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1 
 
GÊNEROS NARRATIVOS NA LITERATURA BRASILEIRA 
 
RESUMO: 
PRINCIPAIS PONTOS DOS CONTEÚDOS SEMANAIS 
 
Na SEMANA 1, os nossos estudos abordaram a narração, destacando que ela é um gênero 
presente em nossas vidas. Desde a escuta de histórias de nossos antepassados, passando por 
parábolas religiosas, acontecimentos cotidianos, textos de ficção, anedotas, textos 
jornalísticos, histórias em quadrinho, ela está presente em nossas vidas. 
 
Na esfera dos estudos literários, podemos dizer que uma mudança no foco de atenção dos 
pesquisadores: a interpretação deixou de ser a única via de estudos do texto narrativo; 
surgiram, então as análises sobre as estruturas e os discursos narrativos. Jerome Bruner 
dedicou o livro Realidades mentais:mundos possíveis ao exame e discussão do quão 
preponderante foi o papel a narrativa na evolução da cultura humana. 
 
Dando sequência, chegamos à SEMANA 2, e procuramos caracterizar a formação humana, 
a partir de como o homem formula seus pensamentos e, com esses, age no mundo, ou seja, 
em quais circunstâncias são mobilizados. Entendemos por pensamento narrativo a narrativa 
criada pelo homem, baseada em sua memória e na sua interação com os demais, e 
pensamento científico como as proposições derivadas da história narrada. O ser humano em 
contato com a sociedade, cultura e sua própria vivência cria suas narrativas que espelham 
narrativas coletivas e delas depreendem uma série de proposições. 
 
No capítulo do livro “Realidade mental: mundos possíveis – ‘Dois Modos de Pensamento’”, 
Bruner aponta as distinções entre o modo de pensar narrativo e o científico. O autor defende 
a tese de que esses dois modos de funcionamento cognitivo constroem realidades, ordenando 
a experiência cada um da sua forma. Apesar disso, ambos os discursos seriam 
complementares entre si, sem que um se um reduza ao outro. O pensamento científico, que 
Bruner chama de paradigmático, se associa ao discurso teórico e ao logos, ou seja, são 
utilizados argumentos para estabelecer "o ideal de um sistema formal e matemático de 
descrição e explicação”. Para isso, um cientista ou filósofo procura criar categorias ou 
conceitos, relacionando-os uns com os outros até formar um sistema geral baseado em 
hipóteses fundamentadas, isto é, que podem ser demonstradas como verdadeiras. Por sua 
vez, a narrativa, mítica ou literária, aborda a maneira pela qual as intenções humanas se 
comportam nas mais diversas situações. Nesse sentido, as histórias que são criadas traçam 
relatos de ações humanas em circunstâncias de experiências localizadas num tempo e espaço 
definidos, enquanto o discurso teórico tenta ir além dos fatos particulares, visando 
formulações de princípios gerais e abstratos: 
 
As narrativas podem servir como argumentos (McGuire, 1990, p. 231). Devido à sua 
estruturação sintática, a narrativa tem uma coerência lógica interna, a qual estabelece uma 
relação entre as suas partes constitutivas. Por ser uma forma de comunicação cotidiana, a 
narrativa sempre faz parte de um discurso falado, o que implica uma situação concreta de 
narrar “hic et nunc”, quer dizer, um momento definido, uma situação, circunstâncias espaço-
temporais. Parte da situação é constituída pelos parceiros da comunicação e pelo tema do 
discurso. Essa conexão temática do discurso e as suas contribuições, ou seja, a rede temática, 
está relacionada à coesão argumentativa e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato 
 
2 
 
linguístico, a narrativa é construída tendo em vista todos esses parâmetros (situação, 
parceiros, rede temática/argumentativa etc.), e no modo como esses são percebidos pelo 
narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa está conectada ao discurso como um todo. 
A comunicação tem, em geral, um caráter argumentativo; até uma fala trivial, como parte de 
um discurso, tem uma conexão argumentativa, pois ela pode se tornar objeto de uma 
justificativa (“por que você falou isso?”). Sendo ação la implica uma intencionalidade. A 
narrativa como ação (linguística) também desempenha uma função em relação a essa 
intenção. Assim, aplicando uma abordagem mais abrangente da argumentação, cada 
contribuição para um discurso ou fala está numa relação argumentativa, como foi mostrado 
por Toulmin. (1958, pp. 109-111) 
 
Assim como as narrativas, a organização do discurso é um procedimento lógico que usa de 
argumentos (Petrilli, 1991, p. 142). Narrativas têm um caráter argumentativo: se contadas 
como exemplos, elas desempenham uma função de criar evidências ou uma licença de inferir 
para uma exposição ou um complexo de exposição-conclusão. Assim, se conclusões são 
tiradas a partir elas, elas servem como dado ou exposição. 
 
Para melhor aprofundar os seus estudos, é desejável que você se dedique também às 
videoaulas. Assistir e destacar os conteúdos apresentados contribuirá para que seus 
conhecimentos sejam solidamente construídos. 
 
Indo em frente, aprendemos na SEMANA 3 que: "(...) o discurso narrativo aparece como lugar 
privilegiado para elaboração da experiência pessoal, para a transformação do real em realidade, por meio de 
mecanismos linguísticos discursivos, e também para a inserção da subjetividade (entendida aqui, do ponto de 
vista discursivo, como um lugar que o sujeito pode ocupar para falar de si próprio, de suas experiências, 
conhecimento do mundo, ou, mais sucintamente, entendida com a forma pela qual o sujeito organiza sua 
simbolização particular). (TFOUNI, 2005, p. 73-74) 
 
Aos conhecimentos construídos, somam-se os argumentos segundo os quais o sujeito põe-
se à mercê do discurso do Outro, que lhe faz exigências às quais ela tenta de todo modo 
responder, mesmo sem ter certeza se é isto o que realmente quer, talvez porque este discurso 
do Outro lhe venha revestido de um discurso dominante, de uma formação social dominante, 
com a qual, por força da ideologia, ele sente-se interpelado a identificar-se. Podemos explicar 
este fato tomando como base a teoria da heterogeneidade constitutiva do discurso, que tem 
seu respaldo exatamente nessa relação de submissão com o Outro (Authier-Revuz, 1982). 
Como afirma Maingueneau (2004) a teoria de heterogeneidade constitutiva de Authier-Revuz 
traz mais uma aproximação da AD e da psicanálise lacaniana, pois coloca ao lado do sujeito 
interpelado pela ideologia um sujeito que é também dividido pelo inconsciente e que 
ilusoriamente acredita ser dono do seu dizer. Assujeitado a um Outro que lhe faz exigências 
constantes e que apontam para onde dirigir seu desejo o sujeito das narrativas tenta 
sobreviver numa sociedade onde as crianças de rua são representadas e tratadas como 
marginais, além de terem origem em famílias desestruturadas. 
 
 O excelente texto Notas Sobre a Experiência assinala que "A experiência é o que nos passa, o 
que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A 
cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-
se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, 
em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. 
Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" (LAROSSA, 2000). 
 
 
3 
 
A experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa demasiadamente 
depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, 
imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e 
efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, 
na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são 
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo 
moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a 
memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente 
nos excita por um momento, mas sem deixar qualquervestígio. 
 
O autor ressalta também que "o sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando 
informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor 
informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, 
mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça". (LAROSSA, 2002, p. 20) 
A leitura dos textos-base da SEMANA 3 é imprescindível para você melhor preparar-se para 
a PROVA. Entre a Análise do Discurso e a Psicanálise, a Verdade do Sujeito-Análise de Narrativas 
Orais (Leda Verdiani Tfouni e Marcela Laureano) Link: e Notas sobre a experiência e o saber de 
experiência (Jorge Larrosa Bondía). 
Assista às videoaulas, que lhes ajudará a melhor compreender os conceitos e definições acima 
apresentados. 
 
Chegamos à SEMANA 4, que nos apresentou ou textos: Tipos de narrador e novas 
discussões em narratologia (Flávia Roberta Menezes de Souza) e São Bernardo: a posição do 
narrador no romance e no filme (Germana da Cruz Pereira e Georgia da Cruz Pereira). 
A narratologia é um campo do conhecimento que se desenvolveu graças a uma consciência 
linguística voltada sobretudo aos estudos literários – especificamente, à narrativa literária - e 
que alcançou grande espaço na crítica literária no final da década de 60, com a virada dos 
estudos estruturalistas. A retomada dos pressupostos formalistas, àquela época recém-
descobertos, resgatou a preocupação com a construção de uma ciência da literatura. Ainda 
que o projeto estruturalista tenha se deparado com as limitações de seu próprio aparato 
teórico diante da complexidade do objeto que estudava, são inegáveis as contribuições que 
tanto renovaram a linguagem conceitual dos fenômenos literários os quais careciam de 
termos que oferecessem maior precisão nos trabalhos e pesquisas em torno da narrativa. 
Também não se pode desconsiderar que o rigor científico buscado pelos estruturalistas 
propiciou uma série de publicações que até hoje sobrevivem e subsidiam o estudo da 
narrativa. 
 
Gérard Genette (1995), em O Discurso da Narrativa, retomando a questão em torno do 
discurso e da narrativa, contribui para o estabelecimento de conceitos que, posteriormente, 
passaram a ser amplamente utilizados em estudos e trabalhos sobre narrativa, narrador 
heterodiegético e homodiegético em substituição às definições narrador em primeira pessoa, 
narrador em terceira pessoa, tradicionalmente também conhecidas: 
 
Genette estabelece, então, um quadro que determina os tipos de narrador quanto à sua 
inserção na diegese (história) e ao nível narrativo a que pertence: 
extradiegéticoheterodiegético; extradiegético-homodiegético; intradiegético-heterodiegético; 
intradiegéticohomodiegético. Se é clara a compreensão do que seja heterodiegético e 
homodiegético quando se conhece a superada classificação narrador em primeira pessoa, 
narrador em terceira pessoa, é possível dizer que as classificações extra- e intradiegético 
dizem respeito à posição do narrador em relação ao nível narrativo, uma vez que é possível 
o narrador pertencer ao primeiro nível da narrativa e, posteriormente, dentro da história, 
 
4 
 
outro narrador surgir e “se habilitar” a narrar outra história. Tem-se, assim, uma história 
dentro da história, e os narradores de ambas se encontram em níveis diferentes, pois falam 
de lugares diferentes. Genette, nesse mesmo trabalho, apresenta uma outra maneira de pensar 
o narrador, que é a focalização. A focalização diz respeito ao conhecimento que o narrador 
tem sobre a história em comparação com o conhecimento que o personagem tem. Genette 
adverte que a focalização “nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas 
antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 
1995, p. 189). Trata-se de uma questão importante, mas que nesse momento apenas será 
citada para retomar a tipologia de Friedman apresentada por Lígia Leite que relaciona tipos 
de narrador e ponto de vista como sendo um fenômeno apenas. 
 
Schmid (2010) estabelece onze critérios para se pensar a tipologia do narrador. 
Quantitativamente, trata-se de um painel mais criterioso, mas o ganho está na distinção entre 
tipologia e ponto de vista na narrativa. Um narrador não diegético, por exemplo, pode 
assumir o ponto de vista de um dos personagens para narrar determinada situação e nem por 
isso ocorre uma mudança de tipos. 
 
Paulo Honório, ao contar a história de São Bernardo e a sua, as quais estão interligadas, o 
faz crendo que a forma como conquistou as terras, sua ascensão e decadência seriam assuntos 
interessantes. O narrador é bastante realista, sobretudo, por expor seus pensamentos e 
impressões, sobre fatos “que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém” (RAMOS, 1981, p. 
10). Para Bourn uf Ouellet (1976, p. 246), o personagem é o único capaz de contar sua própria 
história, pois “por mais fragmentário ou contestável que seja, o conhecimento de si mesmo 
pela introspecção é o único válido.” Se , visto por esse prisma, o romance funciona como 
uma espécie de diário de Paulo Honório feito com seus recortes de memória, lembranças 
que não o abandonam e o atormentam na solidão em que se encontra e vazio de uma casa 
que já fora habitada e visitada por muitos, é o retrato da decadência de um homem.Para uma 
melhor explanação, podemos dividir as obras em duas partes principais: conquista e ascensão 
de São Bernardo (já mencionados) e o casamento com Madalena, sendo este o responsável 
pelo declínio do homem próspero apresentado até então ao leitor. 
Atormentado pela dúvida com relação à fidelidade de sua esposa, Madalena, o narrador 
mostra na segunda parte do livro como passou a tratá-la, sempre desconfiando de cada 
barulho, de cada gesto, de cada carta, e a maneira como distanciava os seus prováveis 
amantes. 
 
Romance moderno, São Bernardo, apresenta um narrador que faz seu relato dando-lhe 
aspecto de realidade, visto que revela ao leitor o espaço, Viçosa, em Alagoas, e nomeia na 
escrita. demonstrando que a verdade presente naquelas linhas foi pensada e articulada, 
portanto, é interessante notar a relevância do livro São Bernardo para a literatura brasileira, 
sobretudo pelo fato de ter sido escrito em 1934 e manter-se atual até os nossos dias. Sua 
atualidade se deve, principalmente, a temas relacionados à alma, à solidão humana e à 
constante busca por explicações interiores; ademais, se observarmos os recursos técnicos 
utilizados por Graciliano Ramos para demonstrar a introspecção de Paulo Honório e sua 
reflexão sobre o fazer artístico, como a postura do narrador, perceberemos que são assuntos 
merecedores de atenção e estudo em nosso mundo contemporâneo. Leon Hirszman, ao 
adaptar o romance para o cinema, em 1973, reafirma sua atemporalidade e atualidade, visto 
que, passados quase quarenta anos, a situação política e social brasileira continuava a mesma 
ou até piorara devido aos regimes ditatoriais. 
 
Avançando, alcançamos a SEMANA 5. Nessa semana, vimos que, últimos anos, tem se 
tornado recorrente, no campo da literatura, a prática da reescrita de textos literários 
 
5 
 
canônicos a partir de múltiplas perspectivas, como as que se empenham em salientar as 
diferenças de gênero, de raça e de classe social. No contexto dos estudos sobre literatura de 
autoria feminina, trata-se de uma tendência, de fato, importante, já que se caracteriza pela 
produção de um texto novo e autônomo que denuncia a alteridade do/a oprimido/a, no 
caso, a mulher, e promove o desnudamento de sua identidade. Ana Maria Machado, em A 
audácia dessa mulher (1999), num interessante diálogo com Dom Casmurro, de Machado de Assis, 
reescreve a trajetória de Capitu. Do mesmo modo, Nélida Piñon, em Vozes do deserto (2003), 
reescreve a história de Scherezade, personagem de As mil e uma noites, coleção de contos da 
literatura árabe, de origem persa e indiana. Se, nos textos originais, essas personagensnão 
têm voz, nas referidas reescritas, elas são construídas imbuídas do direito de falar. 
 
No âmbito da literatura brasileira de autoria feminina, a estratégia da reescrita tem sido, não 
raramente, utilizada pelas escritoras brasileiras numa atitude de reinvenção, que põe em 
relevo o modo de construção e representação do universo da mulher. É o caso dos romances 
A audácia dessa mulher e Vozes do deserto. 
O primeiro consiste em um texto em que, em meio à teia narrativa que se desenvolve em 
torno da trajetória da audaciosa Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no 
finalzinho do século XX, a autora reescreve e/ou reinventa a trajetória de Capitu, a 
protagonista de Dom Casmurro, de Machado de Assis. 
Se as leituras mais ingênuas desse clássico romance oitocentista giram em torno da polêmica 
da culpa ou da inocência de Capitu, uma das personagens femininas mais discutidas da 
literatura brasileira, as leituras mais lúcidas enfatizam a questão do ciúme de Bentinho, e a 
consequente impossibilidade de o leitor ter certeza se ele foi ou não traído pela mulher com 
seu melhor amigo. Isso porque o romance é narrado em primeira pessoa pelo próprio 
Bentinho, enlouquecido de ciúme, quando ele já se encontrava na velhice, visceralmente 
mergulhado na solidão e na sua casmurrice. Consequentemente, Capitu é silenciada, tal 
estratégia narrativa não lhe permite expressar seu ponto de vista, ainda que matizado pelas 
tintas da ideologia oitocentista. 
 
É fundamental nessa reescrita o fato de Capitu ser capaz de reinventar, a partir do nada, uma 
nova vida e dar sentido a ela. Apenas aparentemente ela cumpre a sina da mulher adúltera 
que, após ser desmascarada, morre na solidão e no abandono como forma de purgar seus 
pecados. Na verdade, ela ignora o rótulo de “fêmea infiel” e constrói uma vida digna a partir 
de seus próprios méritos. O fato de ter abandonado o apelido de menina e passado a usar a 
outra metade do nome, Lina, numa atitude de Fênix, aponta para sua capacidade de 
engendrar a própria história, independentemente das adversidades impostas a seu sexo pelo 
pensamento patriarcal. 
 
Indo em frente, chegamos à SEMANA 6 que nos instiga a pensar a tamanha contribuição 
que uma boa criação do espaço dá para o desenvolvimento da personagem. Há muitos 
sentidos ligados na organização dos espaços, e, com este estudo, você vai perceber que o 
ambiente narrativo pode até influenciar as personagens com relação ao seu jeito de ser e agir. 
Dessa forma, é possível salientar que a arte narrativa é toda entremeada por sutilezas que 
precisam estar bem articuladas para alcançar a verossimilhança. E que a ambientação diz 
muito em uma obra; revela, situa, antecipa, dá movimento, emociona... Em cada linha há 
intencionalidade. É preciso ficar atento aos detalhes. Ler os textos-base, assistir às videoaulas, 
fazer as atividades avaliativas lhe ajudará no processo de preparação para a Prova. 
 
Esteja atento aos estudos da topoanálise, isto é, a análise do espaço na obra literária. Lembre-
se de que o autor parte da terminologia de Bachelard, mas amplia o seu alcance de sentido. 
 
6 
 
Destacamos que a topoanálise não se restringe à análise dos espaços íntimos, mas de todo e 
qualquer espacialidade representada na obra de ficção. 
 
Quase chegando ao final de nosso curso, temos a SEMANA 7. Entendendo os conceitos de 
memória e experiência na narrativa (as quais são adquiridas pelas personagens no espaço 
vivenciado na ficção), a ideia de tempo vai se mostrando crucial também para a atribuição de 
sentidos ao enredo. Para exemplificar: “A aceleração, como um “mal-estar” contemporâneo, 
articula-se tanto à efervescência da memória-arquivo quanto ao apagamento da dimensão 
memória-vida” (BRAGANÇA, 2012). Então, o tempo também delineia diferentes esferas da 
obra; seu percurso se transforma por meio das experiências, guardadas na memória, que 
também pode ser de espera (presente, passado, futuro. Dê atenção às videoaulas: 1ª) O 
tempo na literatura. Ressaltamos aqui que tempo, personagem, espaço – tudo deve estar 
bem articulado para fazer sentido, para se obter a verossimilhança, e alcançar o propósito da 
arte escrita: “tocar” o leitor, transformar seu olhar, aguçar suas buscas, entreter e, quem sabe, 
mudar “mundos”; 2ª) Confluências temporais em Clarice Lispector: Análise de “Uma 
Aprendizagem” e “Água Viva”. Esta videoaula analisará o tempo na narrativa por meio de 
algumas obras da escritora Clarice Lispector. E seu encantamento pela arte dela está 
garantido. 
 
 E finalmente, a SEMANA 8, que nos brinda com o texto “Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, 
aponta os caminhos de Rosa. 
“Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães Rosa”, 
orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras Clássicas e 
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 
“Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem uma ambição 
literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta um tipo de narrativa 
diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária, como os do romance 
greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até os da literatura mais 
moderna de seu tempo”. 
 
Lembre-se, caro aluno, a leitura, os estudos, os resumos e fichamentos dos textos-base e 
videoaulas, assim como a tarefa de realizar as atividades avaliativas e os quizzes irão ajudá-lo 
a sair-se muito bem na prova. 
 
Desejo que você possa aproveitar o resumo que ora lhes ofereço e que tenha construído 
muitos conhecimentos ao longo da disciplina. 
 
Profª Elaine Assolini 
A AUTORA 
Maria Cristina Palma Mungioli 
Pedagoga. Mestre em educaç30. Professora 
do curso de Publicidade e Propaganda da 
Faculdade Integraqâo Zona Oesie. 
APONTAMENTOS PARA 
O ESTUDO DA NARRATIVA 
Narrativa revela sua importância para 
a compreensiio da cultura humana 
esde as rudimentares pinturas 
nas cavernas até os nossos 
dias, o ser humano tem encon- 
trado no gênero narrativo não 
só uma forma de demonstrar e interpretar 
suas relações com o mundo e com as pes- 
soas que o cercam como também de ser 
compreendido e interpretado. 
A narração é um genero onipresente em 
nossas vidas. Desde as histórias que ouvía- 
mos h hora de dormir, passando pelos 
jornais, histórias em quadrinhos, textos de 
ficção, anedotas, publicidade até às par5- 
bolas religiosas, a narração acornpanha- 
nos por toda a vida. Narrar é uma habili- 
dade inerente ao ser humano e para alguns 
estudiosos configura-se como o próprio fa- 
tor de humanização de nossa espécie. 
J5 nas primeiras manifestações da cul- 
tura escrita, o gênero narrativo fazia-se 
presente, como atestam os textos do Ve- 
lho Testamento, o livro dos Vedas ou os 
textos atribuídos a Homero. Quase tão 
antiga quanto a narrativa escrita, tem sido 
a preocupação com seu estudo. De 
Aristóteleç até hoje, especialistas das mais 
diversas areas t&m se dedicado i anáIise 
de textos narrativos com a intenção de 
compreendê-10s. Porém, podemos çonsi- 
derar que f ~ i somente a partir dos traba- 
lhos realizados por alguns pesquisadores 
sovi&ticos, conhecidos no Ocidente como 
Formalistas Russos', que o estudo siste- 
mritico da narrativa começou a se delinear 
e serviu como uma espécie de linha divi- 
sória entre fonnas distintas de se estudar 
a narrativa. 
Em termos históricos, o estudo da nar- 
rativa pode ser dividido em dois grandes 
momentos. O primeiro caracteriza-se pelo 
estudo do texto narrativo centrado na sua 
interpretação, sendo a exegese a represen- 
tação máxima desse período. O segundo 
momento, que se caracteriza pelo estudo 
sistem5tiço da narrativa do ponto de vista 
de suas estruturas, tem inicio com a pu- 
I. Tcrmo qiic nbnrca as pesquisas linguisticas e literirias realizadas na Rússia nos Anos 20. (N. Ed.) 
49 
SEMANA 1 - TEXTO BASE 1
Apontamentos para o estudo da narrativa 
blicação, em 1928,do livro Molfologio do 
coiito, de Vladimir Propp7 . 
Os estudos empreendidos pelos 
Fornalistas Russos fundaram a nLurritologia 
como teoria da narrativa. Adam define a 
narratologia como "um braço da ciencia 
geral dos signos - a Semiologia - que se 
esforça em analisar o modo de organiza- 
ção interna de certos tipos de textos. Isso 
a relaciona com a Análise do Discurso e 
com a Linguistica textual que distingue os 
tipos de textos (argumentativo, explicativo, 
descritivo, narrativo etc.} dos tipos de dis- 
curso em que se encontram atualizados e 
misturados (romances, filmes, histórias em 
quadrinhos, foto-romances, faits divers, 
publicidade, anedotas e t ~ . ) " ~ . 
Na esfera dos estudos literários, pode- 
mos dizer que o estudo sistemático das 
narrativas propoicionou uma mudança no 
foco de atenção dos pesquisadores: a in- 
terpretação deixou de ser a única via de 
estudo do texto narrativo; surgiram, entiio, 
as análises sobre as estruturas e os discur- 
sos narrativos. Buscou-se, assim, "não 
apenas o que o texto queria dizer" mas 
tambem "como" o texto se construía e se 
organizava para conseguir significação. 
basicamente essa mudanqa de enfogue que 
tem aberto e possibilitado novas perspeç- 
tivas de analise que envolvem, alkm do 
texto propriamente dite, as formas de pen- 
samento humano4. 
NARRATIVA E COGNIÇAO 
Com a divulgação dos resultados de pes- 
quisas efetuadas por diversos esnidimos dos 
campos da lingüística, da semiótica e da psi- 
cologia cogni tiva, o interesse pelas formas de 
pensamento presentes na narrativa tem se tor- 
nado uma constante naç duas Últimas dw . 
Um dos fatos desencadeadores para essa 
nova abrdagem do texto narrativo foi a pu- 
blicação, em 1976, dos trabalhos de 
Havelock acerca dos poemas homéricos. 
Para esse estudioso, tais poemas representa- 
vam uma avançada civilização que utilizava 
a n m @ o como um modo de pensamento. 
Os estudos de Hctvelock ocupam um lugar 
privilegiado quando se discute a passagem 
da cultura oral grega i cultura escrita e abn- 
ram caminho para inúmeras pesquisas que 
abordafn a relação entre o desenvoEvimento 
da cultura escrita e do pensamento. Muitos 
desses crabalhosc' detêm-se em pesquisar as 
2. PROPP, Vladimir I. Modologia do conto maravilhoso. Rio de Jancim: ForcnseNniversitária. 1984. 
3. ADAM. J. I A rérit. Colletion Que sais-je9 (A narrativa. Coleçiio O que eu sei?) Paris: Prcsses Universiiaires de 
Francc. 1994. p. 4. (Rits-divcrs - do frances fatos diversos. Expressio para dcsignm noiícias corriqueiras dc iniercsse 
popular.) 
4. Fazendo um apanhado hisiúrico sobre como se tem considerado a namtiva. Olson afirma que cla tem sido vista há 
bcolos como antagcinica no pcnsarncnto ncional:"Nnrmriin 4 lirita Jornrn de discrrrso irarrrml, niio-reJe.~iin e ncrificn 
qrfe i B O~JOSIO &jortiias ninis refleriiws & drscitr,fo r0i.r qrr l t i~ Itistrjrin rnrfilosojn" t nduç8o nossa). Cf. OLSON, D. 
R. ThriiLi i i~ uh(iiir i rnrmf i i .~ (Pensando sohrc a narraiiva) In: RRIJTON. 11. K. & PELLEGRINI. A. (oi-g.) Narrative 
Zhoughi and narrative Irn~uage. (Pensamento narrativo c linguagem narrativa.) Ncw lerwy: Lawrcnce Erlh~wm 
Assoc~rtes. Puhli~hem. 1990. p. 00. 
S. Sc~iindo Olson: "Narnitvns ( . . . I podcm ser vistas nZo somcnic como esquemas para nrrnazcnamento de inrormaqilo 
para SIIB ~ C U I I T I P ~ ~ ~ O mas lamhérn como formas de pnsarnento - csqucmas dc iiiierpretaçZn de expzriências c açifo 
rnrormativa." Cf. OLSON, D.R. Thirikriig ... op. rir. p. 101. 
6. DRUNER. I. Realidades mentais, mundos porníveis Porto Alegre: Ancs MMicas, 1998. . Atos de 
sígnificaqíin. Porto Alcyc: Artes Médrcas. 1997. CHAFE. ilr Soiirc rlriirgr rltnr iinrmtii~cs teII 11s n h i i r /Iic iiriitd 
(Alyumas coisas quc ;is narr~tivas nos dizcm sobrc a menfe) in: BRITTON, B. K. & PELLEGRINI. A. D. (oi-g.) 
Nnrratiw ... up. rir. FELDMAN. C. F. & BRUNER, J. &L RENDERER. B. R: SPITZER. S. Narntivc romprchension. 
hi BRITTON, B. K. PELLEGRINI, A . D.(orp.) Narrative ... op. cir. OLSON. D. R. & TORRANCE. N. (og.) 
Cultlirra escrita e oralidadc. S90 Peulo: Atica. 1905.OI,50N. D. R. Thiiikiitg crlx~~i i i i , rrnrrnriw. In: BRITTON. B. K. 
PEI+I,EGKINB, A. (org.) Narrativc ... op. rir. 
Comunicação & Educação, São Paulo, (23): 49 a 56. jan./abr. 2002 
relações entre o pensamento e a lingua- 
gem narrativa. 
Havelock7 apresenta e discute os poe- 
mas épicos da Jlíada e da Odisséia como 
sendo representantes de uma avançada ci- 
vilização que utilizava a narração como 
um modo de pensamento. Para Havelock, 
os poemas homéricos devem ser vistos 
como "imensos repositórios da inforrna- 
ção cultural, abrangendo costumes, leis e 
propriedades sociais que também foram 
armazenados"! Para ele, tais poemas encer- 
ravam não apenas palavras a serem memo- 
rizadas como também ritmos e métrica pr6- 
prioç que funcionavam como uma esp6cie 
de f6miuIa mnemônica a ser cantada. 
Entre os estudiosos que analisam a 
narrativa sob o aspecto do desenvolvi- 
mento cognitivo e que buscam compre- 
ender os esquemas cognitivos e as for- 
mas de pensamento que engendram e são 
engendradas pelo pensamento 16gic0, 
destaca-se Jerome Bruner. Esse psicó- 
logo norte-americana dedicou o livro 
Realidades metttais: mundos possíveis 
ao exame e h discussão do quão prepon- 
derante foi o papeI da narrativa na evo- 
lução da cultura humana. 
Nesse livro, publicado nos EUA em 
1986, Bmner analisa a argumentação e a 
namaç5o como as duas femas de que o 
ser humano dispõe para construir seu pen- 
samento seja ele científico ou imaginati- 
vo, Ele não considera que uma dessas for- 
mas seja superior a outra; cada uma delas 
se adapta a necessidades humanas distin- 
tas em seus fins, mas têm em sua concep- 
ção semeIhanças. 
Segundo Bsuner, cada uma das duas 
formas de pensamento oferece caminhos 
distintos de fornecer experiências de cons- 
trução da realidade. 
Os modos argiimentativo e 
narrativo. embora 
complementares, são 
irredutíveis um ao outro e o 
primeiro niio representa um 
refinamento ou uma abstraç50 
do outro. 
Cada um dos modos opera com seus pr6- 
prios procedimentos e critérios. Uma boa 
história e um argumento bem constmído 
têm suas características peculiares; porem, 
ambos podem ser usados para convencer 
uma pessoa. Suas formas de convencimen- 
to são diferentes: o argumento convence por 
sua verdade, histórias por sua semelhança 
com a vida (verossimilhança}. O primeiro 
verifica-se pelo uso de procedimentos for- 
mais e provas ernpírjcas. O outro estabele- 
ce não a verdade mas a verossimilhança. 
Essas formas de expressão funcionam 
diferentemente e a estrutura de um bem for- 
mado argumento lógico difere radicalmente 
daquela de uma história bem forjada. Em 
ambas utiliza-se a questão da causalidade, 
mas os tipos de causalidade implicados em 
cada um dos processos são diferentes. (O 
termo "então" funciona diferentemente 
numa proposição lógica - se x, então y - e 
num discurso narrativo - a rei morreu e en- 
7. HAVELOCK, E. Origins o l western literacy. Toronto: OISE Press, 1976. . T11c literore wi~oliirinii iii 
Greecp rritrl i fs ciiliiiml c.oirseqiiriiç~s. Princeton New Jersey: Princeton Wniversity Press, 1982. 
8. HAVELOCK, E. A eqrtnqfio do oorolidnrle-crrlritm escritn: uma Frmula para a mente moderna. In: OLSON. D. R., 
TORRANCE. N. (orgs.) Cultura escrifa e oralidade. São Paulo: Aiica, t99.5. p. 30. 
Apontamentos para o estudo da narrativa 
tão a rainha morreu). Um objetiva a busca 
por verdades universais, o outro por cone- 
x*s semelhantes entre dois eventos [mor- 
te, suicídio). Embora seja verdade que o 
mundo da histiiria, para adquirir verossimi- 
lhança, deva esiar conforme os c5nones da 
consistência lógica, ele pode violar esta con- 
sistência lógica (como por exemplo Kafka, 
Beckett). Da mesma forma a arte da retórica 
inclui o uso de instâncias dramlíticac para 
conseguir agudeza de um argumento cujas 
bases são principalmente lógicas, o que de- 
monstra que as categorizações estanques 
nem sempredão conta das inúmeras situa- 
ç k s de significação que ocorrem nas esfe- 
ras da comunicaçio. 
Brune? enfatiza que os critérios de aná- 
Iise de um argumento correto ou incorre- 
to são diferentes daqueles usados para jul- 
gar uma boa história e que sabemos que 
várias hipóteses científicas e matematicas 
começaram suas vidas como pequenas his- 
tórias ou metáforas, mas conseguiram sua 
maturidade através da verificação, formal 
ou ernpírica, e seu poder não repousa em 
suas origens dram aticas. ' ' 
O modo paradigrnático ou lógico-cien- 
tífico procura realizar o ideal de um siste- 
ma formal e "matematizado" de descrição 
e explanação. Ele utiliza categorizações 
ou conceituações, operações pelas quais 
categorias são estabelecidas, colocadas 
em instancias, idealizadas e relatadas de 
uma para outra forma de sistema. Seu 
an~iaiireiitnriuni (arsenal) de conecrivos 
inclui em seu lado formal idéias seme- 
lhantes como conjunção e disjunção, 
hipernomia e hiponomia, implicq5o es- 
trita e as fronteiras pelas quais proposi- 
ções gerais são extraídas de sentenças em 
seus contextos particulares. De maneira 
geral, o modo lógico-científico (ou 
paradigmático) negocia com causas gerais 
o seu estabelecimento e faz uso de proce- 
dimentos para assegurar a verificabilidade 
da referência e testar a verdade empírica. 
Sua linguagem 6 regulada por necessida- 
des de consistência e de não contradição. 
Seu domínio é definido não somente pe- 
las coisas observáveis que sua sentença 
bisica relata, por sua geração lógica, como 
tamwrn pela exposiçãto de possiveis mun- 
dos que podem ser logicamente gerados e 
testados contra coisas observ5veis - que 
são levadas pelas hipóteses de princípios. 
CUI,TURII NARRATIVA 
Bruner argumenta que sempre se pro- 
curou entender a narrativa tentando-se 
compreender o seu significado (ou o que 
o texto queria dizer), mas pouco se 
pesquisou em relaçzo aos processos de 
pensamento que engendram uma narrati- 
va e come esta passa a ter significado. Essa 
tem sido a tarefa relativamente recente de 
muitos psicólogos cognitivistas'O e pesqui- 
sadores da área de linguagem. 
9. BRUNER. J. Realidades ... g. rir. 
10. Bniner. como uni <ir>$ Fiind:idorcs do Centro dc Estudos Cogniiivo~ dc Harvard. em 1960. afirma quc a meta du 
clian~ada rcvoluçiio coTnifiw c desw ceniro era: "( ...) clcscobrir c dcscrcvcr forniulmctilc os significados que os seres 
hurnanrir cri:iv:ini a p ~ r t i r de scus encontros coni o nitiiido e e n t h levantar hipcíieses sobrc quc processos dc prodiiç30 
dc significado esiavam implicados. El:i foc~lizou as :itivid,idcs simbblica~ que or wrez humanos crnprcgavnm para 
c.rlr:iir sigiiilic:~tlos nào upcnns do mundo. m.ir dc SI nicsnios." Bnincr cxplica qiic murioccdo a fnfase deixou de m a i r 
stibre o significado d:is rclaçtks Iiiiinnnns para privilegiar n id6i;ide "pmes~arncnto dc inforniaçócs". Çcgiindo clc. csw 
cnfquc p r i l i o ~ i força ctim r i pmgrewocla cornpiit:iç:rio quc passou a ser vistacomo umd espkic de nidelodc inicrigen- 
cin. As iniplicnçks dessa mudança dc cnfoquc sio inúmcnc e mio C vrtinente Qs prctcnK~s dcsic traballio discufi-lns. 
Cb BRUNER. J. Atos de sipnificaqíio. Porto Alcgrc: Artes MÇdicas. 1997. p. I6. 
Comunicação & Educação, São Paulo, (231 : 49 a 56, jan./abc 2002 
Em Afos de sigr~i$cação, Bruner pru- 
cura demonstrar que é a cultura e não a 
bioIogia que "molda a vida e a mente hu- 
manas, que dá significado à ação, situan- 
do seus estados intencionais subjacentes 
em um sistema interpretativo. Ela faz isso 
impondo os padrões inerentes aos siste- 
mas simbóllicos da cultura, sua linguagem 
e modos de discurso, as formas de expli- 
cação 16giça e narrativa e os padrões de 
dependência mútua da vida c~rnurn" '~ . 
Acreditamos que o trabalho cientifi- 
co de Brunes possa ser visto como uma 
alternativa aos estudos cognitivistas 
que consideram a cognição humana se- 
gundo os padrões computacionais. 
Além disso, é possível notar, nos dois 
livros aqui mencionados, a farte influ- 
ência que as pesquisas e a teoria de 
Vygotsky lhe causaram. 
De acordo com Bruner, a 
maioria dos estudiosos, com 
e x c e ç h de Vygotsky, 
demoraram a se dar conta do 
valor primordial da cultura na 
evo1ul;ão do pensamento 
humano. 
A perspectiva sócio-histórica da teoria 
de Vygotsky, no que diz respeito h azivi- 
dade cognitiva, contempIa a visão de que 
o comportamento humano só pode ser 
entendido quando se observam os fatores 
históricos e sociais que o geraram. Uma 
das conseqüências dessa abordagem é que 
para Vygostyl% cognitivo e o afetivo são 
duas dimensões humanas inseparáveis que 
são construídas pelo seu inter-relaçiona- 
rnento e influências mútuas. 
Bruner, afinado com essa perspecti- 
va de Vygostky, argumenta: "A impli- 
cação mais geral é a de que a cuIitura se 
encontra em um constante processo de 
ser recriada à medida que é interpreta- 
da e renegociada por seus membros. 
Neste ponto de vista, a çuIitusa é tanto 
u m fórum para negociação e 
renegociação de significado e para ex- 
plicação da aqão quanto um conjunto 
de regras ou especificações para a ação. 
De fato, toda cultura mantém institui- 
ções especializadas ou ocasiões para in- 
tensificação dessa característica 'seme- 
lhante a um foro'. Narração de hist6fias, 
teatro, ciência e mesmo jurisprudência 
são tkcnicas para a intensificação desta 
função - maneiras de explorar mundos 
possíveis a partir do contexto de neces- 
sidade imediata"13. 
Essa sua análise acerca da psicologia 
cultural leva-o a formular um argumento, 
segundo ele próprio, bastante radical: " (...) 
é o impulso para construir narrativas que 
determina a ordem de prioridade na qual 
as formas gramaticais são dominadas pela 
criança pequena"14. 
A base de sua argumentação encontra- 
se na seguinte questão: se a ocorrência do 
pensamento narrativo é funcional no ní- 
vel do discurso, o mesmo deve ocorrer 
com relação i apropriação das estruturas 
gramaticais por parte das crianças. 
I 1. BRUNER. I. Atos ... op. cri.. p. 411. 
12. Y YGOTSKY, L. S. Pcnssamento e linguagem. Sào Paulo: Manins Foiitcs. 1989. 
13. BRUNER, J. Realidades mcntair, mundos possíveis Porto Alegre: Artes MWicns. i 998. p. 129. 
14. BRUNER, J. htm ... <I/>. cir. p. 72. 
Apontamentos para o estudo da narrativa 
De acordo com seu raciocínio, a narra- 
tiva exerce uma função desencadeadora na 
aquisição da linguagem pela criança. O 
papel essencial da narrativa prosseguiria 
no decorrer da vida dos seres humanos, 
posto que é através da interpretação de 
narrativas que as pessoas agem e 
interagem. "Negociar e renegociar os sig- 
nificados por intermédio da interpretação 
narrativa é (. . .) um dos coroIários das con- 
quistas do desenvolvimento humano, no 
sentido ontogenetico, cul tural e 
filogenético desta expre~são"~~. 
Portanto, a atividade narrativa encerra 
um processo çognitivo-social na medida 
em que instrumentaliza o ser humano a 
se situar como individuo e como ser so- 
cial, pois: "( ...) as çrianqas reconhecem 
muito cedo que o que elas fizeram, ou 
planejam fazer, será interpretado não ape- 
nas pelo ato em si, mas pelo que elas con- 
tarão a respeito dele, logos e práxis são 
culturalmente inseparáveis. O cenário 
cultural das nossas pr6prias açoeç nos 
força a sermos narradore~"'~. 
Segundo Bruner, a criança apreende 
desde pequena e poder de argurnenta- 
çáo das narrativas e lança mão delas 
sempre que necessário: "A criança (. . .) 
logo domina as formas de linguagem 
para se referir a ações e suas consequên- 
cias, na medida em que elas ocorrem. 
Ela aprende em seguida que o que você 
faz é dramaticamente afetado por como 
você relata o que está fazendo, fará ou 
fez. Narrar torna-se não apenas um ato 
expositivo, mas retórico. Narrar de uma 
forma que coloca o seu argumento de 
maneira convincente requer não apenas 
linguagem, mas um domínio das formas 
canônicas, pois é necessário fazer nos- 
sas ações parecerem uma extensão do 
canônico, transformando-as atravésde 
circunstâncias atenuantes. No proces- 
so de obtenção dessas habilidades, a 
criança aprende a usar algumas das fer- 
ramentas menos atrativas do negócio 
retórico, engano, lisonja e tudo o mais. 
Mas ela também aprende muitas das 
formas úteis de interpretaçilo e, por 
meio delas, desenvolve uma empatia 
mais penetrante. Ela entra então na es- 
fera da cultura humana"". 
Bruner acredita que a prbpria 
constitriiçio de uma cuIturn 
humana viável s6 se torna 
possivel porque dispomos 
de narrativas que servem 
para inter-relacionar 
significados e aqões. 
"Estar em urna cultura viável é estar 
inserido em um conjunto de histórias 
conectadaç capazes de estabelecer vincu- 
10s mesmo que essas histórias não repre- 
sentem um consenso " I 8 . 
Ao apresentar o processo de criação 
narrativa como sendo uma espécie de prin- 
cípio organizador do pensamento no qual 
a criança esta inserida desde a sua mais 
15. BRUNER, J. Atos ... #/J. rir. p. 65. 
16. BRUNER, I. Aios ... op. cii. p. 74. 
17.BRUNER.J.Atm ... np .Nr .p .78 . 
t8. nRUN13K. J. Aios ... op- Nr. p. RS. 
Comunicação & Educaqão, São Paulo, (23): 49 a 56, jan./abr. 2002 
tenra idade, Bruner aproxima-se muito de 
Bakhtin'" pois este argumenta que não 
aprendemos palavras descontextualisadas 
(neutras), aprendemos e utilizamos pala- 
vras impregnadas de intencionalidade tal 
COMO Bruner afirma acontecer com as nar- 
rativas - mesmo as de crianças pequenas. 
Portanto, podemos concluir que assim 
como usamos palavras de outrem, que 
passam a ser nossas, empregamos discur- 
sos narrativos e formas de narras de ou- 
trem que também passam a ser nossos, 
visto que os atualizamos, os impregna- 
mos e os empregamos com a nossa 
intencionalidade, integrando-os ao nos- 
so enunciado individual. 
Vygotsky, ao discutir o predomínio 
do sentido de uma palavra sobre seu 
significado, também abre espaço para 
relacionar os fenômenos psicológicos 
com os fenômenos sociais: "Uma pala- 
vra adquire seu sentido no contexto em 
que surge; em contextos diferentes al- 
tera o seu ~en t ido ' "?~ . 
Resumo: O texto apresenta de manefra sucin- 
ta algumas ideias que nas iírtimas duas deca- 
das fizeram com que o interesse pelo estudo 
da narrativa tenha aumentado de maneira sig- 
nificativa. Tal interesse não se tem limitado ao 
tradicionalmente chamado campo de estudos 
dos generos liter6rios.Ao contrario, a cada dia, 
mais e mais pesquisadores ligados à área da 
cognição humana procuram, no estudo da 
narrativa, elementos que os levem a entender 
Outros pesquisadores têm relatado ex- 
perimentos em que fica clara a forte pre- 
sença da narrativa na forma de organizar 
os pensamentos humanos. Chafe afirma 
ver "( ...) as narrativas como manifesta- 
ções abertas da mente em ação: como ja- 
nelas que revelam em tempo real o con- 
teúdo da mente e suas operações no mo- 
mento mesmo em que elas se realizam"*' . 
(tradução livre) 
Segundo esse autor, "a mente é ao mes- 
mo tempo guiada e constrangida por es- 
quemas: expectativas prd-concebidas e 
modos de interpretação que já estão pre- 
parados para isso"". 
As perspectivas abertas pela recente 
abordagem dos estudos da narrativa são 
inúmeras e representam um terreno fértil 
para pesquisas sejam elas referentes ?I 
cognição ou ao gênero literário. Tais pes- 
quisas podem proporcionar subsídios im- 
portantes para a compreensão de como ela- 
boramos, representamos e expressamos 
nossos pensamentos de maneira narrativa. 
(Notes for studying narrative) 
Abstract The text presents, briefly, a few ideaç 
that have significantly increased the ínterest 
for the study of narrative in the past two 
decades. Such interest has not been Iimited to 
the traditional field o5 studying literary genre. 
On the contrary, more and more human 
cognition researchers have been looking, in the 
study of narrative, for elements that lead us to 
19. "Podc-sc colocar que a palavra existe para n locutor sob t t s aspcctos: como palavra neutra da lingiia c que náo 
pcrtcnce a nrnguEm; como pnlavm do outro pcncncente arfi outms e que preenclic o eco (10s enunciados allicios: c 
iiiinlmcntc conio palavra minha. poiq. na mcdida cm que uso cssa palavra numa dctcrminada situaç5o. com unia inten- 
ç.50 discorsiva, ela j6 sc imprcgnoii dc minha exprcssividade. Sob cs.ws dois tiltimos aspecios. a p~lavra C cxprrissivn. 
nias esta expressividade, repeiimos. n5o pcncncc i própria palavri: nasce do ponto dc contaio entrc a pal.ivn c a 
realidade efetiva, nas circunsiUncias dc urnii siiuaç;ío mal, qtic se atualiza attnvvCs do enunciado individual". Cf. BA KHTIN, 
M. kktitira d n criafiio verha! Sàa Paulo: Mnnins Fontcs. 1992. p. 3 13 
30. VYGOTSKY. L. S Pensamenta e linguagem. Si0 Paulo: Manins Fontes. 1989. p. 125. 
2 I. ÇHAFE. W. Soiiie rliiiigi iIinr iirrrrarii~cs rctl ~isolioiir rheiiiiii(i. In: BRIlTON. B. K. & PELLEGRINI. A. D. (og.1 
Narrative ... np. cii. p. 79. 
22. CHAFE, W. Sotiir tl i i i igs ... np. cit. p. 80. 
Apontamentos para o estudo da narrativa 
e a desvendar os mecanismos intrínsecos ao 
pensamento humano. Isso tem feito com que 
especialistas de diversas areas (Psicologia, 
Neurologia, Literatura, Linguiçtica, Semiótica, 
Comunicação) se dediquem ao estudo siste- 
mático de narrativas tanto escritas quanto orais, 
produzidas por crianças, jovens ou adultos. A 
publicação de trabalhos de pesquisa que asso- 
ciam a narrativa a formas de pensamento e a 
consideram corno a responsável pelo proceç- 
ço de construção e representação do pensa- 
mento humano tem demonstrado que ainda há 
muito a se conhecer sobre o pensamento nar- 
rativo. A nova perspectiva aberta por tais traba- 
lhos colma os estudos sobre narrativa na or- 
dem do dia e iressignificam seu valor social. 
Palavras-chave: narrativa, linguagem narrati- 
va, pensamento narrativo, linguagem e 
cognição, cultura narrativa 
understand and uncwer the mechanisms that 
are intrinsic to human thought. This has led 
specialists in all areas (psychology, neurology, 
literature, linguistics, semioticç, cornrnunbation) 
to dedicate themselves to the systematiç study 
of narrative. both written and oral, produced 
by children, young people or adults. The 
publication of research papers that associate 
narrative to forms of thought, censidering it 
as responsible for the process of constructing 
and representing human thought, has 
demonstrated there is a loZ to be known about 
narrative thought. The new perspective 
opened by such studies puts narrative studies 
on the order of the day and brings new 
meaning to their social value. 
Key words: narrative, narrative language, 
narrative thought, language and cognition, 
narrative culture 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 1 
 1 
A Construção Narrativa da Realidade* 
 
Jerome Bruner 
∗∗
 
trad. Waldemar Ferreira Netto 
 
1 
 
 Certamente desde o Iluminismo, senão antes, o estudo de mente se centrou 
principalmente em como o homem alcança o “verdadeiro” conhecimento do mundo. A 
ênfase nesse propósito variou: os empiricistas concentraram-se na interação da mente com 
o mundo externo da natureza, esperando achar a chave na associação entre sensações e 
idéias, enquanto os racionalistas procuraram nas próprias faculdades mentais os princípios 
da razão verdadeira. O objetivo, em ambos os casos, era descobrir como nós alcançamos a 
“realidade”, isto é, como nós adquirimos a perfeita convicção no mundo, um mundo que é, 
como sempre foi, entendido como imutável e que está, como sempre esteve, “lá para ser 
observado.” 
Essa questão teve um profundo efeito no desenvolvimento de psicologia, e as tradições 
empiricistas e racionalistas dominaram nossas concepções de como a mente se desenvolve 
e adquire seu apego ao “mundo real.” De fato, em meados do século, a teoria da Gestalt 
representou o braço racionalista desse empreendimento e a teoria da aprendizagem 
norteamericana, a empiricista. Ambas explicaram o desenvolvimento mental de uma 
maneira mais ou menoslinear e uniforme a partir da incompetência inicial na apreensão da 
realidade para uma competência final, num caso, atribuindo esse procedimento ao 
funcionamento de processos internos de organização mental, e, no outro, a algum princípio 
não-especificado de reflexão a partir do qual –seja reforço, associação ou condicionamento 
– nós passamos a responder para o mundo “tal como é.” Sempre houve visões dissidentes 
desafiando essas, mas as conjecturas sobre desenvolvimento mental humano foram 
influenciadas muito mais pelo racionalismo e pelo empiricismo do que por essas vozes 
dissidentes. 
Em tempos mais recentes, Piaget se tornou o porta-voz da tradição de racionalista 
clássica, ao discutir a universalidade de uma série de estágios invariantes no 
desenvolvimento, cada um com seu próprio conjunto de operações lógicas inerentes que 
 
* Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 
∗∗ Jerome Bruner é pesquisador de psicologia na New York University, onde ele também atuou como Meyer 
Visiting Professor of Law. Seu livro mais recente, Acts of Meaning, apareceu em 1990. Em 1987 ele recebeu o 
Prêmio Balzan por “uma vida de contribuição ao estudo da psicologia humana”. 
SEMANA 1 - TEXTO BASE 2
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 2 
 2 
sucessiva e inexoravelmente levavam a criança a construir uma representação mental do 
mundo real, de maneira semelhante ao cientista dedicado, imparcial. Embora ele não se 
dirigisse exatamente aos teóricos da aprendizagem empiricista a partir de sua esfera de ação 
(eles começaram a reviver por meio de suas formulações de simulações de computador de 
“conexionistas” da aprendizagem), as suas visões dominaram as três décadas que seguiram 
o Segunda Guerra Mundial. 
Agora há ajustes importante de seus pontos-de-vista. O desenvolvimento do 
conhecimento da “realidade” ou das faculdades mentais que permitem a ocorrência desse 
desenvolvimento, discutem os críticos, não é nem unilinear, estritamente derivacional num 
sentido lógico, nem ocorre, como se pensava, “a partir de uma tábula rasa.” O domínio de 
uma tarefa não assegura domínio de outras tarefas mesmo que, em um sentido formal, 
sejam governadas pelos mesmos princípios. Conhecimento e habilidade, mais do que isso, 
são domínios específicos e, por conseguinte, desiguais no seu desenvolvimento. Princípios 
e procedimentos aprendidos em um domínio não se transferem automaticamente a outros 
domínios. Tais resultados simplesmente não foram um “fracasso para confirmar” as 
hipóteses de Piaget ou da premissa racionalista de uma maneira general.1 Se a aquisição do 
conhecimento e das faculdades mentais são realmente específicas e não automaticamente 
transferíveis, isso certamente implica que um domínio é um conjunto de princípios e 
procedimentos, e não um artifício protético, que nos permite usar a inteligência de uma 
maneira mas não de outras. Cada maneira particular de usar a inteligência desenvolve a sua 
própria integridade – um tipo de integração conhecimento-mais-habilidade-mais-
ferramenta – com o foco numa gama particular de aplicabilidade. É uma pequena realidade 
de nós mesmos que se constitui pelos princípios e procedimentos que nós usamos 
internamente. 
 Esses domínios, observados de outro modo, constituem-se como um tesouro cultural 
de ferramentas. Poucas pessoas dominam a gama completa de ferramentas: nós crescemos 
inteligentes em certas esferas e permanecemos incompetentes em outras a cujas 
ferramentas pertinentes não fomos “apresentados”. De fato, pode-se ir até mais longe e 
discutir, como tem feito, se tais ferramentas culturais (se eu puder designar dessa maneira 
os princípios e procedimentos do desenvolvimento específico de um domínio) mostram 
pressões de seleção na evolução das capacidades humanas. Por exemplo, pode ser que as 
várias formas de inteligência propostas por Howard Gardner (que ele tenta validar pela 
evidência em comum de neuropatologias, gênio, e especialização cultural) sejam resultados 
da seleção evolutiva.2 O atrativo desse ponto-de-vista é que ele une o homem , seu 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 3 
 3 
conhecimento aprendido e seu conhecimento de uso à cultura de que ele e os seus 
antepassados são e eram, respectivamente, membros ativos. E leva diretamente não só à 
questão da universalidade do conhecimento de um domínio para outro, mas à 
translatabilidade universal do conhecimento de uma cultura para outra. Dessa maneira, o 
conhecimento nunca ocorre desprovido de um “ponto-de-vista.” 
Esse ponto-de-vista é bastante compatível com outra tendência que surgiu na análise da 
inteligência humana e da “construção de realidade.” Não é uma visão nova, mas assumiu 
vida nova com uma roupa nova. Originalmente introduzida por Vygotsky e patrocinada 
por seu grande conjunto de admiradores, a nova postura é a de que produtos culturais, tais 
como a língua e outros sistemas simbólicos, intermedeiam o pensamento e colocam seu 
carimbo em nossas representações da realidade3. Em sua mais recente versão, leva o nome, 
depois de John Seely Brown e Allan Collins, de “inteligência distribuída.”4 O trabalho da 
inteligência de um indivíduo nunca é um “solo.” Não pode ser entendido sem levar em 
conta suas referências de reserva, notas, programas de computação e bases de dados, ou, o 
que é mais importante, a rede de amigos, colegas, ou mentores em quem a pessoa se apóia 
para ajuda e conselho. Sua chance de ganhar um Prêmio Nobel, Harriet Zuckerman me 
falou uma vez, aumenta bastante se você já trabalhou no laboratório de alguém que já 
ganhou um, não por causa do empurrão mas por causa do acesso às idéias e críticas desses 
que sabem mais. 
 
 
2 
 
Uma vez que se leve tais pontos-de vista tão seriamente quanto eles merecem, há 
algumas conseqüências interessantes e pouco óbvias. A primeira é que provavelmente há 
um número certo de domínios importantes apoiados por ferramentas culturais e redes de 
distribuição. A segunda é que os domínios provavelmente são diferentemente integrados 
em culturas diferentes, como os antropólogos têm insistido durante anos.5 E a terceira é 
que muitos domínios – especialmente esses que têm a ver com o conhecimento humano, 
seu mundo social, sua cultura – não estão organizados por princípios lógicos ou por 
conexões associativas. De fato, a maioria do nosso conhecimento sobre o conhecimento 
humano adquirido e sobre a construção da realidade é elaborado a partir de estudos de 
como as pessoas conhecem o mundo natural ou físico em vez de o mundo humano ou 
simbólico. Por muitas razões históricas, inclusive o poder prático inerente ao uso da lógica, 
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 4 
da matemática e da ciência empírica, nós nos concentramos no desenvolvimento da criança 
como um “pequeno cientista”, um “pequeno lógico”, um “pequeno matemático”. São 
estudos normalmente inspirados no Iluminismo. É curioso como se fez pouco esforço para 
descobrir como os humanos constroem o mundo social e as coisas que decorrem dele. 
Seguramente, alguns trabalhos recentes e desafiadores, como a magistral Interpersonal 
Perception de E. E. Jones, tornam claro que nós não alcançamos nosso domínio da realidade 
social crescendo como “pequenos cientistas”, “pequenos lógicos”, ou “pequenos 
matemáticos”.6 Assim, embora nós já tenhamos descoberto uma boa de como nós 
construímos e “explicamos” o mundo natural em termos de causas, probabilidades, muitas 
variações de espaço-tempo, e assim por diante, nós sabemos muito pouco sobre como nós 
construímos e representamos o domínio rico e confuso da interação humana. 
E é exatamente esse domínio que eu quero relacionar agora. Da mesma maneira que os 
domínios de construção da realidade lógico-científica , ele é sustentado por princípios e 
procedimentos.Tem ferramentas culturais e tradições disponíveis pelas quais seus 
procedimentos são modelados e seu alcance distribucional é tão largo e tão ativo quanto 
qualquer boato. Sua forma está tão familiarizada e onipresente que provavelmente será 
negligenciada, do mesmo modo como supomos que os peixes serão os últimos a descobrir 
água. Como discuti extensivamente alhures, nós organizamos nossa experiência e nossa 
memória de acontecimentos humanos principalmente na forma de narrativas: história, 
desculpas, mitos, razões para fazer e para não fazer, e assim em diante. A narrativa é uma 
forma convencional, transmitida culturalmente e restrita por cada nível de domínio 
individual de domínio e por seu conglomerado de dispositivos protéticos, colegas, e 
mentores. Ao contrário das construções geradas por procedimentos lógicos e científicos 
que podem ser destruídas por causa de falsificações, construções narrativas só podem 
alcançar “verossimilhança.” Assim, narrativas são uma versão de realidade cuja 
aceitabilidade é governada apenas por convenção e por “necessidade narrativa”, e não por 
verificação empírica e precisão lógica, e, ironicamente, nós não temos nenhuma obrigação 
de chamar as histórias de verdadeiras ou falsas.7 
Eu proponho agora esboçar dez traços para as narrativas, e assim tentar construir um 
esqueleto a partir do qual uma explicação mais sistemática possa ser construída. Da mesma 
maneira que com todas as explicações de formas de representação do mundo, eu terei uma 
grande dificuldade para distinguir entre o que pode ser chamado de modo narrativo do 
pensamento e as formas de discurso narrativo. Como com todos os dispositivos protéticos, 
cada um habilita e dá forma para o outro, da mesma maneira que a estrutura de língua e a 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 5 
 5 
estrutura de pensamento são mutuamente inextrincáveis. Conseqüentemente, é inútil tentar 
dizer o que é o mais básico – o processo mental ou a forma de discurso que o expressa –, 
da mesma maneira que nossa experiência do mundo natural tende a imitar as categorias de 
ciência familiar, assim nossa experiência fenômenos humanos leva a forma das narrativas 
que usamos ao contar sobre eles. 
Muito do que eu tenho a dizer não será nenhuma novidade para os que têm trabalhado 
nos campos de narratologia ou para quem se interessou por estudos críticos de formas 
narrativas. Realmente, a ascendência de muitas das idéias que me interessarão localizam-se 
nos debates que têm ocorrido entre os teóricos literários das últimas duas décadas. Meus 
comentários são ecos desses debates que agora reverberam nas ciências humanas – e não 
apenas na psicologia, na antropologia, e na lingüística, mas também na filosofia da 
linguagem. Por sua vez, a “revolução cognitiva” nas ciências humanas trouxe o assunto de 
como a “realidade” é representada no ato do conhecimento, deixando claro que não bastou 
comparar as representações com imagens, com proposições, com redes léxicas, ou até 
mesmo com veículos mais temporalmente extensos como orações. Há, aproximadamente, 
uma década atrás que os psicólogos não só ficaram conscientes da possibilidade da 
narrativa ser não somente uma forma de representar mas também de constituir realidade, 
um assunto sobre o qual eu terei mais para dizer. Nesse aspecto, psicólogos e antropólogos 
com inclinação cognitivista começaram a descobrir que foram profundamente absorvidos 
por seus colegas de teoria literária e de história nas perguntas semelhantes às questões 
narrativas textualmente situadas. Eu penso que se pode datar a “mudança de paradigma” 
no aparecimento de uma coleção de ensaios neste periódico em 1981: On Narrative.8 
Se algo do que eu disse sobre as características de narrativa parecer chover no molhado 
para o teórico literário, deixe-o ou tenha em mente que o objeto é diferente. A 
preocupação central não é como o texto narrativo é construído, mas como ele opera como 
um instrumento mental de construção de realidade. E agora para as dez características de 
narrativa. 
 
 
3 
 
1. Diacronicidade narrativa. Uma narrativa é uma exposição de eventos que ocorrem com 
o passar do tempo. É irredutivelmente durativa. Pode ser caracterizada em termos 
aparentemente não-temporais (como uma tragédia ou uma farsa), mas isso apenas resume 
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 6 
quais são os padrões fundamentais dos eventos que ocorrem com o passar do tempo. Além 
disso, o tempo envolvido, como notou Paul Ricoeur, é o “tempo humano” e não o tempo 
abstrato ou o tempo do “relógio.”9 É o tempo cuja significação é determinada pelo 
significado atribuído aos eventos em seu próprio ritmo. William Labov, um dos maiores 
estudiosos da narrativa, também notou a seqüência temporal como essencial para narrativa, 
apesar de localizar essa temporalidade na sucessão de manutenções de sentido das orações 
do próprio discurso narrativo.10 Apesar de ser uma ajuda útil, essa análise lingüística, 
obscurece um aspecto importante de representação narrativa. Há muitas convenções para 
expressar a duração de seqüências narrativas num mesmo discurso, como retrospectos, 
flashbacks e flashforwards, sidédoques temporais, e assim em diante. Como adverte Nelson 
Goodman, a narrativa inclui um conjunto de maneiras de construir e de representar a 
ordem seqüencial, diacrônica, de eventos humanos, dentre os quais a seqüência de orações 
em “estórias” escritas ou orais é somente uma dessas maneiras.11 Mesmo os meios não-
verbais têm convenções para diacronicidade narrativa, como a leitura da “esquerda-para-
direita” e de “cima-para-baixo” das histórias em quadrinhos e das janelas de catedral. O que 
está subjacente a todas essas formas para representar narrativas é um “modelo mental” cuja 
propriedade definidora é o seu padrão único de eventos no tempo. E a isso viremos nós 
agora. 
2. Particularidade. Narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência 
ostensiva. Mas isso é seu veículo e não o seu destino. Histórias obviamente planas caem em 
tipos mais gerais: homem-galantea-mulher, tiranos-recebem-seu-castigo e assim em diante. 
Neste sentido os pormenores das narrativas são símbolos de tipos mais abrangentes. No 
ponto em que o roteiro do homem-galantea-mulher apela para um ato de presentear, por 
exemplo, o presente servirá igualmente bem se forem flores, perfumes, ou até mesmo uma 
linha dourada infinita. Quaisquer desses presentes pode servir como um símbolo 
apropriado ou emblema de um presente. A particularidade atinge seu estado emblemático 
por sua incorporação em uma história que é, em algum sentido, genérica. E é exatamente 
em virtude dessa incorporação genérica que os pormenores da narrativa podem ser 
substituídos quando estiverem perdendo seu poder explicativo. A “sugestividade” de uma 
história, quanto à natureza emblemática de suas particularidades, é falsa, então, quanto à 
sua relevância para um tipo narrativo mais inclusivo. Por causa disso, uma narrativa não 
pode ser entendida por meio de uma incorporação particular. 
3. Vínculos de estados intencionais. Narrativas são sobre pessoas que agem em um cenário, 
e os acontecimentos devem ser pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 7 
 7 
atuando - com suas convicções, desejos, teorias, valores, e assim por diante. Quando 
animais ou objetos inanimados são colocados como protagonistas de narrativas, eles devem 
ser dotados de estados intencionais para a realização de seus objetivos, como a Little Red 
Engine das histórias infantis. Eventos físicos têm papel em histórias afetando 
principalmente os estados intencionais de seus protagonistas. O narrador só pode 
concordar com Baudelaire que o primeiro passo de um artista é substituir o homem pela 
natureza. 
Mas os estados intencionais na narrativanunca determinam completamente o curso 
dos eventos, uma vez que uma personagem com um estado intencional particular poderia 
fazer praticamente qualquer coisa. Em alguma medida, a intervenção está sempre presente 
na narrativa, e essa intervenção pressupõe uma escolha, um elemento de “liberdade.” Se as 
pessoas puderem predizer algo dos estados intencionais de uma personagem, será somente 
um indicativo de como ela se sentirá ou como perceberá a situação. A conexão livre entre 
os estados intencionais e a ação subseqüente é a razão por que explicações narrativas não 
podem apresentar explicações causais. Em vez disso, elas apresentam a base para interpretar 
por que uma personagem agiu dessa ou daquela maneira. A interpretação está relacionada 
com as “razões” das coisas acontecerem e não com suas “causas”, um assunto para a que 
voltaremos. 
4. Composicionalidade Hermenêutica. Uma explicação preliminar é necessária. O termo 
hermenêutica implica haver um texto ou algo semelhante por meio do qual alguém esteja 
tentando expressar um significado e alguém esteja tentando extrair um significado. Isso, 
por sua vez, implica uma diferença entre o que é expresso no texto e o que o texto poderia 
significar, e implica também a ausência de uma solução única para a tarefa de determinar o 
significado para a expressão. Tal interpretação hermenêutica é requerida quando não há 
nenhum método racional de assegurar a “verdade” de um significado atribuído ao texto 
como um todo, nem um método empírico para determinar a confiabilidade dos elementos 
constituintes do texto. De fato, a melhor esperança de análise hermenêutica é apresentar 
uma explicação intuitivamente convincente do significado do texto como um todo, à luz de 
suas partes constituintes. Isso leva ao dilema do chamado círculo hermenêutico – no qual 
nós tentamos justificar a “justeza” de uma leitura de um texto em termos de outras leituras, 
e não por dedução racional ou prova empírica. O meio mais concreto para explicar esse 
dilema ou “círculo” é pela referência às relações entre os significados atribuídos ao texto 
como um todo (a história) e às suas partes constituintes. Como o Charles Taylor propôs, 
“nós tentamos estabelecer uma leitura de um texto completo, e para isto nós nos voltamos 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 8 
 8 
à leitura de suas expressões parciais; e ainda porque lidamos com significados, com o 
senso-comum, em que expressões fazem sentido, ou não, somente na relação de umas com 
as outras, a leitura dessas expressões parciais depende das outras leituras e no, final das 
contas, do todo”. 12 
Provavelmente não se ilustra isso melhor do que numa narrativa. As explicações dos 
protagonistas e dos eventos que constituem uma narrativa são moldadas em termos de uma 
história ou de um enredo hipotético que “contém” todos esse itens. Ao mesmo tempo, o 
“todo” (a história hipotética mentalmente representada) depende em sua formação de uma 
provisão de partes componentes possíveis. Neste sentido, como já notamos, partes e todo 
em uma narrativa se apóiam um no outro para sua viabilidade.13 Nos termos de Vladímir 
Propp, as partes de uma narrativa servem como “funções” da estrutura narrativa como um 
todo.14 Mas o todo não pode ser construído sem referência às partes apropriadas. Essa 
interdependência textual parte-todo na narrativa é uma ilustração da propriedade definidora 
do círculo hermenêutico, pois, uma história poderá realizar-se somente quando suas partes 
e o seu todo forem feitos para estarem juntos. 
 Essa propriedade hermenêutica marca a narrativa tanto em sua construção quanto em 
sua compreensão, pois narrativas não existem em nenhum mundo real, esperando paciente 
e eternamente serem refletidas veridicamente em um texto. O ato de construir uma 
narrativa, além disso, é muito mais do que “selecionar” eventos da vida real, da memória ou 
da fantasia, colocando-os em uma ordem adequada. Os próprios eventos precisam se 
constituir, à luz da narrativa inteira – nos termos de Propp, para se tornarem “funções” da 
história. Esta é uma questão à qual voltaremos posteriormente. 
Voltemos à “composicionalidade hermenêutica.” Contar uma história e compreendê-la 
como uma história dependem da capacidade humana para processar conhecimento dessa 
maneira interpretativa. Trata-se de um modo de processar que foi, em grande parte, 
grosseiramente negligenciado por estudiosos da mente quer seja de tradição racionalista ou 
quer empiricista. Os primeiros têm relacionado a mente com um instrumento de raciocínio, 
com os meios que nós empregamos para estabelecer a verdade necessariamente inerente de 
um jogo de proposições conectadas. Piaget foi um exemplo notável dessa tradição 
racionalista. Os empiricistas, por sua vez, apóiam suas convicções em uma mente capaz de 
verificar as “proposições atômicas” que constituem um texto. Mas nenhum desses 
procedimentos, raciocínio ou verificação, são suficientes para explicar como uma narrativa 
é montada por um falante ou interpretada por um ouvinte. Isso é mais surpreendente, 
ainda, por que há evidências fortíssimas indicando que a compreensão de narrativas é uma 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 9 
 9 
das habilidade mais precoces que aparecem nas crianças e é a forma de organizar a 
experiência humana mais largamente utilizada. 15 
Muitos teóricos literários e filósofos da mente propuseram que nosso ato de interpretar 
desse modo forjou-se somente quando um texto do mundo ao qual ele presume referir 
está, de algum modo, “confuso, incompleto, nebuloso”.16 Indubitavelmente nós estamos 
mais atentos a nossos esforços interpretativos quando enfrentamos ambigüidades textuais 
ou referenciais. Mas eu entenderia que há uma exceção forte à idéia geral de que a 
interpretação só se forja em nós quando haja excesso de ambigüidade. A ilusão criada por 
uma narrativa bem feita, que não é esse caso, de que uma história “é como é” e não precisa 
de nenhuma interpretação, é produzida por meio de dois processos bastante diferentes. O 
primeiro deveria provavelmente ser chamado “sedução narrativa”. Grandes contadores de 
histórias têm mecanismos de realidade narrativa tão bons que suas narrações eliminam logo 
de início a possibilidade de não haver senão uma única interpretação – por mais estranha 
que possa ser. O famoso episódio de uma invasão marciana na radiodifusão de Orson 
Welles de The War of the Worlds dá um forte exemplo17. Sua exploração brilhante dos 
mecanismos do texto, contexto e mis-en-cene predispôs seus ouvintes a uma única 
interpretação, apesar de ela parecer bizarra de ponto de vista atual. Ele criou uma 
“necessidade narrativa”, um assunto que nós entendemos menos bem do que sua 
contraparte lógica, a necessidade lógica. A outra maneira para fazer uma história parecer 
evidente por si só e não necessitar de interpretação é a “banalização narrativa.” Quer dizer, 
nós podemos tomar uma narrativa como tão socialmente convencional, tão bem 
conhecida, tão bem de acordo com a forma canônica, que lhe atribuímos uma muito bem 
treinada e virtualmente automática rotina de interpretação. Essas narrativas constituem o 
que Roland Barthes chamou de textos de “leitores”, em contraste com os de “escritores” 
que desafiam o ouvinte ou leitor a uma atividade de interpretação não-ensaiada.18 
Resumindo, então, não é ambigüidade textual ou referencial que impõe a atividade 
interpretativa na compreensão da narrativa, mas a narrativa por ela mesma. A sedução 
narrativa ou a banalização narrativa podem produzir uma atividade interpretativa restrita ou 
rotineira, mas isso não altera o ponto. A leitura interpretativa da história ou de construções 
de partes da história podem ser alteradas por instruções surpreendentemente pequenas.19 E 
num momento, um ouvinte suspeita dos “fatos” de uma história ou dos motivos ulteriores 
de um narrador,tornando-se de imediato hermeneuticamente alerta. Se eu puder usar uma 
metáfora grosseira, interpretações automatizadas de narrativas são comparáveis aos estados 
iniciais padronizados (default) de um computador: um modo econômico, um meio que 
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 10 
facilita a relação tempo e esforço para negociar com o conhecimento – ou, como foi 
chamado, uma forma “desmentalizada” (mind-lessness).20 
A interpretação tem uma longa história na exegese bíblica e na jurisprudência. Ela é 
salpicada com problemas que ficarão mais familiares brevemente, problemas que têm a ver 
mais com o contexto do que com o texto, mais com as condições do contar do que com o 
que é contado. Deixe-me rotular melhor dois deles para identificá-los na discussão 
subseqüente: o primeiro refere-se à intenção: “por que” a história é contada, como e quando 
é contada, e interpretada como tal por interlocutores associados a posições intencionais 
diferentes. Narrativas não são, para usar a frase feliz de Roy Harris, “textos sem 
patrocinadores” para serem tomadas como se não existisse intencionalidade, como se 
fossem lançadas por sorte em uma página impressa.21 Mesmo quando o leitor as toma mais 
a maneira de declamação, ele normalmente atribui (a convenção seguinte) como se fosse 
emanada de um narrador onisciente. Mas esta condição não é negligenciada por parecer 
desinteressante. Ela deriva de um jogo de condições sociais que dão estatuto especial à 
palavra escrita em uma sociedade onde alfabetização é uma prerrogativa minoritária. 
Um segundo aspecto referente ao contexto é a questão do conhecimento partilhado – tanto 
do contador de histórias quanto do ouvinte, e como cada interpreta o conhecimento 
partilhado do outro. O filósofo Hilary Putnam, em um contexto bastante diferente, propõe 
dois princípios: o primeiro é o “Princípio do Benefício de Dúvida”, o segundo o “Princípio 
da Ignorância Razoável”: o primeiro nos “proíbe de assumir que... os peritos são de fato 
oniscientes” e o segundo que “qualquer falante é filosoficamente onisciente (ainda que 
inconscientemente).”22 Nós julgamos que suas explicações sejam adequadas. No outro 
extremo, nós somos condescendentes com a ignorância e perdoamos as crianças e os 
neófitos de seu conhecimento incompleto, “suplementando-os” conforme seja necessário. 
Dan Sperber e Dierdre Wilson, em sua famosa discussão sobre “relevância”, argumentaram 
que no diálogo nós normalmente pressupomos que o que o interlocutor nos está 
respondendo é tópico-pertinente, e nós freqüentemente adequamos uma interpretação para 
torná-lo pertinente, facilitando nossa tarefa para entender outras mentes.23 Nós também 
aceitamos, de fato nós institucionalizamos situações nas quais isso seja tomado como 
verdade, que o “registro de conhecimento” em que uma história é contada é diferente 
daquele no qual é aprendido, como quando o cliente conta sua história para o advogado em 
“conversa de vida” e é escutado na “forma de lei” de maneira que o advogado pode 
aconselhar sobre a legalidade (mais do que sobre a vida). O analista e o analisado em 
terapia são comparáveis ao advogado e o cliente numa consulta legal.24 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 11 
 11 
Ambos os domínios contextuais de atribuição de intenção e de conhecimento 
partilhado não provêem bases somente para a interpretação mas são, também, bases 
importantes para negociar como uma história será tomada ou como deve ser contada; um 
assunto reservado para depois. 
5. Canonicidade e violação. Para começar, nem toda sucessão de eventos recontada 
constitui uma narrativa, mesmo quando é diacrônica, particular, e organizada a partir de 
estados intencionais. Alguns acontecimentos não justificam que se fale sobre eles e diz-se 
serem “sem-graça”, e não uma história. Um escrito de Schank-Abelson é um caso desses: é 
uma prescrição de comportamento canônico em uma situação culturalmente bem definida: 
como se comportar em um restaurante.25 Narrativas requerem tais roteiros como fundo 
necessário, mas eles não constituem por si próprios uma narrativa. Para se tornar apta a ser 
contada, uma história precisa ter implicitamente um enredo canônico que foi quebrado, 
violado, ou desviado de maneira a violentar o que Hayden White chamou de “legitimidade” 
do enredo canônico.26 Isto normalmente envolve o que Labov chama de “evento 
precipitador”, um conceito de que Barbara Herrnstein Smith faz bom uso em sua 
exploração da narrativa.27 
Violações de cânones, como os enredos violados, são muitíssimo tradicionais e são 
fortemente influenciados pelas tradições narrativas. Tais violações são prontamente 
reconhecíveis como situações familiares humanas: a esposa traidora, o marido corneado, o 
inocente espoliado, e assim em diante. Novamente, eles são situações convencionais das 
narrativas. Mas os enredos e as suas violações também provêem bases ricas para a 
inovação, como testemunha a invenção literário-jornalística contemporânea do enredo 
“yuppy” ou a formulação da violação do criminoso de colarinho branco. E isto é, talvez, o 
que torna o contador de histórias inovador uma figura poderosa em uma cultura. Ele pode 
ir além dos enredos convencionais, levando as pessoas a verem acontecimentos humanos 
de um novo ponto-de-vista, de uma maneira que elas nunca haviam “notado” nem sequer 
sonhado. A substituição de Hesíodo por Homero, o advento de “aventura interna” em 
Laurence Sterne’s Tristram Shandy, o advento do perspectivismo de Flaubert, ou a 
epifanização de banalidades de Joyce – todas são inovações que provavelmente moldaram 
nossas versões narrativas de realidade cotidiana bem como mudaram o curso da história 
literária, coisas que talvez não sejam diferentes. 
É de Labov o grande crédito de ter reconhecido e apresentado uma explicação 
lingüística de estrutura narrativa em termos de dois componentes: o que aconteceu e por 
que merece ser contado.28 Foi para o primeiro destes que ele propôs a noção de sucessões 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 12 
 12 
irredutíveis de orações. O segundo captura o elemento de violação de canonicidade e 
envolve o uso do que ele chama avaliação para justificar a “possibilidade narrativa” de uma 
história como comprovação de algo incomum. Da orientação inicial até o ponto final, a 
língua de avaliação contrasta com o idioma da sucessão de orações — em tempo, aspecto, 
ou outros marcadores. Observou-se que até mesmo em língua de sinais, a marcação de 
seqüência e a de avaliação são feitas em pontos diferentes no curso da narração de uma 
história, o primeiro no centro do corpo, o segundo ao lado. 
O componente de “violação” de uma narrativa pode ser criado através de meios 
lingüísticos como também pelo uso de um precipitador deslegitimante hipotético do evento 
no enredo. Deixe-me explicar. Os formalistas russos distinguiram entre “enredo” de uma 
narrativa, sua fábula, e seu modo de contar, o que eles chamam seu sjuzet. Da mesma 
maneira que há problemas de linearização na conversão de um pensamento em uma 
oração, há problemas na representação da fábula em seu sjuzet habilitador.29 O lingüista e 
teórico literário Tzvetan Todorov, cujas idéias nós posteriormente revisitaremos, 
argumenta que a função de uma narrativa inventiva não é tanto “fabular” novos enredos 
mas reapresentar aqueles já familiares que eram incertos ou problemáticos, para desafiar o 
leitor a novas atividades de interpretação – ecoando a definição famosa de Roman 
Jakobson de que a tarefa do artista é “tornar estranho o usual”.30 
6. Referencialidade. Obviamente a aceitabilidade de uma narrativa não pode depender de 
sua correta referência à realidade, caso contrário não haveria nenhuma ficção. Realismo em 
ficção deve ser então realmente uma convenção literária e não uma questão de referência 
correta. A “verdade” narrativaé julgada por sua verossimilhança e não por sua 
verificabilidade. Isso parece apontar para o fato de que há algum sentido em dizer que a 
narrativa mais do que referir a “realidade”, pode criá-la da mesma maneira que a “ficção” 
cria um “mundo” para si própria – a “Dublin” de Joyce, onde lugares como St. Stephen’s 
Green ou Grafton Street, apesar de serem rótulos familiares, não menos reais ou 
imaginários do que as personagens que ele inventou para habitar esse lugares. Em um 
sentido talvez mais aprofundado, pode ser que as condições e os estados intencionais 
descritos em uma ficção “bem-sucedida” nos sensibilizem a experimentar nossa própria 
vida de maneira semelhante. Isso sugere que a distinção entre ficção narrativa e narrativa 
verdadeira não é tão óbvia quanto o senso comum e o uso nos faz crer. Por que o senso 
comum insiste que compartilhemos essa distinção é um outro problema, talvez relacionado 
à exigência de “suporte testemunhal”. Mas isso vai além da extensão deste ensaio. 
Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 13 
 13 
O que nos interessa é por que a distinção é difícil de se fazer e de se sustentar. 
Seguramente, uma razão associa-se ao que eu chamei anteriormente de composicionalidade 
hermenêutica de narrativa. A composicionalidade cria problemas para a distinção 
convencional entre “sentido” e “referência”. Isto é, o “sentido” de uma história como um 
todo pode alterar a referência e até mesmo a referencialidade de suas partes componentes. 
Para os componentes de uma história, na medida em que se eles tornam suas “funções”, 
perdem o seu estatuto como expressões referentes singulares e definidas. St. Stephen’s 
Green torna-se, por exemplo, um tipo (type) de lugar e não um lugar específico (token), uma 
classe de lugares, inclusive o lugar assim nomeado em Dublin. É um referente inventado 
mas não totalmente livre dos significados dados ao lugar real. Da mesma maneira uma 
história, ao requerer uma “traição” como uma de suas funções constituintes, pode 
converter um evento normalmente mundano em algo que parece impelir a uma traição. E 
isto é o que faz a evidência circunstancial ser definitivamente e tão freqüentemente 
inadmissível em tribunais de lei. Dada a composicionalidade hermenêutica, expressões 
referentes na narrativa sempre são problemáticas, e nunca livres da narrativa como um 
todo. O que é significado pela “narrativa como um todo”? Isto nos conduz à lei 
denominada de gêneros, à qual nós nos voltaremos a seguir. 
7. Genericidade. Todos nós sabemos que há “tipos” reconhecíveis de narrativa: farsa, 
humor negro, tragédia, autobiografia, romance, sátira, viagem, saga, e assim em diante. Mas, 
como Alastair Fowler tão bem põe isto, “gênero é muito menos uma toca de pombo do 
que um pombo.”31 quer dizer, nós podemos falar de gênero quer como uma propriedade 
de um texto, quer como um modo de compreender a narrativa. Mary McCarthy escreveu 
contos em vários gêneros literários. Posteriormente, ela reuniu alguns deles na ordem 
crescente da idade da protagonista feminina, acrescentou algumas seções de “avaliação” 
intermediárias e publicou o conjunto como uma autobiografia intitulada Memories of a 
Catholic.32 Ocorreu que os leitores interpretaram (indubitavelmente para o seu desânimo) as 
suas novas histórias como fatos adicionais de autobiografia. Gêneros parecem prover 
escritor e leitor com “modelos” confortáveis e convencionais para limitar a tarefa 
hermenêutica de atribuir sentido aos acontecimentos humanos – aqueles que narramos a 
nós mesmos bem como aqueles que ouvimos outros contarem. 
O que são gêneros de um ponto de vista psicológico? Somente representações 
convencionais de situações humanas? Há certamente tais situações em todas as culturas 
humanas: conflitos de lealdade familiar, o caprichos da verdade humana, as vicissitudes de 
romance, e assim em diante. Até mesmo poderia parecer que são universais, dado que os 
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clássicos podem ser apresentados em roupagem moderna e os contos de povos exóticos 
podem ser traduzidos localmente. Mas eu penso que a ênfase nas situações e na sua 
universalidade hipotética pode obscurecer um assunto mais profundo. A situação é só a 
forma do enredo de um gênero, sua fábula. Mas o gênero também é uma forma de contar, 
seu sjuzet. Até mesmo se os gêneros se especializarem em situações humanas 
convencionais, eles alcançarão seus efeitos usando a língua de uma maneira particular. Para 
traduzir o “modo de contar” de um gênero em outra língua ou cultura em que ele não 
existe, é necessária uma nova invenção lingüístico-literária.33 A invenção pode, é claro, estar 
culturalmente fora de alcance. Afinal de contas, a língua existe nos seus usos. Não é só uma 
sintaxe e um léxico. O assim chamado discurso interior da narrativa ocidental, por 
exemplo, pode ter se desenvolvido a partir do desenvolvimento da leitura silenciosa que é 
uma invenção muito recente. Se a reflexão produzida pela leitura silenciosa foi intensificada 
pela criação de novos gêneros – os chamados romances moderno e pós-modernos –, nós 
poderíamos esperar que tais gêneros não seriam facilmente acessíveis ao narrador não-
ocidental e muito menos a um membro de uma cultura de não-letrada. 
Enquanto os gêneros realmente são maneiras livres mas convencionais de representar 
situações humanas, eles também são modos de contar que nos predispõem a usar nossas 
mentes e sensibilidades de maneira específica. Resumindo, enquanto são representações da 
ontologia social, eles também são convites a um estilo particular de epistemologia. Dessa 
maneira, podem ter o poder de influenciar na moldagem de nossos modos de pensamento, 
da mesma maneira que eles criam as realidades que seus enredos descrevem.34 Assim, por 
exemplo, nós realizamos inovações em gênero não somente mudando o conteúdo da 
imaginação mas seu também o seu modus operandi: Flaubert introduziu um relativismo de 
perspectiva que eliminou o narrador onisciente e a “verdadeira” história, Joyce usou da 
livre-associação com muita habilidade para quebrar os constrangimentos semânticos e até 
mesmo o convencionalismo sintático, Beckett quebrou as continuidades narrativas que nós 
tomávamos para assegurar a narração, Calvino converteu o pós-moderno 
antifoundationalism em uma forma mítica clássica, e assim em diante. 
O gênero narrativo, desta maneira, não só pode ser pensado como um modo de 
construir situações humanas mas também como um guia para usar a mente, na medida em 
que o uso de mente é guiado pelo uso de uma linguagem habilitadora. 
 8. Normatividade. Por causa de sua “narrabilidade” como uma forma de discurso basear-
se em uma violação da expectativa convencional, a narrativa é necessariamente normativa. 
Uma violação pressupõe uma norma. Essa condição fundadora da narrativa levou teóricos 
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 15 
— de Hayden White e Victor Turner até Paul Ricoeur — a propor que a narrativa está 
centradamente preocupada com a legitimidade cultural.35 Uma nova geração de acadêmicos, 
não surpreendentemente, começou a explorar as normas implícitas inerentes ao 
testemunho legal, cuja forma é principalmente narrativa.36 
Enquanto todos, desde Aristóteles até aos chamados gramáticos narrativos, concordam 
que uma história gira em torno de uma violação de legitimidade, as diferenças de como a 
noção de violação é concebida revela ela própria diferentes ênfases culturais. Leve-se em 
conta a célebre explicação de Kenneth Burke do “quinteto” dramático.37 O quinteto 
consiste em um Agente, um Ato, uma Cena, um Propósito e uma Função, o equilíbrio 
apropriado entre estes elementos define-se por uma “razão” * determinada por convenção 
cultural. Quando esta “razão” fica desequilibrada, quando a expectativa convencional é 
quebrada, problemas acontecem.E são os problemas que provêem o engenho do drama; 
problemas como um desequilíbrio entre um e os demais elementos do quinteto: por 
exemplo, Nora em A Doll’s House é um Agente rebelde em uma Cena inapropriadamente 
burguesa, e assim em diante. Eventos precipitadores são emblemas do desequilíbrio. A 
ênfase principal de Burke está em situações, fábulas. Está ontologicamente relacionada com 
o mundo cultural e seus arranjos, com as normas tais como elas “existem”. 
Na segunda metade do século vinte, como o aparato de ceticismo chega não só a ser 
aplicado para duvidar da legitimidade de realidades sociais herdadas mas também para 
questionar os verdadeiros modos pelos quais nós apreendemos ou construímos a realidade, 
o programa normativo da narrativa (literário e popular) mudou. O “problema” se tornou 
epistêmico: Julian Barnes escreveu uma narrativa atordoante no episteme do 
perspectivismo de Flaubert, Flaubert’s Parrot, ou Italo Calvino produziu um romance, 
Winter’s Night a Traveller, no qual o assunto é o que é texto e o contexto; e as teorias da 
poética mudam da mesma maneira. Elas, também, fazem uma “volta epistêmica”. E assim 
Todorov viu a poética da narrativa como um fato existente na própria língua, confiando 
que o uso das transformações lingüísticas dará conta de todas as ações humanas mais 
subjetivas, menos certas, e, sobretudo, sujeitas à dúvida sobre sua construção. Não é 
simplesmente que o “texto” se torne dominante, mas que o mundo ao qual ele 
hipoteticamente se refere é sua criação.38 
A normatividade, em resumo, não é histórica ou culturalmente terminal. Sua forma 
muda com as preocupações do momento e das circunstâncias que cercam sua produção. 
Nem se requer da narrativa, a propósito, que os problemas com que lida sejam 
 
* N.T. O autor usa o termo “razão” no seu sentido matemático. 
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solucionados. A narrativa, eu acredito, é projetada mais para conter esquisitices do que para 
solucioná-las. Não tem que “dar certo”. O que Frank Kermode chama de “enredo 
consolador” não é o conforto de um final feliz mas a compreensão de situações que, ao se 
tornarem interpretáveis, tornam-se suportáveis.39 
9. Sensibilidade de contexto e negociabilidade. Este é um tópico cujas complexidades nós já 
observamos nas discussões anteriores de “composicionabilidade hermêneutica” e na de 
“interpretabilidade de narrativa”. Ao se considerar o contexto, os assuntos familiares de 
intenção narrativa e de conhecimento partilhado surgem novamente. Em relação ao 
primeiro, muito de teoria literária abandonou o Coleridge’s dictum de que o leitor deveria 
suspender suas descrenças e estar nu diante do texto. Hoje nós teorizamos a resposta do 
leitor com livros intitulados O Leitor no Texto.40 Certamente, a visão predominante é a de 
que a noção de suspender totalmente as descrenças é muito mais uma idealização do leitor 
e, na pior das hipóteses, uma distorção do que o processo de compreensão da narrativa 
envolve. Inevitavelmente, nós assimilamos a narrativa em nossos próprios termos, (pela 
explicação de Wolfgang Iser) nós tratamos a ocasião de um recital narrativo como um ato 
de fala especializada.41 Nós inevitavelmente levamos em conta as intenções do narrador e 
fazemos assim em termos de nosso conhecimento partilhado (e, realmente, à luz de nossas 
pressuposições sobre o conhecimento partilhado do narrador). 
Eu tenho um forte pressentimento, que pode a princípio parecer countraintuitivo, de 
que é essa mesma sensibilidade de contexto que faz o discurso narrativo na vida cotidiana 
ser um instrumento viável para negociação cultural. Você conta sua versão, eu conto a 
minha, e nós raramente precisamos de confrontação legal para resolver a diferença. 
Princípios de caridade e presunções de relevância são enormemente equilibrados contra 
princípios de ignorância suficiente e dúvida suficiente em um grau que não se esperaria 
onde critérios de consistência e de verificação prevaleceriam. Nós parecemos ser hábeis 
para tomar versões diferentes de uma história com um certo cuidado, muito mais do que 
no caso de argumentos ou provas. O livro notável de Judy Dunn sobre o início da 
compreensão social em crianças mostra claramente que esse tipo de negociação de 
diferentes versões de narrativas começa cedo e é profundamente incorporado em ações 
sociais práticas como o oferecimento de desculpas, e não somente em narrações por si 
mesmas.42 Eu penso que é precisamente esta interação de perspectivas atingindo a “verdade 
narrativa” que levou os filósofos como Richard Rorty a abandonar o ponto de vista 
verificacionista da verdade em favor do pragmático.43 Nem surpreende que os 
antropólogos tenham se distanciado de descrições culturais positivistas de culturas na 
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direção de descrições interpretativas nas quais não se buscam categorias objetivas mas 
“significados”, não significados impostos ex hypothesi por um estranho, o antropólogo, mas 
os que chegam a partir dos próprios participantes indígenas imersos em seus próprios 
processos culturais de negociação de sentidos.44 
Nesse ponto de vista, é a dependência do contexto da explicação narrativa que permite 
a negociação cultural que, quando bem sucedida, torna possível a coerência e 
interdependência que uma cultura pode alcançar. 
10. Acréscimo narrativo. Como nós remendamos histórias juntas para torná-las um todo 
de algum tipo? Ciências alcançam o seu acréscimo por meio da derivação de princípios 
gerais, relacionando resultados particulares a paradigmas centrais, expressando resultados 
empíricos de forma a agrupá-los sob paradigmas alterados, e por outros incontáveis 
procedimentos para fazer ciência, como se costuma dizer, “cumulativa.” Isto é facilitado 
imensamente por procedimentos para assegurar a verificação, entretanto, como nós 
sabemos, critérios de verificação têm aplicabilidade limitada quando estados intencionais 
humanos estão relacionados, o que deixa a psicologia muito marginal. 
O acréscimo narrativo não é fundamental no sentido científico. As narrativas fazem 
acréscimos e, como insistem os antropólogos, os acréscimos eventualmente criam algo 
bastante variado chamado “cultura” ou “história” ou, mais livremente, “tradição”. Mesmo 
nossas próprias explicações caseiras dos acontecimentos de nossas vidas convertem-se em 
autobiografias mais ou menos coerentes centradas em um Ego que age intencionalmente 
em um mundo social.45 Famílias criam, similarmente, um corpus de histórias conectadas e 
compartilhadas; os estudos de Elinor Ochs, em desenvolvimento, sobre a conversa familiar 
da mesa-de-jantar começa a trazer luz para isso46. Instituições, como nós sabemos a partir 
do trabalho inovador de Eric Hobsbawm, também “inventam” tradições além daquelas 
relativas aos acontecimentos ordinariamente estabelecidos e então recebem status 
privilegiado.47 E há os princípios de jurisprudência que, como stare decisis, garantem uma 
tradição assegurando que uma vez que um “caso” foi interpretado de uma maneira 
específica, casos futuros que são “semelhantes” serão interpretados serão decididos da 
mesma maneira. À medida que a lei insiste em tal acréscimo de casos como “precedentes”, 
e à medida que “casos” são narrativas, o sistema legal impõe um processo ordenado de 
acréscimo narrativo. 
Surpreendentemente, tem havido pouco trabalho sendo feito neste assunto fascinante, 
embora haja estímulos entre antropólogos (influenciados principalmente por Clifford 
Geertz) e entre historiadores (estimulados pela inauguração de Michel Foucault na 
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Arqueologia de Conhecimento).48 Que tipos de estratégias poderiam guiar o acréscimo de 
narrativas em culturas ou tradiçõesde larga escala ou “versões de mundo”? Seguramente 
uma delas deve ser a imposição do falso vínculo histórico-causal: por exemplo, o assassinato de 
Arquiduque Ferdinand é visto como o “causador” da Primeira Guerra Mundial, ou a 
coroação do Papa Leão III de Charlemagne como Santo Imperador Romano no Dia de 
Natal em 800 é dada como “o primeiro passo” ou o precursor da promulgação da 
Comunidade européia em 1992. Há uma vasta literatura de precaução contra tais 
simplificações por filósofos e historiadores, mas nem ao menos tem diminuído essa nossa 
paixão por converter post hoc em proptor hoc. 
Outra estratégia poderia ser chamada, por falta de uma expressão melhor, coerência por 
contemporaneidade: a crença de que coisas que acontecem ao mesmo tempo devem estar 
correlacionadas. Eu fiz essa estranha descoberta, escrevendo minha autobiografia 
intelectual há vários anos atrás. Eu tinha descoberto no índice do New York Times o que 
mais estava acontecendo na mesma hora de algum evento pessoal. Dificilmente eu poderia 
resistir a conectar o conjunto de acontecimentos em um todo coerente – conectar, e não 
agrupar ou não criar vínculos histórico-causais, mas intrincando tudo em uma história. Meu 
primeiro artigo científico (sobre a maturação da receptividade sexual no rato fêmea), por 
exemplo, foi publicado por volta do momento em que Chamberlain tinha sido enganado 
por Hitler em Munique. Minha história original antes de consultar o New York Times Index 
era obscuramente sobre uma primeira descoberta feita dezenove anos antes, mais parecida 
com uma biografia romanceada. A história pós-New York Times Index, com Munique agora 
incluída, era um exercício de ironia: Nero jovem que toca violino com ratos enquanto 
Roma queimava! E pelo mesmo processo constrangedor, nós inventamos a Idade Média, 
fazendo de tudo um pedaço do todo, finalmente, a diversidade ficar muito grande e, então, 
inventarmos o Renascimento. 
Uma vez compartilhado culturalmente – distribuído no sentido discutido mais acima – 
acréscimos narrativos alcançam, como a representação do coletivo de Emile Durkheim, 
“exterioridade” e o poder de coação.49 A Idade Média passa a existir e nós passamos a falar 
maravilhados da “excepcionalidade” de qualquer filósofo não-tradicional ou teólogo 
anticonvencional que viveu em suas sombras. Eu estou dizendo que o ex-presidente e 
Nancy Reagan enviaram uma carta de condolência a uma personagem de novela 
nacionalmente conhecida que há pouco tinha ficado cego – não o ator, mas a personagem. 
Mas isso não é incomum: a cultura sempre se reconstitui engolindo suas próprias 
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narrativas: meninos holandeses com dedos no dique, Colombo catequizando índios, a lista 
das honras da Rainha, a eurofilia que advém de Charlemagne. 
O que cria uma cultura, seguramente, deve ser uma capacidade “local” de acrescentar 
histórias de acontecimentos do passado a algum tipo de estrutura diacrônica que permita 
uma continuidade até o presente – em resumo, construir uma história, uma tradição, um 
sistema legal, instrumentos que asseguram continuidade histórica senão legitimidade. Eu 
gostaria de terminar minha lista de propriedades narrativas neste ponto bastante “óbvio” 
por uma razão particular. A construção e a reconstrução perpétuas do passado provêem as 
formas de canonicidade que nos permitem reconhecer precisamente quando uma violação 
aconteceu e como poderia ser interpretada. O filósofo W. T. Stace propôs, duas gerações 
filosóficas atrás, que o único recurso que nós temos contra o solipsismo (a visão 
inexpugnável que discute que nós não podemos provar a existência de um mundo real, uma 
vez que tudo o que nós podemos saber é nossa própria experiência) é que as mentes 
humanas são semelhantes e que, o mais importante, “trabalham juntas”.50 Uma das 
principais maneiras pelas quais nós trabalhamos “mentalmente” em conjunto, eu gostaria 
de discutir, é pelo processo de acréscimo em narrativas comuns. Até mesmo nossas 
autobiografias, como eu discuti em outro lugar, depende de estarem colocadas em uma 
continuidade provida por uma história social construída e compartilhada, na qual nós 
localizamos nossos egos e nossas continuidades individuais.51 É este sentido de pertencer a 
este passado canônico que nos permite formar nossas próprias narrativas divergentes 
apesar de manter cumplicidade com o cânone. Talvez Stace estivesse muito preocupado 
com a metafísica quando ele invocou esse processo como uma defesa contra o solipsismo. 
Provavelmente, nós diríamos hoje que isso deve ser uma formação profilática contra a 
alienação. 
 
 
4 
 
Deixe-me voltar agora à premissa original de que há domínios específicos de 
conhecimento e habilidade e que eles são apoiados e organizados por meio de ferramentas 
culturais. Se nós aceitarmos esta visão, uma primeira conclusão seria que, entendendo a 
natureza e o desenvolvimento da mente em qualquer ambiente, nós não podemos tomar 
como nossa unidade de análise o indivíduo isolado que atua “dentro de si ou de sua própria 
pele” em um vácuo cultural. Mas, teremos de aceitar o ponto de vista de que a mente 
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humana não pode expressar seus poderes inatos sem a habilitação dos sistemas simbólicos 
de cultura. Enquanto muitos desses sistemas são relativamente autônomos em uma cultura 
determinada – as habilidades de chamanismo, de comércio especializado, e o outros 
semelhantes – alguns se relacionam a domínios de habilidade que devem ser 
compartilhados por virtualmente todos membros de uma cultura, se a cultura for ser 
efetiva. A divisão do trabalho em uma sociedade vai muito longe. Todos em uma cultura 
devem em alguma medida, por exemplo, ser hábeis para entrar na troca da comunidade 
lingüística, e até mesmo aceitar que esta comunidade possa ser dividida em idioletos e 
registros. Outro domínio que deve ser amplamente compartilhado (apesar de desagradável) 
em uma cultura para atuar com a efetividade requerida é o domínio de convicções sociais e 
de seus procedimentos — o que nós pensamos que as pessoas são e como eles têm que 
relacionar-se mutuamente, isso que alhures eu chamei de folk psychology e o que Harold 
Garfinkel chamou ethnosociology.52 Estes são domínios que são, principalmente, 
narrativamente organizados. 
O que eu tentei fazer neste artigo foi descrever algumas das propriedades de um 
mundo de “realidade” construído de acordo com princípios narrativos. Fazendo assim, eu 
fui de um lado para outro entre descrever “poderes” mentais narrativos e os sistemas 
simbólicos do discurso narrativo que torna possível a expressão destes poderes. É só um 
começo. Meu objetivo somente foi dispor o plano de base de realidades narrativas. A tarefa 
intimidadora que permanece agora é mostrar em detalhes como, com exemplos 
particulares, a narrativa organiza a estrutura da experiência humana — como, em resumo, 
“a vida imita a arte” e vice-versa. 
 
 
References 
 
1. Veja Thinking and Learning Skills, ed. Judith W. Segal, Susan K Chipman, and Robert Glaser (Hillsdale, N. J., 
1985). 
2. Veja Howard Gardner, Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligence (New York, 1983). 
3. Veja o livro a ser publicado por Michael Cole sobre mente e cultura; L. S. Vygotsky, Thought and Language, 
trad. e org. Eugenia Hanfmann and Gertrude Vakar (Cambridge, Mass., 1962), e Mind in Society: The 
Development of Higher Psychological Processes, ed. Cole (Cambridge, Mass., 1978); and Cultural Psychology: Essays 
on Comparative Human Development, ed. James W. Stigler, Richard A. Shweder, and Gilbert Herdt (Chicago, 
1989). 
4. Veja John Seely Brown, Allan Collins, and Paul Duguid, “Situated Cognition and the Culture of Learning,” 
Educational Researcher 18 (Jan.-Feb. 1989): 32-42. 
5. Veja Thomas Gladwin, East Is a Big Bird (Cambridge, Mass.1970); Renato Rosaldo, Culture and Truth: The 
Remaking of Social Analysis (Boston, 1989); Clifford Geertz, Local Knowledge; Further Essays in Interpreting 
Anthropology (New York, 1983); and Jerome Bruner, Acts of Meaning (Cambridge, Mass., 1990). 
6. Veja E. E. Jones, Interpersonal Perception (New York, 1990). 
7. Para uma explicação mais completa e mais discursiva sobre a natureza e o produto do pensamento 
narrativo vejo o meu livro Actual Minds, Possible Worlds (Cambridge, Mass., 1986), and Acts of Meaning. See 
also Theodore R. Sarbin, Narrative Psychology: The Storied Nature of Human Conduct (New York, 1986). 
FORMAÇÃO HUMANA: O PENSAMENTO NARRATIVO E O
PENSAMENTO CIENTÍFICO INTEGRADOS
Aparecida Barbosa*
* Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e em Comunicação pela Escola Superior
de Relações Públicas (1987). Atualmente é professora da UERN e doutoranda da UERJ/PROPED.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN
Universidade do Rio de Janeiro – PROPED/UERJ
aparecidabarbosa@uern.br
RESUMO
Este artigo procura caracterizar a formação humana, a partir de como o homem formula seus
pensamentos e, com esses, age no mundo, ou seja, em quais circunstâncias são mobilizados.
Não nos cabe esgotar tal assunto, e sim discuti-lo e apresentar um modelo de como esse
processo possivelmente ocorre. Para tanto, trazemos os estudos acerca dos modos de
pensamento estudados pelo psicólogo Jerome Bruner na década de 80: o pensamento
narrativo e o pensamento científico. Esses dois modos de pensamento também são estudados
por Luiz Antonio Gomes Senna, desde o final da década de 90 até os dias de hoje. Ambos os
estudiosos defendem que esses dois tipos de pensamento atuam de forma independente,
porém, estão inter-relacionados. Entendemos por pensamento narrativo a narrativa criada pelo
homem, baseada em sua memória e na sua interação com os demais, e pensamento científico
como as proposições derivadas da história narrada. O ser humano em contato com a
sociedade, cultura e sua própria vivência cria suas narrativas que espelham narrativas
coletivas e delas depreendem uma série de proposições.
PALAVRAS-CHAVE: Pensamento narrativo. Pensamento científico. Formação humana.
SEMANA 2 - TEXTO BASE 1
Introdução
O homem é dotado de linguagem e pensamento, age no mundo e cria seu(s) mundo(s)
interno(s), suas realidades mentais. A interação homem/ mundo, ou melhor, mundo externo/
mundo interno, acontece dialeticamente e de forma dinâmica. Partindo do pressuposto que o
homem pensa e, portanto, interage ao seu redor, será analisada uma provável estratégia usada
por ele para criar esta relação: pensamento narrativo e científico. Antes de entrar no debate em
si dos conceitos, é bom esclarecer o escopo. Ao se falar em mundo interno, entenda mundo
mental como o que é formulado na mente humana, e mundo externo tudo que os sentidos
possam perceber, tudo que seja extracorpóreo. Contudo, consideramos imprescindível
caracterizar pensamento, haja vista ser um conceito muito complexo e, hoje, não temos uma
resposta conclusiva, mas muitas especulações a respeito. Das várias definições feitas, duas são
bem claras. Para Jung:
[...] o pensamento é uma função psicológica racional que estabelece relações
de ordem comportamental entre conteúdos representativos, através da
utilização de categorias de verdadeiro ou falso, ou como certo ou errado
(JUNG, 1947, p. 542).
Outra definição que pode ser complementar a essa é a de Jolivet: “[...] pensamento é a
capacidade que tem o ser humano de conhecer em que consistem as coisas e as relações que
elas têm entre si” (JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Edição Brasileira. Editora Agir. Rio
de Janeiro,1972, p. 43.). Tomando por base esses dois conceitos, temos um terceiro que
norteia nosso trabalho: pensar é relacionar dados, organizá-los em categorias e inferir deles
regras.
Sabe-se que o pensamento é realizado por palavras, sons, imagens visuais etc.
Tomando-se por base os estudos da fala humana realizados por Vygotsky e Luria, esses
pesquisadores mostram como a fala serve para resolver problemas e como ela é externalização
de uma fala interna. Eles fizeram experiências e observaram que a criança, ao se esforçar para
resolver os problemas, fala. Essa fala concomitante com a ação ocorre espontaneamente,
quase sem interrupção até o final da atividade proposta. Ela se torna mais persistente à medida
que as dificuldades aumentam. Assim, os estudiosos argumentam que é necessário e natural à
criança falar enquanto resolve um problema, não apenas para contar o que está fazendo, mas,
principalmente, porque está externando seu pensamento (sua fala interna).
Dessa forma, a fala consiste numa ponte entre o mundo interno e o mundo externo da
criança, e, através da fala, ela organiza, cria representações do mundo e consegue manipular
diversos conceitos, expressando-os por meio da fala. Sendo assim, a definição de pensamento
utilizada neste artigo é a seguinte: texto mental que relaciona signos e os organiza para depois
inferir uma série de regras. Esse conceito traz algumas consequências, uma vez que a base do
pensamento é a palavra. Assim, trazemos contribuições da linguística para entendermos seu
funcionamento. De acordo com Bakhtin:
[...] palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da
palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada
que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela.
A palavra é o modo mais puro e sensível da relação social (BAKTHIN,
2002, p. 36).
Se a palavra é base do pensamento linguístico, podemos afirmar que o pensamento
constrói discursos e reflete discursos construídos, tal qual um texto impresso. A linguagem é
mediadora entre o homem e o mundo. Através dela, o ser humano se comunica e interage
com sua sociedade, ou seja, ela é a base necessária para o pensamento humano, a base que
liga os membros de uma mesma comunidade linguística. Brandão afirma que a linguagem
não é neutra, ela é um suporte para representações ideológicas e gera conhecimento, que é o
produto do pensamento. Para Schaff (1978):
[...] a linguagem constitui, de algum modo, uma prática condensada que,
aproveitando essa via como a mais sugestiva e a mais fácil, penetra no nosso
conhecimento atual (SCHAFF, 1978, p.3).
Assim, o homem para conhecer sua realidade usa a linguagem. Entretanto, como a
linguagem é resultado de uma prática social, em que a ideologia se faz presente, o pensamento
humano não é único, singular, ele é resultado do contato com o outro. Daí resulta um conceito
fundamental: a subjetividade.
Ao falarmos em sujeito, devemos nos esquecer do conceito romântico de subjetividade
em que há um único “eu”. A análise do discurso nos demonstra que isso é uma utopia, porque
o “eu” surge exatamente da relação com o outro, e isso se dá dentro de um contexto social e
de uma forma dinâmica. Orlandi (1999) aponta que:
A noção de discurso não comporta a ideia de linearidade presente nos
esquemas primeiros da comunicação (emissor, receptor, código, referente e
mensagem). Na realidade, a língua não é só um código entre outros, não há
essa separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa
sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles
estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não estão
separados de forma estanque (ORLANDI, 1999, p.21).
Iniciamos este artigo afirmando que a relação mundo interno/mundo externo é
dinâmica e inseparável. Para simplificar, o mundo interno seria sinônimo de mental, e o
externo, extracorpóreo. O pensamento pertenceria ao mundo interno, e a sociedade e cultura,
ao externo. Se entendermos o pensamento como um texto e, portanto, um discurso, o que foi
estudado até agora na Análise do Discurso pode servir de referência para estudarmos o
pensamento e, consequentemente, a formação humana. Bruner (2002) defende que o “eu”, na
verdade, está impregnadopelo outro e, como aquele, surge da relação, da interação social, e
que nossos pontos de vistas nunca são constituídos apenas de nós mesmos, mas a partir dos
pontos de vistas de outros seres humanos que estão à nossa volta. Portanto, eu não existo
sozinho e, consequentemente, não me constituo sozinho. Podemos concluir, ainda que
circunstancialmente, que somos formados e formamos através dos nossos pensamentos e
linguagem, que não deixa de ser os nossos pensamentos, externados, falados.
Para Bruner, há dois tipos de pensamento, o narrativo e o científico, os quais Senna
chama de narrativo e cartesiano. Os dois, para ambos os autores, são complementares, porém
não estão relacionados. Este artigo defende que esses dois tipos estão relacionados, são dois
tipos de discursos, e um pode alimentar o outro.
Pensamento narrativo e científico segundo Bruner
Jerome Bruner, psicólogo da Universidade de Nova York, não chega a uma definição
clara do que seja o pensamento. Entretanto, ele explica, por uma série de exemplos, que há
dois tipos de pensamento: o narrativo e o científico. No capítulo do livro “Realidade mental:
mundos possíveis – ‘Dois Modos de Pensamento’”, Bruner aponta as distinções entre o modo
de pensar narrativo e o científico. O autor defende a tese de que esses dois modos de
funcionamento cognitivo constroem realidades, ordenando a experiência cada um da sua
forma. Apesar disso, ambos os discursos seriam complementares entre si, sem que um se
reduza ao outro. O pensamento científico, que Bruner chama de paradigmático, se associa ao
discurso teórico e ao logos, ou seja, são utilizados argumentos para estabelecer "o ideal de um
sistema formal e matemático de descrição e explicação”. Para isso, um cientista ou filósofo
procura criar categorias ou conceitos, relacionando-os uns com os outros até formar um
sistema geral baseado em hipóteses fundamentadas, isto é, que podem ser demonstradas como
verdadeiras. Por sua vez, a narrativa, mítica ou literária, aborda a maneira pela qual as
intenções humanas se comportam nas mais diversas situações. Nesse sentido, as histórias que
são criadas traçam relatos de ações humanas em circunstâncias de experiências localizadas
num tempo e espaço definidos, enquanto o discurso teórico tenta ir além dos fatos
particulares, visando formulações de princípios gerais e abstratos:
As realidades narrativizadas, eu suspeito, são demasiadamente onipresentes,
sua construção é demasiadamente habitual ou automática para ser acessível à
fácil inspeção. Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes que (de
acordo com o provérbio) são os últimos a enxergar a água, temos nossas
próprias dificuldades em compreender o que significa nadar em histórias.
Não que não tenhamos competência em criar nossos relatos narrativos da
realidade longe disso -, somos, isso sim, demasiadamente versados. Nosso
problema, ao contrário, é atingir uma consciência do que fazemos facilmente
de forma tão automática, o antigo problema da prise de conscience
(BRUNER, 2001, p.140).
Segundo Bruner (2002), esses dois tipos de pensamentos funcionam de forma
diferente no ordenamento da experiência pessoal do indivíduo e na construção da realidade.
Para ele, os dois são complementares, porém irredutíveis. Este artigo aborda a relação
existente entre o pensamento narrativo e o científico e como o primeiro pode desencadear o
segundo e, consequentemente, permitir a formação do sujeito social real, não o idealizado pela
instituição escolar, contribuindo, efetivamente, para uma autoformação; defende-se a
coexistência desses dois mundos: o narrativo e o científico. Abaixo, o resumo das principais
características de cada um, segundo Bruner:
Cada uma das maneiras de conhecimento tem princípios operativos próprios
e seus próprios critérios de boa formação. [...] ambos podem ser usados
como meio de convencer o outro. Não obstante, do que eles convencem é
fundamentalmente diferente: os argumentos convencem alguém de sua
veracidade, as histórias de sua semelhança com a vida. O primeiro comprova
através de um possível apelo a procedimentos para estabelecer provas
formais e empíricas. O outro estabelece não a verdade, mas a
verossimilhança (BRUNER, 2001, p. 140).
Resumindo, o pensamento científico relaciona-se com:
a) Busca pela verdade universal;
b) Convencimento do interlocutor fornecendo provas empíricas;
c) Causalidade (se x, então y);
d) Formação de proposições;
e) Preenchimento de um ideal de um sistema formal e matemático de descrição e
explicação, empregando a categorização ou a conceituação;
f) Consistência;
Já o pensamento narrativo estaria na outra ponta, com as seguintes características:
a) Busca a verossimilhança;
Podemos dizer que Bruner entende verossimilhança tal qual Aristóteles:
[...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu;
mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança
ou a necessidade (BRUNER, 2001, p.43).
b) Apresenta condições prováveis entre dois eventos;
c) Transgride a consistência podendo ser contraditório;
d) Busca a abstração, transcende o particular;
e) Existência de gatilho para mudança de um plano para o outro.
Bruner, ao discorrer sobre a importância que a narrativa adquiriu numa sociedade
regida cada vez mais pela forma de se contar um acontecimento do que pelo acontecimento
em si, afirma:
Na última metade de nosso século (XX), o drama tornou-se epistemológico,
preso não apenas “por aquilo que acontece”, mas pelo enigma de como, em
um mundo turbulento, passamos a conhecer ou a construir nossas realidades
(ARISTÓTELES, 2005, p. 43).
Bruner (2001) enfatiza que a narrativa é um dos meios pelos quais é possível
desenvolver o pensamento metacognitivo1. Para ele, é por meio das histórias que o indivíduo
se conhece e conhece o outro; sendo assim, as escolas deveriam adotar a narrativa como
ferramenta para o ensino das mais diversas disciplinas. Ele mesmo descreve como seu
1 No artigo de Célia Ribeiro, há uma análise do que significa a palavra metacognição. Para a autora, não há um
consenso entre os estudiosos; de maneira geral, ela resume: “a metacognição diz respeito, entre outras coisas, ao
conhecimento do próprio conhecimento, à avaliação, à regulação e à organização dos próprios processos
cognitivos. De acordo com Weinert (1987), as metacognições podem ser consideradas cognições de segunda
ordem: pensamentos sobre pensamentos, conhecimentos sobre conhecimentos, reflexões sobre ações”. Não cabe
entrarmos nessa discussão, entendemos metacognição como o ato de pensar sobre o próprio pensamento.
interesse pela ciência fora despertado por um professor de seu colégio, ao narrar experiências
científicas ao invés de usar somente fórmulas. Portanto, a narrativa adquire um papel
fundamental na constituição do indivíduo e do ser social. Porém, o papel da narrativa como
estruturadora da forma de pensar não se deve apenas ao fato de que contamos e/ou ouvimos
histórias, mas ao fato de que nos constituímos seres pensantes devido ao desenvolvimento da
fala interior, que, por sua vez, é decorrente da fala exterior. A perspectiva sócio-histórica da
teoria de Vygotsky, no que diz respeito à atividade cognitiva, contempla a visão de que o
comportamento humano só pode ser entendido quando se observam os fatores históricos e
sociais que o geraram. Bruner, concordando com Vygotsky, argumenta:
A implicação mais geral é a de que a cultura se encontra em um constante
processo de ser recriada à medida que é interpretada e renegociada por seus
membros. Neste ponto de vista, a cultura é tanto um fórum para negociação e
renegociação de significado e para explicação da ação quanto um conjunto
de regras ou especificações para a ação. De fato, toda cultura mantém
instituições especializadas ou ocasiões para intensificação dessa
característica “semelhante a um foro”. Narração de histórias, teatro, ciência e
mesmo jurisprudência são técnicas para a intensificação desta função –
maneiras de explorarmundos possíveis a partir do contexto de necessidade
imediata (VIGOTSKY, 1989, p.44).
Este artigo concorda com Bruner em sua maioria, porém, acredita que não só a
narrativa possui papel importante para a interação social e formação humana; defendemos e
acreditamos que o pensamento científico coexiste ou precisa coexistir com o narrativo para
exercer o papel da formação humana. Por esse motivo, recorremos a Senna (2002), que nos dá
um quadro sinóptico dos modos de pensamento:
Modo Narrativo Modo Científico
Centrado na realidade presente e imediata
de mundo.
Centrado na percepção de uma fração da
realidade de mundo, de caráter abstrato e
simbólico.
Despreza o futuro e dedica pouca atenção
à análise do passado.
Privilegia a análise do passado, como
forma de preparar um futuro melhor.
Opera sob um esquema de atenção
multidirecional, projetando-se, ao mesmo
tempo, sobre diversos focos de atenção.
Opera sob um esquema de atenção
concentrada em apenas um foco,
desprezando o seu contexto.
Demanda um esquema psicomotor em
constante ação diante do mundo,
resultando no privilégio ao movimento e à
agitação.
Demanda um esquema psicomotor em
repouso diante do foco de atenção,
resultando no privilégio ao estático, à
calma, ao silêncio.
Privilegia esquemas de ação que se
organizam à medida que agem sobre o
mundo.
Privilegia esquemas de ação que somente
se põem em ação sobre o mundo após
planejamento prévio.
Privilegia acordos orais, negociados caso a
caso, conforme as relações que se
estabelecem a cada contrato.
Privilegia acordos escritos, normatizados e
formalizados, não necessariamente
controlados por acordos interpessoais.
Centraliza a experiência intelectual no
sujeito, caracterizando-a como fenômeno
profundamente marcado sócio-
afetivamente.
Centraliza a experiência intelectual no
objeto/foco da atenção, caracterizando-a
como fenômeno isolado de questões
afetivas pessoais.
O autor evidencia o trânsito desses dois modos de pensamento, em circunstâncias
distintas, mas que esse movimento ou essa formação humana necessita urgente da legitimação
da instituição escolar. Antes, porém, precisa ser (re)conhecida pelos professores, que, por sua
vez, necessitam tomar conhecimento dessa nova agenda (ou não tão nova assim) de formação
humana.
Pensamento paradigmático derivado do pensamento narrativo: seu papel sócio-cultural
Usaremos pensamento narrativo como texto mental que constrói sua realidade de
acordo com o discurso narrativo, ou seja, este possui as características descritas por Bruner e
Aristóteles. E pensamento científico, como o texto mental que constrói a realidade de acordo
com o discurso científico, este com as características descritas por Bruner, e tendo como base
de seu funcionamento as proposições. Como já foi dito, a relação mundo externo / mundo
interno não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo a termo, isto é, não passa
diretamente de um a outro. Não há uma sequência em que primeiro entra a informação, depois
há a decodificação; esses processos são (quase) simultâneos, principalmente na mente dos
jovens contemporâneos, onde a mente é multidirecionada, os dedos e as mãos conseguem ser
tão rápidos quanto o pensamento.
Logo, a representação interna do mundo é um sistema aberto, não só recebe as
informações externas, como as filtra e as devolve reconstruídas. Esse processo é norteado
pelo pensamento, que organiza essas informações em discursos, principalmente de dois
tipos: narrativo e científico. Podemos resumir o processo da seguinte forma: a memória
guarda não só a vivência particular do indivíduo, mas também valores da sociedade na qual o
sujeito se insere, e os gêneros do discurso.
Estes fatores constituem a estrutura do aparelho perceptivo do sujeito, a língua com a
qual este pensa e que o dota de um aparelho conceitual determinando uma articulação e uma
percepção determinadas da realidade, e os interesses de classe ou de grupo que decidem
conjuntamente a escolha pelo indivíduo do seu sistema de valores, etc.
A estrutura do pensamento narrativo está de acordo com os gêneros do discurso
internalizados, por isso a não dissociabilidade desses dois modos de pensamento, conforme
Bruner:
[...] impossível distinguir de maneira bem definida o que é um modo
narrativo de pensamento e o que é um “[...] texto” ou discurso narrativo.
Cada um deles dá forma ao outro, do mesmo modo que o pensamento torna-
se inextricável da linguagem que o expressa e que acaba moldando-o [...]. Já
que nossa experiência no mundo natural tende a imitar as categorias de nossa
ciência conhecida, nossa experiência dos assuntos humanos passa a assumir
a forma das narrativas que utilizamos ao contá-los (BRUNER, 2001, p.129).
Bruner está de acordo com o estudo de Bakhtin, que afirma que o homem ao longo da
vida domina vários gêneros e estes são usados nas diversas esferas de nossa vida social, como
uma espécie de pré-condição para que nossa capacidade de comunicação verbal:
Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua
materna que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a
gramática. A língua materna – a composição de léxico e sua estrutura
gramatical –, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a
adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos
durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos
rodeiam (BAKTHIN, 1992, p.301).
O homem é um ser que interage com seu meio e nele forma-se, constitui-se. As
informações externas são captadas por seus sentidos e reorganizadas em sua mente. Essa
realidade capturada não única, nem virgem, ela já traz consigo muitos valores, conceitos e
pré-conceitos do indivíduo; afinal, o homem está inserido em uma teia sócio-cultural da qual
ele não pode se ver desprendido. Essas redes de conceitos e valores são geradas, armazenadas
na memória e desempenham papel no desenvolvimento e na formação humana. Para facilitar
nossa análise, vamos buscar exemplos de como o homem relaciona o pensamento narrativo ao
científico cotidianamente.
O homem vive o cotidiano e age sobre ele. Heller (1972) afirma que essa ação é
fragmentada, já que o ser humano não dá conta da totalidade de acontecimentos ao seu redor;
há um recorte do que lhe é apresentado. O próprio cotidiano, em sua temporalidade rotineira,
impõe aos homens a necessidade de reações imediatas. Essas reações rápidas acabam gerando
ultrageneralizações, que funcionam como um recurso operacional-prático. A formação de
juízos provisórios é necessária para atender às demandas da vida social cotidiana, mas podem
cristalizar-se em preconceitos, ultrageneralizações negativas, podendo resultar desse processo
a alienação dos sujeitos. As características do comportamento cotidiano, sejam a
espontaneidade, pragmatismo, economia, julgamentos provisórios baseados em precedentes,
analogias, imitações, são os elementos, segundo Heller(1972), que tornam a vida cotidiana a
esfera da realidade. Pode-se afirmar que temos os estereótipos e, em seu extremo, o
preconceito. Para Kosik (1989):
A vida cotidiana é antes de tudo organização, dia-a-dia, da vida individual
dos homens; a repetição de suas ações vitais é fixada na repetição de cada
dia, na distribuição do tempo em cada dia (KOSIK, 1989, p. 9).
Ou seja, as nossas ações, os nossos conceitos empregados são circunstanciais, assim
como os nossos discursos, pois revelam-se num determinado contexto, atendendo a demanda
de certas situações. O estereótipo pode nos servir como ferramenta de análise. Tomando o
cotidiano como descrito acima, imaginemos a seguinte situação: um novo vizinho se muda
para seu prédio. Você observa que ele tem tatuagens e carrega uma guitarra.
Automaticamente, seu cérebro aciona sua memória, que busca situações parecidas em que
haja uma pessoa com tais características. Histórias internas são acionadas, histórias
pertencentes a diversos gêneros. Você pode relacionar a sua adolescência ecriar uma história
saudosista, ou associar o rock a uma história cheia de referências às drogas e delinquência. O
resultado desse pensamento narrativo é uma proposição, ou seja, um pensamento
paradigmático:
- Se for uma história saudosista, provavelmente criará um estereótipo positivo,
proposição, o rapaz deve ser gente boa.
- Se for uma história com referências negativas, provavelmente criará um estereótipo
negativo, a proposição, esse cara é um viciado.
“Gente Boa” e “esse cara é um viciado” são proposições, conclusões de nossas
narrativas internas que pode fazer-nos tomar uma atitude, no caso, afastar-se ou não do
vizinho. Essa vivência alimentará memória, que será acessada em caso parecido. Outro
exemplo é a imagem do Brasil no exterior. Garcia (2001), em sua tese de doutorado “O IT
Verde e Amarelo de Carmen Miranda (1930-1946)”, analisa a trajetória de Carmen do
começo de sua carreira até o estrelato em Hollywood. O que nos interessa aqui é percebermos
que a cantora passou a representar, no imaginário americano, uma referência da cultura
brasileira, e os intelectuais da época aprovaram essa imagem porque era uma forma de nos
diferenciarmos da cultura norte-americana. Mas não é bem assim; Carmen fez todo esse
sucesso por representar o exótico Brasil, país das bananas, e possuir todo o glamour das
atrizes americanas.
Carmen Miranda, trajada com a indumentária estilizada da baiana,
correspondia à imagem exótica que os yankees tinham do povo latino-
americano, ao mesmo tempo em que se identificava à estética do
entretenimento yankee. (GARCIA, 2001, p.100)
Assim, este exemplo nos mostra como o diálogo foi travado entre os americanos e os
brasileiros: para os primeiros, Carmen representava o exótico com um tom de glamour, para
os segundos, um diferencial entre as duas culturas. Imaginemos que o pensamento narrativo
criado por um americano seja uma história de aventura em meio à floresta Amazônica e daí
derive a proposição: “Brasil, um país exótico”. E para o brasileiro, uma cantora que
representasse o país nos Estados Unidos é personagem de história de sucesso e glamour e
disto deriva-se a proposição: “Carmem é uma estrela”.
Por certo, todos nós temos exemplos de conhecidos que viajaram para os Estados
Unidos e, tão logo desembarcaram no aeroporto, passaram por entrevistas nada agradáveis,
por termos fama de lá querermos nos fixar ou, no caso de mulheres sozinhas, terem o
estereótipo de quererem “se dar bem” ou se prostituírem. O importante é enfatizarmos como o
pensamento narrativo e suas proposições são um processo em constante reavaliação, ou seja,
dinâmico. Além disso, esses pensamentos conjugados constroem a realidade refletindo a
cultura e a sociedade. Sendo assim, é uma forma natural e espontânea de nos conhecer e
conhecer outro.
Considerações finais
Este artigo parte da seguinte premissa: pensamento é um texto mental que relaciona
signos e os organiza para depois inferir uma série de regras. Como um texto carrega em si as
características de um texto impresso: é ideológico e polifônico. Cria diálogo com a sociedade,
a cultura, refletindo-a e interagindo com ela. Possui essencialmente duas formas de expressão:
a narrativa e a proposição. De acordo com Bruner e Senna, o pensamento narrativo não está
relacionado ao pensamento científico; eles são duas instâncias opostas. Nós defendemos que
não, de uma narrativa pode derivar uma proposição e esta guiar uma ação do sujeito. Um
exemplo didático para tanto é a construção de estereótipos. Basta fazermos um exercício
mental para percebemos como estes pensamentos estão relacionados e como sua articulação
pode servir de base para criarmos a representação da cultura, da sociedade e, claro, de nós
mesmos; ou seja, a nossa autoformação, que urge novas formas de ser, pensar e agir.
117
CONTRACAMPO
*Professor da UFMG.
R E S U M O
 Esta contribuição discute as narrativas orais como uma espécie de
comunicação cotidiana, abordadas sob duas perspectivas complementares:
as formas e as funções. A análise formal trata a estruturação da sintaxe
narrativa, segundo a tradição inaugurada pela análise estrutural de Labov/
Waletzky. O aspecto funcional trata também a função argumentativa (St.
Toulmin), estabelecida entre a própria narrativa e a inserção na conversação.
O recorte empírico é composto por narrativas orais de sonhos, já tratado em
outros textos, na perspectiva da análise do discurso.
ABSTRACT
 In this article, I analyze oral narratives as a form of everyday
communication that can be analysed under two complementary perspectives:
its forms and functions. The formal analysis deals with the arrangement of
narrative syntax in conformity to the tradiction initiated by Labov/Waletzky
structural analysis. The funcional aspect deals also with the argumentative
function (St. Toulmin) instituted between the narrative itself and its insertion
into the conversaton. The empirical indentation is composed by oral narratives
of dreams, already observed in other texts, under the viewpoint of discourse’s
analysis.
Narrativas orais: formas e funções
Michael Hanke*
SEMANA 2 - TEXTO BASE 2
118
CONTRACAMPO
Introdução
Embora não exista uma definição, consensualmente aceita na ciência, para
o termo “narrativa”, fica claro que narrar é uma forma básica de atividade
lingüística. É um tipo próprio da comunicação cotidiana ou, segundo
Wittgenstein, um “jogo de linguagem” (PU 23). Mesmo Aristóteles já
considerava que a narrativa é uma dentre as formas (schemata) de linguagem.1
A habilidade de narrar, sendo específica do ser humano2 e sua inteligência, é
parte integrante da sua competência lingüística e simbólica.3
Como produto arcaico da cultura humana, as narrativas servem, dentre
outras funções básicas, para acumulação, armazenamento e transmissão de
conhecimentos. Segundo o psicólogo Jerome Bruner (1991), as narrativas
servem como meio de percepção e a nossa realidade é resultado de uma
construção narrativa. Narrar contribui para a estruturação da experiência
humana, pois “organizamos nossa experiência e nossa memória principalmente
através da narrativa” (Bruner 1991, 14, 21). A partir das narrativas são
construídas teorias sobre a realidade (Ochs et al. 1992), e, sendo assim, elas
servem como “ponto de fuga através do qual torna-se possível a apreensão
do cotidiano” (Mendonça et al. 2001, 9). Elas são meios de sociabilidade, pois
através delas as experiências individuais são comunicadas e tornadas
“públicas” ou socialmente conhecidas. Uma vez que uma narrativa é sempre
proferida e fabricada por alguém, vista de longe esta pode parecer uma
atividade monológica. Mas nesse jogo lingüístico sempre participam também
os ouvintes e a construção de uma narrativa precisa da cooperação destes, e,
como não há narrativa sem narrador e sem ouvinte (Barthes 1988, 125), a
narrativa verbal é construída dialogicamente, num discurso.
1. Formas
Uma narrativa é mais freqüentemente caracterizada como um ato de
linguagem que faz referência a uma série de ações ou acontecimentos situados
no passado, sejam esses reais ou ficcionais.4 Labov/Waletzky definem
narrativa como um método para recapitular experiências passadas, capaz de
estabelecer uma relação entre uma série de sentenças e uma série de
acontecimentos. A narrativa faz uso da possibilidade de representação
simbólica da linguagem e representa algo passado em termos de tempo e
ausente em termos de espaço. Assim, ela transcende tempo e espaço, como
uma referência a algo que não está presente no momento ou como
representação de algo imaginado (Swearingen 1990, 181).
Então a narrativa tem dois níveis: o ato de fala (em inglês: “story”) e a
referência aos acontecimentos, aos objetos e às circunstâncias (em inglês:
“history”). Através do “story”, que conta e seleciona os detalhes relevantes,
a “history” se torna acessível.
119
CONTRACAMPO
Com relação à natureza dos elementos obrigatórios numa narrativa não
há um consenso entre os teóricos. A estrutura básica, obviamente,é composta
por início, meio e fim; e, segundo Chafe (1990, 94), uma narrativa precisa de
uma introdução, de um momento (quando?), um local (onde?), personagens
atuantes (quem?) e uma situação de fundo (“background activity”), no qual
o conteúdo da narrativa se desenvolve. Este conteúdo deve ser constituído
por uma série de eventos conectados que foram realizados ou experienciados
pelos sujeitos (Bal 1985, 8). Para Labov/Waletzky, a exigência mínima para se
caracterizar uma narrativa é uma ligação temporal entre pelo menos duas
sentenças.
Apesar da dificuldade de se caracterizar uma narrativa cotidiana a partir
de elementos obrigatórios, estas podem ser identificadas facilmente por causa
da sua natureza dialógica, ou seja, a inserção num discurso. Para iniciar uma
narrativa, o narrador precisa saber se os seus ouvintes estão interessados e
dispostos a ouvi-la. Assim ele tem que sinalizar que ele quer produzir isto e
“pedir permissão” para fazê-lo. Uma vez que aceitam, os ouvintes têm
obrigações (mostrar interesse, não interromper, rir no momento certo ou reagir
adequadamente, etc.), como também o narrador tem obrigações tais como
terminar a narrativa corretamente, esclarecer partes que precisam informações
suplementares, etc. No final da narrativa, o pacto sobre essas obrigações é
anulado e as regras do discurso não-narrativo reinstaladas. Sendo assim, é
indispensável uma sinalização de que a narrativa chegou ao fim. Uma vez
identificadas através das marcações de início e fim, as narrativas podem ser
isoladas como partes de um discurso e, assim segmentadas, terem a sua
estrutura analisada.
A análise formal da sintaxe narrativa
A análise formal da estruturação da sintaxe narrativa foi inaugurada por
Labov/Waletzky (1967), que através de uma análise estrutural, deram início à
pesquisa linguística na área de narrativa conversacional e orientaram
trabalhos posteriores nessa area.5
Segundo Labov/Waletzky, produtos da tradição literária ou verbal têm
estruturas narrativas, que só podem ser analisadas segundo a sua função no
contexto de origem. Essas estruturas fundamentais podem ser encontradas
em versões verbais de experiências pessoais, em narrações cotidianas de
pessoas comuns. A partir destas – e não nos produtos de alto nível da literatura
– eles desenvolveram um sistema para analisar narrações cotidianas.
Labov/Waletzky estabeleceram distinções entre as propriedades formais e
funcionais. Propriedades formais são estruturas típicas, que podem ser
encontradas tanto no nível de sentenças como também na narrativa como um
todo, e permitem compreender a estrutura interna das narrativas. A análise
funcional destaca que, uma série de elementos colocados numa ordem
120
CONTRACAMPO
temporária ainda não constituem uma narrativa, mas apenas uma descrição.
Para que seja constituída uma narrativa, é necessaria uma função, ou seja, um
motivo pelo qual ela é contada, um interesse de ordem pessoal. Enquanto as
propriedades formais correspondem ao nível de referência dos
acontecimentos, as propriedades funcionais correspondem à avaliação
pessoal do narrador, seus interesses e seus motivos. Essa é também a
perspectiva de Astington, Feldman, Bruner et al.,6 segundo a qual uma
narrativa é constituída de dois planos: um plano de ação, que contém o nível
referencial, e um plano de consciência, no qual está presente o conhecimento,
o pensamento e o sentimento, tanto daqueles que participam quanto daqueles
que protagonizam a narrativa.
Uma narrativa completa tem, segundo Labov/Waletzky, os seguintes
elementos estruturais:
1. A síntese (“abstract”, do que se trata?), que resume a narrativa e indica
qual a natureza do seu conteúdo; por exemplo7: “Trata-se em geral da questão
de se procurar um banheiro e encontro grandes dificuldades em achar um.
Esse sonho é muito mais complexo, mas eu consigo me lembrar muito bem
dele. Estava ...”
2. A orientação (“orientation”, quem? quando? o quê? onde?), que dá
referências do local, hora, da cena e das pessoas envolvidas; exemplo: “Ontem
eu sonhei que minha mãe mudou-se para Paris, e eu arrumei um apartamento
para ela lá num prédio velho e alto, no qual eu subi pelo elevador ....”.
3. O episódio inesperado (“complication”, o que aconteceu?), exemplo:
“Estava andando de bicicleta, e o meu nenê estava na cesta da bicicleta. De
algum modo ele caiu, e eu o perdi. Mas não me lembro como ... de repente eu
percebo que ele está em cima de um muro amarrado e eu estou embaixo na rua
gritando: “Não precisa chorar, eu vou pegar você”.
4. A avaliação (“evaluation”. qual reação?), que está ligada ao foco central.
Numa outra contribuição (1972), Labov aprofunda o conceito de avaliação,
classificando tipos diferentes. A avaliação deixa de ser um gesto isolado,
feito num instante exato e único da narrativa, para estar presente de forma
contínua e diversificada no desenrolar da narrativa. Exemplo: “A noite passada
(ha!ha!ha!) depois do meu casamento na igreja (ha!ha!ha!) eu estava dentro
do carro e (ha!ha!ha!) eu vi que no lugar das latinhas amarradas no pára-
choque (ha!ha!ha!) tinha um ciclista (rir)”.
Enquanto o texto sublinhado é articulado acompanhado de risos
(“ha!ha!ha!”) e corresponde à avaliação contínua no desenrolar da narrativa;
o “rir” final, que sucede a fala, corresponde à avaliação feita num exato instante.
Este último não compõe a fala, mas compõe a narrativa.
5.Uma solução ou um resultado (“result”, qual o desfecho?). No sonho
sobre uma visita a Paris, a protagonista enfrenta várias aventuras: o elevador
serve como avião, ela sobrevoa a paisagem, consegue pilotá-lo como um
121
CONTRACAMPO
carro, supera vários obstáculos como, por exemplo, a fiação elétrica, e
finalmente: “Voltei para o prédio, entrei, apertei o “cinco”, subi até minha mãe,
deixei o elevador, estava no quinto andar, e comentei com minha mãe: “Não
usa o elevador, de jeito nenhum!” Assim, eu acordei. Era bem estranho.
Também engraçado.”
Todos esses elementos podem ser entendidos como respostas para as
perguntas correspondentes e constituem a estruturação da sintaxe narrativa.
2. A função argumentativa
Além das várias funções já mencionadas, as narrativas podem servir como
argumentos (McGuire 1990, 231). Devido à sua estruturação sintática, a
narrativa tem uma coerência lógica interna, a qual estabelece uma relação
entre as suas partes constitutivas.
Por ser uma forma de comunicação cotidiana, a narrativa sempre faz parte
de um discurso falado, o que implica uma situação concreta de narrar “hic et
nunc”, quer dizer, um momento definido, uma situação, circunstâncias espaço-
temporais. Parte da situação é constituída pelos parceiros da comunicação e
pelo tema do discurso. Essa conexão temática do discurso e as suas
contribuições, ou seja, a rede temática, está relacionada à coesão argumentativa
e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato lingüístico, a narrativa é
construída tendo em vista todos esses parâmetros (situação, parceiros, rede
temática/argumentativa etc.), e no modo como esses são percebidos pelo
narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa está conectada ao discurso
como um todo.
A comunicação tem, em geral, um caráter argumentativo; até uma fala
trivial, como parte de um discurso, tem uma conexão argumentativa, pois ela
pode se tornar objeto de uma justificativa (“por que você falou isso?”). Sendo
ação, ela implica uma intencionalidade. A narrativa como ação (lingüística)
também desempenha uma função em relação a essa intenção. Assim, aplicando
uma abordagem mais abrangente da argumentação, cada contribuição para
um discurso ou fala está numa relação argumentativa, como foi mostrado por
Toulmin (1958, 109-111). Para o autor cada argumentação tem os seguintes
elementos: uma exposição (dado, “datum”, D), uma conclusão (C), uma
modalidade (ou força) de dedução entre exposição e conclusão (modality, Q)
e uma regra ou “licença de inferir” (razão, “warrant”, W).8 Este último (W)
está novamente baseado em evidências diferentes (“backing”, B), e vale se
não for objeto da regra de excessão(R).
Esse esquema pode ser aplicado para a estrutura interna da narrativa
assim como para a própria narrativa e a inserção desta na conversação. Dentro
da narrativa, uma frase anterior pode funcionar como exposição para uma
frase posterior e para a conclusão. Se por exemplo uma síntese anuncia
“alguma coisa interessante” ou “engraçada”, os passos seguintes têm que
122
CONTRACAMPO
cumprir essa anunciação e apresentar um conteúdo apropriado. Caso
contrário, poderá ser cobrada a modalidade: “por que contou, se não é
engraçado?”.
Assim como as narrativas, a organização do discurso é um procedimento
lógico que usa de argumentos (Petrilli 1991, 142). Narrativas têm um caráter
argumentativo: se contadas como exemplos, elas desempenham uma função
de criar evidências ou uma licença de inferir para uma exposição ou um
complexo de exposição-conclusão. Assim, se conclusões são tiradas a partir
delas, elas servem como dado ou exposição.
As três formas da inferência lógica, segundo Peirce, a indução, dedução
e abdução, são relevantes devido a sua universalidade, uma vez que estão
presentes em qualquer tipo de pensamento, podendo ser encontradas tanto
na lógica científica quanto na comunicação cotidiana, e portanto, nas
narrativas cotidianas. Conseqüentemente, elas são também essenciais para a
estrutura da argumentação, pois elas constituem a modalidade (ou força) de
dedução entre a exposição e a conclusão. Aplicando essas três formas ao
corpus dessa pesquisa, constituído por 113 narrativas de sonhos, encontram-
se as seguintes classes:
1. Num primeiro padrão temos no início um argumento, muitas vezes
acompanhado de uma declaração pessoal, seguido pela narrativa e uma
finalização com o mesmo argumento inicial. Trata se do padrão dedutivo,
pois o argumento é colocado em primeiro lugar e a narrativa assume uma
posição dedutiva em relação a ele. Um caso (a narrativa) está subordinado a
um argumento; a narrativa evidencia o argumento e é entendida de acordo
com o sentido que o argumento oferece. O argumento inicial pode ser proferido
por outro participante do discurso, o que evidencia o caráter dialógico da
ação narrativa.
2. Num segundo padrão a narrativa funciona como ponto de partida inicial,
do qual algo é derivado. Aqui a narrativa serve como dado (ou exposição), da
qual conclusões são tiradas.
A diferença entre esse padrão e o anterior (dedutivo), é que aqui não há
uma argumentação anterior, mas esta é desenvolvida a partir da narrativa. Por
isso, esse padrão é caraterizado como indutivo. Os argumentos desenvolvidos
são inéditos, pois não foram introduzidos antes da narrativa.
3. O terceiro padrão estabelece uma conexão entre a narrativa e os
discursos anterior e posterior a ela, através de uma semelhança hipotética, a
qual é transformada numa relevância temática ao longo do discurso. Esse
padrão é abdutivo no sentido de que algo é introduzido como supostamente
(e verdadeiramente) relevante, e cuja relevância (que pode variar de
intensidade) é evidenciada apenas depois.
200 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58
BIBLIOGRAFIA
COOK, Timothy E. (1998), Governing with the
news: the news media as a political ins-
titution. Chicago, The University of Chi-
cago Press.
GRANT, Ruth W. (1997), Hypocrisy and integrity:
Machiavelli, Rousseau, and the ethics of
politics. Chicago, The University of Chi-
cago Press.
MANIN, Bernard. (1997), The principles of repre-
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bridge University Press.
MIGUEL, Luis Felipe. (2002), “Os meios de comu-
nicação e a prática política”. Lua Nova,
55-56: 155-184.
PITKIN, Hanna F. (1967), The concept of represen-
tation. Berkeley, University of California
Press.
LUIS FELIPE MIGUEL é professor do Instituto de
Ciência Política e do Centro de Pesquisa e Pós-
Graduação sobre as Américas, ambos da Uni-
versidade de Brasília, e pesquisador do CNPq.
O Brasil que o romantismo
(re)criou
Bernardo RICÚPERO, O romantismo e a idéia de
nação no Brasil (1830-1870). São Paulo, Martins
Fontes, 2004. 287 páginas.
André Botelho
Independência literária, historiografia nacio-
nal, mestiçagem como fator de diferenciação dos
brasileiros em relação a outros povos e o silêncio
cauteloso sobre a escravidão. São esses alguns dos
elementos assentados pelo romantismo brasileiro
na construção social da idéia de nação no Brasil.
E o grau do sucesso do empreendimento românti-
co, procedendo a análise de frente para trás, esta-
ria no fato de que os seus elementos originais te-
riam pautado em grande medida a forma pela
qual a nação tem sido desde então entendida no
Brasil. Veleidades e recursos intelectuais, sociais e
políticos disponíveis, devidamente pesados, os in-
telectuais românticos deram início ao processo de
construção da nação e, mesmo em meio aos cons-
trangimentos sociais impostos pela escravidão, le-
varam-no adiante com as ambigüidades daí advin-
das. E a idéia de nação por eles construída foi aos
poucos tornando-se senso comum.
É esta a proposição central de O romantismo
e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) de Ber-
nardo Ricúpero. Para chegar até ela, o autor traça
e percorre um plano analítico sistemático e parti-
cularmente instigante, uma vez que combina um
material empírico relativamente conhecido na his-
tória literária e nas ciências sociais com uma pers-
pectiva inovadora lançada sobre ele. De um lado,
recuperando e revendo, da perspectiva da história
das idéias políticas, o tema clássico da relação en-
tre literatura e historiografia românticas e constru-
ção da idéia de nação no Brasil, Ricúpero articula
um conjunto bastante disperso de proposições da
prolixa produção discursiva romântica sobre a
“identidade nacional”. De outro, indagando os
efeitos políticos mútuos entre processos ideológi-
 RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 200
SEMANA 2 - TEXTO BASE 3
RESENHAS 201
cos e estruturas de poder no âmbito da reconstru-
ção das sociedades pós-coloniais em Estados-na-
ção modernos entre os anos de 1830 e 1870, res-
titui o sentido possível do papel das idéias e dos
intelectuais nesse processo.
A questão, contudo, é saber precisamente o
que é uma nação no Brasil, e daí, qual o lugar do
romantismo como seu condutor ideológico, e
qual a possibilidade da idéia de nação estabelecer
vínculos entre indivíduos e grupos sociais numa
sociedade capitalista cindida para além do plano
da imaginação.1 Creio ser possível apontar, nesse
sentido, dois movimentos analíticos fundamentais
e articulados que estruturam O romantismo e a
idéia de nação no Brasil (1830-1870), concorren-
do inclusive para lhe conferir alcance e interesse
teóricos para além do tema abordado e do recor-
te espacial/temporal adotado. Antes disso, porém,
vejamos o plano do livro. Divide-se em três par-
tes: “Tema: a nação”, em que se apresenta uma
das mais sistemáticas e valiosas discussões teóri-
cas de que dispomos sobre a idéia de nação em
suas mais variadas tradições intelectuais e políti-
cas e também em seus mais variados matizes. E
ainda a explicação de por que o romantismo fran-
cês se ter constituído a referência fundamental do
congênere brasileiro; “Desenvolvimento: a nação
segundo o romantismo brasileiro” revê temas
como originalidade da produção discursiva român-
tica, autonomia cultural, indianismo e um ponto de
chegada paradigmático de todo esse processo –
José de Alencar; na última parte, “Contraponto: a
nação segundo o romantismo argentino”, percorre-
se o pensamento de autores como Echeverria,
Sarmiento e Alberdi, entre outros intelectuais “ro-
mânticos” e “românticos” condutores da idéia de
nação na Argentina.
O primeiro dos movimentos analíticos que
estruturam o livro, e do qual o segundo será, num
certo sentido, uma exigência lógica, insere-se de
modo renovado no debate sobre o dualismo, se
não diretamente, por meio das críticas que lhe são
dirigidas. Sugere que para que se possam apreen-
der os efeitos políticos mútuos entre processos
ideológicos e estruturasde poder não devemos
nos deter na constatação da importação de insti-
tuições e idéias que marcam as sociedades de ma-
triz colonial. Mas, partindo desse mecanismo so-
cial fundamental (Schwarz, 2000), qualificar as
relações dialéticas entre importação e apropriação
social que as podem singularizar. Assim, a pers-
pectiva comparativa entre sociedades de matriz
colonial impõe-se como recurso metodológico
fundamental na definição do sentido político assu-
mido pelas idéias e instituições importadas em
cada sociedade, já que não é a mera importação
mas a apropriação a partir dela em interação com
suas estruturas sociais específicas que lhe definem
o sentido político. Sim, para Bernardo Ricúpero,
também a imaginação romântica fixara-se no Bra-
sil na ausência ou, mais precisamente, no desloca-
mento dos pressupostos históricos que haviam
exigido e assentado seu congênere europeu –
para Bernardo, em específico o romantismo fran-
cês, como desenvolve na primeira parte do livro –,
de onde, no entanto, provinha como decorrência
do transplante ideológico e institucional a que so-
ciedades, como a brasileira e a argentina, se en-
contravam desafiadas a se recriar modernamente
como Estados-nação. Trata-se de um problema
muito mais complexo do que à primeira vista cer-
ta visão mais vulgarizada sobre a crítica ao dualis-
mo permite perceber.
Complexo, em primeiro lugar, porque há sim,
argumenta Ricúpero, uma afinidade comum entre
romantismo e reação ao Antigo Regime, tanto na
França como no Brasil, mas seus efeitos sociais e
políticos não seguem um padrão sistêmico defini-
do de modo independente da história. Complexo,
em segundo lugar, porque é inútil operar com uma
visão monolítica do romantismo seja no Brasil seja
na França, como se os processos ideológicos pu-
dessem ficar a salvo (em torres de marfim?) das dis-
putas políticas objetivas e dos interesses materiais
e civilizatórios do capitalismo que lhes conquistam
significados e lhes imprimem sentido – contradito-
riamente. A esse respeito, estão muito bem situa-
das as nuanças sobre o sentido político e/ou cultu-
ral assumidos pela idéia de nação nas diferentes
conjunturas delimitadas pela Independência e in-
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202 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58
serção do Brasil no capitalismo do período. E com-
plexo, enfim, porque, associados de diferentes for-
mas ao(s) romantismo(s), os próprios projetos de
nação assumem, na experiência histórica, um cará-
ter contraditório, produzindo tanto formas políticas
autoritárias como democráticas, ou liberais e con-
servadoras, como prefere Bernardo. O ponto em
questão, portanto, é justamente a capacidade de os
diferentes grupos sociais conquistarem espaços no
âmbito da nação de modo a expressar seus interes-
ses como programas nacionais, isto é, na perspec-
tiva gramsciana adotada no livro, de conquistarem
“hegemonia” na sociedade.
Aqui a perspectiva histórica comparada pare-
ce acionada em O romantismo e a idéia de nação
no Brasil (1830-1870) justamente para garantir
um certo controle das generalizações sobre o des-
tino das ideologias e dos intelectuais em socieda-
des periféricas. No caso, trata-se, da comparação
entre as possibilidades do romantismo e da idéia
de nação, no Brasil e na Argentina. O argumento
fundamental, nesse ponto, é como o romantismo
em interação dialética com os eventos característi-
cos do violento – e violento não apenas no plano
simbólico – processo de reconstrução de socieda-
des coloniais em Estados-nação permitiu possibili-
dades diferentes, segundo a própria combinação
histórica com tais eventos, como a consolidação de
uma unidade territorial, o assentamento de uma
autoridade pública centralizada, a dinamização das
forças produtivas, a reprodução do capital e, so-
bretudo, a presença estrutural da escravidão no
caso da sociedade brasileira. E nessa interação en-
tre romantismo e processos sociais foi-se confor-
mando destinos distintos para a idéia de nação em
cada uma daquelas sociedades. Ainda que, susten-
ta o autor, o caráter processual e aberto da idéia de
nação seja a garantia mesma de outras possibilida-
des e de novas perspectivas de futuro para essas
sociedades.
O segundo movimento analítico que estrutu-
ra o livro diz respeito à própria idéia de nação. E
o faz recusando a visão disjuntiva, também mais
vulgarizada, de duas das tradições intelectuais ou
perspectivas de abordagem da idéia de nação que,
de fato, têm conhecido uma extraordinária recep-
ção. Uma que, tendo em vista o pretenso caráter
imanente da nação, como elemento durável no de-
correr do tempo e subjacente à experiência histó-
rica, se poderia designar de essencialista; outra
que, baseada na idéia da vontade dos indivíduos
em refazer permanentemente o pacto que os reú-
ne como coletividade social, se poderia designar
de voluntarista. A primeira tem sido identificada
ao romantismo alemão e particularmente à idéia de
cultura como base à legitimidade de constituição
de um Estado-nação, e de sua soberania, difundi-
da na obra do lingüista prusiano Johann Gottfried
Herder. Perspectiva em geral associada ao pensa-
mento conservador, mas que aparece também e de
modo decisivo naquelas investigações/proposições
sobre o relacionamento entre Estado e sociedade
que se mostram mais preocupadas com as relações
sociais em jogo, do que com as instituições políti-
cas propriamente ditas.
Da segunda tradição intelectual é paradigmá-
tica a célebre conferência de Ernest Renan proferi-
da em 11 de março de 1882 na Sorbonne, e a afir-
mação nela feita de que a nação é um “plebiscito
de todos os dias”. Entre o passado e o presente,
embaraçada em lembranças e esquecimentos com-
partilhados, a nação, dizia Renan, é uma “vontade
de continuar a fazer valer a herança que se rece-
beu intacta”. E se ela pode ser um elemento durá-
vel no decorrer do tempo, não está necessariamen-
te baseada em pretensões imanentes ou atávicas,
como sugeria o romantismo alemão. Seu funda-
mento está na vontade dos indivíduos em refazer
permanentemente o pacto que os reúne como co-
munidade política, daí a ênfase nos princípios con-
tratualistas e republicanos divisados na acepção de
Renan. Ainda que, nessa perspectiva, vontade não
precise ser entendida de modo voluntarista, uma
vez que, também no caso da nação, ações e pro-
cessos sociais se conformam mutuamente.
Mas é porque recusa, como se disse, uma vi-
são disjuntiva dessas tradições intelectuais que O
romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-
1870) não negligencia a condição conflitante que,
no plano histórico, aqueles dois conceitos de na-
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RESENHAS 203
ção – o conceito cultural, de Herder, e o concei-
to político, de Renan – sempre apresentaram. Para
Ricúpero é possível considerar que
[...] entre o Estado e a sociedade civil estabelece-
se a nação como mediação ideológica que dá aos
homens e mulheres a impressão de pertencerem
a uma comunidade política maior. A nação pare-
ce ter uma função quase complementar; se, no ca-
pitalismo, entende-se o Estado como organismo
estranho aos indivíduos e a sociedade civil como
espaço no qual prevalecem interesses particula-
res, os membros de diferentes nações, ao se iden-
tificarem com os demais membros de sua nação,
sentem-se como fazendo parte de uma espécie de
“todo” coletivo. A nação aparece dessa maneira,
como uma forma de identidade em face da frag-
mentação da vida social e da exterioridade da
vida política (p. 9).
E justamente porque assume de modo dialé-
tico aquele conflito, logra explorar com interesse
renovado a hipótese clássica de que a “nação”
pode concorrer para proporcionar um sentido de
solidariedade social mais amplo e necessário a
qualquer comunidade política, já que o monopó-
lio do uso legítimo da força física parece mesmo
obter a aceitação de seus cidadãos na medida em
queeles puderem se sentir ligados uns aos outros
por um propósito comum. É a valorização da di-
mensão política como arena em que se combinam
“violência” e “consentimento”, portanto, que per-
manentemente desperta o interessa e coloca em
questão o papel das representações ideais da na-
ção e do Estado, assim como dos seus efeitos recí-
procos na sociedade moderna. E, por isso, também
o papel das idéias e dos intelectuais nesse proces-
so. Quanto menos democrático o processo de
construção nacional, a perspectiva histórica com-
parada o tem demonstrado, maior e mais proble-
mático parece ser o papel a que os intelectuais,
como minorias ativas, são desafiados a desempe-
nhar nas suas sociedades, e das batalhas de idéias
por eles travadas na construção de legitimidade,
consensos e senso comum.
É esse também em grande medida o caso do
Brasil imperial, segundo a interpretação proposta
por Ricúpero, que retoma a problemática da legiti-
midade, da política e do poder ideológico da pers-
pectiva do pensador italiano Antonio Gramsci, o
mesmo que, indagando o processo pelo qual os
grupos sociais fundamentais criam “uma ou mais
camadas de intelectuais que lhes dão homogenei-
dade e consciência de sua própria função, não
apenas no terreno econômico, mas também no so-
cial e no político” (Gramsci, 2000, p. 15), acaba por
reintroduzir a questão dos intelectuais no coração
da política. E porque sempre político, a necessida-
de de discutir o efeito das idéias e do exercício do
poder ideológico, ou dos intelectuais simplesmente,
como tendo concorrido em geral e fundamental-
mente para o declínio do domínio e do poder exer-
cidos exclusivamente por meios coercitivos tradicio-
nais e, nesse passo, para dar forma ao mundo
moderno em que ainda vivemos. E se idéias como
a de nação em sociedades de matriz colonial como
a brasileira, escravista no passado e profundamente
desigual ainda no presente, podem parecer fora de
lugar, isso não significa absolutamente que elas se-
jam carentes de função; mas sim que, como estão
ligadas muito mais a soluções de “conveniência”,
do que de “princípio”, podem sempre tornar ele-
mentos incompatíveis em tese, superpostos na rea-
lidade (Schwarz, 2000). É a constatação da própria
dinâmica social conformada pela convivência de
contrários que confere ainda mais importância à
política.
O fato de que idéias como as de nação, de um
lado, tenham se tornado extremamente familiares –
o que aliás pouco favorece a compreensão dos im-
passes, dos constrangimentos e das potencialidades
do próprio Estado-nação atualmente, poder-se-ia
argumentar –, e, de outro, que elas conformem em
larga medida, mesmo levando em conta o relativo
sucesso de certos processos globalizados de “iden-
tidade” em curso, o sentido da existência dos indi-
víduos como membros de uma coletividade social,
torna candente na agenda das ciências sociais bra-
sileiras a tarefa retomada e assumida por Bernar-
do Ricúpero. Ao realizá-la, e pelo modo como a
realiza, O romantismo e a idéia de nação no Bra-
sil (1830-1870) questiona a crença, em parte ge-
neralizada nas ciências sociais contemporâneas,
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204 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58
de que idéias são pouco relevantes nos processos
de mudança social, como os de modernização e
construção nacional. Posição que, a despeito da
dimensão potencialmente crítica que envolve, já
que torna problemática a pretensão das idéias de
governar o mundo, pode acabar por obscurecer,
no entanto, o papel que valores, representações e
normas largamente compartilhadas podem assumir
na sociedade mediante o trabalho ideológico dos
intelectuais, como bem mostra o autor em relação
ao romantismo. Confirmando, num certo sentido, o
caráter aberto da idéia de nação, e na medida em
que a pudermos entender justamente como solida-
riedade social, e em face das relações de poder
que isso sempre implica, não será demais lembrar
que, como fez o romantismo, também o modernis-
mo dos anos de 1920 retomará em diferentes com-
binações seus significados cultural e político. Mas
fará isso noutro patamar, uma vez que vencidos os
impasses formais para a cidadania com a abolição
da escravidão e com a República, a tarefa premen-
te era então tornar o Brasil efetivamente mais fa-
miliar aos brasileiros, o que exigiu novas rotinas
intelectuais e políticas para a formação dos porta-
dores sociais do Estado-nação.
NOTAS
1 Embora não possa desenvolver o argumento, regis-
tro aqui o fato de que, ao chegar à tarefa realizada
em O romantismo e a idéia de nação no Brasil
(1830-1870), o autor já parte de uma igualmente
bem-sucedida pesquisa sobre um dos autores mais
complexos a esse respeito do pensamento social
brasileiro, Caio Prado Júnior (Ricúpero, 2000).
BIBLIOGRAFIA
GRAMSCI, A. (2000), Cadernos do cárcere [vol. 2:
Os intelectuais. O princípio educativo.
Jornalismo]. Edição de Carlos Nelson
Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e
Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira.
RICÚPERO, B. (2000), Caio Prado Jr. e a naciona-
lização do marxismo no Brasil. São
Paulo, Departamento de Ciência Política
da USP/Fapesp/Editora 34.
SCHWARZ, R. (2000), Ao vencedor as batatas: for-
ma literária e processo social nos inícios
do romance brasileiro. 5 ed. São Paulo,
Livraria Duas Cidades/Editora 34.
ANDRÉ BOTELHO é professor do Programa
de Pós-graduação em Sociologia e Antropo-
logia – PPGSA/IFCS/UFRJ e autor de Aprendi-
zado do Brasil: a nação em busca dos seus
portadores sociais (Editora da Unicamp) e
de O Brasil e os dias: Estado-nação, moder-
nismo e rotina intelectual (Edusc, no prelo).
 RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 204
 
Entre a Análise do Discurso e a Psicanálise, a Verdade do 
Sujeito — Análise de Narrativas Orais* 
 
 
Leda Verdiani Tfouni 
FFCLRP — Universidade de São Paulo 
Marcella Marjory Massolini Laureano 
Doutoranda/FFCLRP — Universidade de São Paulo 
 
 
Resumo: 
Partindo do conceito de interpretação, nosso objetivo é promover possíveis articulações 
entre duas disciplinas indiciárias, a análise do discurso francesa (AD) e a psicanálise 
lacaniana. Os trabalhos de Pêcheux em AD e os de Lacan em psicanálise trazem uma 
posição distinta para conceitos cruciais desta pesquisa. Completando a discussão teórica, 
realizamos a análise de narrativas orais de ficção, com o intuito de apontar como a 
interpretação em AD e em psicanálise podem contribuir para o avanço do paradigma 
indiciário e também para fazer retornar na análise de dados a teoria, numa constante 
checagem. Pudemos observar, com este procedimento, que é possível promover uma 
junção de conceitos centrais destas duas disciplinas, tais como ideologia, desejo e 
inconsciente. Tais constatações apontam para uma harmonia possível entre a 
interpretação em AD e em psicanálise, o que parece dar garantia ao analista de uma 
interpretação que leva em consideração o sujeito da ideologia e o do inconsciente. 
Palavras-chave: Análise do Discurso; Pêcheux; Lacan. 
 
Abstract: 
Starting from the concept of interpretation, our objective is to promote possible 
connections between two indiciary disciplines, the French discourse analysis (AD) and the 
Lacan-oriented psychoanalysis. Both Pêcheux’s and Lacan’s works bring a distinct 
position for crucial concepts in this research. To complement the theory, we carried out an 
analysis of oral fictional narratives, trying to point out, first, the articulation between AD and 
psychoanalysis; second, how they can contribute for the advance of the indiciary 
paradigm; and third, to promote a constant check up between the analysis and the theory. 
This analysis showed a possible junction of central concepts of these two disciplines such 
as ideology, unconscious and desire. Such conclusions point to a harmony between 
interpretation in AD and in psychoanalysis, guaranteeing to the analyst a critical vision 
concerning the subject of the ideology and the unconscious.Key-words: Discourse Analysis; Pêcheux; Lacan. 
 
Résumé : 
En partant du concept d’intérpretation, notre objectif est promouvoir les articulations 
possibles entre deux disciplines indiciaires, l’analyse française du discours (AD) et la 
psychanalyse lacanienne. Les travaux de Pêcheux dans l’Analyse du Discours et ceux de 
Lacan dans la psychanalyse apportent une position distincte par les conceptes principaux 
de cette recherche. En ajoutant la discussion théorique, on a réalisé l’analyse de 
narratives orales de fiction avec l’intention de montrer comme l’interprétation dans 
 
* Apoio Financeiro desta pesquisa: CAPES e CNPq. 
SEMANA 3 - TEXTO BASE 1
 
l’Analyse du Discours et dans la psychanalyse peuvent contribuer à l’avancement du 
paradigme indiciaire et aussi reprendre dans l’analyse des fais donnés, la théorie, dans 
une constante vérification. On a pu observer avec ce processus, que c’est possible 
promouvoir une jonction des concepts centraux de ces deux disciplines, comme 
l’ideologie, le désir et l’inconscient. Ces constatations indiquent une possible harmonie 
entre l’interprétation dans l’Analyse du Discours et dans la psychanalyse, celles 
garantissent à l’analyste une interprétation qui prend en compte le sujet de l’ideologie et 
de l’inconscient. 
Mots-clés: Analyse française du discours, Pêcheux ; Lacan. 
 
Introdução 
 
Desde a concepção da análise do discurso (AD), a teoria psicanalítica 
lacaniana sempre foi tocada de maneira discreta por Pêcheux, porém, pode-se 
dizer que a presença de Lacan na AD sempre foi, ao mesmo tempo, velada e 
incisiva. Isto pode ser verificado na proposta do quadro epistemológico geral da 
AD proposto por Pêcheux e Fuchs (1997:163-164), onde se lê: 
 
Ele [o quadro epistemológico] reside, a nosso ver, na articulação de três 
regiões do conhecimento científico: 
1. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de 
suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 
2. A lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos 
processos de enunciação ao mesmo tempo; 
3. A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos 
processos semânticos. 
Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, 
atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza 
psicanalítica). (grifos nossos) 
 
Do materialismo histórico, a AD adota o conceito de ideologia, postulado por 
Althusser a partir de sua releitura da obra de Marx. Em relação à lingüística, a 
maior influência para a AD foi a de Ferdinand de Saussure e seu Curso de 
Lingüística Geral, principalmente no que diz respeito a uma releitura moderna, em 
especial aquela empreendida por Gadet (1990) e Milner (1987), relativa a 
conceitos até então recalcados pelo Estruturalismo Científico, tais como: valor do 
signo, arbitrariedade do signo e relação. Finalmente, a teoria do discurso e a 
adoção do conceito de formação discursiva de Foucault (1996) dão à AD seu 
 
objeto de estudo: o discurso, que passa, nesta disciplina, a ter o acréscimo do 
estudo de suas condições de produção. Como notamos no trecho grifado acima, 
Pêcheux e Fuchs (op.cit.) referem-se a uma teoria do sujeito de base psicanalítica, 
porém a articulação da AD com a psicanálise não chegou a ser trabalhada em 
profundidade por Pêcheux, conforme comenta Maldidier (2003). É nessa área de 
interface que este artigo se insere, dando seqüência a vários trabalhos de 
investigação desenvolvidos pelo grupo de pesquisa coordenado pela segunda 
autora há vários anos (Carreira 1997; 2000; Molena 2003; Moraes 2002; Tfouni e 
Carreira 1996; 1997; 1999; 2000). 
Nossa tentativa, neste trabalho, é articular a AD e a psicanálise lacaniana a 
partir do conceito de interpretação. Sabemos que interpretar é inerente ao homem, 
pois, inserido no mundo simbólico, é exigido do sujeito um dar sentido a todo o 
momento. O surgimento das Ciências Humanas e Biológicas, no século XVII, 
representou uma tentativa de padronizar estes dados que sempre reclamaram por 
interpretação, e o modelo adotado inicialmente (que se origina em Aristóteles (cf. 
Pêcheux 1969) para interpretá-los, foi aquele baseado no paradigma 
positivista/galileano, cuja tentativa é padronizar o homem e seu discurso através 
de categorias fixas e rígidas de classificação e estatísticas. Tal postura sempre 
trouxe problemas para as ciências humanas, pois de acordo com o positivismo, os 
dados sempre vêm para provar algo que já está posto, e, portanto, não se presta a 
lidar com o inesperado, nem com a deriva, fatos indiscutivelmente importantes nos 
estudos do discurso. 
Para contornar essa falha, por volta do século XIX surgem disciplinas que 
adotam o chamado paradigma indiciário (Ginzburg 1989). Entre elas, estão a AD e 
a psicanálise, nas quais a busca por índices não acessíveis a olho nu, nem 
diretamente observáveis, devolve aos dados todas as suas qualidades individuais, 
seus contextos, bem como as histórias de suas condições de produção (Tfouni 
1992). Ao contrário da análise de conteúdo, de natureza positivista, que determina 
seus dados a partir de uma dada condição de produção em detrimento de muitas 
outras possíveis (Henry e Moscovici 1968), a AD e a psicanálise devolvem ao 
 
sentido sua opacidade, e ao sujeito sua singularidade (entendida aqui como o 
modo singular pelo qual a ideologia interpela o indivíduo em sujeito). 
 
 
Aspectos teóricos 
 
A partir destas considerações, faz-se necessária uma breve apresentação de 
dois conceitos destas duas disciplinas: o de real da língua e o de real da história. 
O primeiro diz respeito àquilo que escapa à língua e que a revela enquanto sujeita 
a falhas. É o que Lacan (1996) denominou de lalangue, em português, alíngua. O 
segundo diz respeito ao real que a história comporta e que seria o da luta de 
classes (Pêcheux e Gadet 1981). A psicanálise lacaniana trabalha essencialmente 
com o real da língua e a AD alia a este conceito o real da história. Juntos, estes 
dois reais trabalham para a construção de sentidos do objeto de estudo da AD, e 
também da psicanálise, que é o discurso (Safouan 1993). 
Como assinalamos anteriormente, não foi apenas a adoção do discurso como 
objeto de estudo e de todos os conceitos a que nos referimos que fizeram com 
que a AD e a psicanálise operassem um giro na postura de interpretação de 
dados. É preciso considerar aqui também o resgate que estas duas disciplinas 
fazem do sujeito que produz seu(s) discurso(s) ao interpretar o mundo. Tanto na 
AD quanto na psicanálise, o sujeito não é aquele do empirismo, não podendo, 
portanto, ser reduzido a categorias de classificação. Como dissemos, o sujeito é 
singular, pois é interpelado ideologicamente (Althusser 1983) e não é um 
indivíduo, visto que é aquele que emerge entre significantes (Lacan 1998a) de 
modo único. Estes fatos marcam sua particularidade. 
 Vale lembrar, com relação ao exposto acima, que Pêcheux (1997a), ao falar 
da forma-sujeito do discurso, postula os dois esquecimentos, ou ilusões 
constitutivas deste sujeito, que foram denominados, respectivamente, de 
esquecimento no. 1, no qual o sujeito acredita ser a origem do sentido 
(esquecimento ideológico/inconsciente) e esquecimento no. 2, no qual o sujeito 
crê que aquilo que diz é exatamente igual àquilo que pensa (esquecimento 
 
lingüístico/pré-consciente). O que temos, portanto, é um sujeito antes de tudo 
assujeitado e que se constitui como um efeito no interior do discurso. Como diz 
Henry (1992:188-189): “O sujeito é sempre e ao mesmo tempo, sujeito da 
ideologia e do inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem 
atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação”. 
Com conceitos tão complexos e um trabalho bem diverso em relação às 
ciências positivistas (tanto no que diz respeito à interpretação de dados quanto à 
concepção de sujeito) vale aqui falarum pouco sobre como se dá o trabalho de 
interpretação e produção de sentidos na AD e na psicanálise. 
Para Pêcheux (1997b:53): 
 
[...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, 
diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para 
derivar para um outro. [...] Todo enunciado, toda seqüência de enunciados 
é, pois, lingüisticamente descritível como uma série [...] de pontos de deriva 
possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que se 
pretende trabalhar a análise de discurso. 
 
O que temos a partir destas considerações é que o analista de discurso vai 
trabalhar num lugar logicamente desestabilizado e marcado pela tensão entre o 
dito e o não-dito, pois será nos deslizes e pontos de deriva da língua que o 
analista vai pinçar um sentido (entre outros possíveis) no corpus a ser analisado. 
Os conceitos fundamentais neste processo são o de efeito metafórico (Pêcheux 
1997c), que atesta o deslize e a possibilidade de múltiplos sentidos, e o de 
ideologia, cujo papel é naturalizar o sentido para o sujeito no momento da 
enunciação, lembrando sempre que estas manobras devem ser consideradas pelo 
analista, no sentido de acatar tanto o equívoco, quanto a opacidade da língua. 
Na psicanálise, desde o trabalho freudiano com os sonhos, iniciado em 1900, 
até a associação livre, a interpretação sempre teve papel fundamental. Lacan 
(1998b), relendo Freud e incorporando a essa leitura tanto a Lingüística, quanto a 
elaboração de conceitos como o de Outro (lugar da verdade do sujeito) e o de 
objeto a (objeto causa do desejo), deposita na interpretação do analista o 
testemunho da verdade sobre o sintoma e o desejo. A respeito da interpretação 
 
analítica, diz Lacan (1998c:599): “A interpretação, para decifrar a diacronia das 
repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela 
se compõe algo que, de repente, possibilite a tradução – precisamente aquilo que 
a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que 
aparece o elemento faltante”. Em outra obra, Lacan (1998d:236-237), afirma: “A 
interpretação é uma significação que não é não importa qual (...) Ela tem por efeito 
fazer surgir um significante irredutível. (...) A interpretação não é aberta a todos os 
sentidos”. 
O que temos em psicanálise é uma interpretação que vai de encontro ao 
sintoma e ao desejo do sujeito, revelados a partir dos vestígios do inconsciente, o 
que aparece no discurso sob a forma de atos falhos, lapsos, repetições e 
esquecimentos, por exemplo. Essas manobras do inconsciente são evidenciadas 
por dois conceitos postulados por Lacan (1998b): o de metáfora, que compreende 
a substituição de um significante por outro culminando com o ocultamento do 
significante que foi suprimido; e o de metonímia que liga um significante a outro 
numa relação de contigüidade, fato este que materializa o desejo, pois a 
metonímia engana a censura do inconsciente ao substituir um significante por 
outro, deixando, deste modo, o significante substituído velado, porém sempre 
presente na cadeia. 
Diante deste quadro extremamente complexo, levantamos a suposição de que 
uma análise de dados poderia servir como lugar para verificação de como esses 
quadros teóricos podem articular-se, visto que a análise de dados nos serve para 
colocar a interpretação em funcionamento (a partir do paradigma indiciário) tanto 
de um ponto de vista da AD quanto da psicanálise. Vale ressaltar que ao usarmos 
a psicanálise na interpretação do corpus não pretendemos de forma alguma 
psicanalisar o sujeito, visto que o referencial psicanalítico nos auxiliará a 
desvendar o desejo do sujeito a partir dos deslizes presentes na materialidade 
lingüística e também a mostrar o trabalho do inconsciente sobre este mesmo 
sujeito, o que é bem distinto da análise de divã. 
 
Análise de dados sobre o corpus 
 
 
O corpus escolhido constitui-se de narrativas orais de ficção produzidas por 
uma criança de rua, que foram coletadas pelo nosso grupo de pesquisa. A escolha 
de narrativas tem relevância para este trabalho, pois, como afirma Tfouni (2005: 
73-74): 
 
(...) o discurso narrativo aparece como lugar privilegiado para elaboração da 
experiência pessoal, para a transformação do real em realidade, por meio 
de mecanismos lingüísticos discursivos, e também para a inserção da 
subjetividade (entendida aqui, do ponto de vista discursivo, como um lugar 
que o sujeito pode ocupar para falar de si próprio, de suas experiências, 
conhecimento do mundo, ou, mais sucintamente, entendida com a forma 
pela qual o sujeito organiza sua simbolização particular). 
 
A análise de narrativas nos permite, assim, detectar as formas pelas quais o 
desejo está amarrado à ideologia. Isto retoma a proposição de Pêcheux de que a 
questão da subjetividade deve ser pesquisada por uma teoria psicanalítica, o que 
influi certamente no trabalho de interpretação do analista, ao mesmo tempo que 
aponta meios de se articular a AD com a psicanálise lacaniana. 
 As análises que apresentaremos a seguir dizem respeito às narrativas Mônica 
e Cebolinha e João e o Pé de feijão, que foram contadas por J. (11 anos, sexo 
feminino). 
Inicialmente, propomos analisá-las de forma isolada, para, posteriormente, 
relacionar estas duas análises. Conforme preconiza a AD, o trabalho de análise 
parte da eleição de recortes. A noção de recorte adotada pela AD não é aquela de 
uma simples eleição de palavras-chave, tal como o faz a análise de conteúdo. O 
recorte pode ser visto como um fragmento discursivo, que, para ser analisado, 
requer que se descrevam suas condições de produção, que incluem o contexto 
histórico, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do 
outro e do referente. O recorte em AD será, portanto, uma série de manifestações 
lingüísticas que mantém uma relação direta com a história dos discursos 
(condições de produção) de onde foram pinçados (Courtine 1982). Neste trabalho, 
elegemos para a análise as repetições, recurso discursivo significativo tanto para a 
AD, quanto para a psicanálise (Lacan 1998e). 
 
Observaremos também as posições de sujeito que J. ocupa ao narrar. Essas 
posições fornecerão pistas sobre o processo de identificação do sujeito com uma, 
ou outra, formação discursiva, mostrando-nos desta maneira, sua verdade, ou o 
modo pelo qual a ideologia o interpela, constituindo-o enquanto sujeito do desejo e 
do inconsciente. 
Passemos, então, às análises. 
 
Análise 
Análise 1 — Mônica e Cebolinha 
Esta foi a primeira narrativa produzida. É uma história curta, na qual o narrador 
faz uso de conhecidos personagens de gibis infantis. 
A história conta uma situação que envolve principalmente a Mônica e o 
Cebolinha. Os pais da Mônica vão sair de casa e pedem para que a filha não saia. 
Pouco tempo depois, chega o Cebolinha e convida Mônica para sair de casa, ela 
não aceita, ele insiste, e ela retruca, como podemos ver no recorte: 
 
 - Vamo Mônica, vamo, tua mãe não vai sabê que você saiu. 
- Não, papai não qué e mamãe não gosta. 
 
A passagem grifada chama a atenção por ser repetida três vezes no decorrer 
da narrativa, e nos aponta uma direção do desejo do sujeito de não descontentar 
um pedido dos pais. Vale destacarmos aqui que J. nunca teve este tipo de 
atenção dos pais (que nem sequer moravam juntos), e que ela freqüentemente ia 
para a rua em busca de comida. Nos relatos de J., vemos que ela sempre atrelava 
as idas para a rua com fazer algo errado, como roubar frutas em um pomar, por 
exemplo. 
A narrativa continua e os pais da Mônica chegam; o Cebolinha, então, foge, e 
Mônica vai até a sala, onde a mãe pergunta se ela saiu ao que ela responde 
prontamente que não e repete pela terceira vez o trecho que destacamos no 
recorte acima: “... papai não qué e mamãe não gosta”. 
O que notamos nesta curta história é que o sujeito, atravessadopor uma 
formação discursiva dominante que tem um modelo de família constituída por 
 
pai/mãe/filhos, deseja também para si esta família que é julgada “natural” e ideal. 
O que sabemos é que a narradora morava com uma tia e uma irmã, mal conhecia 
o pai, e na instituição era sempre vítima de comentários sobre a cor de sua pele, 
pois ela era negra e sua irmã loira, fato que explicava a todos dizendo que as duas 
(ela e a irmã) eram filhas de pais diferentes, o que indicia vida promíscua da mãe. 
Destaca-se também o fato de o sujeito sentir a necessidade de ter a quem 
obedecer, fato que não faz parte de sua realidade. Supomos que o sujeito queira 
apenas ser criança, como todas as que ela vê, sobretudo na televisão. Apesar de 
estar em uma posição diferente da personagem principal da narrativa, o sujeito 
depara-se aqui com um desejo: ser cuidada, e, ao narrar esta história, nos mostra 
o lugar que desejaria ocupar, fato este que obriga a assumir uma posição de 
censura na ficção em relação a posturas que ele adota na vida real. Apesar de ir 
para a rua na vida real, na ficção, entretanto, o sujeito vê isto como incorreto, pois 
para ele a ação de ir para a rua está atrelada a fazer algo errado, como já 
destacamos anteriormente. 
 
Análise 2 — João e o Pé de Feijão 
Esta narrativa conta a história de um menino que a pedido da mãe sai para 
vender a única vaca da família para comprar comida. O menino (João), porém, 
troca a vaca por 3 feijões mágicos que se transformam numa grande planta e que 
leva até um castelo. João sobe até o castelo para pedir comida e encontra a 
mulher de um gigante que lhe dá comida em troca de trabalho. Escondido do 
gigante, João lhe rouba ovos de ouro e depois sua galinha, porém diz à mãe que 
ganhou tais coisas e acaba por fim por matar o gigante. No final da história João e 
sua mãe enriquecem com a galinha e recuperam a vaca que havia sido trocada 
pelos feijões. 
Inicialmente, o que nos chama a atenção são as alternâncias e relutâncias do 
sujeito para definir as ações dos personagens, o que torna confusa a atribuição de 
papéis. Por exemplo, nota-se que, muitas vezes, as ações do gigante e do menino 
confundem-se, como podemos notar no recorte abaixo: 
 
 
Aí, depois ele fez assi, começô a durmi assim, ó. Aí, começô durmi, chegô 
uma hora que ele durmiu. Aí, ele durmiu... Aí, depois ele subiu assim 
quietinho na mesa. 
 
Um outro ponto são os desfechos para a ação do personagem: num primeiro 
momento o menino é repreendido pela mãe por ter trocado a vaca por três feijões 
mágicos: “Cê trocô o que eu disse por isso?” 
Para tentar compensar o erro o sujeito recorre mais adiante ao pé de feijão 
que, depois de crescido, iria conduzi-lo até a casa do gigante. Ele vai até lá, “finge” 
trabalhar para a mulher do gigante, e, num descuido deste (que nem sabia de sua 
presença) lhe rouba os ovos de ouro. Porém, como podemos notar no recorte 
abaixo, o sujeito elabora uma manobra para amenizar o “erro” cometido pelo 
personagem: “Depois ele desceu, falô pra mãe dele o que ele ganhô.” 
Sabemos que na verdade o que aconteceu foi um roubo, mas devemos nos 
lembrar que a narradora encontrava-se, na época da constituição deste corpus, 
numa instituição, cujo lema é a Educação pelo trabalho, e onde é comum, como 
em muitas outras com a mesma proposta, tentar doutrinar os internos a respeito 
de como ser um bom filho, de que não se deve roubar ou enganar os outros para 
“levar” vantagem, e coisas deste tipo. Numa posição de dominado em relação à 
instituição, o sujeito identifica-se com a formação discursiva dominante, porém, 
como podemos observar um pouco mais adiante na narrativa, o narrador faz com 
que o menino retorne à casa do gigante para pegar a galinha, só que desta vez o 
faz de maneira mais discreta, e numa posição de resistência: 
 
Aí, a mema coisa: depois chegô o marido dela, falô assim: 
- Esconde, porque se o meu marido te catá aqui, ele xin, ele te come. 
Aí, depois ele falô assim: 
- Tá bom, eu escondo. 
Aí, depois, é... aí depois ele fez tudo de novo. A galinha tava botando ovo 
de oro. Aí, a galinha tava botando ovo de, ovo de oro, e começô a falá 
assim: 
- Tô cherando um chero... 
- Não, é uma coisa que eu tô fazendo pra você. 
Aí, depois ele foi lá, pegô. (grifos nossos) 
 
 
O narrador dá ao gigante um final trágico, e encerra deste modo a participação 
desse personagem, que poderia de alguma forma revelar a verdadeira origem dos 
ovos de ouro e da galinha, bem como julgar as atitudes do personagem 
Joãozinho. Como estratégia para executar esta ação, o personagem usa a ajuda 
da mãe, que nada sabe sobre o que realmente aconteceu: 
 
 O moleque desceu correndo. Ele falô assim: 
 - Mãe, dá o martelo, dá o ma, dá o ma, dá o martelo! Dá o martelo! 
Bau, bau, bau! Bateu assim, ó. (grifos nossos) 
 
Diante de uma aparente resolução deste conflito entre certo ou errado, o 
narrador acrescenta que mãe e filho ficaram ricos: “Aí, eles conseguiu ficá rico 
com a galinha.” No entanto, este fechamento, que poderia ser um final feliz para a 
narrativa, não satisfaz o sujeito, e ele acrescenta um final complementar para 
encerrar a narrativa: “Ficô bem rico e cus... Aí, depois o home entregô a vaca 
deles de novo.” Ao acrescentar esta outra informação, o sujeito consegue, afinal, 
compensar o erro inicial do personagem, que era o de ter feito algo que 
descontentou a mãe. 
Podemos dizer que todo o conteúdo desta narrativa serviu como uma metáfora 
do funcionamento inconsciente do sujeito, e suas manobras para revelar-se diante 
das coisas que lhe escapam. Os dois finais consecutivos levam a pensar que, 
realmente, o sujeito vive dilemas e conflitos sobre discernir o que seria certo ou 
errado em uma sociedade que o coloca à margem. As relutâncias que foram 
constatadas pelo uso confuso do pronome “ele” nas diversas passagens já 
apontadas, situam-nos neste mar revolto de identificações do sujeito, que se 
coloca, hora numa posição de “errada”, e hora numa posição julgada como 
“correta”. 
Atravessado por uma formação discursiva dominante, o sujeito encontra-se em 
uma encruzilhada entre “escolher” qual posição ocupar e de que maneira 
deve/pode lidar com esta “escolha”, e, ao narrar, produz metáforas, 
deslizamentos, no sentido lacaniano, que são colocadas nos desfechos dados aos 
personagens, e que podem ser interpretadas como o modo possível pelo qual o 
 
sujeito pode responder às demandas por punir-se e/ou bonificar-se, de acordo 
com suas tomadas de posição. Porém o desejo de contentar, não só a si, como 
aos outros (e diria aqui, a posição do sujeito em relação à demanda do Outro) 
percorre toda a história. Na verdade o sujeito sempre irá colocar-se numa posição 
de alguém que deve responder a uma demanda: o personagem estava cumprindo 
ordens da mãe, ao desobedecê-la sente-se impelido a atender seu desejo de 
qualquer maneira, ou seja, roubando e enganando o gigante; e, uma vez satisfeita 
a demanda inicial, seus erros são apagados, a vaca é recuperada, eles se tornam 
ricos e o filho consegue finalmente atender ao desejo da mãe. A mãe, apesar de 
aparecer muito pouco na narrativa tem papel fundamental e é em sua função dela 
que irão guiar-se todas as atitudes do personagem. 
 
Conclusões 
 
Vimos, aqui, que o sujeito põe-se à mercê do discurso do Outro, que lhe faz 
exigências às quais ela tenta de todo modo responder, mesmo sem ter certeza se 
é isto o que realmente quer, talvez porque este discurso do Outro lhe venha 
revestido de um discurso dominante, de uma formação social dominante, com a 
qual, por força da ideologia, ele sente-se interpelado a identificar-se. 
Podemos explicar este fato tomando como base a teoria da heterogeneidade 
constitutiva do discurso, que tem seu respaldo exatamente nessa relação de 
submissão com o Outro (Authier-Revuz 1982). Como afirma Maingueneau (2004) 
a teoria de heterogeneidade constitutiva deAuthier-Revuz traz mais uma 
aproximação da AD e da psicanálise lacaniana, pois coloca ao lado do sujeito 
interpelado pela ideologia um sujeito que é também dividido pelo inconsciente e 
que ilusoriamente acredita ser dono do seu dizer. 
Assujeitado a um Outro que lhe faz exigências constantes e que apontam para 
onde dirigir seu desejo o sujeito das narrativas tenta sobreviver numa sociedade 
onde as crianças de rua são representadas e tratadas como marginais, além de 
terem origem em famílias desestruturadas. Tal discurso, que é o dominante na 
nossa sociedade, exige das crianças de rua que muito cedo elaborem carapaças, 
 
ou escudos, para enfrentar os “trancos” que a vida lhe impõe. Deste modo, 
imaginariamente, o sujeito adota uma posição de identificação com heróis que 
sempre “dão um jeito”, para enfrentar e resolver essas dificuldades. 
Com base em tais considerações, podemos, ainda, aventar aqui a hipótese de 
que o desejo do sujeito está perpassado pela ideologia, e que a constituição deste 
desejo no inconsciente, vai depender de como esta a interpela em sujeito. Cremos 
que a ideologia é o cenário de estruturação do desejo do sujeito e também do 
inconsciente; será a ideologia que dará os tons para a tela discursiva, e apontará, 
assim, as posições que o sujeito pode/deve ocupar em uma determinada 
formação discursiva, sem deixar de implicá-lo em seu desejo e em sua 
relação/submissão ao Outro (Tfouni e Laureano 2004). 
Resistindo e escondendo-se numa indecisão sem fim, o sujeito tenta 
posicionar-se neste mundo, que lhe aparece como algo ideal a ser atingido, por 
exemplo, através da constituição de uma família completa que se preocupe com 
ele. 
Pela análise realizada, podemos dizer que fica evidente a riqueza desta forma 
de interpretar, qual seja, a de articular a interpretação em AD e em psicanálise, 
pois temos em nossas mãos o retrato do sujeito singular e o funcionamento da 
sociedade na qual ele está inserido: sua verdade. 
Analisar dados à luz da AD e da psicanálise lacaniana nos dá um novo meio 
de interpretar o sujeito do discurso, e também de levar em consideração as 
formações sociais que o determinam: o real da língua e o real da história atuando 
conjuntamente. 
 
Referências Bibliográficas 
 
— ALTHUSSER, L.1983. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graal. 
— AUTHIER-REVUZ, J.1982. Hétérogénéité montrée et Hétérogénéité 
constitutive: élements pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV – 
Revue de linguistique, 26. 
— CARREIRA, A. F.1997. Era uma vez Três Sereias: análise de narrativas de 
crianças de rua. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia, FFCLRP, USP, Ribeirão Preto. 
20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Notas sobre a experiência e o saber de
experiência*
Jorge Larrosa Bondía
Universidade de Barcelona, Espanha
Tradução de João Wanderley Geraldi
Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística
No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka
Costuma-se pensar a educação do ponto de vista
da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do
ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o
par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva
e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a
uma perspectiva política e crítica. De fato, somente
nesta última perspectiva tem sentido a palavra “refle-
xão” e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão
sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipado-
ra” etc. Se na primeira alternativa as pessoas que tra-
balham em educação são concebidas como sujeitos
técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as
diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos
cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na se-
gunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem
como sujeitos críticos que, armados de distintas estra-
tégias reflexivas, se comprometem, com maior ou
menor êxito, com práticas educativas concebidas na
maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo
isso é suficientemente conhecido, posto que nas últi-
mas décadas o campo pedagógico tem estado separa-
do entre os chamados técnicos e os chamados críti-
cos, entre os partidários da educação como ciência
aplicada e os partidários da educação como práxis
política, e não vou retomar a discussão.
O que vou lhes propor aqui é que exploremos
juntos outra possibilidade, digamos que mais existen-
cial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser
esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par
experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é
sugerir certo significado para estas duas palavras em
distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto
lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar
algumas palavras e tratar de compartilhá-las.
E isto a partir da convicção de que as palavras
* Conferência proferida no I Seminário Internacional de
Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001,
por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das
unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.
A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon-
sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re-
vista Brasileira de Educação.
SEMANA 3 - TEXTO BASE 2
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 21
produzem sentido, criam realidades e, às vezes, fun-
cionam como potentes mecanismos de subjetivação.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,
creio que fazemos coisas com as palavras e, também,
que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas
a partir de nossas palavras. E pensar não é somente
“raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos
tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as
palavras. E, portanto, também tem a ver com as pala-
vras o modo como nos colocamos diante de nós mes-
mos, diante dos outros e diante do mundo em que vi-
vemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem
como zôon lógon échon. A tradução desta expressão,
porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do
que “animal dotado de razão” ou “animal racional”.
Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido
da palavra, é justamente essa de traduzir logos por
ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal.
O homem é um vivente com palavra. E isto não signi-
fica que o homem tenha a palavra ou a linguagem como
uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto pa-
lavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá
em palavra, está tecido de palavras, que o modo de
viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na
palavra e como palavra. Por isso, atividades como con-
siderar as palavras, criticar as palavras, eleger as pala-
vras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com
as palavras, impor palavras, proibir palavras, transfor-
mar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,
não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com
as palavras, do que se trata é de como damos sentido
ao que somos e ao que nos acontece, de como
correlacionamos as palavras e as coisas, de como no-
meamos o que vemos ou o que sentimos e de como
vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o que fazemos, em educação ou em qual-
quer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis
reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não
é somente uma questão terminológica. As palavras
com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o
que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
são mais do que simplesmente palavras. E, por isso,
as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo contro-
ledas palavras, pela imposição de certas palavras e
pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simples-
mente palavras, algo mais que somente palavras.
1. Começarei com a palavra experiência. Pode-
ríamos dizer, de início, que a experiência é, em espa-
nhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a
experiência é “o que nos acontece”; em francês a ex-
periência seria “ce que nous arrive”; em italiano,
“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”;
em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,
“was mir passiert”.
A experiência é o que nos passa, o que nos acon-
tece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acon-
tece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado
para que nada nos aconteça.
1
 Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Em primeiro lugar pelo excesso de informação.
A informação não é experiência. E mais, a informação
não deixa lugar para a experiência, ela é quase o con-
trário da experiência, quase uma antiexperiência. Por
isso a ênfase contemporânea na informação, em estar
informados, e toda a retórica destinada a constituir-
nos como sujeitos informantes e informados; a infor-
mação não faz outra coisa que cancelar nossas possi-
1
 Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível
no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para
que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como
“Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se
nos passe” (Nota do tradutor).
Jorge Larrosa Bondía
22 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
bilidades de experiência. O sujeito da informação sabe
muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,
o que mais o preocupa é não ter bastante informação;
cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém, com essa obsessão pela informação e pelo sa-
ber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no
sentido de “estar informado”), o que consegue é que
nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de
dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la
da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber
de experiência é que é necessário separá-lo de saber
coisas, tal como se sabe quando se tem informação
sobre as coisas, quando se está informado. É a língua
mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assis-
tir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido
um livro ou uma informação, depois de ter feito uma
viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer
que sabemos coisas que antes não sabíamos, que te-
mos mais informação sobre alguma coisa; mas, ao
mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que
aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além disso, seguramente todos já ouvimos que
vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona
às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimen-
to” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”.
Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade
entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob
a forma de informação, e como se aprender não fosse
outra coisa que não adquirir e processar informação.
E não deixa de ser interessante também que as velhas
metáforas organicistas do social, que tantos jogos per-
mitiram aos totalitarismos do século passado, estejam
sendo substituídas por metáforas cognitivistas, segu-
ramente também totalitárias, ainda que revestidas agora
de um look liberal democrático. Independentemente de
que seja urgente problematizar esse discurso que se
está instalando sem crítica, a cada dia mais profunda-
mente, e que pensa a sociedade como um mecanismo
de processamento de informação, o que eu quero apon-
tar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo
da informação é uma sociedade na qual a experiência
é impossível.
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um
sujeito informado que, além disso, opina. É alguém
que tem uma opinião supostamente pessoal e supos-
tamente própria e, às vezes, supostamente crítica so-
bre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem
informação. Para nós, a opinião, como a informação,
converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogân-
cia, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa
sobre que nos sentimos informados. E se alguém não
tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o
que se passa, se não tem um julgamento preparado
sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que
tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a
opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também
anula nossas possibilidades de experiência, também
faz com que nada nos aconteça.
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dis-
positivo moderno para a destruição generalizada da
experiência.
2
 O periodismo destrói a experiência, so-
bre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra
coisa que a aliança perversa entre informação e opi-
nião. O periodismo é a fabricação da informação e a
fabricação da opinião. E quando a informação e a opi-
nião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do
acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa
que o suporte informado da opinião individual, e o
sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história se-
gundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o
suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um
sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da in-
formação e da opinião, um sujeito incapaz de expe-
riência. E o fato de o periodismo destruir a experiên-
cia é algo mais profundo e mais geral do que aquilo
que derivaria do efeito dos meios de comunicação de
massas sobre a conformação de nossas consciências.
O par informação/opinião é muito geral e permeia
2
 Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas
obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 23
também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem,
inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos cha-
mam de “aprendizagem significativa”. Desde peque-
nos até a universidade, ao largo de toda nossa traves-
sia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos
a um dispositivo que funciona da seguinte maneira:
primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opi-
nar, há que dar uma opinião obviamente própria, críti-
ca e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria
como a dimensão “significativa” da assim chamada
“aprendizagem significativa”. A informação seria o
objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa
reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como rea-
ção subjetiva, é uma reação que se tornou para nós
automática, quase reflexa: informados sobre qualquer
coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maio-
ria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso,
nos convertemos em sujeitos competentes para res-
ponder como Deus manda as perguntas dos professo-
res que, cada vez mais, se assemelham a comprova-
ções de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me
o que você sabe, diga-me com que informação conta
e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dis-
positivo periodístico do saber e da aprendizagem, o
dispositivo que torna impossível a experiência.
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais
rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa
demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E
com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, ime-
diatamente substituído por outro estímulo ou por ou-
tra excitação igualmente fugaz e efêmera. O aconteci-mento nos é dado na forma de choque, do estímulo,
da sensação pura, na forma da vivência instantânea,
pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade,
pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impe-
dem a conexão significativa entre acontecimentos.
Impedem também a memória, já que cada aconteci-
mento é imediatamente substituído por outro que igual-
mente nos excita por um momento, mas sem deixar
qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está in-
formado e opina, mas também é um consumidor vo-
raz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso
impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar per-
manentemente excitado e já se tornou incapaz de si-
lêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,
tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o
choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade
e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória,
são também inimigas mortais da experiência.
Nessa lógica de destruição generalizada da expe-
riência, estou cada vez mais convencido de que os apa-
ratos educacionais também funcionam cada vez mais
no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos
aconteça. Não somente, como já disse, pelo funciona-
mento perverso e generalizado do par informação/
opinão, mas também pela velocidade. Cada vez esta-
mos mais tempo na escola (e a universidade e os cur-
sos de formação do professorado são parte da escola),
mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da for-
mação permanente e acelerada, da constante atualiza-
ção, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o
tempo como um valor ou como uma mercadoria, um
sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer
coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa,
que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa
obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este
sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se
organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada
vez mais curtos. Com isso, também em educação esta-
mos sempre acelerados e nada nos acontece.
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece
importante porque às vezes se confunde experiência
com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos li-
vros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o sa-
ber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se
adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da
prática, como se diz atualmente. Quando se redige o
currículo, distingue-se formação acadêmica e expe-
riência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa ten-
dência aparentemente progressista no campo educa-
cional que, depois de criticar o modo como nossa
sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pre-
tende implantar e homologar formas de contagem de
Jorge Larrosa Bondía
24 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
créditos para a experiência e para o saber de experiên-
cia adquirido no trabalho. Por isso estou muito inte-
ressado em distinguir entre experiência e trabalho e,
além disso, em criticar qualquer contagem de créditos
para a experiência, qualquer conversão da experiência
em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha
tese não é somente porque a experiência não tem nada
a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que
o trabalho, essa modalidade de relação com as pes-
soas, com as palavras e com as coisas que chamamos
trabalho, é também inimiga mortal da experiência.
O sujeito moderno, além de ser um sujeito infor-
mado que opina, além de estar permanentemente agi-
tado e em movimento, é um ser que trabalha, quer di-
zer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo
“natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto
a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, se-
gundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho
é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito
moderno é animado por portentosa mescla de otimis-
mo, de progressismo e de agressividade: crê que pode
fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum
dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o
que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O
sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do
ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua ativi-
dade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode
fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
regular algo. Independentemente de este desejo estar
motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o
sujeito moderno está atravessado por um afã de mu-
dar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os
políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos,
os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os peda-
gogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua
existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, trans-
bordantes de opiniões e superestimulados, mas tam-
bém sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por
isso, porque sempre estamos querendo o que não é,
porque estamos sempre em atividade, porque estamos
sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não
podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup-
ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sen-
tir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre
o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até aqui, a experiência e a destruição da expe-
riência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse
sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião,
do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do
fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol,
nessa língua em que a experiência é “o que nos pas-
sa”, o sujeito da experiência seria algo como um terri-
tório de passagem, algo como uma superfície sensível
que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em
que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da
experiência é um ponto de chegada, um lugar a que
chegam as coisas, como um lugar que recebe o que
chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português,
em italiano e em inglês, em que a experiência soa como
“aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to
us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço
onde têm lugar os acontecimentos.
Em qualquer caso, seja como território de passa-
gem, seja como lugar de chegada ou como espaço do
acontecer, o sujeito da experiência se define não por
sua atividade, mas por sua passividade, por sua recep-
tividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.
Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposi-
ção entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma receptividade primeira, como uma disponi-
bilidade fundamental, como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito “ex-pos-
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 25
to”. Do ponto de vista da experiência, o importante
não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem
a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im-
posição” (nossa maneira de impormos), nem a “pro-
posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex-
posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o
que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é
incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,
ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É
incapaz deexperiência aquele a quem nada lhe passa,
a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a
quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria pala-
vra experiência. A palavra experiência vem do latim
experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri,
que se encontra também em periculum, perigo. A raiz
indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de
tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz
que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:
peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra-
vés, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego
de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da
experiência tem algo desse ser fascinante que se ex-
põe atravessando um espaço indeterminado e perigo-
so, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportu-
nidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior, de estrangeiro,
3
 de exílio, de estranho
4
 e
também o ex de existência. A experiência é a passa-
gem da existência, a passagem de um ser que não tem
essência ou razão ou fundamento, mas que simples-
mente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,
imanente, contingente. Em alemão, experiência é
Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo
alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e
gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germâni-
cas como nas latinas, a palavra experiência contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Em Heidegger (1987) encontramos uma defi-
nição de experiência em que soam muito bem essa
exposição, essa receptividade, essa abertura, assim
como essas duas dimensões de travessia e perigo que
acabamos de destacar:
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos
tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa precisamente que nós a fa-
çamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, to-
mar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida
que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer
dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo
que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Pode-
mos ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos
verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um su-
jeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito
que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro
de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não
um sujeito definido por seus sucessos ou por seus po-
deres, mas um sujeito que perde seus poderes precisa-
mente porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é
também um sujeito sofredor, padecente, receptivo,
aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o su-
jeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme,
forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apá-
tico, autodeterminado, definido por seu saber, por seu
poder e por sua vontade.
Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode ler-
se outro componente fundamental da experiência: sua
capacidade de formação ou de transformação. É ex-
3
 Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
4
 Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)
Jorge Larrosa Bondía
26 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
periência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou
que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos
transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação.
5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o
sujeito da experiência é um território de passagem,
então a experiência é uma paixão. Não se pode captar
a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir
de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de
possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da
paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo en-
quanto sujeito passional. E a palavra paixão pode re-
ferir-se a várias coisas.
Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento.
No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é sim-
plesmente passivo. O sujeito passional não é agente,
mas paciente, mas há na paixão um assumir os pade-
cimentos, como um viver, ou experimentar, ou supor-
tar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada
que ver com a mera passividade, como se o sujeito
passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às ve-
zes, inclusive, algo público, ou político, ou social,
como um testemunho público de algo, ou uma prova
pública de algo, ou um martírio público em nome de
algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita
solidão, no mais completo anonimato.
“Paixão” pode referir-se também a certa hetero-
nomia, ou a certa responsabilidade em relação com o
outro que, no entanto, não é incompatível com a liber-
dade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmen-
te, de outra liberdade e de outra autonomia diferente
daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A
paixão funda sobretudo uma liberdade dependente,
determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não
nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que
está fora de mim, de algo que não sou eu e que por
isso, justamente, é capaz de me apaixonar.
E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma expe-
riência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão,
cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de
um desejo que permanece desejo e que quer permane-
cer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação
para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o su-
jeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é
possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não
está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodo-
mínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cati-
vado pelo alheio, alienado, alucinado.
Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e es-
cravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é,
precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro,
sua dependência daquele por quem está apaixonado.
Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre
felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apai-
xonado encontra sua felicidade ou ao menos o
cumprimento de seu destino no padecimento que sua
paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é preci-
samente sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito
apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coi-
sa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão
extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma
relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no
horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e
desejada como verdadeira vida, como a única coisa
que vale a pena viver, e às vezes como condição de
possibilidade de todo renascimento.
6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o
que poderia ser a experiência e o sujeito da experiên-
cia. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia
e do perigo, da abertura e da exposição, da receptivi-
dade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao
saber da experiência. Definir o sujeito da experiência
como sujeito passional não significa pensá-lo como
incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.
A experiência funda também uma ordem epistemoló-
gica e uma ordem ética. O sujeito passional tem tam-
bém sua própria força, e essa força se expressa produ-
tivamente em forma de saber e em forma de práxis. O
que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber
científico e do saber da informação,e de uma práxis
distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber de experiência se dá na relação entre o
conhecimento e a vida humana. De fato, a experiên-
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 27
cia é uma espécie de mediação entre ambos. É impor-
tante, porém, ter presente que, do ponto de vista da
experiência, nem “conhecimento” nem “vida” signi-
ficam o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a
ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito,
que somente pode crescer; algo universal e objetivo,
de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de
nós, como algo de que podemos nos apropriar e que
podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamen-
talmente com o útil no seu sentido mais estreitamente
pragmático, num sentido estritamente instrumental. O
conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamen-
te, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinhei-
ro. Recordem-se as teorias do capital humano ou es-
sas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do
conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a so-
ciedade da informação.
Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimen-
são biológica, à satisfação das necessidades (geral-
mente induzidas, sempre incrementadas pela lógica
do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da so-
ciedade. Pense-se no que significa para nós “qualida-
de de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse
de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o
conhecimento e a vida não é outra coisa que a apro-
priação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como
“conhecimento” para as necessidades que se nos dão
como “vida” e que são completamente indistintas das
necessidades do Capital e do Estado.
Para entender o que seja a experiência, é necessá-
rio remontar aos tempos anteriores à ciência moderna
(com sua específica definição do conhecimento obje-
tivo) e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a
definição moderna de vida como vida burguesa). Du-
rante séculos, o saber humano havia sido entendido
como um páthei máthos, como uma aprendizagem no
e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este
é o saber da experiência: o que se adquire no modo
como alguém vai respondendo ao que vai lhe aconte-
cendo ao longo da vida e no modo como vamos dando
sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da
experiência não se trata da verdade do que são as coi-
sas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acon-
tece. E esse saber da experiência tem algumas
características essenciais que o opõem, ponto por pon-
to, ao que entendemos como conhecimento.
Se a experiência é o que nos acontece e se o saber
da experiência tem a ver com a elaboração do sentido
ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um
saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de
uma comunidade humana particular; ou, de um modo
ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela
ao homem concreto e singular, entendido individual
ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua
própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o
saber da experiência é um saber particular, subjetivo,
relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o
que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fa-
zem a mesma experiência. O acontecimento é comum,
mas a experiência é para cada qual sua, singular e de
alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência é um saber que não pode separar-se do in-
divíduo concreto em quem encarna. Não está, como o
conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem
sentido no modo como configura uma personalidade,
um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma
forma humana singular de estar no mundo, que é por
sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma
estética (um estilo). Por isso, também o saber da expe-
riência não pode beneficiar-se de qualquer alforria,
quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de
outro, a menos que essa experiência seja de algum
modo revivida e tornada própria.
A primeira nota sobre o saber da experiência su-
blinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua
relação com a existência, com a vida singular e con-
creta de um existente singular e concreto. A experiên-
cia e o saber que dela deriva são o que nos permite
apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida pró-
pria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los
Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, qua-
se tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos
Jorge Larrosa Bondía
28 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
existência a esta vida própria, contingente e finita, a
essa vida que não está determinada por nenhuma es-
sência nem por nenhum destino, a essa vida que não
tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora
dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construin-
do e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também
impossível a existência.
7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e
alcança sua formulação mais elaborada em Descartes,
desconfia da experiência. E trata de convertê-la em
um elemento do método, isto é, do caminho seguro da
ciência. A experiência já não é o meio desse saber que
forma e transforma a vida dos homens em sua singu-
laridade, mas o método da ciência objetiva, da ciência
que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do
mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experi-
mental. Mas aí a experiência converteu-se em experi-
mento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e pre-
visível da ciência. A experiência já não é o que nos
acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um
sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua
cara legível, a série de regularidades a partir das quais
podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um
páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela
prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades
objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao
homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da
experiência e uma vez separado o conhecimento da
existência humana, temos uma situação paradoxal.
Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos,
uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma
enorme pobreza dessas formas de conhecimento que
atuavam na vida humana, nela inserindo-se e trans-
formando-a. A vida humana se fez pobre e necessita-
da, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo
que alimentava, iluminava e guiava a existência dos
homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado
dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pre-
tende evitar a confusão de experiência com experi-
mento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência
de suas contaminações empíricas e experimentais, de
suas conotações metodológicas e metodologizantes.
Se o experimento é genérico, a experiência é singular.
Se a lógica do experimento produz acordo, consenso
ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da expe-
riência produz diferença, heterogeneidade e plurali-
dade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se
mais de uma heterologia do que de uma homologia,
ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funcio-
na heterologicamente do que uma dialogia que fun-
ciona homologicamente. Se o experimento é repetível,
a experiência é irrepetível, sempre há algo como a
primeira vez. Se o experimento é preditível e previsí-
vel, a experiência tem sempre uma dimensão de in-
certeza que não pode ser reduzida. Além disso, posto
que não se pode antecipar o resultado, a experiência
não é o caminho até um objetivo previsto, até uma
meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura
para o desconhecido,para o que não se pode anteci-
par nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.
JORGE LARROSA BONDÍA é doutor em pedagogia pela
Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é profes-
sor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em
periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o portu-
guês: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Au-
têntica, 1999).
Referências Bibliográficas
HEIDEGGER, Martin, (1987). La esencia del habla. In: .
De camino al habla. Barcelona: Edicionaes del Serbal.
BENJAMIN, Walter, (1991). El narrador. In: . Para uma cri-
tica de la violencia y otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss.
(Ou, na edição brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e
política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: .
Obras escolhidas. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I).
Recebido em novembro de 2001
Aprovado em janeiro de 2002
129SESSÃO LIVRE
TIPOS DE NARRADOR E NOVAS DISCUSSÕES EM NARRATOLOGIA 
 
Flávia Roberta Menezes de Souza1 
 
RESUMO 
 
O objetivo desse artigo é discutir conceitos já estabelecidos no campo da narratologia, mais 
precisamente, os que se referem aos tipos de narrador. Nesse sentido, partiremos das formulações de 
Gérard Genette (1972), em que ele discute e propõe novos termos para o desenvolvimento de análises 
de textos narrativos. Esses termos levam em consideração questões que até aquele momento não 
haviam sido discutidas pelos estudiosos da narrativa, como por exemplo, “os níveis narrativos”, as 
“metadiegeses” e as implicações percebidas pela presença ou ausência do narrador na história. Durante 
muitos anos, os termos propostos por Genette passaram a subsidiar análises de narrativas, e hoje é 
sabido, o quanto o campo da narratologia evoluiu, no sentido da problematização dos conceitos dessa 
área de conhecimento, uma vez que é possível identificá-la não somente auxiliando a leitura de textos 
literários escritos, mas também de outras formas textuais, como cinema, fotografia, jogos eletrônicos 
etc. Dessa maneira, serão relacionadas as propostas de Genette e a de Wolf Schmid (2010), que em um 
estudo mais recente, revisou termos e conceitos desse campo de estudo, abrindo caminhos para novas 
propostas. Em Narratology: na introduction, Schmid identifica os grandes problemas em torno da 
nomenclatura que serve aos tipos de narrador, já discutidos antes por Genette. O artigo enfatiza 
justamente o diálogo entre as duas propostas de organização dos tipos de narrador de Genette e de 
Schmid. 
 
Palavras-chave: Narratologia. Gerard Genette. Wolf Schmid. Tipos de narrador. 
 
ABSTRACT 
 
The purpose of this article is to discuss concepts already established in the field of narratology, more 
precisely, those that refer to the types of narrator. In this sense, we will start with the formulations of 
Gérard Genette (1972), in which he discusses and proposes new terms for the development of 
narrative texts analysis. These terms take into account questions that have not been discussed by 
narrative scholars, such as "narrative levels," "metadiegeses," and the implications perceived by the 
narrator's presence or absence in history. For many years, the terms proposed by Genette began to 
support analysis of narratives, and it is now known, how much the field of narratology has evolved, in 
the sense of problematizing the concepts of this area of knowledge, since it is possible to identify not 
only helping to read written literary texts, but also in other textual forms, such as cinema, 
photography, electronic games, etc. In this way, the proposals of Genette and Wolf Schmid (2010) will 
be related, which in a more recent study, revised terms and concepts of this field of study, opening the 
way for new proposals. In Narratology: in the introduction, Schmid identifies the major problems 
surrounding the nomenclature that serves the types of narrator discussed earlier by Genette. The article 
emphasizes precisely the dialogue between the two proposals of organization of the types of narrator 
of Genette and of Schmid. 
 
Keywords: Narratology. Gerard Genette. Wolf Schmid. Types of narrator. 
 
 
Recebido em: 10/08/2017 
Aprovado em: 04/09/2017 
 
 
 
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Pará. E-mail: 
flaviamenezes19@hotmail.com 
SEMANA 4 - TEXTO BASE 1
NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346130
INTRODUÇÃO 
 
A narratologia subsidiou diversos estudos de obras literárias de caráter narrativo: 
serviu tanto aos estudos da literatura escrita quanto da literatura oral. Trata-se, hoje, de um 
campo do conhecimento que contribuiu ao longo dos anos com ferramentas conceituais e 
teóricas para o desenvolvimento de análises de textos, sobretudo, literários. A publicação do 
Dicionário de Teoria da Narrativa de Ricardo Reis e Ana Cristina Lopes em 1988, é um 
exemplo do quanto a narratologia tem desempenhado papel importante, ao fornecer ao 
estudioso uma série de conceitos que possibilita a descrição técnica de muitos procedimentos 
já observados em obras, tais como a existência de níveis narrativos, tipos de narrador e etc. 
Descrever e compreender tais procedimentos, contribuem significativamente para uma visão 
mais objetiva sobre a construção da obra, e permite estabelecer critérios de investigação 
quando se pretende trabalhar com mais de um autor, ou ainda quando se pretende estabelecer 
diálogos entre obras de diferentes épocas e estilos. Em 1988, ao publicar um trabalho de teor 
prático ao estudioso de narrativas, como é o caso do Dicionário, Carlos Reis e Ana Cristina 
Lopes reforçaram a ideia da importância que teve a reflexão em torno da narrativa, desde que 
se desenvolveu um conjunto de teorias com um caráter disciplinar, impulsionado pela 
Estruturalismo Francês. 
No Brasil, dentre muitas publicações específicas sobre os tipos de narrador, destaca-se 
a leitura de Lígia Chiappini Moraes Leite, com a publicação de O Foco Narrativo. Nesse 
trabalho, a professora apresenta ao leitor, de forma panorâmica, uma discussão sobre narrativa 
desde Aristóteles, passando por Henry James, Percy Lubbock, Jean Pouillon, até alcançar os 
autores do Estruturalismo Francês: Roland Barthes e Tzvetan Todorov. O objetivo dela nesse 
conhecido trabalho é abordar a tipologia do narrador de Norman Friedman. A autora cita e 
exemplifica cada um dos tipos: Narrador Onisciente Intruso; Narrador Onisciente Neutro; 
"Eu" como testemunha; Narrador Protagonista; Onisciência Seletiva Múltipla; Onisciência 
Seletiva; Modo Dramático e Câmara Ressalta-se que nesta leitura, não há diferença entre 
“ponto de vista” e “tipologia de narrador”. O fato é que essa abordagem de Lígia Leite 
tornou-se conhecida e muitas análises de narrativas, sem, no entanto, problematizar 
determinados aspectos típicos dos romances modernos que devem incluir não só a 
compreensão do tipo de narrador como a percepção do ponto de vista adotado na narrativa. 
É dentro desse contexto que nos interessa discutir alguns problemas de ordem 
conceitual, uma vez que ao lermos essas publicações posteriores às contribuições dos 
estruturalistas da década de 60, é possível notar alguns aspectos que podem ser postos em 
131SESSÃO LIVRE
diálogo com as recentes contribuições de Wolf Schmid, que não são tão populares em nossa 
tradição acadêmica. Para isso, partiremos das reflexões de Gérard Genette (2008) sobre o 
narrador, que não deixa de se inserir em uma discussão maior, que é a relação entre narrativa 
e discurso. 
 
1. GÉRARD GENETTE: O DISCURSO E A NARRATIVA 
 
A narratologia é um campo do conhecimento que se desenvolveu graças a uma 
consciência linguística voltada sobretudo aos estudos literários – especificamente, à narrativa 
literária - e que alcançou grande espaço na crítica literária no final da década de 60, com a 
virada dos estudos estruturalistas. A retomada dospressupostos formalistas, àquela época 
recém-descobertos, resgatou a preocupação com a construção de uma ciência da literatura. 
Ainda que o projeto estruturalista tenha se deparado com as limitações de seu próprio aparato 
teórico diante da complexidade do objeto que estudava, são inegáveis as contribuições que 
tanto renovaram a linguagem conceitual dos fenômenos literários os quais careciam de termos 
que oferecessem maior precisão nos trabalhos e pesquisas em torno da narrativa. Também não 
se pode desconsiderar que o rigor científico buscado pelos estruturalistas propiciou uma série 
de publicações que até hoje sobrevivem e subsidiam o estudo da narrativa. Nessa perspectiva, 
propomos lembrar as provocações contidas no texto Fronteiras da Narrativa, de Gérard 
Genette, publicado pela primeira vez na revista Comunits 
sobre narratologia, na linha do estruturalismo. 
Nesse texto, após discutir as noções de Aristóteles e Platão sobre o valor da narrativa 
enquanto representação literária, Genette rebate a ideia dos dois filósofos de que a narrativa 
mimesis é 
diegesis
Genette, não era possível continuar colocando a ficção poética na condição de simulacro da 
realidade, pois o objeto da ficção se reduz por ela a um real fingido e que espera ser 
representado. Analisando por essa perspectiva, não seria possível alcançar a natureza da 
narrativa em sua forma particular de representar os acontecimentos, pois a linguagem só pode 
imitar perfeitamente a linguagem, ou ainda, um discurso só pode imitar ele mesmo. Sendo 
assim, não existe imitação perfeita, pois o perfeito seria a própria coisa e não a imitação; a 
única possibilidade de imitação é imperfeita. 
Posto o lugar da narrativa como representação literária, e, adentrando cada vez mais 
no campo que realmente lhe interessa, Genette (2008) questiona-se sobre a possibilidade de se 
NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346132
distinguir descrição de narração, já que essa ideia, apesar de não pensada pelos filósofos, foi 
colocada em uma tradição mais recente, sobretudo, escolar. Reflete que, enquanto modo de 
representação literária, a distinção entre narração e descrição não é tão nítida, nem por conta 
de uma autonomia de seus fins, nem por uma originalidade de seus meios, para que seja 
necessário o rompimento da unidade narrativo-descritiva. Para Genette (2008), se existe uma 
fronteira que separa a descrição da narrativa, é bem uma fronteira interna, que ainda sim se dá 
de modo indeciso. À noção de narrativa, portanto, pode ser englobada todas as formas de 
representação literária, considerando a descrição como um de seus modos, ou, mais 
modestamente, como um de seus aspectos. 
A última fronteira da narrativa estabelecida por Genette é a que vai evidenciar as 
particularidades entre narrativa e discurso. Retomando o ponto de vista de Aristóteles, que 
não considerava poeta quem não escrevesse uma obra que consistisse em imitação por 
narrativa ou representação cênica, ficando de fora da noção de literatura representativa a 
poesia lírica, satírica e didática, Genette (2008) procura questionar o lugar, negligenciado na 
Poética, de uma vasta quantidade de textos, anunciando a necessidade de se pensar as 
particularidades entre narrativa e discurso. Exemplifica Genette, “para Aristóteles, e apesar de 
que usa o mesmo metro que Homero, Empédocles não é um poeta” (p. 277), pois sua obra não 
consiste em imitação, mas simplesmente em um discurso mantido por ele mesmo e em seu 
próprio nome. 
A necessidade de pensar essa fronteira diz respeito, segundo Genette (2008), à 
distinção proposta por Emile Benveniste entre narrativa e discurso. Benveniste mostra que 
certas formas gramaticais, como o pronome eu, que implica de certa forma a existência de tu, 
os “indicadores” pronominais (certos demonstrativos) ou adverbiais (como aqui, agora, hoje, 
ontem, amanhã, etc.), e certos tempos do verbo, como o presente, o passado composto ou 
futuro, encontram-se reservados ao discurso, enquanto que a narrativa em sua forma estrita é 
marcada pelo emprego exclusivo da terceira pessoa. 
Daí chega-se à relação entre objetividade da narrativa e subjetividade do discurso 
que, como ressalta Genette, é totalmente definida por critérios de ordem linguística. O 
subjetivismo do discurso está, por exemplo, presente na referência a um eu, que não se define 
de nenhum modo como a pessoa que fala. Semelhantemente ocorre com o tempo do modo 
discursivo, que é por excelência o presente, sem com isso significar que o discurso é 
enunciado no tempo presente. Inversamente, expõe Genette (2008), a objetividade da 
narrativa se define pela ausência de toda referência ao narrador, revelando a inexistência dele 
e até mesmo uma autonomia da própria organização da sucessão dos acontecimentos. 
133SESSÃO LIVRE
Somente nesse momento é possível observar a narrativa em seu estado puro, pois o texto não 
apresenta nenhuma informação que necessite, para ser compreendido, ser relacionado com a 
sua fonte. 
É preciso dizer ainda que as essências da narrativa e do discurso não se encontram 
em estado puro no texto. Cada texto apresenta em proporções diferentes a primeira e o 
segundo, embora um e outro se afetem de maneiras diferentes. A inserção de elementos 
narrativos no plano do discurso não basta para emancipar este último plano, pois eles 
permanecem com maior frequência ligados à referência do locutor. Por outro lado, o autor 
situa que qualquer intervenção de elementos discursivos no interior de uma narrativa é 
percebida como uma infração ao rigor narrativo. O fato é que “a pureza da narrativa é mais 
fácil de preservar do que a do discurso” (GENETTE, 2008, p. 282) e a explicação de Genette 
para isso é muito simples: 
 
Na verdade, o discurso não tem nenhuma pureza a preservar, pois é o modo 
“natural” da linguagem, o mais aberto e o mais universal, acolhendo por definição 
todas as formas; a narrativa, ao contrário, é um modo particular, definido por um 
certo número de exclusões e de condições restritivas (recusa o presente da primeira 
pessoa, etc.). O discurso pode “narrar” sem cessar de ser discurso, a narrativa não 
pode “discorrer” sem sair de si mesma. (GENETTE, 2008, p. 282) 
 
O mesmo autor expressa, sobre a comparação entre narração e discurso, como uma 
relação que atingiu diferentes configurações ao longo dos anos, mas que nunca se resolveu 
por completo. Com o objetivo de mostrar como essa relação se deu na literatura ao longo dos 
tempos, ele exemplifica o caso da época clássica, “em um Cervantes, um Scarron, um 
Fielding”, em que o autor-narrador, assumindo o próprio discurso, intervém na narrativa e 
interpela o leitor num tom de conversação familiar; assim como, no mesmo período, 
identificam-se procedimentos diferentes: romances cuja responsabilidade do discurso era 
totalmente transferida a um personagem principal que narrava e comentava ao mesmo tempo 
os acontecimentos na primeira pessoa. Ainda não podendo se resolver nem a falar em seu 
próprio nome nem a confiar essa tarefa a um só personagem, o autor reparte o discurso entre 
diversos atores, seja sob a forma de cartas, como fez frequentemente os romances do século 
XVIII, seja à maneira mais ágil e sutil de um Joyce ou de um Faulkner, fazendo 
sucessivamente a narrativa ser assumida pelo discurso interior de seus principais personagens. 
 
 
 
 
NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346134
2. TIPOS DE NARRADOR 
 
Gérard Genette (1995), em O Discurso da Narrativa, retomando a questão em torno do 
discurso e da narrativa, contribui para o estabelecimento de conceitos que, posteriormente, 
passaram a ser amplamente utilizados em estudos e trabalhos sobre narrativa, narrador 
heterodiegético e homodiegético em substituição às definições narrador em primeira pessoa, 
narrador em terceira pessoa, tradicionalmente também conhecidas:A escolha do romancista não é feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas 
atitudes narrativas (de que as formas gramaticais são apenas uma consequência 
mecânica): fazer contar a história por uma das personagens, ou por um narrador 
estranho a essa história. A presença de verbos na primeira pessoa num texto 
narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que a gramática 
confunde mas a análise narrativa deve distinguir. (GENETTE, 1195, p.243) 
 
Genette estabelece, então, um quadro que determina os tipos de narrador quanto à sua 
inserção na diegese (história) e ao nível narrativo a que pertence: extradiegético-
heterodiegético; extradiegético-homodiegético; intradiegético-heterodiegético; intradiegético-
homodiegético. (para formatar). Seé clara a compreensão do que seja heterodiegético e 
homodiegético quando se conhece a superada classificação narrador em primeira pessoa, 
narrador em terceira pessoa, é possível dizer que as classificações extra- e intradiegético 
dizem respeito à posição do narrador em relação ao nível narrativo, uma vez que é possível o 
narrador pertencer ao primeiro nível da narrativa e, posteriormente, dentro da história, outro 
narrador surgir e “se habilitar” a narrar outra história. Tem-se, assim, uma história dentro da 
história, e os narradores de ambas encontram-se em níveis diferentes, pois falam de lugares 
diferentes. 
Genette, nesse mesmo trabalho, apresenta uma outra maneira de pensar o narrador, que 
é a focalização. A focalização diz respeito ao conhecimento que o narrador tem sobre a 
história em comparação com o conhecimento que o personagem tem. Genette adverte que a 
focalização “nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um 
segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 1995, p. 189). 
Trata-se de uma questão importante, mas que nesse momento apenas será citada para retomar 
a tipologia de Friedman apresentada por Lígia Leite que relaciona tipos de narrador e ponto de 
vista como sendo um fenômeno apenas. Ao apresentarmos a proposta traçada por Wolf 
Schmid (2010), para uma tipologia de narrador, apontaremos as suas críticas em relação à 
abordagem que o assunto vem recebendo ao longo dos anos, conforme o quadro a seguir: 
 
135SESSÃO LIVRE
Tabela.1- Critérios estabelecidos por Schmid para uma tipologia de narrador 
Critérios Tipos de narrador 
Modo de representação Explícito-Implícito 
Status diegético Diegético – Não diegético 
Hierarquia Primário – Secundário - Terciário 
Grau de marcação Fortemente marcado – pouco marcado 
Pessoalidade Pessoal – impessoal 
Homogeneidade Compacto - Difuso 
Posição avaliativa Objetivo - Subjetivo 
Habilidade Onisciente – Conhecedor Limitado 
Fixação espacial Onipresente – Fixo em um espaço específico 
Acessibilidade à consciência dos 
personagens 
Expressa – Não expressa 
Confiabilidade Confiável – Não confiável 
 
Schmid (2010) estabelece onze critérios para se pensar a tipologia do narrador. 
Quantitativamente, trata-se de um painel mais criterioso, mas o ganho está na distinção entre 
tipologia e ponto de vista na narrativa. Um narrador não diegético, por exemplo, pode assumir 
o ponto de vista de um dos personagens para narrar determinada situação e nem por isso 
ocorre uma mudança de tipos. É o que acontece por exemplo em um dos romances de 
Dalcídio Jurandir, Os habitantes: 
 
Calou-se com muito embaraço e igual reserva. Calou-se. Calado. Está ouvindo o 
grito da irmã? A modo que foi ontem, a irmã arranca os três dias da folhinha, vai ao 
tabocal jogando terra nos bichos de criação: jogar nosso confete, senhoras e 
cavalheiros. É uma batalha. E aquele repente em que se enfia no velho fraque do pai, 
a máscara ela mesma fez, a cavalo para o pagode dos Ervedosas, tamanho sábado 
gordo, no Mutá. Precisou ir atrás dela, escondido da mãe, esta na fiúza que a filha só 
tinha ido desinflamar um pirralho no retiro com garapa de aninga. Flechou o galope 
atrás da irmã. Desajuízo dela era mais de contrariação que lhe faziam de não poder 
pôr o pé na cidade? Só? Estava entra-não-entra no pagode, oculta num mirizal, ali 
agachou-se, de fraque e máscara. (JURANDIR, 1976, p. 36) 
 
O narrador de Os habitantes não participa da história que conta, mas assume o ponto 
de vista do personagem ao narrar um episódio envolvendo a irmã desse último. É perceptível 
isso devido à linguagem usada pelo narrador, impregnada de um sentimento que só poderia 
pertencer ao personagem: “Desajuízo dela era mais de contrariação que lhe faziam de não pôr 
o pé na cidade?”. Nesse momento, não é a tipologia do narrador que se evidencia mas o ponto 
de vista assumido por ele na narrativa. Explicar o fenômeno apenas determinando que esse 
NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346136
narrador é um narrador onisciente é não levar em consideração a complexidade da construção 
narrativa. 
Em Relatos de um certo Oriente de Milton Hatoum, podemos também fazer uma 
leitura do tipo de narrador que atravessa a obra, segundo a proposta de Schmid: “quando abri 
os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As duas figuras estavam inertes diante 
de mim, e a claridade indecisa da manhã nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao 
cansaço de uma noite maldormida” (HATOUM, 2017, p.7) 
Tem-se um narrador diegético, explícito e bem marcado. Conforme avançamos a 
leitura, percebemos que cada capítulo é narrado por um personagem diferente. Hakim é um 
dos mais importante, inclusive, pela quantidade de capítulos que narra. Mas é necessário 
observar certos aspectos que fazem toda a diferença. A primeira narradora do romance é 
responsável pela parte inicial do relato, enquanto que os demais personagens têm seus relatos 
adicionados à narrativa, marcados com aspas. Em outras palavras, há ali sempre a palavra de 
alguém, de um outro, que narra a partir do seu ponto de vista, exprimindo suas subjetividades: 
“tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes 
à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase 
que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia” (HATOUM, 2017, p. 35) 
Em Relatos de um certo Oriente, os personagens revezam o papel de narradores do 
romance, sem, no entanto, haver modificação no tipo de narrador. Essas considerações 
ajudam a pensar as técnicas narrativas presentes em romances e até mesmo estabelecer 
comparações entre obras. Podem ajudar a pensar por que determinada obra apresenta uma 
narrativa em que o tipo de narrador permanece o mesmo do início ao fim. Ou ainda, o que 
torna estável a presença de determinado tipo de narrador em uma obra? Essas questões 
ajudam a pensar a construção da narrativa, seus aspectos formais, para posteriormente 
relacioná-los aos aspectos internos da obra. 
 
REFERÊNCIAS 
 
GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Tradução: Fernando Cabral Martins. 3ª edição. 
Lisboa: Veja, 1995. 
 
GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: Análise Estrutural da narrativa. Tradução: 
Maria Zélia Barbosa. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008. 
 
HATOUM, Milton. Relatos de um certo Oriente. Companhia das Letras: São Paulo, 2017. 
 
JURANDIR, Dalcídio. Os habitantes. Artenova: Rio de Janeiro, 1976. 
30 
 
Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. 
 
 
SÃO BERNARDO: A POSIÇÃO DO NARRADOR NO ROMANCE E 
NO FILME

 
 
 
Germana da Cruz Pereira
**
 
Georgia da Cruz Pereira
***
 
 
 
RESUMO 
 
Com o presente artigo objetivamos analisar a posição do narrador na obra literária São 
Bernardo (1934),de Graciliano Ramos, e no filme homônimo realizado por Leon 
Hirszman em 1971. Ambas as histórias trazem Paulo Honório, um narrador-
personagem, que apresenta sua trajetória de vida a partir de uma narrativa de aspectos 
metalinguísticos. Nossa análise se baseia nos trabalhos sobre traduçãointersemiótica de 
Roman Jakobson (1991), que a entende como a tradução de signos verbais em sistemas 
de signos não-verbais, e de Julio Plaza (2003), que teoriza sobre as tipologias de 
traduções a partir da semiótica peirceana. Traçamos um estudo de natureza analítico-
comparativa de modo a determinar como o narrador se constrói e se posiciona diante de 
sua narrativa nas duas obras, considerando as relações de tradução indiciais entre texto 
literário e composição audiovisual. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Narrador; Discurso; Tradução intersemiótica. 
 
ABSTRACT 
 
With the present article we aim to analyze the narrator's position in Graciliano Ramos's 
São Bernardo (1934) and in the homonymous film directed by Leon Hirszman in 1971. 
Both stories bring Paulo Honório, a first-person narrator, who presents his life trajectory 
from a narrative with metalinguistic aspects. Our analysis is based on the work about 
intersemiotic translation by Roman Jakobson (1991), who understands it as the 
translation of verbal signs in nonverbal systems of signs, and Julio Plaza (2003),who 
theorizes about the typologies of translations from Peircean concepts. We draw a study 
of an analytical-comparative nature in order to determine how the narrator construction 
and position works in both products, considering the relations of index translation 
between literary text and audiovisual composition. 
 
KEYWORDS: Narrator; Discourse; Intersemiotic Translation. 
 
 
 
 
 

 Trabalho desenvolvido pelo Discursiva - Grupo de Pesquisas em Narrativas Multimídias e Estudos do 
Discurso, da Universidade Federal do Ceará. 
***
Georgia PEREIRA, doutora, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) 
georgia@virtual.ufc.br 
 
SEMANA 4 - TEXTO BASE 2
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Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. 
 
 
Introdução 
Narrar, viver, contar. Hábito antigo entre pessoas de diferentes gerações, línguas e 
etnias, a transmissão das experiências vividas e vistas. Sejam histórias de amor e de 
guerra, de conquistas e derrotas, sob a ótica do vencedor ou do vencido, sempre 
encontramos alguém disposto a relatar o ocorrido de modo a gerar interesse em alguém 
que dele queira saber. 
Desde o princípio dos tempos o ato de narrar fascina tanto a quem o pratica 
quanto a quem dele usufrui. Diversos tipos de narradores se apresentaram ao longo da 
história literária, alguns se mantêm tão afastados por meio do discurso em terceira 
pessoa que o leitor não consegue identificá-los, como ocorre em Os Novos, de Luiz 
Vilela; outros se apresentam claramente, mas dividem seu relato, modificando o ponto 
de vista da narrativa, como em Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar e, se quisermos 
observar o cinema, Rashomon, de Akira Kurosawa; entretanto, é bem frequente o 
narrador que se apresenta diretamente ao leitor, em primeira pessoa, identifica-se. 
A literatura e o audiovisual estão repletos de exemplos marcantes de narradores 
como esses, por exemplo Riobaldo de Grande Sertão: veredas, Conselheiro Aires de 
Memorial de Aires,Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, e Paulo Honório 
de São Bernardo, narrador sobre o qual nos deteremos neste artigo. 
A figura do contador de histórias tem em suas mãos o poder de alimentar o 
imaginário das pessoas com seus relatos carregados de mitos e simbologias. Mas, e 
quando o fato é contado como realidade, qual posição adota o narrador? Paulo Honório 
se apresenta aos leitores diante da difícil tarefa de contar a história de São Bernardo, 
tem ajuda de alguns companheiros a princípio, mas o narrador acaba por ser ele e, 
portanto, a construção e a organização da narrativa estão sob sua responsabilidade. 
Adorno (2003, p. 60) afirma que o narrador contemporâneo “busca, como um atento 
comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva”, sua posição diante 
dos fatos. O objetivo deste estudo é perceber como se apresenta esse narrador 
contemporâneo na obra literária São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, e na 
produção cinematográfica São Bernardo (1973), do diretor Leon Hirszman, levando em 
consideração o conceito de Tradução Intersemiótica de Roman Jakobson (1991), que a 
entende como a tradução de signos verbais em sistemas de signos não-verbais, e as 
particularidades de cada arte. 
32 
 
Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. 
 
 
A transposição de produções literárias para as telas é entendida aqui como uma 
reescritura, releitura e recriação do texto de partida, conforme afirma Lefevere (1992), 
não cabendo, portanto, nesta análise o conceito de originalidade, por isso as obras são 
tomadas como produtos únicos. O filme, texto-alvo, é visto como uma nova e 
independente produção que buscou o texto literário como fonte ou ponto de partida. Por 
esse motivo, não cabe se fazer nenhum juízo de valor com relação à originalidade ou 
comparar as duas produções para valorá-las, visto que aqui estamos tratando de meios 
semióticos distintos. Apesar de não se poder hierarquizar ambas as obras, é possível 
traçar um paralelo entre elementos que se assemelham em ambas as obras. 
Partindo de uma análise semiológica, na qual se “vê o signo mover-se no campo 
da significação, enumera as suas valências, traça a sua configuração” (BARTHES, 
1977, p. 294-295), o signo é visto como uma “idéia sensível”, pois 
todo o signo inclui ou implica três relações. Em primeiro lugar, uma relação 
interior, aquela que une o seu significante ao seu significado; depois, duas 
relações exteriores: a primeira é virtual, une o signo a uma reserva específica 
de outros signos, da qual o destacamos para o inserirmos no discurso; a 
segunda é actual, ela junta o signo aos outros signos do enunciado que o 
precedem ou lhe sucedem. (BARTHES, 1977, p. 289) 
Julio Plaza (2003), a partir das tipologias de signo estabelecidas por Peirce, 
apresenta três matrizes de classificação de traduções intersemióticas correspondentes 
aos valores de ícone, índice e símbolo: Tradução Icônica, Indicial e Simbólica. Essa 
tipologia tem por objetivo instrumentalizar o analista com ferramentas que 
operacionalizem de maneira mais específica a atividade em questão sem, contudo, se 
constituírem em valores estanques. Semelhante ao conceito de ícone peirceano, a 
Tradução Icônica diz respeito àquela que "se pauta pelo princípio de similaridade de 
estrutura" (p.89), ou seja, ela estabelece uma analogia entre texto-fonte e texto-alvo. 
Essa tradução tem como marca um reagrupamento, um rearranjo na sintaxe, de modo a 
apresentar uma outra possibilidade significativa a partir da atividade tradutória. A 
Tradução Indicial estabelece uma relação de continuidade entre o texto-fonte e o texto-
alvo, "o objeto imediato do original é apropriado e transladado para um outro meio" 
(p.90). Essa transposição traz consigo uma relação semântica, em que a mudança de 
meio (canal) e a adaptação aos sistemas semióticos desse fazem com que outros e novos 
sentidos emerjam. A Tradução Simbólica, por sua vez, semelhante ao conceito de 
símbolo, tem sua ação pautada pela convenção de sentidos; dessa forma, "a tradução 
simbólica define a priori significados lógicos, mais abstratos e intelectuais do que 
sensíveis" (p.93). 
33 
 
Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. 
 
 
Nossa proposta é buscar estas relações entre os signos das obras analisadas, 
observando as soluções encontradas no texto-alvo para traduzir os signos verbais para 
os imagético-verbais. 
1. Devagar é que se vai ao longe... 
Para que possamos analisar o narrador de São Bernardo faz-se necessária a 
apresentação das obras visando a melhor compreensão do estudo aqui empreendido. 
Apresentar o texto literário, seu enredo, neste caso, significa falar concomitantemente 
do texto fílmico homônimo, visto que este tem seu roteiro baseado naquele,inclusive 
tomando longas passagens do livro, e, portanto, evitamos um trabalho repetitivo e 
cansativo. 
1.1. São Bernardo: a conquista de uma vida 
Após a morte de sua esposa, Paulo Honório, abandonado por todos, decide contar 
a história de São Bernardo, e essa se confunde com sua própria biografia, visto que 
desde jovem alimentava o desejo de possuir a propriedade. Inicialmente, crendo não 
dominar „as letras‟, convoca alguns velhos companheiros de prosa que o ajudarão nessa 
empreitada, dividindo as responsabilidades da seguinte forma: Padre Silvestre ficaria 
com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira, com a pontuação, a ortografia e 
a sintaxe; Arquimedes, com a composição tipográfica; Lúcio Gomes de Azevedo 
Gondim, com a composição literária; e a Paulo Honório caberia traçar o plano, 
introduzir na “história rudimentos de agricultura e pecuária”, arcar com as despesas e 
colocar seu nome na capa. 
Porém, como seus colaboradores foram desanimando ou desviando o curso dos 
planos arquitetados para a história, como Gondim, que lhe dá um caráter literário, Paulo 
Honório decide escrever ele mesmo o livro sobre São Bernardo, que começa mostrando 
as dificuldades enfrentadas para a composição da obra, desde a convocação dos colegas 
até a decisão de trabalhar sozinho. Em seguida, apresenta-se deixando o leitor ciente do 
narrador que o conduzirá por entre os acontecimentos: 
Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos 
e completei cinqüenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas 
cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita 
consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era 
menor. (RAMOS, 1981, p. 12) 
 
Paulo Honório, ao contar a história de São Bernardo e a sua, as quais estão 
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interligadas, o faz crendo que a forma como conquistou as terras, sua ascensão e 
decadência seriam assuntos interessantes. O narrador é bastante realista, sobretudo, por 
expor seus pensamentos e impressões, sobre fatos “que eu não revelaria, cara a cara, a 
ninguém” (RAMOS, 1981, p. 10). Para Bourneuf & Ouellet (1976, p.246), o 
personagem é o único capaz de contar sua própria história, pois “por mais fragmentário 
ou contestável que seja, o conhecimento de si mesmo pela introspecção é o único 
válido.” Se, visto por esse prisma, o romance funciona como uma espécie de diário de 
Paulo Honório feito com seus recortes de memória, lembranças que não o abandonam e 
o atormentam na solidão em que se encontra e no vazio de uma casa que já fora 
habitada e visitada por muitos, é o retrato da decadência de um homem. 
Para uma melhor explanação, podemos dividir as obras em duas partes principais: 
conquista e ascensão de São Bernardo (já mencionados) e o casamento com Madalena, 
sendo este o responsável pelo declínio do homem próspero apresentado até então ao 
leitor. 
Atormentado pela dúvida com relação à fidelidade de sua esposa Madalena, o 
narrador mostra na segunda parte do livro como passou a tratá-la, sempre desconfiando 
de cada barulho, de cada gesto, de cada carta, e a maneira como distanciava os seus 
prováveis amantes. Muitos desses, amigos e companheiros de Paulo Honório de uma 
vida. 
Por não suportar mais a situação, Madalena comete o suicídio. Paulo Honório 
isola-se do convívio da casa, de onde aos poucos os habitantes vão indo embora, para 
restar apenas ele, o filho (por quem não tem amizade) e Casimiro Lopes (seu capataz). 
 
2 “E se souberem que o autor sou eu...” 
Romance moderno, São Bernardo, apresenta um narrador que faz seu relato 
dando-lhe aspecto de realidade, visto que revela ao leitor o espaço, Viçosa, em Alagoas, 
e nomeia personagens de sua convivência, alguns até convidados a ajudar na escrita. 
Narrando em primeira pessoa a sua própria história, o que, de acordo com Genette 
(1979, p. 247), o caracteriza como um narrador extradiegético-homodiegético, deixa 
explícito sua condição de quem constrói sua narrativa com grande cuidado. 
Constantemente o narrador mostra a consciência e reflexão sobre seu texto, 
demonstrando que a verdade presente naquelas linhas foi pensada e articulada, portanto, 
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os fatos estão dispostos da maneira mais adequada para ele e não obrigatoriamente 
como se desenrolaram. Afinal, como comenta Paulo Honório num trecho 
metadiscursivo, em que reflete sobre como transcreve uma conversa travada com D. 
Glória, o propósito de seus escritos é ser lido, por isso “houve suspensões, repetições, 
mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai 
ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei 
outras” (RAMOS, 1981, p. 77). 
Outro aspecto relevante a ser percebido nesta narração é o efeito do tempo sobre a 
memória, que já se mostra nas primeiras páginas, ao relatar uma visita à casa de 
Mendonça: “E saí, descontente. Creio que foi mais ou menos o que aconteceu. Não me 
lembro com precisão” (RAMOS, 1981, p. 31). A memória alimenta as lembranças 
contidas nas páginas da obra seja pela narração direta, pelos diálogos ou pelos flashes 
de pensamentos introduzidos pelo narrador. 
Paulo Honório faz metadiscursivos os dois primeiros capítulos do livro, nos quais 
explica os procedimentos utilizados para a elaboração do romance, as reuniões, já 
mencionadas, com os colegas, a linguagem e a preocupação com sua recepção por parte 
do público: 
O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, 
agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero. 
Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões técnicas, desconhecidas do 
público, e a ser tido por pedante. Saindo daí, a minha ignorância é completa. 
E não vou, está claro, aos cinqüenta anos munir-me de noções que não obtive 
na mocidade. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto 
em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não 
pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão. (RAMOS, 1981, p. 
10-11) 
O início do filme São Bernardo se constitui, primordialmente, daquilo que 
podemos chamar de tradução indicial ou transposição, para usarmos a terminologia 
proposta por Julio Plaza (2003), uma vez que o texto-fonte aparece de modo contíguo, 
acentuando por meio das particularidades e peculiaridades do meio certas características 
presentes na descrição de origem. Os metacapítulos
1
 presentes do livro são transpostos 
no filme de modo a agregar a apresentação do espaço e do narrador. 
As sequências das imagens de Paulo Honório a tomar café, escrever, fumar e 
 
1
 Empregamos o termo metacapítulo, pois eles trazem reflexões sobre a criação discursiva de todos os 
outros capítulos, sobre a diegese da obra de modo geral. 
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observar suas terras do alpendre de casa, enquanto o espectador ouve em voice-over
2
 o 
narrador Paulo Honório introduzindo a história, que se confunde entre a do livro e a do 
filme, revelam o drama de iniciar o enredo e são um claro exemplo dessa relação de 
referencialidade que se estabelece entre ambas as obras: 
Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de 
mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. 
Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie 
suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens 
insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. 
Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá à 
venda. (HIRSZMAN, 1973; RAMOS, 1981) 
 
Em seguida, as imagens junto com a narraçãooff revelam como viveu a 
personagem principal – Paulo Honório – até a conquista de São Bernardo. Percebemos 
que o tom documental dado à narração, enxuta e simples, interrompida por diálogos 
entre as personagens, demonstra o intuito de reafirmar o dito pelo narrador, dar-lhe 
caráter de verdade. 
Paulo Honório, ao convidar os companheiros a enfrentar o desafio de escrever um 
livro, indiretamente os coloca no papel de ghost writer, autor anônimo de textos sob 
encomenda, visto que todos participarão da criação, mas o único a levar o título de autor 
será ele. A Paulo Honório cabe desempenhar a função de quem compra um livro numa 
agência de escritores: encomendar a história e colocar o nome na capa para ganhar os 
louros. Aos demais caberia a condição do escritor fantasma, ou seja, aquele que 
escreve o texto alheio, isto é, que redige o texto para atribuí-lo a outro, que 
subtrai o nome autoral da obra e da capa do livro que escreve para um 
terceiro, cabendo a este ser o signatário, assumir publicamente a autoria da 
obra, receber os aplausos e a consagração do público, enquanto o verdadeiro 
autor permanece na sombra e no anonimato. (FARIAS, 2004). 
 
A narrativa de São Bernardo tem a marca do narrador, pois, homem com pouca, 
ou quase nenhuma, escolaridade, ele realiza períodos curtos utilizando vocabulário 
simples, bem como uma aproximação à linguagem cotidiana do interior, com 
expressões regionais. O narrador vai sendo “constituído pelo conjunto dos signos que 
constroem a figura daquele que narra no texto” (REUTER, 1995, p. 39), seja ele 
literário ou fílmico. Na película, Leon Hirszman apresenta este narrador por meio de 
imagens de Paulo Honório refletindo diante dos papéis, juntamente com a narração off. 
O voice-over permeia toda a produção cinematográfica, funcionando como fio condutor 
 
2
 Termo utilizado para se referir a um narrador que também figura como personagem da história que 
narra. 
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desta, a qual se apropria do texto literário, visto que utiliza as mesmas palavras de 
Graciliano Ramos como roteiro. Mais do que ser o fio condutor, o voice-over nos 
permite identificar o narrador e a sua postura diante da narrativa, bem como a 
perspectiva em que os fatos estão relatados. 
Apesar de o narrador não possuir amplo conhecimento literário, demonstra refletir 
sobre o estilo e a linguagem que utilizará na narrativa principal e nas pequenas 
narrativas contadas a ele, as quais reproduz em seu relato, como a história de Ribeiro, 
guarda-livros de São Bernardo. Antes de apresentá-lo por meio dos fatos revelados pelo 
próprio homem, mostra a tentativa de forjar o estilo em que lhe foi contada a trajetória 
“que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quase a linguagem 
dele” (RAMOS, 1981, p. 35). 
A distância estética em que o narrador coloca o leitor “varia como as posições da 
câmera no cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário 
até o palco, os bastidores e a casa de máquinas” (ADORNO, 2003, p. 61). Dita distância 
estética podemos observar no romance através da exteriorização dos pensamentos do 
narrador, os quais formam capítulos inteiros só de divagações mentais, e em situações 
do convívio social, como numa conversa com Padilha quando São Bernardo ainda 
pertencia a este: 
- Resolvi. Aquilo como está não convém. Produz bastante, mas poderá 
produzir muito mais. Com arados... O senhor não acha? Tenho pensado numa 
plantação de mandioca e numa fábrica de farinha, moderna. Que diz? 
 
Burrice. Estragar terra tão fértil plantando mandioca! 
 
- É bom. 
 
E não prestei mais atenção ao caso, deixei que ele se entusiasmasse só e fosse 
discutir o seu projeto no Gurganema. (RAMOS, 1981, p.17-18) 
 
Na adaptação percebemos os movimentos de aproximação e afastamento feitos 
pela câmera, com closes em Paulo Honório durante suas divagações, estas que o 
espectador toma conhecimento através da narração em voice-over. 
Importante ressaltar o fato de o narrador informar tanto leitor quanto espectador 
sobre seus pensamentos, dúvidas, conflitos e desejos, deixando-o à vontade para inferir, 
ou interpretar, da maneira como lhe aprouver: 
Madalena procurava convencê-lo, mas não percebi o que dizia. De repente 
invadiu-me uma espécie de desconfiança. Já havia experimentado um 
sentimento assim desagradável. Quando? Quando? [...] Comunista, 
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materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. 
“Palestras amenas e variadas”. Que haveria nas palestras? Confio em mim. 
Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem feita, a voz 
insinuante. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e 
comecei a sentir ciúmes. (HIRSZMAN,1973; RAMOS,1981) 
 
Jean Pouillon (LEITE, 1989, p. 19-21), crendo que a narração depende de onde o 
narrador está situado no momento em que cria o seu texto, propõe a existência de três 
possibilidades para as relações entre narrador e personagem: a visão com a personagem, 
a visão por trás da personagem e a visão de fora da narrativa. Na visão por trás, o 
narrador conhece a vida da personagem, inclusive seu futuro; é o que se chama 
normalmente de narrador onisciente, o deus da narrativa, pois sabe o que dizem, pensam 
e fazem suas criaturas. Na visão com, o narrador não mais assume a postura de um deus 
que tudo sabe e vê, mas “limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e 
sobre os acontecimentos”. Já na visão de fora, o narrador não sabe nem mesmo sobre o 
interior, sentimentos e intenções da própria personagem. 
O narrador de São Bernardo, texto literário, assume a postura da visão com, visto 
que Paulo Honório conhece a história vivida por ele, apenas sabe contar os fatos em que 
estava inserido, deixando o que não viu à mercê de suas especulações. Porém, na 
produção cinematográfica são assumidas duas posturas: a visão com do narrador-
personagem por meio do voice-over e do olhar objetivo que mostra ao espectador o 
visto pelo olhar do narrador; e a visão por trás, na qual a câmera assume o papel de 
narrador, revelando momentos das personagens nos quais Paulo Honório não está 
presente e imagens do próprio Paulo, que seriam impossíveis de serem vistas por ele, 
como quando a câmera gira ao seu redor ou faz close em seu rosto, demonstrando 
momentos de introspecção. 
Paulo Honório encontra-se solitário, querendo dividir a angustiante lembrança dos 
acontecimentos que culminaram com a ausência absoluta de companhia. Sabendo que 
“a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente 
sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” 
(BENJAMIN, 1994, p. 201), notamos nele o desejo de continuar o hábito do relato da 
conquista de suas terras e de seu patrimônio, como fazia a Madalena. 
Em meio a um turbilhão de sentimentos com relação aos que o cercavam, 
confiança-desconfiança, amor-ódio, Paulo Honório demonstra reconhecer, como 
narrador, que 
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seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador 
é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir 
completamente a mecha de sua vida. [...] O narrador é a figura na qual o justo 
se encontra consigo mesmo. (BENJAMIN, 1994, p. 221) 
 
Como justo e digno, o narrador de São Bernardo dá à sua história um tom, além 
de documental, confessional ao assumir seu estado de espírito na época em que a 
história acontece, revelando: “Creio que estava quase maluco” (p. 151), e seu caráter de 
“indivíduo medianamente impressionável” (p. 156). Dita transparência do narrador dá 
credibilidade a seu relato, feito sob opessimismo e a desesperança de alguém ciente de 
que chegou a um nível de brutalidade e desconfiança irreversíveis: 
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para 
que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o 
que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige. (p. 186-
187) 
 
Obra literária e produção cinematográfica terminam da mesma maneira, com 
Paulo Honório solitário, no meio da noite, buscando um sussurro qualquer para lhe fazer 
companhia, mas a única companhia é o fim de uma vela queimando, como a réstia de 
esperança extinguindo-se diante de seus olhos que teimam em não dormir e da aliança 
(lembrança de Madalena) que continua a brilhar: 
A vela está quase a extinguir-se. 
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra 
por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão. 
 
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. 
Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. 
Que miséria! 
 
[silêncio] 
Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! 
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, 
encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos. (HIRSZMAN, 1973; 
RAMOS, 1981) 
 
Vale ressaltar que Paulo Honório conhece e admite os motivos que o levaram a 
ficar solitário, mas constrói sua narrativa buscando a empatia do leitor para com seu 
vazio existencial. Escolhe o léxico garimpando uma solidariedade do leitor que já 
conhece sua história, sabendo que ficará ali em São Bernardo “às escuras” até conseguir 
descansar “uns minutos”. 
 
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2 “A Vela está quase a extinguir-se”... 
Podemos observar que a postura do narrador tanto no livro quanto no filme faz 
com que o leitor seja conduzido pela narrativa, sob o ponto de vista do narrador-
personagem Paulo Honório. O leitor passa então a ser uma espécie de confidente do 
narrador, que ora é personagem, ora é contador, o que fica explícito com a mudança de 
ponto de vista da câmera no filme, que ora está com a personagem e ora está por trás da 
personagem. 
Dessa forma, o leitor vai descobrindo e presenciando as situações mais recônditas 
da alma de quem narra o que viveu, vai percebendo pelo dito e pelo que não é dito a 
importância dos fatos, já que no discurso o espaço do não-dito tem tanta ou mais 
importância que aquilo que está previamente estabelecido. No filme o não-dito aparece 
com closes do rosto pensativo de Paulo Honório, revelando também sua sisudez. 
O narrador age de forma a deixar claro em seu discurso que aquela é a narrativa 
de um homem sozinho, sem variações de foco narrativo ou vozes, com direito a fluxos 
de consciência narrados e apresentados ao leitor, quase numa epifania telúrica, 
rudimentar, feita aos moldes do personagem bruto conhecido como Paulo Honório e que 
pode ser tomado como o alter ego do narrador. Essa postura narrativa é percebida 
principalmente no filme, em que a narração em voice-over faz com que esse narrador 
seja personificado, sendo sua voz uma segunda personalidade, já que imagem e voz 
divergem em suas ideias e visões dos fatos. 
Podemos apontar ainda a associação verbal divergente em cada uma das obras 
analisadas, o que permite uma construção distinta do narrador e da história narrada: no 
texto literário, a narração em primeira pessoa nos coloca diante da memória, nos 
apresenta a eventos passados que se presentificam pela elaboração autoral; já no filme, 
essas ações acontecem em dois tempos narrativos distintos: o das ações do personagem 
e o da narração. Essa duplicação temporal e as características semióticas próprias do 
meio audiovisual, permitem outros regimes significativos. 
É interessante notar a relevância do livro São Bernardo para a literatura brasileira, 
sobretudo pelo fato de ter sido escrito em 1934 e manter-se atual até os nossos dias. Sua 
atualidade se deve, principalmente, a temas relacionados à alma, à solidão humana e à 
constante busca por explicações interiores; ademais, se observarmos os recursos 
técnicos utilizados por Graciliano Ramos para demonstrar a introspecção de Paulo 
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Honório e sua reflexão sobre o fazer artístico, como a postura do narrador, 
perceberemos que são assuntos merecedores de atenção e estudo em nosso mundo 
contemporâneo. Leon Hirszman, ao adaptar o romance para o cinema, em 1973, 
reafirma sua atemporalidade e atualidade, visto que, passados quase quarenta anos, a 
situação política e social brasileira continuava a mesma ou até piorara devido aos 
regimes ditatoriais. 
Referências 
 
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. 
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e 
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. 
BOURNEUF, Roland; OUELLET, Real. As personagens. In: O universo do romance. 
Trad.: José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976. 
FARIAS, Sônia L. Ramalho. Budapeste: as fraturas identitárias da ficção.In: 
FERNANDES, Rinaldo de. (org). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 
2004. 
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa.Ensaio de método. Lisboa: Arcádia, 1979. 
GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2 ed. São 
Paulo: Paz e Terra, 1996. 
JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In:Lingüística e 
comunicação.Trad. IzidoroBlikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 63-
72. 
LEITE, Lígia Chiappini. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1993. 
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: 
Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. 
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. 
Coleção Estudos, nº 93. 
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 38ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1981. 
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance.Trad. Ângela Bergamini et al. São 
Paulo: Martins Fontes, 1995. 
 
Filmografia 
 
HIRSZMAN, Leon. São Bernardo. 1973. 
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
ZOLIN, Lúcia Osana. A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mu-
lheres. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 9, Julho 2011.[http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br]
A construção dA personAgem femininA nA literAturA 
brAsileirA contemporâneA (re)escritA por mulheres
Lúcia Osana Zolin*
Resumo 
Nos últimos anos, tem se tornado recorrente, no campo da literatura, a prática da reescrita de textos 
literários canônicos a partir de múltiplas perspectivas, como as que se empenham em salientar as di-
ferenças de gênero, de raça e de classe social. No contexto dos estudos sobre literatura de autoria femi-
nina, trata-se de uma tendência, de fato, importante, já que se caracteriza pela produção de um texto 
novo e autônomo que denuncia a alteridade do/a oprimido/a, no caso, a mulher, e promove o desnu-
damento de sua identidade. Ana Maria Machado, em A audácia dessa mulher (1999), num interessante 
diálogo com Dom Casmurro, de Machado de Assis, reescreve a trajetória de Capitu. Do mesmo modo, 
Nélida Piñon, em Vozes do deserto (2003), reescreve a história de Scherezade, personagem de As mil e 
uma noites, coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana. Se, nos textos originais, 
essas personagens não têm voz, nas referidas reescritas, elas são construídas imbuídas do direito de 
falar. É dessa questão que nos ocupamos neste artigo, amparados por teorias críticas feministas.
PalavRas-chave: personagem feminina, autoria feminina, reescrita.
abstRact 
In recent years,the rewriting of canonical literary texts from a variety of perspectives highlighting 
differences in gender, race and class has become frequently utilized. This fact constitutes an important 
trend within the context of literature written by female authors, characterized by a new and indepen-
dent text that denounces the alterity of the oppressed, precisely women, and triggers the revealing of 
their identity. The author of A audácia dessa mulher (1999), Ana Maria Machado, rewrites Capitu’s 
trajectory in a very interesting dialogue with Machado de Assis’s Dom Casmurro. Further, in Vozes 
* luciazolin@yahoo.com.br
Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual 
de Maringá.
SEMANA 5 - TEXTO BASE 1
gusta
Máquina de escrever
https://doi.org/10.35520/diadorim.2011.v9n0a3923
96A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres.
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
do deserto (2003), Nélida Piñon rewrites Scherezade’s story, a character of the Arabic (of Persian and 
Hindu origin) narrative, The One Thousand and One Nights. Although in the original stories the fe-
male characters lack their voices, in the rewritten novels they are constructed as characters with the 
right of speak. Foregrounded by Feminist Critical Theory, the current research deals with the above-
-mentioned issues and strategies.
KeywoRds: female characters, women writers, rewriting.
 O modo de construção da personagem feminina em textos literários escritos por mulheres 
nos últimos anos (década de 1990 em diante) aponta para uma tendência que, se não surpreende 
efetivamente as/os estudiosas/os acostumadas/os às abordagens feministas da literatura, certamente 
surpreende o leitor familiarizado com a representação de imagens recorrentes de mulher na tradição 
literária, construídas de modo a repetirem ad infinitum os discursos historicamente edificados ao seu 
redor (Scholze, 2002).
 Assim, elegendo o corpus constituído pelos romances A audácia dessa mulher (1999), de Ana 
Maria Machado, e Vozes do deserto (2004), de Nélida Piñon, tratamos de demonstrar que, ao invés de 
aparecerem enredadas nas relações de gênero, desempenhando papéis sociais que as identificam como 
mulheres-objeto, as personagens femininas protagonistas dessas narrativas são construídas como mu-
lheres-sujeito, capazes de traçarem os rumos da própria trajetória e desafiarem as manifestações de 
poder de ideologias semelhantes à patriarcal que, embora não mais encontrem espaço em certos seg-
mentos da nossa sociedade, ainda são dominantes em outros.
 Partindo do clássico estudo de Elaine Showalter, A literature of their own (1985), Elódia Xavier, 
em A hora e a vez da autoria feminina: de Clarice Lispector a Lya Luft (2002), traça o perfil da trajetória 
da literatura de autoria feminina no Brasil, já apontando essa especificidade nas obras publicadas a 
partir da década de 1990. Se a literatura produzida nos primórdios dessa tradição reduplica os padrões 
ideológicos referentes ao modo de a mulher estar na sociedade, a produzida a partir de meados do sé-
culo passado até os anos 80 põe em discussão as relações de gênero, promovendo o desnudamento e a 
consequente desestabilização da opressão feminina. Já a partir dos anos 90, o modo como os conflitos 
dramáticos passam a ser solucionados apontam para uma terceira etapa da referida trajetória, na qual 
as personagens são construídas de modo a agregarem novas identidades que, por si, apregoam o declí-
nio da ordem patriarcal.
 Os textos de Ana Maria Machado e de Nélida Piñon, objetos desta discussão, integram as narrati-
vas dessa última fase, sendo que talvez até pudéssemos pensar em classificá-los em um quarto momento, 
97
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
já que a mudança de rumo em relação aos papéis representados pelas suas protagonistas não são verificá-
veis apenas no modo como são solucionados os conflitos; aparecem já desde o início de suas trajetórias.
 Ressaltamos, todavia, que se trata de textos marcados por esta peculiaridade de trazerem à 
tona figuras femininas libertárias, mas que diferem de outros do gênero na medida em que foram 
construídos a partir de narrativas do passado, nas quais suas protagonistas oprimidas pelo sistema 
patriarcal trilhavam caminhos bem diferentes. Trata-se da estratégia da reescrita.
 No âmbito dos estudos pós-coloniais, a reescrita consiste em uma estratégia bastante recorren-
te com a qual se pretende edificar uma visão crítica acerca de determinado corpus literário e da ideolo-
gia que subjaz a ele. Em O pós-colonialismo e a literatura (2000), Bonnici define a reescrita como uma 
estratégia em que “o autor se apropria de um texto da metrópole, geralmente canônico, problematiza a 
fábula, os personagens ou sua estrutura e cria um novo texto que funciona como resposta pós-colonial 
à ideologia contida no primeiro texto” (p. 40). Um dos exemplos citados pelo crítico é Wide sargasso 
sea (1966), da escritora caribenha Jean Rhys, romance que se apropria da história contada por Charlot-
te Brontë no clássico Jane Eyre (1847) para, então, recriá-la, salientando questões de gênero, racismo, 
escravidão e colonialismo, as quais não são problematizadas no texto original.
 No âmbito da literatura brasileira de autoria feminina, a estratégia da reescrita tem sido, não 
raramente, utilizada pelas escritoras brasileiras numa atitude de reinvenção, que põe em relevo o modo 
de construção e representação do universo da mulher. É o caso dos romances A audácia dessa mulher 
e Vozes do deserto.
 O primeiro consiste em um texto em que, em meio à teia narrativa que se desenvolve em torno 
da trajetória da audaciosa Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no finalzinho do sé-
culo XX, a autora reescreve e/ou reinventa a trajetória de Capitu, a protagonista de Dom Casmurro, de 
Machado de Assis.
 Se as leituras mais ingênuas desse clássico romance oitocentista giram em torno da polêmica 
da culpa ou da inocência de Capitu, uma das personagens femininas mais discutidas da literatura 
brasileira, as leituras mais lúcidas enfatizam a questão do ciúme de Bentinho e a consequente impossi-
bilidade de o leitor ter certeza se ele foi ou não traído pela mulher com seu melhor amigo. Isso porque 
o romance é narrado em primeira pessoa pelo próprio Bentinho, enlouquecido de ciúme, quando ele 
já se encontrava na velhice, visceralmente mergulhado na solidão e na sua casmurrice. Consequente-
mente, Capitu é silenciada, tal estratégia narrativa não lhe permite expressar seu ponto de vista, ainda 
que matizado pelas tintas da ideologia oitocentista.
 Trata-se, talvez, do mais clássico exemplo, no âmbito da literatura brasileira, do que Bourdieu 
(2005) chama de “dominação masculina”, uma estrutura social estabelecida ao longo da história da 
98A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres.
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
humanidade e “naturalizada” de acordo com os interesses da ideologia dominante responsável por 
sua construção, na qual a figura masculina impõe seu desejo, suas regras, seu pensamento que, via de 
regra, submetem a mulher, desconsiderando-lhe a capacidade de discernimento acerca dos valores cir-
cundantes. Segundo o sociólogo, “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa 
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em 
discursos que visem legitimá-la” (p. 18).
 Os códigos sociais, portanto, ao alicerçarem-se sobre a dominação masculina, ratificam-na, 
entre outros fatores, por meio da divisão social/sexual do trabalho, da divisão social/sexual do espaço 
(rua/casa), da estruturação do tempo em constantes momentos de ruptura masculinos e longos perío-
dos de gestação/amamentação/educação femininos.São princípios como esses, de visão e divisão sexualizantes, que regem o modo de o narrador-
-protagonista de Dom Casmurro se relacionar com a mulher e impor a ela e ao seu destino sua visão de 
mundo. As críticas mais comuns, empreendidas pelos estudos contemporâneos de gênero, ao autor do 
romance se concentram no fato de ele ter construído a Capitu silenciada, sem vez e voz, bem aos moldes 
da ideologia patriarcal, que defendia a subjugação e o emudecimento da mulher. A Capitu acusada de 
adultério pelo marido, por meio de um discurso jurídico e, como tal, manipulador, é exilada com o filho 
na Suíça, onde morre na solidão e no abandono, sem direito à defesa. Daí a pergunta mais recorrente: 
quais seriam os contornos de Capitu senão aqueles que lhe conferem a ótica do marido-advogado?
 Ana Maria Machado, imbuída da crença de que “os livros continuam uns aos outros, apesar de 
nosso hábito de julgá-los separadamente” (1999, p. 185), retoma a trajetória de Capitu, recriando-lhe 
os contornos, reinventando-lhe os caminhos percorridos durante o casamento com Bentinho e após 
seu exílio na Suíça. O argumento central da retomada dessa história é o “cadernão da Lina”, um misto 
de caderno de receitas e de diário íntimo que, após ter passado por diversas gerações de mulheres, du-
rante mais de um século, chega às mãos de Beatriz, a protagonista do romance, acompanhado de uma 
carta assinada por Maria Capitolina. A estratégia do livro consiste, portanto, em fazer com que Capitu, 
a personagem de ficção machadiana do século XIX, seja reconhecida por Beatriz, personagem de ficção 
ambientada no final do século XX, como uma mulher real que, apesar de ter sido também personagem 
de Machado, existiu de fato.
 Desse modo, está construída uma situação narrativa que permite à escritora, no limiar do 
século XXI, de posse de todas as conquistas viabilizadas pelo feminismo em relação ao modo de estar 
da mulher na sociedade, engendrar uma narrativa que funciona como resposta feminista à ideologia 
patriarcal que subjaz à construção de Dom Casmurro. É dentro desse espírito e/ou desejo de dar pros-
seguimento às narrativas de outros tempos, as quais de um jeito, ou de outro, refletem a sociedade da 
época, que os caminhos que teriam sido trilhados por Capitu, e que não caberiam no campo de visão 
do narrador Dom Casmurro, são iluminados. Tudo o que não foi dado ao leitor do romance original 
saber sobre essa intrigante personagem feminina, a quem Machado não deu voz, sendo-lhe o perfil 
filtrado pela ótica do marido ciumento, é permitido conhecer agora.
 A carta destinada a Sancha, que acompanha o caderno de receitas, enviada quarenta anos após 
Capitu ter partido para a Suíça, revela o fato de ela ter presenciado, na véspera da morte de Escobar, a 
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Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
comprometedora troca de olhares entre o marido e a melhor amiga. Essa revelação, que inverte a situa-
ção básica do romance oitocentista, já que Capitu passa de adúltera para vítima de traição, desencadeia 
uma série de outras situações que funcionam como respostas às lacunas deixadas no texto original em 
relação ao comportamento da protagonista: 1) em face da confissão de adultério do marido, a decisão 
da separação é dela; 2) a semelhança entre Ezequiel e Escobar, com o tempo, desaparece, dissipando 
as dúvidas acerca de sua paternidade; 3) ela responde à situação disfórica com a “audácia de se parir 
novamente” (Machado, 1999, p. 199).
 É fundamental nessa reescrita o fato de Capitu ser capaz de reinventar, a partir do nada, uma 
nova vida e dar sentido a ela. Apenas aparentemente ela cumpre a sina da mulher adúltera que, após 
ser desmascarada, morre na solidão e no abandono como forma de purgar seus pecados. Na verdade, 
ela ignora o rótulo de “fêmea infiel” e constrói uma vida digna a partir de seus próprios méritos. O fato 
de ter abandonado o apelido de menina e passado a usar a outra metade do nome, Lina, numa atitude 
de Fênix, aponta para sua capacidade de engendrar a própria história, independentemente das adver-
sidades impostas a seu sexo pelo pensamento patriarcal.
 Ganha relevo, nessa nova trajetória que Ana Maria Machado confere a Capitu, em que o ele-
mento “parir-se novamente” é central e decisivo, o fato de esse ato ser sustentado por dois pilares 
fundamentais: a conquista da vida profissional e o desejo de mulher de redefinir os papéis sociais que 
representa. No que diz respeito ao primeiro, a vida profissional que vai aos poucos conquistando lhe 
viabiliza a independência definitiva: ela passa de ajudante de cozinha, em uma pensão, para camareira, 
depois para governanta e, finalmente, para proprietária. Isso lhe garante o direito de cortar os laços 
que a ligam ao marido opressor e à “escravidão branca” que encontrava na mulher do tempo seu objeto 
(Lima, 1981). Em relação ao segundo pilar referido, não se pode deixar de considerar que, embora a 
reescrita da trajetória da personagem machadiana lhe preserve a ambientação no século XIX, ela se 
concretiza dentro de um outro contexto. Trata-se de uma homenagem a Machado de Assis, no ano do 
centenário da publicação de Dom Casmurro, realizada em um momento em que é visível na literatura, 
sobretudo na literatura de autoria feminina, a representação da nova situação da mulher na sociedade, 
viabilizada pelo feminismo.
 Num certo sentido, também o romance de Nélida Piñon, Vozes do deserto, publicado em 2003, 
inscreve-se nessa estratégia narrativa da reescrita. Em homenagem aos contadores de histórias e à ci-
vilização árabe, a escritora construiu o livro sobre Scherezade, a protagonista de As mil e uma noites, 
coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana, escrita presumivelmente entre os 
séculos VIII e IX por autores anônimos.
 O texto original gira em torno da história do poderoso e perverso rei Schariar que, tendo sido 
traído pela Sultana com um escravo negro, vingava-se das mulheres, casando-se diariamente e fazendo 
matar a esposa na manhã seguinte. Assim procede até o Vizir, não encontrando mais “candidatas” ao 
100A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres.
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
posto, ver-se obrigado a entregar-lhe a própria filha, Scherezade, que aceita, mas pede à irmã que a 
acompanhe e que lhe peça à noite para contar uma história. Graças a seus contos, interrompidos pela 
manhã, no momento mais interessante, safa-se da morte e termina como rainha, mãe dos filhos do rei.
 O texto de Piñon desenvolve-se em torno desse mesmo argumento inicial, com a diferença de 
que é a própria Scherezade que, contrariando a vontade do pai, se oferece para o posto, imbuída da 
missão de livrar as mulheres do reino do despotismo do Califa. Também a narrativa em si é construída 
sobre bases completamente diferentes: o leitor não tem acesso às histórias narradas pela protagonis-
ta; ao invés de trazê-las para a cena principal, como no texto original, a escritora põe em evidência o 
mundo interior de Scherezade e das demais personagens femininas envolvidas na trama. É dado ao/a 
leitor/a o privilégio de conhecer o seu modo de olhar a realidade circundante, bem como os contornos 
de seu caráter, de seus valores e, sobretudo, os detalhes de seus projetos. Assim, se a primeira Schere-
zade, retratada de fora, harmoniza com sua origem na remota civilização oriental de séculos passados, 
que, além de objetificar, silenciava a mulher, a Scherezade de Nélida Piñon se mostra ao/a leitor/a. Ao 
“mostrar-se”, torna-se bastante condizente com o modo de estar da mulher na sociedade de um tempo 
marcado pela revisão de valores que inclui, entre muitas coisas, a valorização do universo feminino e 
o desnudamento das formas veladas de poder que, de uma maneira ou de outra, suas atitudes sempre 
permitiram inferir.
 A trajetória de Scherezade, em Vozes do deserto (2003), embora se cumpra no contextoem que 
fora concebida originalmente, traz em si as marcas da revolução feminista responsável por assinalar o 
fim do patriarcado. Na contramão de certo “rumo equivocado” que, segundo a teórica francesa Eliza-
beth Badinter (2005), setores do feminismo têm assumido na atualidade, tendo em vista se dispersa-
rem da meta fundamental do movimento – a da igualdade entre os sexos –, para, no lugar, proporem 
a melhoria das relações entre eles, Piñon rejeita a estratégia da vitimização feminina. A protagonista 
do romance, antes de se colocar como vítima indefesa nas mãos do Califa predador – protótipo da 
dominação masculina referida por Bourdieu (2005), tanto quanto o é o narrador de Dom Casmurro 
–, é construída como guerreira e estrategista; capaz de valorizar as armas de que dispõe e se lançar na 
conquista da libertação de seu sexo.
 Para melhor traçar os contornos do modo como Piñon representou a mulher na figura dessa 
curiosa personagem feminina resgatada da literatura árabe, pareceu-nos importante perscrutar o diá-
logo que se estabelece entre o seu modo de construção e o do Califa.
101
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
 Apesar de estar ambientada em um contexto que toma como natural a objetificação da mulher, 
a Scherezade de Piñon soma à capacidade de narrar e de manipular dissimuladamente da Scherezade 
original a educação esmerada que recebera, a vivência da vida prosaica experimentada nas ruas de 
Bagdá e, sobretudo, a lucidez em relação à problemática em que voluntariamente se envolvera. Ela 
parece se saber capaz de vencer o Califa de antemão, a despeito do medo, da angústia e do cansaço que 
permeiam as suas ações.
102A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres.
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
 Apesar de estar ambientada em um contexto que toma como natural a objetificação da mulher, 
a Scherezade de Piñon soma à capacidade de narrar e de manipular dissimuladamente da Scherezade 
original a educação esmerada que recebera, a vivência da vida prosaica experimentada nas ruas de 
Bagdá e, sobretudo, a lucidez em relação à problemática em que voluntariamente se envolvera. Ela 
parece se saber capaz de vencer o Califa de antemão, a despeito do medo, da angústia e do cansaço que 
permeiam as suas ações.
 A habilidade com que planeja cada palavra com que tece as narrativas que encantam o sobe-
rano, com que confere cada gesto às personagens e lhes decide o destino, com que interrompe ou dá 
continuidade às histórias convida o/a leitor/a a relativizar os conceitos estabelecidos no contexto da 
dominação masculina que, tradicionalmente, marca a relação entre os sexos e que confere à mulher a 
pecha de objeto/dominada/oprimida e, ao homem, a de sujeito/dominador/opressor (Bourdieu, 2005). 
À medida que a narrativa vai se desenvolvendo, os papéis vão se invertendo ou, pelo menos, perdem 
essa configuração rígida. Se ela é prisioneira dele, não podendo se ausentar dos limites da alcova e ten-
do a cada manhã a ameaça de ter a cabeça cortada, ele também se faz prisioneiro de seus contos.
 Na verdade, sob a aparência do soberano perverso e opressor, que encontra na memória da 
“insultuosa luxúria” da Sultana a mola propulsora de seu ódio e sentimento de vingança contra as 
mulheres, subjaz a figura de um homem atormentado com a humilhação imposta por essa esposa 
que, embora morta, lhe povoa a lembrança com atitudes arrogantes, blasfemando contra a inexorável 
sentença que lhe impusera a morte: “Em nome de que poder o Califa arroga-se o direito de puni-la 
simplesmente por desfrutar do gozo que encontra nos braços suados e exuberantes de seus escravos?” 
(p. 135). Trata-se, certamente, da “lei social incorporada”, referida por Bourdieu, que remete à neces-
sidade de validação da virilidade pelos outros homens: matar a mulher que ousou se deitar com um 
reles escravo seu, bem como matar todas as mulheres com quem vem a se casar, após esse lamentável 
episódio, logo na manhã seguinte às núpcias, implica manter-se digno de certa ideia de homem erigida 
sobre os alicerces do pensamento patriarcal.
 Em função, talvez, dessa situação que lhe rouba a ilusão de imortalidade e lhe relativiza o 
poder, realçando-lhe a solidão e o sentimento de perda das pequenas alegrias, as aventuras narradas 
por Scherezade ganham relevo. O prazer advindo delas abranda-lhe o coração, conferindo-lhe certo 
conforto para o espírito. É como se mediante identificação com personagens como Ali Babá e Aladim, 
que povoam os enredos da contadora de histórias, ele se desligasse da situação de opressão imposta 
pela traição referida. Daí, cada vez mais, sentir-se atado pela teia narrativa de Scherezade; daí, também, 
adiar a cada dia sua execução, contrariando as leis do califado, até, por fim, reavaliá-las e admitir o 
equívoco de que a morte das esposas lhe traria paz e lhe redimiria da humilhação. Os excertos, a seguir, 
103
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
ilustram esse momento da sua trajetória e salientam o processo de transformação por que passa em 
relação ao modo de olhar o universo feminino:
Graças às filhas do Vizir e à escrava Jasmine, ia ele decifrando devagar os risos 
destituídos de sentido que surpreendia a qualquer hora do dia nas mulheres. Uma 
espécie de alegria que lhes permitia colocar à margem uma realidade cujos funda-
mentos dramáticos feriam seu corpo e sua dignidade.
(...) Pela primeira vez o Califa admitia para si mesmo já não prescindir da fortaleza 
moral advinda daquelas mulheres. Ou da arguta montagem tão natural daquela 
espécie. Naqueles dias calorentos, que lhe devolviam suor e incertezas, o soberano 
parecia resignar-se que simples fêmeas, presas aos aposentos, lhe guiassem os pas-
sos, ditassem regras (p. 304).
Ouviu a história de Scherezade com a curiosidade de sempre. Um prazer que lhe 
vinha de tal modo abrandando o coração que se viu tentado a confessar-lhe, pouco 
antes de amanhecer, enquanto ela ainda lhe falava, que, a partir daquela noite, es-
taria dispensada de seu veredicto. Isto é, não haveria castigo para ela. Estava livre 
para deixá-lo, seguir para onde quisesse, levando consigo a garantia de nunca mais 
punir uma jovem de Bagdá (p. 341).
 O que se constata, portanto, é que Scherezade atingiu o seu intento. O Califa déspota e in-
sensível que prazerosamente valia-se de seu poder de monarca para aniquilar as mulheres com quem 
se relacionava, numa atitude de vingança contra a traição que lhe foi impingida por uma delas, não 
existe mais. Por meio de suas narrativas, ela o submete a um processo de humanização e sai vencedora. 
Mediante a vivência de outras experiências a ele permitidas pelo império narrativo de Scherezade, o 
fantasma da sultana desaparece e lhe ocorre “a superação da agonia de punir as mulheres” (p. 341).
 Em face dessas considerações, é imperiosa a constatação de que a Scherezade construída por 
Nélida Piñon, e desnudada aos olhos do leitor pelo/a narrador/a onisciente, tem o controle do próprio 
destino. Se, em certos momentos de sua trajetória, ela se angustia com a possibilidade de ter o projeto 
desmascarado pelo “soberano” e, consequentemente, a cabeça entregue ao carrasco, na maior parte do 
tempo, tem consciência de que, ainda que deseje, o Califa é incapaz de vasculhar os seus segredos, de 
decifrar-lhe as intenções. Ela sabe, exatamente, aonde vai chegar. Tanto é assim que, se para atingir sua 
meta é preciso entregar-lhe o corpo, ela o faz, mas preserva a alma. Isso implica dizer que, ao não se 
envolver emocionalmente com o Califa, nem se permitir o prazer sexual, apesar do clima de erotismo 
104A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres.
Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011.
que serve de cenário à sua empreitada, ela se mantém inabalada. E,tão logo, percebe que alcançara 
o objetivo, ou seja, quebrara no Califa a vontade de fazer das mulheres de Bagdá suas vítimas, ela vai 
viver outras aventuras, quem sabe, até, amorosas.
 Conforme mencionamos no início de nossas considerações, tendo em vista o modo de repre-
sentação da mulher em cada uma das etapas da trajetória da literatura de autoria feminina brasileira, 
identificadas por Xavier (2002), as protagonistas dos romances A audácia dessa mulher e Vozes do 
deserto evocam imagens de mulher que excedem o script básico das representações mais recorrentes 
do feminino. Tanto a Scherezade criada por Piñon, quanto Lina (além da jornalista Beatriz Bueno que 
não enfocamos neste estudo), da narrativa de Ana Maria Machado, obedecem a uma outra lógica: a da 
superação da representação de papéis tradicionais.
 Parece que ambas as escritoras, ao adentrarem a seara da reescrita, mais comumente visitada 
por pós-colonialistas interessados em subverter as bases literárias, os valores e os pressupostos históri-
cos de obras canônicas/metropolitanas, deixam no leitor a sugestão de que subjaz a livros como esses, 
erigidos sobre bases indubitavelmente feministas, um desejo de contribuir para com a subversão de 
fórmulas recorrentes e reducionistas relacionadas ao modo de compreender e representar o universo 
feminino. Trata-se, talvez, de promover, por meio da reincidência da palavra escrita, a substituição 
da degradação da mulher, cometida por ideologias como a patriarcal e reproduzida na literatura, por 
esquemas femininos de atuação mais libertários.
 Ecoando as tendências emanadas das discussões incentivadas pelo “multiculturalismo”, pensa-
mento implementado no final de século XX que tem incentivado a emergência do diferente, das vozes 
divergentes e marginalizadas, salientando os conceitos de “Alteridade” e de “O Outro”, esses romances 
focalizam personagens femininas que se negam a enquadrar-se nas hierarquias de gênero por meio 
das quais a ordem patriarcal tem garantido a perpetuação de seus ideais; num movimento contrário 
às ideologias da opressão, fazem emergir situações em que as mulheres assumem a autoria da própria 
vida. No entanto, longe de se configurarem como libelos feministas, trazem em seu bojo muito mais 
que a defesa panfletária dos direitos da mulher: trazem reflexões sobre experiências de vida e sobre os 
contraditórios sentimentos e desejos humanos; trazem, também, as lições de transcendência de que 
fala Simone de Beauvoir (1980), ligadas à liberdade de escolha e a projetos de vida incompatíveis com 
práticas sustentadas pelo autoritarismo e pela opressão. Vozes do deserto, em especial, é um romance 
erigido sobre a condição humana em geral e, de modo particular, sobre a arte da criação, da imagina-
ção, da invenção, enfim.
Artigo recebido: 20/03/2011
Artigo aceito: 30/07/2011
48
A arte do encontro: leitor e personagem
Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008
A arte do encontro: leitor e personagem.
Carlos Pinto Corrêa*
*Psicanalista. Membro Fundador do Círculo
Psicanalítico da Bahia.
Unitermos: psicanálise; obra literária;
personagem; interpretação; literatura.
Resumo
O autor focaliza a figura do personagem
na obra literária, e sua autonomia frente
ao criador que é o autor, ou frente ao
leitor, que tenta lhe impor sua
interpretação. Passando da questão
literária à psicanálise, observa que a
relação sujeito-objeto e vazio ocorre
também na literatura. Escritor e leitor
não se encontram via personagem.
Ambos seguem seu destino que
aponta para o vazio.
Quem entender a linguagem entende Deus
Cujo filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda muda,
Foi inventada para ser calada.
Adélia Prado
Sem intenção prévia, percorremos o
caminho teórico da criação literária em
uma seqüência cronológica, que diria
quase didática. Iniciamos por uma
revisão da teoria da criação (1998),
passamos ao objeto da criação (1998-
b) e chegamos ao efeito da publicação
com o desamparo do autor (2000). Para
a jornada Artes da Psicanálise,
avançando o ciclo, tomaremos a
questão do encontro do leitor com o
personagem da obra literária.
Antes de tudo se torna necessário
retirar o foco do tema da criação (obra)
ou de quem cria (autor) para focalizar
o personagem, e o estatuto de sua
existência, independente de qualquer
relação com o texto. FERRO (1999)
fez interessante abordagem lembrando
um importante diálogo entre dois
personagens de A Ilha do Tesouro.
Silver temendo a raiva do Capitão
Smollet, se defende dizendo: "eu sou
apenas um personagem de um conto
sobre o mar. Eu não existo". Na
verdade, ao tentar negar, mostra de
forma inequívoca e paradoxal a
realidade de sua existência.
O personagem tem um estatuto
fortemente realístico. Sua credibilidade
depende da coerência de seus
pensamentos e ação com as pessoas
que o leitor traz em sua mente. Ele
deve se situar em diferenças que o
torne particular ou original, mas deve
possuir algo universalizado no que
pensa ou fala e na sua história. A
ligação entre os personagens em suas
relações recíprocas marca os
parâmetros que dão o sentido do existir
para o leitor. Quando Silver diz ser
apenas um personagem, além de estar
absolutamente consciente de que é um
sujeito, está insurgindo contra seu
criador e tenta passar de criatura a
autor para o próprio autor. Este
simples diálogo nos propõe três
questões:
1 - O personagem possui vida
autônoma?
2 - Mesmo depois de criado, o
personagem permanece sendo uma
marionete ao gosto do autor?
3 - O personagem, como objeto, pode
ser completamente manipulado pelo
leitor?
Quando se inicia a leitura de um texto
o personagem é incógnito e o leitor
pode escapar do que este lhe sugere,
abandonando a leitura. Prosseguindo
no texto, quanto mais o leitor tenta
apreender para dominar o personagem,
mais ele escapa e o verdadeiro sentido
da escrita pode se perder. Podemos
fazer uma analogia proposta por
BARTHES (2003), dizendo que o bom
leitor precisa, em princípio, aceitar sua
ignorância expressa em relação do
incognoscível: "Que quero eu afinal, eu
quero conhecer você?" Na leitura, este
outro que é o personagem não reage
às minhas provocações. Assim, "o
meu outro se definiria apenas pelo
sofrimento ou pelo prazer que me
proporciona", de outro modo diria que
o personagem vale pelo que é capaz
de me colocar frente ao meu desejo.
Literariamente, personagem é a
"pessoa que é objeto de atenção por
suas qualidades, posição social ou por
circunstâncias" escreveu HOUAISS
Psicanálise e Literatura
SEMANA 5 - TEXTO BASE 2
49
Carlos Pinto Corrêa
Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008
(2001) em uma curiosa conjugação.
Freud, na Interpretação dos Sonhos,
chama de personagem as figuras
representadas que aparecem na
narração dos sonhos. Podemos pensar
também que o personagem é a
encarnação de alguém recortado da
realidade do escritor, que se torna uma
espécie de espelho da realidade com
a qual o leitor se defronta. Ele está
situado entre o escritor e o leitor.
Mesmo tendo sido inventado pelo autor,
o personagem aparece como figura
independente do seu criador e tem vida
própria entre seus pares. Esta
condição mantém sua autonomia frente
ao leitor que vai buscar nele uma
existência real. Na narração literária ele
se torna o elemento fundamental que
regula a coesão do texto, permitindo
que a narrativa seja legível.
A coerência do texto nos leva,
entretanto, a repensar até que ponto a
autonomia do personagem se impõe a
compreensão do leitor. De outro modo,
se sua soberania ditatorial poderia
anular escritor e leitor em nome de sua
sobrevivência. Em posição oposta,
alguns críticos defendem a primazia do
leitor que teria ampla liberdade de
interpretação sobre o que lê, havendo
ainda os que garantem a imposição do
escritor diretamente sobre o leitor,
transformando o personagem apenas
em um intermediário manipulado. Esta
questão é o cerne de uma polêmica
entre ROTY (1989) e Umberto ECO
(1990). O primeiro, simplificando a
questão,afirma que qualquer tipo de
leitura de um texto literário é
perfeitamente legítima, porque o texto
é, por si só, um esboço que necessita
ser integrado e feito viver, seja como
for. Eco se opõe, sustentando que o
importante não é a vontade do leitor, já
que o texto tem, em sua estrutura,
determinados elementos que
autorizam uma leitura e invalidam outra.
A polêmica aponta uma verdade
impossível para a literatura, tentando
aproximação ou afastamento de uma
objetividade frente à criatura
imaginada. Como na segunda crítica
de KANT (1788), podemos também
situar o leitor entre a admiração e o
temor quando refletimos sobre o céu
estrelado acima de nós e a lei moral
dentro de nós. A reflexão é nossa, mas
a partir da escolha entre o céu ou o
interior, percorremos todas as
possibilidades, desde a idealização
suprema de um deus até o recôndito
de nossa culpa original ou da busca
do primeiro objeto perdido. Mas se
falamos de Kant, para quem o mundo
é essencialmente incognoscível,
aprendemos que nunca podemos
conhecer de fato a realidade. Levando-
se em conta a "realidade literária,"
ainda é mais difícil sustentar uma
existência do personagem
independente de quem o cria (escritor)
ou de quem o encontra (leitor).
O personagem é este outro que faz o
sujeito crer e também mentir. A
narração trata de uma história
acontecida que é revista no presente
com a leitura, ocasião em que o
personagem adquire o fórum de real
(realidade), mas aos olhos de quem
lê, qualquer discordância pode mostrar
que o personagem mente. LACAN
(1955/56) no seminário 3 mostra que
a fala de sujeito a sujeito é uma fala
que pode enganar, mas que há também
algo que não engana. A descoberta do
engano no personagem impõe ao leitor
a descoberta em si de algo que não
engana. Lacan nos diz que não é de
realidade que se trata no psicótico,
mas da certeza. Parafraseando,
diríamos que na literatura o
personagem não tem compromisso
com a realidade, mas a sua certeza
impõe ao leitor a noção de realidade,
mesmo quando sabe tratar-se de uma
história de ficção.
Na verdade, a literatura escorre no
campo do imaginário, inicialmente na
criação do autor, com quem os
significantes guardam uma conexão
inconsciente. Na obra literária os
personagens adquirem sua vida própria
e até mesmo em obra autobiográfica,
a escrita é na verdade o lugar em que
se fala da falta, como uma das
maneiras de passar pela castração. E,
este sujeito (autor) "às vezes fala de
forma não-sabida por ele mesmo, já
que o sujeito sempre diz mais do que
pensa ou pretende" BRANDÃO (2001).
Se o personagem vai além do autor e
se apresenta ao leitor como uma
realidade nova, o imaginário do leitor
vai recortar o que lê, produzindo novas
conexões com os significantes
encontrados. A recriação do
personagem pelo leitor, mesmo sendo
uma construção inicialmente
imaginária, não pode ser tomada como
arbitrária. Na leitura, o personagem
pertence a quem lê, desvinculado de
sua origem. O autor entra em cena
quando o personagem mente e marca
um corte no imaginário do leitor que
vai tentar uma nova verdade,
provavelmente na busca do equívoco.
Cito a interessante posição de um
colega psicanalista que terminando a
leitura de Abismos (1998-b), me
telefonou indignado com o destino que
eu dera a André. Durante algum tempo,
a cada encontro nosso reclamava com
ênfase que eu não tinha o direito de
ter escrito aquele final. O personagem
o tocara como ex residente em Paris.
Ele convivera com o romance escrito,
até que o acontecimento inconcebível
no seu imaginário o remetera ao autor,
como se ainda fosse possível modificar
seu destino. Sartre (1963) em Os
dados estão lançados, descreveu
interessante situação de
inconformismo do personagem que
insiste por uma chance de ter uma vida
menos desastrada. Pedro e Eva pedem
a Deus, metáfora do autor, que em
princípio seria o senhor da vida e morte
do personagem, que sabendo do final,
pudessem tentar que tudo fosse
diferente para triunfo do amor e da
felicidade. Com a aceitação de Sartre,
ou de Deus, novas esperanças
surgem. Pedro e Eva tentam por vias
diferentes, mas as ciladas do destino
conduzem a uma repetição trágica do
mesmo fim. Por possuir vida própria, o
personagem deve cumprir seu destino
muitas vezes até contrariando o
imaginado poder supremo do autor.
 É verdade que "o autor constitui o
momento forte da individuação na
história das idéias, dos
conhecimentos, das literaturas, na
história da filosofia também e na das
ciências", disse FOUCAULT (1969),
mas falou também no apagar das
marcas demasiado visíveis do autor.
Desde Mallarmé, o desaparecimento
do autor se tornou uma exigência para
anulação dos privilégios que ele
possuía no século XIX, quando sua
palavra era lei. Desaparecendo na obra,
o autor deixa um espaço vazio, uma
lacuna como outras fissuras da
50
A arte do encontro: leitor e personagem
Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008
literatura que nos possibilita perscrutar
os espaços e funções livres. A
ausência do autor anula o espaço do
mestre que ocupava na literatura antiga
e remete o leitor ao vazio, ou à sua
falta.
A tentativa de se estabelecer uma
ponte entre o leitor a o escritor,
retirando do personagem sua
autonomia, tem sido freqüente na
crítica e na crônica literária. Machado
de Assis, nosso escritor mais
estudado, é repensado através de seus
personagens, do mesmo modo que
estes são examinados e analisados na
busca de suas vinculações genéticas
com o pai. Ele é reconhecido,
freqüentemente, como pessimista, um
clichê que reduz a complexidade da
leitura e entendimento de seus textos.
Machado afirma: "o que faz do meu
Brás Cubas um autor particular é o que
ele chama rabugens do pensamento",
e mais adiante, assumindo-se como
autor: "Escrevi com a pena da galhofa
e a tinta da melancolia". Aqui é o autor
quem se revela, mas o que fala do
personagem não é o que qualquer leitor
pensa a respeito. Há possivelmente
quem não concorde e até possa se
assustar com o que diz o criador: o
leitor não se obriga a concordar com o
autor, sua autoridade foi esgotada no
momento da publicação em que
entregou sua obra ao editor.
Pode-se pensar que o personagem
ocupa posição privilegiada na relação
de encontro dos sujeitos - autor-leitor
com seu objeto e suas faltas. Do ponto
de vista do autor, o personagem se
torna um significante em uma cadeia
que aponta para um real oculto na
obra literária. Do ponto de vista do leitor,
este mesmo personagem é um
significante de quem lê. Destituído de
objetividade, o personagem faz um
semblante que possibilita sua
apreensão de tantos modos quantos
são os leitores e irá sempre apontar
para o vazio (sem resposta) do
escritor.
Seria interessante acrescentar a
diferença entre os conceitos lacanianos
de letra e significante, que permitem
pensar a escrita ou o ato de escrever,
como produtores de uma forma
material, concreta, na escavação de
um real que aparece no local do
impossível, "neste lugar resistente de
toda significação prévia, onde alguma
coisa de legível fecha" (BRANDÃO,
2001).
 A partir do seminário Livro 4 de Lacan
(1957), capítulo sobre o véu, podemos
ousar uma representação esquemática
do que foi dito. Entre o sujeito e o
objeto surge o véu como ídolo da
ausência. Aí está o sujeito, o objeto,
e este mais além que é o nada.
Tomando o escritor como o sujeito, e
como na relação literária, o
personagem como o objeto, este
aponta para o nada, como acontece
com a obra publicada.
 Véu
 /////
Sujeito--------- \\\\\ ---- Objeto --------------->
 ///// VAZIO
ESCRITOR \\\\\ PERSONAGEM ------>
Em seguida, o leitor, tantas vezes
apontado em trajetória oposta ao
caminho do autor, deverá ser
repensado. Tomando o mesmo
esquema do véu, o leitor como sujeito,
terá também como objeto o
personagem, que é uma criação sua,
diferente daquilo que o autor concebeu,
mas do mesmo modo, aponta para o
vazio.
 Véu
 //////
Sujeito Virtual ----- \\\\\ ------ Objeto ------------->///// VAZIO
 LEITOR \\\\\ PERSONAGEM------->
 O esquema mostra que na verdade,
autor e leitor, seguindo a trajetória do
personagem, encontram o vazio. A
literatura, morada da escrita e do
sujeito, acolhe as manifestações da
subjetividade, lugar de encenação
possível do desejo impossível,
deslizante metonímico. O sujeito
escreve para quem sua escrita marca
um encontro faltoso com o real, ou
ponto de ancoragem para o seu
desamparo.
51
Carlos Pinto Corrêa
Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008
A partir da melhor localização do
personagem, estamos questionando o
tipo de encontro possível na literatura
e, parafraseando Vinícius de Morais,
diríamos que a literatura é a arte do
encontro embora haja tanto
desencontro pelas letras. Falamos do
desamparo do escritor pela publicação
de sua obra e agora chegamos ao
desamparo do leitor conduzido pelo
personagem.
Continuando o poema de Adélia Prado:
A palavra é disfarce de uma coisa
mais grave, surda-muda
Foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça,
infrequentíssimos,
Se poderá apanhá-la: um peixe vivo
com a mão.
Puro susto e terror.
REFERÊNCIAS
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Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971.
BARTHES, Rolan. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BRANDÃO, Ruth Silviano. A Vida Escrita: Os Impasses do Escrever. Rio de
Janeiro: Imago, 2001.
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Tema da Criação e Psicanálise. In: Cógito, v. 2. Salvador: Círculo Psicanalítico
da Bahia, 2000.
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Porto Alegre: Unisinos,1998.
CORRÊA, Carlos Pinto. [1998 c] Abismos. Belo Horizonte: A S. Passos, 1998.
CORRÊA, Carlos Pinto. Literatura Sintoma e Desamparo. In: Estudos de
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ECO [1990] Os limites da Interpretação, São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
FERRO, Antonino. [1999] A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro:
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FOUCAULT, Michel [1969]. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 2003
HOUAISS,A [2001]. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
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KANT, Immanuel [1788]. Crítica da razão prática. In: Dicionário Oxford de
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PRADO, Adélia [1976] Antes do Nome. In: Poesia Revivida. São Paulo: Siciliano,
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RORTY, R. [1989] La filosofia dopo la filosofia. Roma: Tr. It. Laterza, 1992 ctit
Ferro [1999].
SARTRE, Jean Paul. Os Dados Estão Lançados, Lisboa: Presença, 1963.
SEMANA 6 - TEXTO BASE 1
XI Congresso Internacional da ABRALIC
Tessituras, Interações, Convergências 
13 a 17 de julho de 2008
USP – São Paulo, Brasil
 
1
Espaço e literatura: introdução à topoanálise 
Prof. Dr. Ozíris Borges Filho1 (UFTM) 
Resumo: 
O presente texto pretende apresentar os três primeiros itens da topoanálise, isto é, a análise do 
espaço na obra literária. Partimos da terminologia de Bachelard, mas ampliamos o seu alcance de 
sentido. Para nós, a topoanálise não se restringe à análise dos espaços íntimos, mas de todo e 
qualquer espacialidade representada na obra de ficção. Neste artigo, primeiramente, dissertamos 
sobre algumas das mais importantes funções do espaço. Em seguida, falamos sobre algumas das 
relações entre espaço e enredo. Finalmente, apresentamos o que a topoanálise entende por 
cenário, natureza, ambiente, paisagem e território. 
Palavras-chave: Topoanálise, espaço, cenário, natureza, ambiente. 
Introdução 
Chamamos de topoanálise ao estudo do espaço na obra literária. Retiramos esse termo do 
livro A poética do espaço de Gaston Bachelard. Segundo este autor: 
A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida 
íntima. (BACHELARD,1989, p. 28) 
Apesar de aceitarmos a sugestão de Bachelard em relação à terminologia, divergimos do 
pensador francês em relação à definição. Por topoanálise, entendemos mais do que o “estudo 
psicológico”, pois a topoanálise abarca também todas as outras abordagens sobre o espaço. Assim, 
inferências sociológicas, filosóficas, estruturais, etc., fazem parte de uma interpretação do espaço na 
obra literária. Ela também não se restringe à análise da vida íntima, mas abrange também a vida 
social e todas as relações do espaço com a personagem seja no âmbito cultural ou natural. 
Do ponto de vista de uma topoanálise, isto é, de uma teoria literária do espaço, acredito que a 
oposição entre espaço e lugar não é funcional e nada acrescenta à teoria. Ficamos com a 
conceituação clássica da teoria literária. Por isso, preferimos conservar o conceito de espaço como 
um conceito amplo que abarcaria tudo o que está inscrito em uma obra literária como tamanho, 
forma, objetos e suas relações. Esse espaço seria composto de cenário e natureza. A idéia de 
experiência, vivência, etc., relacionada ao conceito de lugar segundo vários estudiosos, seria 
analisada a partir da identificação desses dois espaços sem que, para isso, seja necessário o uso da 
terminologia ‘lugar’. Dessa maneira, não falaríamos de lugar, mas de cenário ou natureza e da 
experiência, da vivência das personagens nesses mesmos espaços. 
1 As funções do espaço 
A criação do espaço dentro do texto literário serve a variados propósitos e seria tarefa ingrata 
e fracassada separar e classificar todos eles. Entretanto, entre essas funções do espaço, poderíamos 
destacar algumas. É o que faremos a seguir. 
1.1 Caracterizar as personagens, situando-as no contexto sócio-econômico e psicológico 
em que vivem. 
Muitas vezes, mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais serão as atitudes da 
personagem, pois essas ações já foram indiciadas no espaço que a mesma ocupa. Note que esses 
espaços são fixos da personagem, são espaços em que elas moram ou freqüentam com grande 
assiduidade. 
Um exemplo clássico dessa afirmação, é a descrição que o narrador faz do quarto de Fernando 
Seixas no romance Senhora de José de Alencar. Através dessa descrição, percebemos claramente o 
SEMANA 6 - TEXTO BASE 2
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2
caráter de Seixas. É uma personagem que vive só de aparências. Aliás, o próprio narrador comenta 
esse fato. 
1.2 Influenciar as personagens e também sofrer suas ações. 
Outras vezes, o espaço não somente explicita o que é ou será a personagem. Muitas vezes, o 
espaço influencia a personagem a agir de determinada maneira. Os exemplos mais claros dessa 
relação poderão ser encontrados, na literatura brasileira, nos romances naturalistas. Exemplo dessa 
função espacial pode ser encontrado na personagem Jerônimo de O cortiço de Aluízio Azevedo. 
Vindo de Portugal, Jerônimo, no início do enredo é o mais trabalhador de todos os habitantes do 
cortiço. No entanto, com o tempo, vai sendo influenciado pelo espaço em que vive até se tornar um 
trabalhador relapso. O que era diferente vai-se homogeneizando através do espaço em que vive. 
1.3 Propiciar a ação. 
Uma função muito simples do espaço é a de propiciar a ação que será desenvolvida pela 
personagem. Nesse caso, não há nenhuma influência sobre a ação. A personagem é pressionada por 
outros fatores a agir de tal maneira, não pelo espaço. Entretanto, ela age de determinada maneira, 
pois o espaço é favorável a essa ação. Exemplificando, podemos tomar o romance O guarani. Peri, 
o protagonista do romance, vive em um espaço aberto, amplo, características que o fazem 
movimentar-se para todos os lados, correr, saltar, atirar flechas, etc. Nada disso seria possível num 
espaço fechado e restrito. Nesses casos, o espaço favoreceas ações da personagem. 
1.4 Situar a personagem geograficamente. 
Às vezes, o espaço assume uma função denotativa. Nesses momentos, o espaço é meramente 
factual, pobre, por assim dizer, na medida em que não possibilita uma imbricação simbólica com as 
personagens. Em outras palavras, não há nenhuma relação de pressuposição entre personagem, 
espaço e ação. A função do espaço é apenas dizer onde está a personagem quando aconteceu 
determinado fato. Por exemplo, suponhamos um caso de demissão do trabalho. A personagem é 
descrita numa sala em que se encontra o patrão. A personagem sai e é só isso. A sala, de modo 
algum, caracteriza a personagem. Não há outra função dentro da narrativa a não ser a de informar 
onde o fato aconteceu. Nenhum aspecto simbólico, psicológico ou social povoa o espaço. Apenas o 
evento em si importa, o espaço é inteiramente denotado. No entanto, esses espaços são importantes 
na arquitetura geral da obra. 
1.5 Representar os sentimentos vividos pelas personagens. 
Esses não são espaços em que a personagem vive, mas são espaços transitórios, muitas vezes, 
casuais. Assim, em determinadas cenas, observamos que existe uma analogia entre o espaço que a 
personagem ocupa e o seu sentimento. Por exemplo, teremos uma cena de alegria que se passa sob 
o sol fresco de um fim de tarde, brilhante, num céu com poucas nuvens e passarinhos voando. 
Parece que, como a personagem, a natureza está alegre, portanto há uma relação de homologia entre 
personagem e espaço. Trata-se de um espaço homólogo. 
1.6 Estabelecer contraste com as personagens. 
Nesse caso, ocorre o oposto do mencionado anteriormente. Isto é, não há nenhuma relação 
entre sentimento da personagem e espaço. O espaço mostra-se indiferente, estabelece uma relação 
de contraste. Por exemplo, suponhamos que o protagonista tenha perdido sua mãe, devido a uma 
terrível infecção. No momento do enterro, temos o seguinte espaço: sol, céu azul, poucas nuvens, 
vento fresco, passarinhos cantando alegremente. Nesse caso, o espaço estabelece um contraste com 
o íntimo da personagem, há, portanto, uma relação de heterologia. Trata-se de um espaço 
heterólogo. 
 
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1.7 Antecipar a narrativa. 
Através de índices impregnados no espaço, o leitor atento percebe os caminhos seguintes da 
narrativa. Em outras palavras, há uma prolepse espacial. Por exemplo, suponhamos que o herói está 
se escondendo de seu algoz. O narrador, ao apresentar o espaço em que o herói se encontra, mostra-
nos uma faca em cima de uma mesa. Momentos depois, é justamente aquela faca que servirá para a 
defesa do herói. 
2 Espaço e enredo 
Antes do mais, façamos a seguinte divisão. Podemos, de modo geral, perceber três gradações 
ficcionais na representação do espaço na obra literária. É claro que, em se tratando de literatura, 
todos os espaços representados na obra serão ficcionais por mais fiéis à realidade que sejam, no 
entanto, tomando a realidade por parâmetro, podemos dividir o espaço da obra literária em três: 
2.1 Realista 
O espaço construído na obra semelha-se à realidade cotidiana da vida real. Nesse caso, o 
narrador se vale freqüentemente das citações de lugares existentes. Ele cita prédios, ruas, praças, 
etc. que são co-referenciais ao leitor real. Na literatura brasileira, Machado de Assis poderia 
exemplificar essa tendência plenamente. Nomes de ruas e de bairros como Botafogo são lugares 
realmente existentes no Rio de Janeiro à época do autor. Tal estratégia narrativa confere ao enredo 
maior verossimilhança. 
2.2 Imaginativo 
O espaço será classificado de imaginativo quando os lugares citados na obra literária não 
existirem no mundo real. São lugares inventados, imaginados pelo narrador, no entanto, são lugares 
semelhantes aos que vemos em nosso mundo. 
2.3 Fantasista 
Temos ainda a possibilidade de encontrarmos espaços que não possuem nenhuma semelhança 
com a realidade e que não seguem nenhuma regra do mundo natural que nós conhecemos. Esses 
mundos têm suas próprias regras. A esse tipo de espaço chamamos de fantasista. Esse tipo de 
espaço é comum, às vezes predominante, nas obras classificadas como fantásticas, no conto 
maravilhoso e na ficção científica. 
2.4 Enredo 
O enredo, geralmente, se compõe de quatro etapas. Dizemos geralmente, pois a narrativa 
moderna vem fazendo várias experiências no sentido de uma nova estruturação do enredo. 
Independente disso, no entanto, o certo é que algumas dessas partes insistem em aparecer. Cabe ao 
topoanalista perceber a praticidade de identificá-las, vinculando-as aos espaços em que acontecem. 
Ao encadeamento dos espaços que formam a narrativa, chamamos de percurso espacial. Dentro 
desse percurso, revelam-se as quatro etapas do enredo. 
Uma primeira parte do enredo é chamada de exposição ou apresentação. É a parte introdutória 
da narrativa. É nela que se apresentam as personagens, os fatos iniciais. Também é nessa parte que 
se apresenta o primeiro espaço da narrativa. É o espaço inicial. Deve-se identificá-lo, perceber suas 
características e estar atento no seu papel no desenrolar da narrativa. É sempre interessante 
contrastar esse espaço inicial da narrativa com o espaço final, verificando os efeitos de sentido que 
essa relação provoca. 
Após a exposição, temos a complicação. Esse momento ocorre quando algo interfere e quebra 
aquela situação inicial, impulsionando a história. Cabe-nos, então perguntar, em que espaço ocorre 
essa quebra da situação inicial e qual o efeito de sentido que ele provoca dentro da narrativa. Será o 
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espaço inicial o mesmo da complicação? São diferentes? Por quê? Já que se pode ter mais de uma 
complicação dentro de uma narrativa também se pode ter mais de um espaço vinculado a ela. 
Cumpre analisá-los e verificar suas inter-relações. 
O desenvolvimento da narrativa atinge um ponto em que não há mais possibilidade de 
continuidade, é o ponto de maior tensão da narrativa. Esse ponto, geralmente, é chamado de clímax. 
É o ponto mais próximo do desfecho. Nesse momento também deve-se perguntar a respeito da 
espacialidade que está ali organizada. De que maneira o narrador organizou aquele espaço e quais 
os sentidos que se podem depreender dele. Por que o narrador escolheu determinado espaço para 
situar personagens e ação e não outro? 
Após o clímax, segue-se naturalmente o desfecho, a conclusão do texto. Resta analisar qual é 
o espaço em que isso ocorre. É o mesmo espaço em que ocorre uma das outras partes do enredo? 
Existe essa coincidência ou não? Quais os efeitos de sentido daí decorrentes? O espaço inicial, por 
exemplo, é o mesmo do espaço final? Houve alguma metamorfose nesse espaço entre o início e o 
fim da narrativa? 
Enfim, a relação entre as partes do enredo e o percurso espacial favorece inúmeras reflexões 
que possibilitam a interpretação profunda do texto literário. 
3 Topografia literária 
Acreditamos que a primeira tarefa de uma topoanálise é o levantamento dos espaços do texto, uma 
espécie de topografia literária. Assim sendo, é interessante termos, desde já, um critério de divisão 
para essa topografia. 
3.1 A segmentação do texto 
Como estamos analisando um texto do ponto de vista do espaço, a segmentação que nos 
interessa é, obviamente, a espacial. Isto é, devemos verificar se no texto há grandes e/ou pequenas 
movimentações vinculadas ao espaço. Em outras palavras, cumpre verificar se o texto pode ser 
dividido em macro e microespaços. 
3.2 Macroespaços 
Às vezes, o texto pode ser dividido em dois grandes espaços, tais como: o campo e a cidade 
como acontece no romance de Eça de Queiroz A cidade e as serras. 
Há outras maneiras ainda, por exemplo, será que no texto analisado encontramos oposição 
entre regiões? norte-sul, leste-oeste?Existem ainda a possibilidade de oposição entre continentes 
como, por exemplo, Europa-América. A esses espaços maiores, polarizados em regiões ou países, 
podemos chamar de macroespaços. 
Esta seria uma primeira segmentação do texto. Após essa primeira etapa, passar-se-ia a uma 
outra. 
Saliente-se o óbvio: nem todo texto possui macroespaços. 
3.3 Microespaços 
Detectada a presença do macroespaço, cumpre verificar os microespaços que o compõem. Se 
não houver macroespaço, passa-se diretamente à verificação dos microespaços. 
Nesse caso, toma-se por base a característica específica dos dois tipos essenciais do espaço, a 
saber: o cenário e a natureza. E ligado a esses dois tipos de espaço, temos o ambiente, a paisagem e 
o território. 
 
 
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3.4 Cenário 
No âmbito da topoanálise, entendemos por cenário os espaços criados pelo homem. 
Geralmente, são os espaços onde o ser humano vive. Através de sua cultura, o homem modifica o 
espaço e o constrói a sua imagem e semelhança. Ao topoanalista cumpre fazer o levantamento, o 
inventário mesmo desses espaços bem como os temas e valores presentes nele. Sendo assim, é 
imprescindível atentarmos para espaços tais como: a casa e seus cômodos, a rua, os meios de 
transporte, escola, a biblioteca, o labirinto, os cafés, o cinema, o metrô, a igreja, a cabana, o carro, o 
prédio, o corredor, as escadas, o barco, a catedral, etc. O número é infinito, cumpre ao topoanalista 
estar atento e fazer uma leitura cuidadosa e minuciosa da obra literária. 
3.5 Natureza 
Por natureza, entendem-se os espaços não construídos pelo homem. Espaços tais como: o rio, 
o mar, o deserto, a floresta, a árvore, o lago, o córrego, a montanha, a colina, o vale, a praia, etc. 
Esses espaços devem ser inventariados e estudados dentro de seus múltiplos efeitos de sentido na 
obra literária. 
Após essa topografia literária formada de cenários e naturezas, o topoanalista deve observar 
se esses espaços recebem figurativizações a ponto de os transformar em ambiente, paisagem ou 
território. 
3.6 Ambiente 
Na perspectiva da topoanálise, o ambiente se define como a soma de cenário ou natureza mais 
a impregnação de um clima psicológico. Esquematicamente, teríamos: 
1º) Cenário + clima psicológico = ambiente; 
2º) Natureza + clima psicológico = ambiente. 
Tomemos como exemplo a seguinte seqüência de figuras: noite, chuva forte, vento forte, 
trovões, relâmpagos. Se essas figuras estiverem simplesmente apresentando o clima meteorológico 
teríamos aí um espaço ao qual podemos denominar de natureza. Entretanto, se a essas figuras, o 
narrador justapõe uma personagem que tramou um crime e que se encontra em vias de praticá-lo, 
temos aí uma sinergia entre ação e natureza. Um reforça o sentido do outro. Ou seja, à ação 
negativa, vil da personagem corresponde uma natureza tempestuosa, que evoca e favorece ações 
macabras. De acordo com o imaginário humano esse clima meteorológico está impregnado de 
negatividade, de augúrios. Assim, em vez de natureza, temos aí um ambiente. 
3.7 Paisagem 
O conceito de paisagem é um tema clássico dos estudos geográficos. Como outros conceitos 
no âmbito dos estudos espaciais, este é visto de diversas formas, por diferentes especialistas 
(geógrafos, historiadores, arquitetos, pintores). Entretanto, muitos deles conservam um traço 
comum na definição de paisagem que é a questão do olhar. Portanto, uma primeira definição de 
paisagem é aquela que diz ser ela uma extensão de espaço que se coloca ao olhar. 
Em princípio, temos duas categorias de paisagens: a natural: que sofreu pouca ou nenhuma 
influência do homem; a cultural: que sofreu muita influência do homem. 
Assim, como o ambiente, o conceito de paisagem está ligado à idéia do olhar, portanto à idéia 
de subjetivização. 
Uma hipótese, que ainda precisa ser verificada, é a de que o ambiente está mais ligado ao 
olhar do narrador enquanto que a paisagem pode ligar-se tanto ao olhar do narrador quanto à de 
personagem. 
O conceito de paisagem parece-nos interessante e operacional para a topoanálise. 
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6
Os espaços básicos de um texto são natureza e cenário, mas as implicações subjetivas desses 
espaços transformam-nos em ambiente, paisagem ou território, algumas vezes. 
O cenário ou a natureza serão classificados como paisagem quando tiverem três 
características: extensão; vivência; fruição. 
A idéia de paisagem estará ligada ao olhar do narrador ou da personagem. Quando se 
apresentar uma grande extensão de espaço aí teremos a presença da paisagem. Como se sabe, 
nenhum olhar é neutro, daí que a vivência da personagem e ou narrador determinará o conceito que 
esta terá do espaço que vê. Tal conceito circulará entre dois pólos: o de beleza ou o de feiúra. 
3.8 Território 
No conceito de território temos a possibilidade de análise das relações de poder na obra 
literária. O cenário ou a natureza transformar-se-ão em território quando houver uma disputa por 
sua ocupação e/ou posse. 
O conceito de território é extremamente útil para a análise literária e, sem dúvida, 
imprescindível em uma topoanálise. Portanto, cabe ao estudioso perguntar que tipo de cenário e/ou 
natureza forma um território, isto é, que espaço está em relação de dominação-apropriação com as 
personagens. E, em conseqüência, de que forma o poder é ali exercido. 
Encerrando, esse item, afirme-se o seguinte. Na medida em que se selecionam os 
microespaços, isto é, os cenários e as naturezas também se devem perceber duas coisas. Primeiro, 
será que esses microespaços são englobados por macroespaços? Segundo, esses cenários e natureza 
transformam-se, em algum momento da narrativa, em ambiente, paisagem ou território? 
Em resumo, num primeiro momento, cumpre observar os macro e os microespaços. Após essa 
percepção, passamos à análise de cada um desses espaços. 
Para tanto, apontamos em seguida vários itens que deverão ser levados em consideração na 
análise dos trechos selecionados. 
Conclusão 
Este texto teve a intenção de apresentar a metodologia de análise do espaço no texto literário a 
que vimos chamando de topoanálise ou topanálise. Para tanto, escolhemos os itens iniciais dessa 
metodologia: as funções do espaço, a relação entre espaço e enredo, os conceitos de cenário, 
natureza, paisagem, ambiente e território. 
Para maior aprofundamento das questões aqui tratadas e para o conhecimento dos outros itens 
dessa metodologia, remetemos o leitor a nosso livro: Espaço e literatura: introdução à 
topoanálise. 
 
Referências Bibliográficas 
[1] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 
[2] BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão 
gráfica e editora, 2007. 
[3] BERTRAND, Denis. L’espace et le sens. Essai de sémiotique discursive. Amsterdam: Hadier 
Benjamins, 1985. 
[4] LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. 
[5] LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. 
SEMANA 7 - TEXTO 1
SEMANA 7 - TEXTO 2
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9 de outubro de 2018
“Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, aponta os
caminhos de Rosa
jornal.usp.br/cultura/sagarana-livro-exigido-pela-fuvest-aponta-os-caminhos-de-rosa/
Por Leila Kiyomura
Em “Conversa de bois”, o penúltimo conto de Sagarana, os animais falam e raciocinam –
Foto: Cecília Araujo de Oliveira
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 Sagarana, de João Guimarães Rosa, tem muitos motivos para estar entre as leituras
obrigatórias da Fuvest. É a primeira obra publicada do escritor mineiro, em 1946, que
apresenta e inicia os estudantes no universo de um sertão marcado pela lei do mais
forte, pela busca da vingança e pela traição.E, ao mesmo tempo, remete o leitor a um
SEMANA 8 - TEXTO BASE
https://jornal.usp.br/cultura/sagarana-livro-exigido-pela-fuvest-aponta-os-caminhos-de-rosa/
https://jornal.usp.br/author/leilakiyomura/
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universo mítico-religioso de tradição clássica. O desafio de Guimarães Rosa é encontrar
caminhos para aliar as mitologias afro e indígena à mitologia grega. E narrar, ao mesmo
tempo, a realidade do sertão e o encantamento do sertanejo.
“Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães
Rosa”, orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP. “Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem
uma ambição literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta
um tipo de narrativa diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária,
como os do romance greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até
os da literatura mais moderna de seu tempo.”
O professor Luiz Roncari: pesquisa sobre a obra de Guimarães Rosa resultou em vários livros
– Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
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 Roncari vem pesquisando Guimarães Rosa há três décadas, trabalho que já resultou em
vários livros, como O Brasil de Rosa – O Amor e o Poder e O Cão do Sertão, ambos
editados pela Editora Unesp; Buriti do Brasil e da Grécia – Patriarcalismo e Dionisismo
no Sertão de Guimarães Rosa, da Editora 34; e O Brasil de Rosa II – Lutas e Auroras, no
prelo, da Editora Unesp. Em entrevista ao Jornal da USP (veja também o vídeo abaixo),
o professor orienta sobre a leitura de Guimarães Rosa. “É importante que o vestibulando
leia com muita atenção. Quando não entender, não passe batido. Recorra aos
dicionários, em especial ao Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, da
Edusp (Editora da USP). Guimarães pensa e explora as possibilidades de cada palavra,
buscando tanto os seus sentidos mais arcaicos como os possíveis, virtuais. Cada palavra
é como um desafio a ser enfrentado. Diante de um termo mais estranho, o leitor deve
sempre se perguntar por que ele usou esse e não outro, mais comum.”
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Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos germânicos e rana é
um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”.
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 Guimarães, de certo modo, procurou sintetizar também a luta pela formação de uma
nação no título do livro. “Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos
germânicos e rana é um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”,
explica Roncari. “Ou seja, são histórias que parecem com uma saga. Mas não são
sagas. Guimarães Rosa explora as possibilidades literárias de diferentes tipos narrativos,
e está contando também uma espécie de formação do Brasil, tendo como um elemento
marcante a violência. Ao mesmo tempo que tem uma pretensão de fazer uma literatura
grande, universal, ele reflete o lugar onde nasceu e viveu, o da sua experiência.”
Ilustração de Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido por Poty, para Sagarana –
Foto: Reprodução
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 O professor lembra que, para chegar à universalidade, “Guimarães Rosa sabia que
precisaria passar pela sua particularidade, que é o regional e o nacional, o sertão ou o
mundo de sua experiência”. Roncari explica que a primeira versão de Sagarana é de
1937. “Porém, o livro foi publicado só nove anos depois, em um tempo em que
estudiosos como Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, Gilberto Freyre e
Oliveira Vianna se perguntavam se o Brasil iria dar sertão ou civilização. Um
questionamento que já começou nos anos 1920 e se estendeu até os anos de 1960.”
Guimarães Rosa, ao contrário de Graciliano Ramos, resistiu ao regionalismo crítico e
social que vinha sendo o dominante desde os modernistas. “O Modernismo rompeu com
o Parnasianismo, o Simbolismo. A meta era uma literatura que focasse a originalidade
brasileira. O escritor, no entanto, não queria uma ruptura, e sim uma literatura que
pudesse, ao mesmo tempo que a modernização, integrar também as antigas tradições.
Não era um sujeito de exclusão.”
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Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução
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 Roncari deixa clara, no entanto, a importância do movimento. “Os modernistas tiveram a
grandeza, a generosidade de procurar entender e incorporar a cultura popular,
principalmente a negra. Eles valorizaram a dança, a religiosidade, como o candomblé, o
canto e o artesanato.”
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Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao
mesmo tempo, tinha a esperança de que o Brasil pudesse vir a se constituir
num espaço institucional civilizado.”
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 Sagarana traz o desafio de relatar as agruras do cotidiano do sertão, mas, ao mesmo
tempo, seus sertanejos são construídos com a referência da mitologia clássica. “Eles têm
um elemento empírico, histórico, e um mitológico que enobrece o personagem”, observa
Roncari. “Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao
mesmo tempo, tem esperança de que o Brasil possa vir a ser também algo civilizado.”
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Watch Video At: https://youtu.be/DM8H9EwhWU4
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 Sagarana começa a sua travessia com “O burrinho pedrês”, que, segundo descreveu o
próprio Rosa, nasceu de um acontecimento real passado em sua terra, com o
afogamento de um grupo de vaqueiros num córrego cheio.
Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro,
ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro
não existiu e nem pode haver igual. Agora, porém, estava idoso, muito idoso.
Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução
https://youtu.be/DM8H9EwhWU4
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No primeiro parágrafo, está a arte de contar de Rosa, resgatando as narrativas
tradicionais. “Os boiadeiros seguem contando casos e histórias, como os peregrinos de
The Canterbury Tales, de Chaucer”, explica. “O leitor, junto com os casos contados,
acompanha também um outro incubado na comitiva, o de um boiadeiro que quer matar
outro por ter roubado a sua namorada. Um caso de vingança está para ocorrer ao longo
do percurso. Uma violência está sempre prestes a explodir, como nas demais histórias.”
Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução
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O leitor segue com “A volta do marido pródigo”, a história de um mulato que abandona o
trabalho, negocia a mulher e vai para o Rio de Janeiro. “Sarapalha” mostra uma região
devastada pela malária, onde dois primos padecem da doença e da solidão e brigam por
serem apaixonados pela mesma mulher. A vingança e a traição também estão em
“Duelo“, com a história de Turíbio, que surpreende a mulher, Silvana, com o ex-militar
Cassiano. Só que, por engano, ele mata o irmão desse amante. “Minha gente” é uma
história de amor em primeira pessoa movimentada pelo clima das eleições.
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Um homem erudito vivendo a experiência de um mundo onde impera a
superstição e a crendice.”
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 A travessia pelo sertão continua com “São Marcos“. “Comecei a estudar Sagarana por
esse conto a que ninguém dava muita importância”, diz Roncari. “Rosa fez e refez essa
história. Tem uma característica importante: o autor é também o narrador e o
personagem.”
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João Guimarães Rosa – Foto: Domínio Público
via Wikimedia Commons
Capas de diferentes edições do livro de contos de Guimarães Rosa – Fotos: Divulgação
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 Em “São Marcos”, o autor deixa entrever também as suas experiências no sertão de
Minas Gerais.
O conto se passa no Calango-Frito. “Todo
domingo, o protagonista saía de casa e ia
para a floresta contemplar a natureza, nos
seus elementos mais comezinhos, como as
ervas daninhas, as formigas, os insetos.
Um dia ele entra no fundo do bosque e é
tomado pelo terror pânico, medo comum de
quem se acredita perdido no meio da
escuridão do matagal. Acreditava-se que
ele era provocado pela possessão do deus
Pan da mitologia grega, que habita no
interior dos bosques que ataca e cega os
que lá se perdem.”
“Corpo fechado” conta a história de Manuel
Fulô, um sujeito que ama maissua mula do
que a noiva, cobiçada por um valentão.
Mas, para salvar a noiva, ele entrega a
mula a um feiticeiro para fechar o seu corpo e enfrenta com êxito o valentão.
“Conversa de bois” narra a viagem de um carro de bois. Nele, o penúltimo dos nove
contos que se encontram em Sagarana, os animais falam e raciocinam.
O último conto do livro, “Hora e vez de Augusto Matraga”, foi apontado por Rosa como
uma “vitória íntima”, pois desde o começo do livro era o estilo que procurava descobrir.
“Essa é uma das histórias mais divulgadas do livro e realmente um dos contos mais bem
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acabados”, considera o professor Roncari. “Augusto Matraga é um sujeito truculento,
poderoso, autoritário. Um personagem que faz parte da história do País. Quantos
Matragas não estão hoje no Senado, na Câmara, no Judiciário, na comitiva da
Presidência, sem legitimidade, mas ditando as regras da política para a sociedade
brasileira?”
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