção de pinturas pré-históricas. As pes- quisas atuais tendem, ainda, a levar em consideração todo o contexto arqueológico, não somente o objeto isolado, ao buscar significados para ele. 1.2 Arte pré-histórica no Brasil Vídeo Para facilitar a compreensão do passado, os historiadores recorrem à periodização. No continente europeu, a pré-história se refere ao pe- ríodo que antecede a invenção da escrita, que se deu entre 3000 e 2000 a. C. na Mesopotâmia e no Egito. Quando aplicado ao continente ame- ricano, o termo pré-história se torna, contudo, problemático. Os maias, incas e astecas, por exemplo, cujas culturas se desenvolveram durante a pré-história, possuíam um sistema de escrita. Assim, o conceito deve ser relativizado de acordo com a cultura estudada. O principal marco histórico da América é a chegada dos europeus. No Brasil, o termo pré-história equivale a pré-cabralino ou pré-colonial, ambos usados para nos referirmos ao período anterior à chegada de Pedro Álvares Cabral, que marca o início do sistema colonial. Assim, quando Cabral chega ao Brasil, em 1500, os povos ameríndios passam a integrar essa “história” feita no Velho Mundo. As populações nativas, que viviam relativamente isoladas antes desse contato, ocuparam o território que é hoje o Brasil há pelo menos 12 mil anos e o que corresponde à América, há 16 mil anos. Assim, tratando-se da Ameríndia, o longo período anterior à chegada dos europeus é subdividido em Paleoíndio (até 10.000 AP 1 ), Arcaico (10.000 a 3.000 AP) e Formativo (3.000 a 500 AP). 1 Antes do Presente, contado, por convenção, a partir do ano de 1950. A data de início do período Paleoíndio é objeto de controvérsia entre os pesquisa- dores, oscilando entre 50.000 AP e 16.000 AP. 12 História da Arte no Brasil Quadro 1 Pré-história na Ameríndia PALEOÍNDIO Até 10.000 AP Grupos de homo sapiens ocupam o Brasil. Extinção dos mamíferos de grande porte, chamados de megafauna. ARCAICO 10.000 a 3.000 AP Transição para sociedades de caçadores-co- letores do interior, que já cultivavam algumas plantas e poderiam permanecer mais tempo em um mesmo lugar. Ocupação do litoral por grupos pescadores (povos sambaquieiros). FORMATIVO 3.000 a 500 AP Sociedades de agricultores-ceramistas. Fonte: Elaborado pelo autor. Os primeiros habitantes do gênero humano de nosso país foram os da espécie sapiens, que entraram no continente pela América do Norte. Para o movimento de ocupação da América do Sul há uma hipó- tese de que teria ocorrido pela rota das grandes bacias hidrográficas Amazônica, do São Francisco e do Prata. Os locais onde esses grupos humanos viveram são chamados de sítios pré-históricos; os mais antigos no território brasileiro datam entre 15 e 8 mil anos atrás. 1.3 Sítios arqueológicos paleoíndios e arcaicos no Brasil Vídeo As populações de caçadores-coletores que ocuparam, inicialmente, o território não conheciamainda a propriedade privada, pois a delimi- tação de terra implicada na prática da agricultura é um evento muito tardio na história. No reino animal, o gênero homo foi caçador-coletor durante mais de 2 milhões de anos; a espécie sapiens, única remanescente do gênero há 100 mil anos, desenvolveu a agricultura há apenas 10 mil anos. Os ca- çadores-coletores compunham sociedades mais igualitárias, ou menos hierárquicas, e viviam da caça de animais e da coleta de frutos e outros vegetais. Como não se fixavam por muito tempo em um mesmo local, devido à variação das condições ambientais e climáticas, não precisavam antecipar o futuro do mesmo modo que os agricultores, ao manejarem suas plantações; também não acumulavam bens, o que dificultaria seus deslocamentos. Assim, nos sítios arqueológicos do período Paleoíndio e Origens 13 do início do período Arcaico é mais comum encontrarmos objetos líticos (feitos em pedra), como ferramentas e instrumentos de caça (incluindo as pontas de lança), do que cerâmicos, que são mais frequentes no pe- ríodo Formativo, em razão de sua utilidade para o armazenamento e conservação de alimentos ligados às práticas agrícolas. Além disso, os sítios mais antigos contêm exemplos importantes de arte rupestre, ou seja a arte feita sobre um suporte fixo de pedra. No caso das pinturas, são acrescentados pigmentos à sua superfície; no caso das gravuras, são abertos sulcos sobre a pedra com o auxílio de instrumentos pontiagudos. Os pigmentos usados podem ser de origem mineral, vegetal ou animal, e a paleta, reduzida a preto, feito de ossos ou madeira calcinada, branco, utilizando o cal, e tons terrosos, do ver- melho ao amarelo, obtidos pelo uso de argilas. As pinturas poderiam ser realizadas com pastas de tinta, que permitem uma boa cobertura da superfície, ou com crayon (no sentido de materiais mais duros), que gera um acabamento irregular. Diante das pinturas e gravuras pré-históricas, as principais pergun- tas que os arqueólogos fazem são: • Quem fez? • Como fez? • Quando fez? • Por que fez? As duas primeiras são, geralmente, as mais fáceis de responder; já para as últimas, é mais difícil ou mesmo impossível encontrar uma res- posta. Os arqueólogos começam identificando os temas representados e as técnicas usadas; consiste em uma etapa mais descritiva. Para fins de documentação, eles fotografam as pinturas ou gravuras e, depois, inserem essas imagens em softwares de computador, que as recons- troem em duas ou três dimensões, gerando um registro digital bastante fiel ao original. Posteriormente, comparam a pintura ou a gravura com outras imagens rupestres e com outros vestígios arqueológicos, seja do mesmo sítio ou região, seja de locais mais afastados. A comparação é especialmente efetiva com vestígios que já puderam ser datados com mais precisão. O objetivo, além de precisar a datação, é também o de verificar a existência ou não de semelhanças e diferenças entre eles, detectando padrões que possam ajudar na distinção de uma Tradição ou de um estilo. 14 História da Arte no Brasil Os resultados da etapa descritiva e comparativa são combinados a estudos arqueométricos, ou seja, análises laboratoriais usando técni- cas da física e da química, que podem auxiliar na datação da imagem e a determinar melhor a composição e a proveniência dos materiais. É possível, assim – se não chegar a uma hipótese concreta a respeito do significado da pintura ou gravura –, ao menos traçar um perfil do grupo autor. Isso porque a arte rupestre é um modo de comunicação entre indivíduos de uma mesma comunidade; nesse sentido, constitui um in- dício de sua cultura imaterial, ou seja, de suas práticas sociais e rituais, seus conhecimentos sobre a natureza e seus procedimentos técnicos. 1.3.1 Parque Nacional Serra da Capivara (Piauí, Nordeste do Brasil) Localizado no sudeste do Piauí, esse parque ocupa áreas dos municí- pios de São Raimundo Nonato, Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí. Na década de 1970, a arqueóloga Niède Guidon dirigiu uma mis- são interdisciplinar franco-brasileira que descobriu uma série de sítios arqueológicos na região e outros mais foram e continuam sendo des- cobertos. Os pesquisadores da missão criaram a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), em 1986, em São Raimundo Nonato, com o objetivo de documentar, pesquisar e proteger o patrimônio ar- queológico da região. Existem mais de 900 sítios arqueológicos com pinturas e gravu- ras rupestres pré-históricas registrados no Piauí, e o Parque Serra da Capivara encerra uma grande parte deles. As pinturas ali encontradas se destacam pelo naturalismo das figuras; já as gravuras são compos- tas por grafismos geométricos. Pesquisadores concluíram, com base nas sobreposições pictóricas e em análises físico-químicas dos materiais, que as pinturas rupestres do parque foram realizadas por diferentes grupos culturais em diferentes épocas, estendendo-se por um período entre 15.000 e 6.000 anos AP. Características comuns verificadas entre imagens de diferentes sítios, permitiram agrupar essas imagens em uma mesma Tradição dominan- te no parque: a Tradição Nordeste. Ela foi dividida, por sua vez, em dois estilos: o estilo Serra da Capivara, mais antigo, e o estilo Vale da Serra Branca, mais recente, situado há cerca de 9.000 anos AP. O documentário Ateliê de Luzia: Arte Rupestre no Brasil, aborda exemplos de arte rupestre do Piauí, da Bahia e de Minas Gerais. O título refere-se ao ser humano mais antigo já encontrado nas Américas, proveniente de escavações realizadas na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Trata-se de uma mulher, que foi chamada de “Luzia”. Direção: Marcos Jorge. Brasil: Rumos Cinema e Vídeo, 2003. Disponível em: https:// vimeo.com/132775716. Acesso em: 21 out. 2020. Documentário As pesquisas de Niède Guidon no sítio arqueológico Boqueirão da Pedra Furada, levaram-na a propor a hipótese de que o homo sapiens teria entrado no Brasil pelo mar, entre 50.000 e 30.000 AP, enquanto a hipótese mais aceita é de entrada há 12.000 AP. Segundo Guidon, nossa espécie teria construído navios e atravessado o oceano a partir da África, parando de ilha em ilha, até chegar à América. Trata-se, contudo, de uma teoria controversa no meio científico, pois suas evidências não são irrefutáveis. Curiosidade Origens 15 O estilo Serra da Capivara compreende figuras reconhecíveis e mui- to sintéticas, contendo apenas os traços essenciais para sua identifi- cação, executados com linhas e formas curvas. O preenchimento das formas é total, com apenas uma cor. As figuras de animais e humanos (alguns com máscaras que cobrem seu corpo, deixando ver apenas as pernas) aparecem interagindo, em cenas de rituais, de cópula e de caça (Figura 1). Esse aspecto narrativo é uma característica marcante da Tra- dição Nordeste em geral. Encontramos nesse estilo, também, repre- sentações de objetos e de árvores. Figura 1 Toca da entrada do Baixão da Vaca, Parque Nacional Serra da Capivara, PI Di eg o Re go M on te iro /W ik im ed ia C om m on s O outro estilo que compõe a Tradição Nordeste é o da Serra Branca, localizado no vale de mesmo nome dentro do parque. Diferencia-se do anterior pelo aumento do nível de detalhe na caracterização das figu- ras, que são preenchidas com motivos geométricos, e pela maior com- plexidade na organização do espaço. Além disso, predominam formas retangulares e cenas de luta. Atualmente, pesquisadores da Fumdham e da UFPE estão envolvi- dos na identificação de um terceiro estilo dentro da Tradição Nordes- te, o da Serra Talhada, caracterizado pela presença de grafismos de contorno aberto e figuras antropomórficas (com formas humanas) e zoomorfas (com formas animais) que, apesar de certo dinamismo, são representadas isoladamente, não dentro de cenas. A Plataforma Capivara, criada pela Fumdham, é uma base de dados que reúne informações arqueológicas sobre o Nordeste e o Semiáridobrasileiro. Nela, é possível conhecer e explorar os diversos sítios da região. Disponível em: http:// fumdham.no-ip.org:8080/ PlataformaCapivaraBeta/summa/ summa.xhtml. Acesso em: 26 out. 2020. Site http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml http://fumdham.no-ip.org:8080/PlataformaCapivaraBeta/summa/summa.xhtml 16 História da Arte no Brasil 1.3.2 Parque Estadual de Monte Alegre (Pará, Norte do Brasil) A Gruta do Pilão ou Caverna da Pedra Pintada é um dos 23 sítios com arte rupestre registrados no município de Monte Alegre, na região do Baixo Amazonas. Essa concentração permitiu identificar ali um estilo: o Monte Alegre. Escavações conduzidas por Ana Roosevelt, nos anos 1990, propuseram a datação de 11.200 anos AP para a maior parte das pintu- ras na Gruta do Pilão, por meio da análise de pedaços de rocha com pig- mento que se desprenderam das paredes, foram soterrados no solo e depois descobertos em escavações. Ao determinar à qual camada esses pedaços pertenciam, foi possível datá-los. Sua pesquisa permitiu classifi- car esse sítio como um dos mais antigos da Amazônia. A gruta possui pinturas em seu interior situadas em locais escuros, observáveis apenas sob luz artificial, algo pouco comum nos sítios com arte rupestre no Brasil. Ali, o suporte também foi aproveitado para pro- jetar a ilusão de volume das figuras, como no caso de uma concavidade à qual foram acrescentados dois círculos (os olhos), usada para dar forma à representação de uma cabeça. Tanto o sítio da Gruta do Pilão quanto o que veremos a seguir possuem representações zoomórficas em maior quantidade e diversidade de espécies em relação aos demais da região. Nos anos 1980 e 1990, o sítio Serra da Lua, também em Monte Alegre, foi estudado pelos arqueólogos Mario Consens(1989) e Edithe Pereira (2012). Nele encontra-se um suporte rochoso de 320 metros, sobre o qual se distribuem de modo irregular 42 painéis ao ar livre 2 . Os temas representados incluem zoomorfos (peixes e quadrúpedes), im- pressão de mãos e grafismos puros, como círculos bicromos (em ver- melho e amarelo) e volutas. Em muitas pinturas, poderiam ser vistos a uma grande distância. Curiosidade Quanto às Tradições rupestres no Brasil, os pesquisadores trabalham com um quadro de referências estilísticas – as Tradições – ao estudar a arte rupestre mais antiga no Brasil. Contudo, não devemos considerá-las categorias estanques, pois são revistas periodicamente, à medida que as pesquisas avançam. De qualquer modo, sua diversidade traduz a diversidade dos povos que habitaram o Brasil durante a pré-história. • Tradição Amazônica • Tradição São Francisco • Tradição Planalto • Tradição Litorânea • Tradição Geométrica • Tradição Meridional • Tradição Agreste • Tradição Nordeste Painéis são grupos de motivos, muito próximos entre si, que parecem compor uma unidade. Os arqueólogos costumam isolar diferentes painéis em uma mesma parede de rocha ao estudá-los. 2 Origens 17 1.3.3 Sambaquis no Sul e Sudeste A palavra sambaqui deriva do tupi tamba (marisco) e ki (amontoa- mento). Consiste em uma colina artificial de dimensões variadas (pode chegar a 30 metros de altura), formada pelo acúmulo de conchas e areia (Figura 2). Dentro deles foram encontrados esqueletos humanos, restos de alimento e diferentes artefatos líticos e ósseos. Os sambaquis foram construídos por uma ou mais culturas pré-agrícolas, que ocuparam a costa litorânea das regiões Sul e Sudeste do Brasil a partir de 8.000 AP, vivendo sobretudo da pesca. São datados entre 7.000 e 1.000 AP, com maior difusão entre 5.000 e 3.000 AP, período no qual mudanças no ní- vel do mar e o aumento da umidade levaram à expansão das áreas de manguezais. Pela riqueza de peixes, moluscos e crustáceos, os manguezais cria- ram um ambiente favorável ao desenvolvimento dos povos samba- quieiros, cuja maioria dos sítios arqueológicos está associada a essas áreas. Os mais antigos estão localizados no litoral paranaense e sul paulista, o que indicaria um possível núcleo, por meio do qual teria se dado a expansão para o sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e para o sudeste (Rio de Janeiro e Espírito Santo). A maior concentração, con- tudo, encontra-se no estado de Santa Catarina. Figura 2 Sambaqui Figueirinha I em Jaguaruna Jo an ni s7 7 / W ik im ed ia C om m on s 18 História da Arte no Brasil Não é possível afirmar com segurança qual era a função dos sam- baquis. As ossadas neles encontradas indicam que eram locais de en- terramento, e os restos de alimento, bem como os artefatos indicam que eram locais de habitação. Em sambaquis maiores foram detecta- dos materiais de diferentes períodos na base e no topo, com uma va- riação de até mil anos entre um e outro. Portanto, não foram erguidos de uma só vez. Provavelmente, quando diferentes grupos ocupavam o local, novos acréscimos eram feitos. Entre os artefatos, destacam-se os de pedra polida. Machados, moedores, polidores e pequenas esculturas remetem a uma indústria lítica elaborada, eventualmente com artesãos especializados, dispen- sados das tarefas de caça e pesca. As peças mais misteriosas são os zoólitos, encontrados especialmente na região meridional, do Brasil até o Uruguai. Consistem em esculturas zoomórficas sintéticas ou mesmo abstratas (Figuras 3 e 4). Cavidades rasas em certas peças, lembrando superfícies para moagem, levaram alguns arqueólogos a lhes conferir uma função utilitária; porém, essa cavidade é, por vezes, tão estreita e pouco profunda que não seria capaz de conter um pro- duto, indicando uma função mais simbólica. Zoólitos foram encon- trados próximos a alguns esqueletos humanos nos sambaquis, o que nos faz pensar em objetos de devoção fúnebre. Como o número dos corpos enterrados com as esculturas é raro, talvez constituíssem uma marca de status. Os zoólitos demonstram a capacidade de observação da fauna li- torânea de seus autores. O arqueólogo e professor da UFMG, André Prous (2018), que fez um levantamento dos zoólitos nos anos 1970, afirmou que 28,5% das cerca de 180 peças conhecidas até então, per- tencentes a acervos museológicos ou coleções particulares, permitiram uma identificação mínima dos animais (por exemplo, se eram terres- tres, aquáticos ou voláteis) e, em alguns casos, da espécie e do sexo, apesar do sintetismo das formas. Uma grande parte delas, portanto, é abstrata, ao menos para nós (mas poderiam significar algo para o grupo que as produziu). Prous (2018) propôs, então, uma tipologia para os zoólitos com base no grau de realismo de cada peça (indo de 0 a 4). A recorrência de certas formas, especialmente a cruciforme, indicaria, segundo ele, uma orientação ou regra geral para a fatura, de modo que a margem de liberdade de criação era limitada. Em 2015, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, por ocasião do 34º Panorama de Arte Brasileira, sediou uma exposição que aproxi- mou a produção dos povos sambaquieiros à de artistas brasileiros contemporâneos. Eles foram convidados a criar obras que dialogassem com os objetos líticos do passado pré-histórico do Brasil, especialmente os zoólitos. Disponível em: https://mam.org. br/wp-content/uploads/2015/12/ Da-pedra-Da-terra-Daqui-MIOLO- CAPA.pdf. Acesso em: 26 out. 2020. Saiba mais Origens 19 Figura 3 Zoólito em forma de ave exibido no Museu Nacional – Rio de Janeiro Do rn ic ke /W ik im ed ia C om m on s Figura 4 Coleção de zoólitos encontrados em sambaquis, Museu do Homem do Sambaqui - Florianópolis Rp be be l /W ik im ed ia C om m on s Assim, novas pesquisas envolvendo os zoólitos continuam a investi- gar sua possível função e significado. 1.4 Arte indígena Vídeo Pouco antes da chegada do europeu, durante a fase final do período Formativo, as populações que habitavam a região amazônicabrasileira viviam em uma economia agrícola. Objetos cerâmicos das culturas ma- rajoara e tapajó, encontrados no estado do Pará e abordados no início desta seção, são a expressão de uma organização social com- plexa e hierarquizada, sustentada por um universo simbólico coerente. Além disso, como muitas populações indígenas ain- da vivem na Amazônia, os arqueólogos e antropólogos pude- ram buscar referências em seus sistemas de mitos para refletir sobre o sentido desses objetos cerâmicos de um modo que vai além deles mesmos, de suas características formais e estilísti- cas. Nessas pesquisas, tais objetos aparecem como elementos ativos no contexto de práticas ritualísticas capazes de definir identidades étnicas. Entre essas práticas, o xamanismo ocupa um lugar central. No final desta seção, abordaremos, ainda, a arte plumária indígena, uma de suas expressões visuais mais características, que avança até o período colonial, chegando aos nossos dias. Curiosidade Cerâmica são objetos feitos de argila cozida. Assim, um objeto modelado em argila se torna cerâmico apenas depois de ser queimado a altas temperaturas, seja em fogueiras ou em fornos. A pintura é feita antes da quei- ma, e a tinta usada é chamada de engobe, uma argila líquida à qual podem ser acrescentados pigmentos coloridos. A gravação das peças ocorre por meio de incisões ou excisões. Apêndices ou apliques são ornatos adicio- nados à parte externa das peças, criando volumes decorativos. https://pt.wikipedia.org/wiki/Zo%C3%B3lito https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_do_Homem_do_Sambaqui https://pt.wikipedia.org/wiki/Florian%C3%B3polis 20 História da Arte no Brasil 1.4.1 Cerâmica marajoara Em 1927, Mário de Andrade, um escritor paulista do modernismo, fez uma viagem pelo Norte e pelo Nordeste do país. Em Belém do Pará, ele visitou mais de uma vez o Museu Paraense Emílio Goeldi, fundado em 1866, e encantou-se com a cerâmica de Marajó. Não foi só Mário de Andrade que ficou impressionado com a qualidade desses objetos. O casal de arqueólogos Betty Meggers e Clifford Evans (1957), em pesquisas realizadas na região amazônica, nos anos 1940 e 1950, distinguiram cinco fases arqueológicas dos po- vos que ali habitaram. Eles incluíram na quarta fase a cerâmica ma- rajoara, feita a mão por grupos indígenas que habitaram a Ilha de Marajó, no Pará, desde cerca de 400 até 1.350 d.C. Segundo eles, tra- ta-se da fase mais evoluída na sequência de ocupação da ilha, que fica na foz do rio Amazonas (MEGGERS; EVANS, 1957). Essa cerâmica é caracterizada, primeiramente, pela variedade, pois chegaram até nós vasilhas, potes, urnas funerárias, tangas femininas (ou tapa-sexo), estatuetas, bancos, cachimbos, entre outros objetos. Em segundo lugar, é caracterizada pela abordagem de temas ligados à relação homem-animal, base do sistema de mitos de seus autores. Assim, reconhecemos, nos objetos, formas antropomorfas (lembrando humanos), zoomorfas (lembrando animais) ou as duas ao mesmo tem- po, zooantropomorfas, seres híbridos, com partes humanas e partes animais, que alguns arqueólogos chamam de quimeras. A cerâmica marajoara se caracteriza, ainda, pela constância de cer- tos padrões decorativos, com formas labirínticas, grafismos simétricos em baixo ou alto relevo, entalhes e aplicações. Ela apresenta um reper- tório de elementos formais e gráficos bem delimitado, combinados em diferentes estilos ao longo do tempo, algo muito singular no âmbito da Tradição Polícroma da Amazônia. Meggers e Evans também foram os primeiros a estabelecer uma tipologia para estudá-los. A cerâmica de Marajó foi encontrada ou escavada em aterros cha- mados de tesos, que provavelmente funcionavam como locais de habi- tação, integrados ou não a áreas de cemitério. Conhecemos hoje cerca de 400 sítios arqueológicos situados sobre tesos na região, todavia, estima-se que existiam mais. Os tesos maiores poderiam chegar a 255 Dois livros reúnem artigos importantes sobre os grafismos indígenas. São eles: Grafismos na arte indígena, editado por Lux Vidal, em 1992, e Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena, editado por Carlos Severo e Els Lagrou, em 2011. No primeiro, a arte indígena é entendida como um sistema de comunicação em si; no segundo, como um elemento integrado e significante dentro de um sistema mais amplo, que compreende a inter-relação entre práticas rituais, musicais e narrativas mitológicas. Nesse sentido, os textos deste último livro estão centrados na ideia de “agência da imagem”, um con- ceito proposto pelo antropólogo Alfred Gell, no fim do século XX, que diz respeito à capacidade da imagem de agir sobre o seu entorno. Leitura Origens 21 metros de comprimento, 30 metros de largura e 10 metros de altura. Sua função era proteger as aldeais durante os períodos de cheia. Em muitos deles, os mortos foram enterrados dentro de urnas cerâmi- cas, eventualmente com outros objetos dentro. Es- sas urnas variam em tamanho e podem ser mais ou menos elaboradas, de acordo, talvez, com o status social do indivíduo (Figura 5). No teso Belém, no rio Camutins, por exemplo, foram escavadas várias ur- nas com padrões semelhantes, sinal de que pode- riam pertencer a pessoas de uma mesma linhagem ou família. Diante dessas evidências, os arqueólogos trabalham com a hipótese de se tratar de uma so- ciedade complexa, hierarquizada, funcionando sob o regime de cacicados ou chefias locais. Nas urnas funerárias, a figura humana, quando não é o tema central, aparece associada à figura de animais. Onde o sexo pode ser identificado, as figuras humanas são sempre femininas. Quanto às tangas de cerâmica lisas ou decoradas (usadas por mulheres para cobrir a genitália e muitas delas en- contradas dentro das urnas funerárias), também apontam para um simbolismo sexual, ligado, talvez, a uma sociedade matrilinear, na qual a descendência pela mãe é a mais importante. A arqueóloga Denise Schaan, adotando um ponto de vista estrutura- lista, isolou, com base na análise de um número limitado de exemplares da cerâmica marajoara, as suas unidades mínimas significantes, combi- nadas de modo diverso em diferentes peças. Ela partiu da analogia das formas com a fauna local, destacando o processo de síntese pelo qual passaram para chegar à sua estrutura mais elementar. Schaan (2001) observou, por exemplo, que a representação do escorpião em algumas urnas está ligada à representação de qualquer tipo de olhos na arte ma- rajoara. Assim, ela inferiu dessa linguagem, por meio da análise compa- rativa, uma espécie de gramática visual. Embora seu significado esteja sujeito a diferentes interpretações, Schaan demonstrou sua coerência interna e seu potencial para a compreensão de uma cultura que esteve ativa durante centenas de anos no Brasil no período pré-colonial. Figura 5 Urna funerária decorada em relevo, c. 400-1.000 d.C., coleção Henry Law Ja st ro w/ W ik im ed ia C om m on s 22 História da Arte no Brasil 1.4.2 Cerâmica tapajônica O conjunto de objetos cerâmicos chamado de tapajônico foi produ- zido por índios que habitavam a região próxima ao encontro do rio Tapajós com o Amazonas, onde hoje está situada a cidade de Santarém, no Pará. O município de Monte Alegre, cujas pinturas rupestres, como vimos, foram datadas por Anna Roosevelt (1996) de 12.000 anos AP, fica a poucos quilômetros de Santarém. Contudo, ainda não existe um estudo cronológico-estilístico sistemático sobre os vestígios encontra- dos no local, os quais, pela sua singularidade, foram agrupados em um único complexo cultural, chamado de cultura Santarém. Sabemos ape- nas que a cerâmica tapajônica continuou a ser produzida até o início do período colonial, no século XVII, quando finalmente desapareceu. A cerâmica tapajônica, como a de Marajó, também é muito variada e marcada pelo tema da relação homem-animal, mas com padrões de- corativos próprios. Os famosos vasos de cariátides, remetendo ao nome grego dado às colunasarquitetônicas esculpidas em forma de mulheres, são peças diferenciadas, em formato de taça, com figuras humanas servindo como sustentação para a parte superior, que contém a concavidade do recipiente. Os vasos de efígie são estruturas ocas que representam figuras humanas, geralmente homens sentados, os quais ostentam um prolongamento sobre a cabeça, que funcio- na como um gargalo. Há uma variação interessante desse tipo no Museu Paraense Emílio Goeldi, na qual uma mu- lher sentada segura sobre as pernas uma vasilha. Denise Gomes (2001) associou a peça a rituais de iniciação, que celebram a passagem à vida adulta, com base em estu- dos antropológicos de indígenas que vivem na Amazônia atualmente. A autora também observou na peça a repre- sentação de figuras semelhantes a muiraquitãs (Figura 6), amuletos feitos em pedra semipreciosa, muito comuns e apreciados dentro da cultura tapajó. 1.4.3 Arte plumária A arte plumária consiste em objetos feitos com penas de aves, geralmente usados como adorno corporal. Os mais elaborados cumprem uma função ritualística. Assim, ad- A antropóloga e professora da UFRJ, Denise Gomes, no artigo de 2010 citado nas referências, defende que a cerâmica de Tapajós está ligada ao pensamento cosmológico dos povos indígenas da Amazônia, cuja instituição principal é o xamanismo. O xamã é o único capaz de incorporar o ponto de vista de outros animais, transformar-se neles e depois retornar à sua forma original durante transes extáticos. Essas metamorfoses corporais encon- tram-se representadas, segundo a interpretação de Gomes, em alguns vasos tapajônicos com figuras híbridas, meio humanas, meio animais. Saiba mais Figura 6 Muiraquitã em forma de rã. Acervo do Museu Nacional, Rio de Janeiro Do rn ic ke /W ik im ed ia C om m on s Origens 23 quirem significado apenas quando são usados durante diferentes ce- rimônias. Hoje, cerca de 30 etnias indígenas no Brasil produzem esses artefatos, cada uma com um estilo particular. Algumas, inclusive, atri- buem valores distintos ao objeto, dependendo da espécie da qual foi retirada a pena. As antropólogas Sonia Dorta e Lúcia van Velthem (1983) distinguem dois grandes estilos plumários entre os indígenas brasileiros. O primei- ro, que reúne objetos maiores, é feito com penas longas sobre suportes rígidos e por etnias como os Bororó, Karaiá, Tapirapé, Kayapó, Tiriyo e outras tribos do norte do Amazonas. O segundo, que inclui objetos me- nores e mais delicados, é feito com penas pequenas sobre um suporte flexível e por grupos como os Munduruku, Urubus-Kaapor e outros do tronco Tupi. Existem, ainda, objetos que congregam características dos dois grupos, como os produzidos pelos Tukano. No livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), o xamã Davi Kopenawa, cuja fala foi traduzida, transcrita e editada pelo antropólogo Bruce Albert, narra um mito indígena relacionado à ini- ciação de um jovem ao xamanismo. O xamã é alguém que protege a sua comunidade, interagindo e negociando com o mundo invisível dos espíritos (xapiri) durante estados alterados de consciência; a maior par- te das aldeias conta com vários deles. Entre os yanomami, os transes xamânicos são provocados pela inalação de uma substância alucinóge- na chamada yãkoana. Nesse trecho, Kopenawa descreve os adereços plumários que o filho da divindade central dos yanomami, Omama, usa durante o ritual xamânico. O filho de Omama primeiro tomou yãkoana com o pai. Depois continuou a bebê-la sozinho, mais e mais, para chamar cada vez mais espíritos e poder conhecer todos os seus cantos. Era deslumbrante quando fazia dançar suas imagens. Era um rapaz muito bonito, tinha a pele coberta de urucum bem vermelho e desenhos de um negro brilhante. Suas braçadeiras de crista de mutum prendiam muitas caudais de arara-vermelha, pin- gentes de rabo de tucano e buquês de penas paixi. Tinha os olhos escuros e os cabelos cobertos de penugem hõromae, de um branco resplandecente. Tinha também uma pele de rabo de macaco cuxiú-negro em torno da cabeça. Dançava lentamen- te, com as costas bem curvadas para trás. Ver a beleza dos xapiri o enchia de felicidade. (KOPENAWA, grifos nossos, 2015, p. 86) A passagem ilustra, enfim, a função ritualística dos adereços plumá- rios entre indígenas brasileiros. Hoje, muitos artesãos que vivem na região do Baixo Amazonas, onde estão localizadas a Ilha de Marajó e a cidade de Santarém, reprodu- zem peças da cerâmica indígena antiga em seu trabalho, respondendo a uma demanda do merca- do turístico. A relação das populações locais com seu patrimônio arqueo- lógico é um dos temas abordados no documen- tário Antiga Amazônia Presente. Direção: Silvio Luiz Cordeiro, Brasil: 2013. Disponível em: http:// amazoniantiga.tv.br/documentario/. Acesso em: 26 out. 2020. Documentário Desde os anos 1970, a fotógrafa Claudia Andujar se engajou na luta dos povos yanomami pela demarcação de seu território, na região norte da Amazônia. Ela passou longos períodos vivendo com eles. Entre 1974 e 1976, deu papel e caneta hidrográfica aos índios e pediu-lhes que representassem o seu próprio mundo. Seu elaborado universo gráfico pôde ser traduzido de uma maneira nova. Os desenhos foram publicados pela primeira vez em: ANDUJAR, Claudia. Mitopoemas Yãnomam. São Paulo: Olivetti do Brasil, 1979. Leitura 24 História da Arte no Brasil Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) recomendam que o professor de arte articule, em seu traba- lho, leituras visuais, contextualização histórica e atividades práticas. Assim, é importante que a história da arte esteja aliada, nesse contexto, à atividade de leitura de imagens e à experiência dos alunos com diferentes técnicas. Existem várias maneiras de trabalhar os conteúdos deste capítulo com seus alunos na escola. A seguir, seguem algumas sugestões. Procure ampliá-las com base em sua própria experiência. Diante de uma das imagens de arte rupestre ou cerâmica vistas neste capítulo, questione os alunos: • Quanto às características: Qual é o material usado? Quais são as cores? Como foram organizadas? Qual é o tamanho? Representa algo? • Quanto à construção: Como foi feito? Por que você acha isso? • Quanto à função: Para quê foi feito? Você acha que foi bem projetado, tendo em vista a sua função? • Quanto à sociedade que o produziu: quem o produziu? Quem o usou? Quando? Onde? Ele existe em outras sociedades? Trabalhe com as respostas dos alunos. Se for possível fazer as pergun- tas diante dos originais em um museu, melhor ainda. Exercícios para estimular a observação • Desenhar dois objetos etnográficos que têm a mesma função, mas for- mas diferentes, e compará-los. • Com base em um fragmento cerâmico, desenhar o objeto como imagi- na que seria (essa é, aliás, uma prática corrente em arqueologia). Sugestões de atividades práticas relacionadas ao tema deste capítulo • Modelagem em argila, criação de peça utilitária. • Criação de estampas geométricas com carimbo ou estêncil. O carimbo pode ser feito colando formas recortadas em E.V.A. sobre um pedaço de papelão; o estêncil, recortando as formas em um papel com gramatura mais grossa (os alunos podem reproduzir uma ou mais unidades mínimas significantes propostas pela arqueóloga Denise Schaal, em sua pesquisa sobre a cerâmica marajoara, e trocar as matrizes entre si, no momento da impressão, para criar diferentes composições). • Produção de tintas com pigmentos naturais (terras e areias coloridas), acrescentando água e cola. • Desenho a giz de cera sobre papel kraft amassado, simulando a textura de uma rocha (limitar as cores às mais utilizadas na arte rupestre pré-his- tórica, como marrom, vermelho, preto, branco e ocre.) HISTÓRIA DA ARTE NA ESCOLA Origens 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos perceber, com o conteúdo trabalhado, que em pesquisas sobre a arte pré-histórica com foco em períodos mais distantes,cujos ves- tígios são escassos, as análises morfológicas e estilísticas predominam. Os arqueólogos não se sentem autorizados a afirmar categoricamente, por exemplo, que as imagens rupestres do período Paleoíndio possuíam um caráter mágico no Brasil, no sentido de dar presença ao objeto represen- tado ou materializar um desejo, porque eles não dispõem de provas. Em períodos mais recentes, contudo, quando a cultura não foi total- mente interrompida ou extinta, existe a possibilidade de relacionar ima- gens e artefatos pré-históricos ao universo das populações que ainda habitam os locais onde foram produzidos e que se identificam com eles. O termo arte é usado nesse contexto com fins didáticos, pois os obje- tos pré-históricos e indígenas não são dotados de um valor contemplativo em si mesmos, como em nossa cultura atual. Seu significado está intima- mente ligado ao seu uso. Além disso, na pré-história e na cultura indígena, a arte é a expressão de um grupo de indivíduos com hábitos e crenças co- muns; ela é um referente de sua identidade étnica, portanto não se apre- senta como o resultado da expressão de uma interioridade particular. Por meio do estudo das diversas Tradições rupestres, da cerâmica pré-histórica e da arte plumária indígena brasileira, foi possível constatar sua riqueza e diversidade. O contato com outra cultura, como a indígena, pode nos auxiliar, enfim, a fazermos a crítica de nossa própria cultura, isto é, uma autocrítica. ATIVIDADES 1. Por que estudar sociedades indígenas já extintas hoje? 2. Quais são as semelhanças e as diferenças entre a cerâmica marajoara e a tapajônica? 3. Leia o trecho a seguir, extraído dos diários de Mário de Andrade (2015). Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares [os centros urbanos] foram feitos muito às pressas, com excesso de Castro-Alves. E esta pré-noção invencível, mas invencí- vel, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... 26 História da Arte no Brasil E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. (ANDRADE, 2015, p. 67-68) O escritor faz uma observação sobre a cultura brasileira que contém, implícita, uma crítica. Que crítica é essa? Você concorda com ele? Por quê? REFERÊNCIAS ANDRADE, M. de. O turista aprendiz. Edição de texto anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. Brasília, DF: Iphan, 2015. Disponível em: http:// portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/O_turista_aprendiz.pdf. Acesso em: 26 out. 2020. CONSENS, Mario. Arte rupestre no Pará: análise de alguns sítios de Monte Alegre. 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No sistema colonial, as políticas de ocupação giram em torno de atividades extrativistas ou agrícolas, capazes de gerar riquezas não à própria colônia, mas sim à metró- pole. Essas atividades – no caso do Brasil, o cultivo da cana de açúcar e a mineração – eram realizadas por mão de obra escrava primeiro indígena e depois também africana. A Igreja teve um papel importante no processo de colonização. Como precisavam dos índios, os portugueses tentaram convertê-los à sua religião, o catolicismo. A igreja, nas religiões cristãs, é o lu- gar onde as pessoas são educadas nos valores e normas cristãos. Diferentes expressões artísticas, como a arquitetura, pintura, escul- tura e música, participam dessa experiência educativa que ocorre nas igrejas. Neste capítulo abordaremos obras de arte e arquitetura en- comendadas por ordens religiosas que se estabeleceram na América portuguesa, especialmente a dos jesuítas e franciscanos. Trabalharemos, ainda, a arquitetura dos engenhos de cana-de- -açúcar e a obra de Aleijadinho. Ao longo do texto, os principais estilos europeus ligados à gênese dessas obras – maneirismo e, so- bretudo, barroco e rococó – servem de apoio à reflexão, mas seu uso não deve se sobrepor à observação e análise de cada caso em par- ticular. Assim, devemos sempre partir das obras e usar esses estilos como chaves para compreender cada uma em sua singularidade. 28 História da Arte no Brasil 2.1 Arquitetura e artes visuais Vídeo Durante o período Colonial, a arte produzida no Brasil encontrava- -se intimamente ligada à arquitetura, sobretudo religiosa. Tanto os edi- fícios em si quanto as obras de pintura e escultura distribuídas em seu interior e exterior podem ser abordados sob uma perspectiva estéti- ca. Nesse caso, contudo, o conjunto forma um todo coerente, que não pode ser reduzido às suas partes sem prejuízo do significado. A construção de uma igreja era o resultado do trabalho cooperado de arquitetos, carpinteiros, pedreiros, canteiros, entalhadores, esculto- res, pintores e outros profissionais do campo da arte e da engenharia, muitas vezes acumulando funções. Primeiro, a ordem religiosa enco- mendava o risco, termo usado na época para se referir ao desenho do projeto. Projetos arquitetônicossão compostos por plantas baixas, que informam sobre a organização do espaço, e elevações em perspectiva, que instruem sobre a aparência externa do edifício, por meio das vistas frontal, posterior e lateral. As tecnologias de construção disponíveis, das quais o mestre de obras, assistido por pedreiros e carpinteiros, faz uso para executar o projeto, influenciam o desenho, pois cada uma possui potencial e limites próprios e permite certas soluções ao mesmo tempo que impede outras. No caso das igrejas coloniais que estudaremos neste capítulo, as principais técnicas artísticas associadas à arquitetura são: • Escultura: seja em relevo ou independente de um suporte pla- no, esculturas podem figurar na parte externa ou interna do edi- fício. No interior ganham destaque especial nos retábulos, que correspondem à parte posterior do altar. Os temas representa- dos são majoritariamente cristãos, normalmente ligados à histó- ria do padroeiro ou padroeira que dá nome à igreja. • Talha: é o nome dado aos ornamentos em relevo, esculpidos em madeira ou pedra, que revestem a arquitetura. Quando pintados, são chamados de talha dourada ou policromada. No barroco e ro- cocó representam motivos fitomórficos (em formato de cachos de uva, folhas de acanto, flores etc.) e figuras de anjos. Barroco e Rococó 29 Muito explorada na arquitetura barroca, a voluta é um ornamento em forma de espiral encontrado no capitel da coluna jônica. Já a rocalha ou rocaille – palavra francesa que quer dizer conjunto de pedras, seixos ou detritos minerais de peque- nas dimensões, de onde vem o nome rococó – é um ornamento de curvas mais orgânicas e irregulares, inspirado em formas da natureza, como conchas e folhas. O capitel da coluna jônica com volutas e, ao lado, ornamentos do tipo rocaille. M an ue l A na st ác io /W ik im ed ia C om m on s M ae rie /S hu tte rs to ck • Pintura: a técnica mais usada era o óleo ou a têmpera sobre madeira ou tela, às vezes inserida em painéis separados na de- coração em talha. O objetivo do pintor era alcançar a ilusão do espaço tridimensional. Nos tetos das igrejas, as representações em perspectiva que simulam a arquitetura, chamadas de quadra- tura, eram frequentes. • Azulejaria: expressão artística tipicamente portuguesa, que con- siste na pintura com esmaltes sobre placa de cerâmica vidrada em formato quadrado, usada como revestimento de paredes. Os azulejos encontrados na arte colonial no Brasil normalmente eram fabricados em Portugal. Dentro do contexto da arquitetura colonial, a escultura, talha, pin- tura e azulejaria são as técnicas mais usadas em trabalhos artísticos. Já os estilos referenciais, de algum modo assimilados no processo de colonização, são o maneirismo, o barroco e o rococó; eles se sucedem na Europa a partir do fim do século XVI até a metade do século XVIII e chegam tardiamente ao Brasil, pela via da Península Ibérica, espe- cialmente de Portugal. Mesmo no mundo lusitano, o barroco foi um fenômeno tardio e não teve a mesma adesão que na Itália e outros centros europeus. Essa presença tardia gerou também uma frequente sobreposição ou combinação desses estilos, bem ou malsucedida, na arte colonial brasileira, de modo que se torna, em geral, difícil estabele- cer uma filiação total e homogênea a um ou a outro. Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s A perspectiva é um modo de representação espacial criado no século XV, na Itália, que cria a ilusão de profundidade em um espaço plano, usando como referência gráfica o ponto de fuga e a linha do horizonte. Manuais com lições práticas de perspectiva circulavam entre a metrópole e a colônia. O tratado do padre jesuíta italiano Andrea Pozzo (1642-1709), Perspectiva na pintura e na arquitetura, pu- blicado entre 1693 e 1700, teve grande influência na atividade dos pintores atuantes no período colonial no Brasil. Atualmente, parte da pesquisa sobre a arte brasileira desse período gira em torno da relação das obras com a tratadística europeia. Saiba mais 30 História da Arte no Brasil Estilo Maneirismo Barroco Rococó Período na Europa Segunda metade do século XVI Século XVII Primeira metade do século XVIII Caracterís- ticas • Ambiguidade. • Ecletismo. • Tensões não resolvidas. • Na arquitetura, combina características do Renascimento, como simplicidade e estaticidade, com elementos barrocos, como planta elíptica e proporções alongadas. • Presença de fachadas com duas torres. • Movimento. • Dramaticidade. • Tensões contrabalançadas por distensões. • Presença marcante de curvas, elipses e volutas. • Acento sobre um efeito único, às custas de outros elementos da composição ou equilíbrio assimétrico. • Contraste intenso de claro-escuro. • Profusão decorativa. • Graciosidade. • Evita tensões. • Estilo de decoração interior baseado na ornamentação em rocalha. • Na arquitetura, as curvas são mais suaves e os interiores menos carregados, com mais espaços vazios. Quadro 1 Estilos artísticos europeus: séculos XVI ao XVIII. Fonte: Elaborado pelo autor Os estudos de referência a respeito da arte e arquitetura colonial no Brasil são de Bazin, Smith e Bury – um francês, outro norte-ameri- cano e outro inglês –, todos escritos na metade do século XX. Enquanto Bazin insere-se na historiografia modernista ligada a órgãos públicos oficiais brasileiros, adotando uma abordagem formalista, Smith e Bury voltam-se mais às trocas culturais entre colônia e metrópole, pensando o Brasil em um contexto global. 2.2 Arquitetura jesuítica no Brasil Vídeo A conversão dos indígenas ao catolicismo fez parte do projeto de co- lonização – a ordem religiosa da Companhia de Jesus, criada na Espanha em 1534, veio ao Brasil já em 1549, a pedido de Dom João III, rei de Por- tugal, com esse propósito. Na sequência da chegada do jesuíta Manoel da Nóbrega, estabeleceram-se no território diversos assentamentos, até a expulsão definitiva da companhia em 1759. Nesse intervalo de tempo é possível observar duas fases da arquitetura jesuítica no Brasil. O Instituto do Patrimô- nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) editou uma série chamada Roteiros do patrimônio. Por meio dela você pode conhecer mais a respeito de muitas das obras de arte e arquitetura abor- dadas neste capítulo. Os textos estão disponíveis para download. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/publicacoes/ lista?categoria=47&busca. Acesso em: 26 out. 2020. Leitura Barroco e Rococó 31 2.2.1 Fase inicial Nesse período destacam-se duas construções. A primeira, a Capela de São Miguel Arcanjo (Figura 1), que foi fundada em 1560 pelo padre espanhol José de Anchieta, sob as ordens de Manoel da Nóbrega, em Ururaí, onde é hoje o bairro São Miguel, na cidade de São Paulo. A capela era parte de um aldeamento estabelecido para a catequi- zação dos índios Guaianazes. Foi demolida e reconstruída em taipa de pilão, em 1622, data que consta no portal de entrada. Segundo o arqui- teto Lucio Costa (2010), constitui um desenho típico de capela de aldea- mento, embora acrescido do alpendre ou varanda. Por causa de uma restauração recente, foram descobertas, atrás de dois altares laterais, pinturas parietais datadas do fim do século XVII, com representações do sol e da lua, entre outros motivos ornamentais. Figura 1 Capela de São Miguel Arcanjo, em São Paulo (SP), depois de restaurada. Br un oc M ac ed o/ W ik im ed ia C om m on s Figura 2 Vista da nave principal. Br un oc M ac ed o/ W ik im ed ia C om m on s Por meio do vídeo Circuito de visitação da Capela de São Miguel Arcanjo, publi- cado pelo próprio canal da Capela, é possível realizar um tour virtual por ela, que é o primeiro edifício tombado pelo IPHAN, em 1938, onde funciona hoje um museu. Disponível em: https://youtu.be/ RH-IjsRkO5w. Acesso em: 21 out. 2020. Vídeo Atualmente, a técnica de construção taipa de pilão está sendo recuperada por sersustentável, de baixo custo e de grande durabilidade. As paredes são erguidas por meio da com- pactação, com o uso de um pilão de terra úmida dentro de uma estrutura de madeira. Depois de atingir o limite máximo de altura, a fôrma de madeira é desmontada e reposicionada, sendo reutilizada diversas vezes. Curiosidade 32 História da Arte no Brasil Em 1587, Anchieta supervisionou a construção da Igreja Nossa Senhora da Assunção, no aldeamento de Reritiba, onde hoje é a cidade de Anchieta, no Espírito Santo (Figura 3). A igreja, construída em pedra e cal, está posicionada entre a torre quadrangular com quatro sinos e a residência (chamada colégio) dos padres. A fachada é a única parte que restou do conjunto original, embora com alteração das janelas. Uma característica dessa planta são as três naves, espaço onde se reúnem os fiéis, que fica entre a entrada e o altar principal. A capela de São Miguel possui somente uma nave (Figura 2), como era o mais comum nas construções dos jesuítas. Partes de uma igreja. Igrejas são compostas por duas partes principais: (1) a nave e (2) o coro (onde fica o altar-mor). Aquelas mais elaboradas podem apresentar também (3) abside, (4) transepto, (5) naves laterais, (6) torres ocidentais e (7) cruzamento do transepto. (Planta baixa da Catedral de Colônia, usada aqui a título de exemplo). Fonte: Adaptada de Cragoe, 2016. 1 2 456 6 7 3 IE SD E S/ A Figura 3 Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Anchieta (ES). Pa no ra m io u pl oa d bo t/ W ik im ed ia C om m on s Barroco e Rococó 33 Um precedente arquitetônico importante para essas primeiras edi- ficações jesuíticas no Brasil é a Igreja de São Roque, em Lisboa – proje- tada para os jesuítas, pelo arquiteto italiano Filippo Terzi (1520-1597) –, cuja construção teve início em 1580 (Figura 4) e cujo estilo é considera- do maneirista. Figura 4 Fachada maneirista da igreja jesuítica de São Roque restaurada. F el ix L ip ov /S hu tte rs to ck Assim, tanto a igreja de São Miguel Arcanjo quanto a de Nossa Se- nhora de Assunção representam a fase inicial da arquitetura jesuítica no Brasil, cujas soluções formais são simples, adequadas às técnicas construtivas locais e lembrando, em alguns aspectos - como o contor- no da fachada, encimada por um frontão, e o teto de duas águas - São Roque, a primeira igreja dos jesuítas em Portugal. Na fase final da ar- quitetura jesuítica no Brasil, será a primeira igreja da companhia em Roma, bem como outra de Terzi construída também em Lisboa, que constituirão referências importantes. 2.2.2 Fase final Os chamados Sete Povos das Missões fizeram parte de 30 aldea- mentos conhecidos como reduções, fundados pelos jesuítas a partir de 1626, sob ordens de Felipe II, rei da Espanha e no período também rei interino de Portugal, com o objetivo de catequizar os índios Guaranis. Os Sete Povos estabeleceram-se na região fronteiriça entre o sul do Brasil, a Argentina e o Uruguai, ficando no lado oriental, onde hoje é o https://www.shutterstock.com/pt/g/flipov 34 História da Arte no Brasil Rio Grande do Sul; São Miguel, cujas ruínas encontram-se atualmente preservadas na cidade de mesmo nome, é um deles. As reduções, ao reunirem o que se encontrava disperso, consti- tuíam complexos urbanísticos formados por edificações, como igrejas, moradias, colégios e oficinas, bem como estâncias e ervais. Nelas eram praticadas a agricultura, a pecuária e o artesanato em um sistema de cooperação entre os jesuítas e os índios. O projeto da igreja de São Miguel foi feito, provavelmente, pelo pa- dre italiano Gian Batista Primoli (1673-1747), que ali chegou em 1730; estima-se que ela foi construída entre 1735 e 1747. O material utilizado foi pedra de cantaria (talhada em bloco), depois branqueada por um re- boco de tabatinga – palavra de origem tupi que significa barro branco. Uma diferença importante entre as demais construções missioneiras é a tecnologia de paredes portantes de pedra, ou seja, que sustentam por si mesmas a estrutura, sem o auxílio de vigas e colunas. Quanto ao desenho, a igreja de São Miguel foi inspirada na pri- meira igreja dos jesuítas em Roma, a Igreja de Jesus, ou Chiesa del Gesù (1568-1580), projetada pelo arquiteto italiano Giacomo Vignola (1507-1573). Na planta de Gesù, é possível visualizar a nave principal ladeada por uma série de capelas interconectadas e uma cúpula enci- mando o transepto, seguido da abside em formato semicircular. A igre- ja de São Miguel possui três naves, uma principal e duas laterais, que lembram o esquema das capelas na igreja de Gesù, embora compon- do um espaço mais amplo e aberto. Uma porta central abre-se à nave principal e duas menores às naves laterais. Havia também uma cúpula, hoje destruída, sobre a abside, a qual, nesse caso, era retangular. Ambas as fachadas são divididas em dois níveis, com frontão, volu- tas laterais (mais pronunciadas em São Miguel), três acessos térreos e uma janela central superior. Sua planta e elevação são consideradas de estilo maneirista, embora, em São Miguel, a presença da parede ondulada na fachada – duas concavidades em cada lado da porta cen- tral que se estendem verticalmente da base até o frontão – seja uma característica do estilo barroco. No edifício latino americano foi cons- truída, ainda, uma torre única onde ficava o sino, chamada de campa- nário, e um alpendre ou pórtico para abrigar as pessoas na entrada, o qual não constava no projeto original de Primoli. A igreja da Companhia de Jesus em Salvador, capital da América portuguesa entre 1549 e 1762, foi terminada em 1672 e contava, ao Para conhecer o projeto de pesquisadores da Unisinos, que apresenta uma reconstituição da redução jesuítica de São Miguel em formato digital 3D acesse o link a seguir. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=GWQOYcvcp10. Acesso em: 21 out. 2020. Site Projetado pelo arquiteto Lucio Costa com base nas moradias indígenas das reduções jesuíticas, o Museu das Missões, construído em 1940, próximo às ruínas de São Miguel, abriga hoje escul- turas e outros vestígios arqueológicos encontra- dos entre os Sete Povos das Missões Orientais. Explore o seu acervo no link a seguir. Disponível em: http:// museudasmissoes.acervos.museus. gov.br/acervo-museologico/. Acesso em: 26 out. 2020. Saiba mais https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 https://www.youtube.com/watch?v=GWQOYcvcp10 Barroco e Rococó 35 lado, com um colégio (Figura 5). A planta é simples, com nave única retangular, capelas laterais e desprovida de cúpula ou transepto. Altares subsidiários en- contram-se ao lado do principal e, ao fundo, há uma grande sacristia. A facha- da é sóbria e austera, com paredes pla- nas e janelas distribuídas em linhas horizontais paralelas. Além disso, apre- senta uma característica que será bas- tante recorrente na arquitetura religiosa do período Colonial no Brasil e que não existe, por exemplo, na igreja de São Mi- guel: a presença de duas torres laterais e das volutas conectando-as ao frontão. Além da igreja de Gesù de Vignola, a igreja de São Vicente de Fora, em Lis- boa – outro projeto como o da igreja de São Roque, de Filippo Terzi, este iniciado em 1582 –, também aproxima-se formal- mente da igreja de Salvador (Figura 6). Tanto esta última como São Vicente de Fora possuem: frontões menores sobre as portas e janelas; pilastras (colunas fi- xadas às paredes) seccionando a fachada em cinco partes regulares; nichos onde foram inseridas esculturas; e, finalmente, duas torres laterais cujos topos compõem um nível suplementar, sendo cada um dos níveis bem marcado pela linha horizontal das cornijas. No caso de Salvador, os ni- chos com as esculturas se sobrepõem ao cume dos frontões cortando-os, o que é uma característica do barroco. O historiador inglês Jonh Burry afir- ma que, como ocorre na igreja principal dos jesuítas em Salvador, as fachadasdas igrejas da companhia em todo o mundo Figura 5 Arquiteto desconhecido, fachada da antiga igreja do colégio dos jesuítas, construída entre 1652 e 1672, atual catedral de Salvador, na Bahia. Prburley/Wikimedia Commons Figura 6 Fachada maneirista com duas torres da Igreja São Vicente de Fora, fim do século XVI, Lisboa. Projeto de Filippo Terzi. Cavan-Images/Shutterstock https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Prburley 36 História da Arte no Brasil lusitano irão oscilar entre a igreja de Gesù, em Roma, e a de São Vicente de Fora, em Lisboa. Trata-se, de qualquer modo, de soluções maneiris- tas, pois apresentam características do barroco, como a fachada côn- cava e volutas, misturadas a outras, mais clássicas, como o predomínio das formas retas, sobretudo na planta, e torres laterais. 2.3 Engenhos Vídeo Nos séculos XVI e XVII, a principal atividade econômica da colônia era a produção de cana-de-açúcar, e o Nordeste foi um importante polo produtor. A plantação e o processamento da cana ocorriam no interior, e essa produção era escoada à metrópole pelas cidades, geral- mente localizadas à margem de rios ou no litoral. Do ponto de vista da arquitetura, esses espaços de produção eram compostos pela casa- -grande, capela, fábrica e senzala. Enquanto a casa-grande, residência fixa ou temporária do proprietário, apresenta modificações em sua for- ma de acordo com o local e o período, a senzala, habitação das pessoas escravizadas, se mantém praticamente a mesma ao longo do tempo. É possível conhecer melhor esse complexo arquitetônico no perío- do inicial da colonização por meio dos registros de pintores holandeses, como Frans Post (1612-1680), vindos durante a ocupação holandesa da capitania de Pernambuco, entre 1630 e 1654. Não se sabe, entretanto, até que ponto essas pinturas são fiéis, pois as senzalas, por exemplo, não são representadas – embora sejam descritas mais tarde, no relato de via- jantes do século XIX. As poucas senzalas que sobreviveram consistem em um edifício único com uma série de cubículos conjugados, cujas portas de entrada voltam-se para uma galeria comum e aber- ta. Cogita-se, ainda, que os africanos escravizados tenham habitado, nos engenhos, pavimentos térreos destinados a depósito ou casebres de origem africa- na, chamados de mocambos (Figura 7). Assim, várias técnicas de construção eram em- pregadas. Nas casas-grandes, capelas e fábricas eram usados, geralmente, alvenaria de pedras, tijo- los ou adobe; já nas senzalas era utilizada a taipa de pau-a-pique, na qual a argila é socada com as mãos sobre uma estrutura de madeira para elevação da parede. Mas era a capela, sobretudo, a construção feita para durar. Figura 7 Johann Moritz Rugendas, habitação de negros, litogra- fia de 1835. Jurema Oliveira/Wikimedia Commons Barroco e Rococó 37 2.3.1 Arquitetura da resistência: o quilombo Buraco do Tatu Uma das formas mais comuns de resistência à escravidão no Brasil colonial foi a fuga. Os escravizados fugidos reuniam-se em mocambos ou quilombos, que estavam situados em lugares próximos a cidades ou plantações, porém de difícil acesso. A região de produção açucareira possuía um número elevado de pessoas escravizadas e sua reunião em mocambos preocupava os co- lonos, pois possíveis rebeliões significavam uma ameaçava às bases do sistema que garantia os seus privilégios. Pouquíssimos documen- tos sobre esses assentamentos chegaram até nós, por isso a planta do Buraco do Tatu – que existia desde 1743, próximo à atual praia de Itapoã, na Bahia – é de particular importância. O desenho foi feito para ilustrar os relatórios da campanha de ataque e destruição do quilombo pelas autoridades portuguesas em 1763. As casas retangulares orga- nizadas em fileiras paralelas lembram as senzalas de engenho. A casa cerimonial em frente a uma espécie de praça (marcada com a letra H) é, contudo, encontrada em culturas africanas. Dentro dos quilombos, desenvolveram-se tradições sincréticas, ou seja, que fundiam elemen- tos brasileiros e africanos. Você pode visualizar a planta do Buraco do Tatu, conservada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, no link a seguir: Disponível em: https://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/301408. Acesso em: 26 nov. 2020. No perímetro do Buraco do Tatu, havia, ainda, uma extensa rede defensiva: os inúmeros traços pontilhados na planta representam es- tacas fincadas no solo em nível abaixo do chão e cobertas para não serem vistas por invasores; os círculos preenchidos com traços eram covas abertas, repletas de espetos e igualmente camufladas com mato e arbustos. Além disso, não há indicação de roças. De fato, raros são os casos de mocambos que desenvolveram uma economia agrícola au- tossuficiente, talvez pela própria dificuldade gerada pela condição de fugitivos, de modo que os suprimentos eram obtidos por meio de assal- tos nas estradas, incursões e extorsões. Assim, a sociedade desigual e opressiva que gerava os quilombos também os temia, tanto em razão dos assaltos quanto das ameaças de revolta. O livro Casa-grande e senzala, considerado um clássico da sociologia brasileira,busca na arquitetura recursos interpretativos para a realização de análises so- ciais. O autor os encontra nas tipologias básicas da casa-grande e da senzala, parte do complexo arqui- tetônico dos engenhos. FREYRE, G. São Paulo: Círculo do Livro, 1933. Livro Na alvenaria, as paredes são erguidas empilhando pedras, tijolos ou adobe (blocos de argila crus) com ou sem argamassa de ligação. Curiosidade Mocambo ou quilombo? Mocambo é o nome de origem africana dado aos casebres feitos de taipa de pau-a-pique e teto de palha ou telha de barro, os quais os africanos construíam para si mesmos como habitação, sendo um termo usado também para referir-se às comunidades de escravizados fugidos. A pala- vra quilombo foi introduzida no vocabulário colonial para se refe- rir ao assentamento de Palmares, no interior de Alagoas, e passou a ser utilizada como sinônimo de mocambo. Segundo Schwartz (1987), ki-lombo consistia em uma instituição africana que congregava jovens de diferentes etnias por meio de ritos iniciáti- cos e os treinava como guerreiros. Saiba mais https://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/handle/20.500.12156.2/301408. 38 História da Arte no Brasil 2.4 Barroco e Rococó no Nordeste Vídeo A economia do açúcar, baseada na mão de obra escrava, também gerou o excedente necessário para a construção de igrejas e realização de seus respectivos programas decorativos. Afinal, as ordens religio- sas, quando não possuíam engenhos e mão de obra escrava, recebiam doações dos senhores de engenho e comerciantes. Além dos jesuítas, outras ordens, como a dos franciscanos, construíram sedes na colônia. O historiador francês Germain Bazin (1956) identificou uma “escola franciscana do Nordeste”, cujo Convento de Santo Antônio, em João Pessoa, na Paraíba, seria o exemplo mais emblemático. O con- vento encantou também Mário de Andrade que, em sua viagem pelo Nor- deste, afirmou ser um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do Brasil. Foi fundado em 1589 e passou por uma série de reformas até ser concluído em 1779 (Figura 8). O convento apresenta características recorrentes nos demais con- juntos franciscanos na região, como a existência de um adro (ou pátio) em frente à igreja, que começa com uma cruz em pedra monumen- tal (o cruzeiro) e termina na galilé, um alpendre coberto e delimitado por arcos na área de entrada da igreja, em que os portões instalados nos vãos organizam a passagem. O portão da extrema direita marca o acesso dos franciscanos leigos (da Ordem Terceira); e o da extrema esquerda, dos frades (da Ordem Primeira). Os três portões ao centro abrem-se para a nave, que se comunica lateralmente com a capela da Ordem Terceira, coberta com talha dourada. Na parte externa, a torre única, um pouco recuada, quebra a simetria da fachada; já as volutas, que são uma
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