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1 GÊNEROS NARRATIVOS NA LITERATURA BRASILEIRA RESUMO: PRINCIPAIS PONTOS DOS CONTEÚDOS SEMANAIS Na SEMANA 1, os nossos estudos abordaram a narração, destacando que ela é um gênero presente em nossas vidas. Desde a escuta de histórias de nossos antepassados, passando por parábolas religiosas, acontecimentos cotidianos, textos de ficção, anedotas, textos jornalísticos, histórias em quadrinho, ela está presente em nossas vidas. Na esfera dos estudos literários, podemos dizer que uma mudança no foco de atenção dos pesquisadores: a interpretação deixou de ser a única via de estudos do texto narrativo; surgiram, então as análises sobre as estruturas e os discursos narrativos. Jerome Bruner dedicou o livro Realidades mentais:mundos possíveis ao exame e discussão do quão preponderante foi o papel a narrativa na evolução da cultura humana. Dando sequência, chegamos à SEMANA 2, e procuramos caracterizar a formação humana, a partir de como o homem formula seus pensamentos e, com esses, age no mundo, ou seja, em quais circunstâncias são mobilizados. Entendemos por pensamento narrativo a narrativa criada pelo homem, baseada em sua memória e na sua interação com os demais, e pensamento científico como as proposições derivadas da história narrada. O ser humano em contato com a sociedade, cultura e sua própria vivência cria suas narrativas que espelham narrativas coletivas e delas depreendem uma série de proposições. No capítulo do livro “Realidade mental: mundos possíveis – ‘Dois Modos de Pensamento’”, Bruner aponta as distinções entre o modo de pensar narrativo e o científico. O autor defende a tese de que esses dois modos de funcionamento cognitivo constroem realidades, ordenando a experiência cada um da sua forma. Apesar disso, ambos os discursos seriam complementares entre si, sem que um se um reduza ao outro. O pensamento científico, que Bruner chama de paradigmático, se associa ao discurso teórico e ao logos, ou seja, são utilizados argumentos para estabelecer "o ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação”. Para isso, um cientista ou filósofo procura criar categorias ou conceitos, relacionando-os uns com os outros até formar um sistema geral baseado em hipóteses fundamentadas, isto é, que podem ser demonstradas como verdadeiras. Por sua vez, a narrativa, mítica ou literária, aborda a maneira pela qual as intenções humanas se comportam nas mais diversas situações. Nesse sentido, as histórias que são criadas traçam relatos de ações humanas em circunstâncias de experiências localizadas num tempo e espaço definidos, enquanto o discurso teórico tenta ir além dos fatos particulares, visando formulações de princípios gerais e abstratos: As narrativas podem servir como argumentos (McGuire, 1990, p. 231). Devido à sua estruturação sintática, a narrativa tem uma coerência lógica interna, a qual estabelece uma relação entre as suas partes constitutivas. Por ser uma forma de comunicação cotidiana, a narrativa sempre faz parte de um discurso falado, o que implica uma situação concreta de narrar “hic et nunc”, quer dizer, um momento definido, uma situação, circunstâncias espaço- temporais. Parte da situação é constituída pelos parceiros da comunicação e pelo tema do discurso. Essa conexão temática do discurso e as suas contribuições, ou seja, a rede temática, está relacionada à coesão argumentativa e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato 2 linguístico, a narrativa é construída tendo em vista todos esses parâmetros (situação, parceiros, rede temática/argumentativa etc.), e no modo como esses são percebidos pelo narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa está conectada ao discurso como um todo. A comunicação tem, em geral, um caráter argumentativo; até uma fala trivial, como parte de um discurso, tem uma conexão argumentativa, pois ela pode se tornar objeto de uma justificativa (“por que você falou isso?”). Sendo ação la implica uma intencionalidade. A narrativa como ação (linguística) também desempenha uma função em relação a essa intenção. Assim, aplicando uma abordagem mais abrangente da argumentação, cada contribuição para um discurso ou fala está numa relação argumentativa, como foi mostrado por Toulmin. (1958, pp. 109-111) Assim como as narrativas, a organização do discurso é um procedimento lógico que usa de argumentos (Petrilli, 1991, p. 142). Narrativas têm um caráter argumentativo: se contadas como exemplos, elas desempenham uma função de criar evidências ou uma licença de inferir para uma exposição ou um complexo de exposição-conclusão. Assim, se conclusões são tiradas a partir elas, elas servem como dado ou exposição. Para melhor aprofundar os seus estudos, é desejável que você se dedique também às videoaulas. Assistir e destacar os conteúdos apresentados contribuirá para que seus conhecimentos sejam solidamente construídos. Indo em frente, aprendemos na SEMANA 3 que: "(...) o discurso narrativo aparece como lugar privilegiado para elaboração da experiência pessoal, para a transformação do real em realidade, por meio de mecanismos linguísticos discursivos, e também para a inserção da subjetividade (entendida aqui, do ponto de vista discursivo, como um lugar que o sujeito pode ocupar para falar de si próprio, de suas experiências, conhecimento do mundo, ou, mais sucintamente, entendida com a forma pela qual o sujeito organiza sua simbolização particular). (TFOUNI, 2005, p. 73-74) Aos conhecimentos construídos, somam-se os argumentos segundo os quais o sujeito põe- se à mercê do discurso do Outro, que lhe faz exigências às quais ela tenta de todo modo responder, mesmo sem ter certeza se é isto o que realmente quer, talvez porque este discurso do Outro lhe venha revestido de um discurso dominante, de uma formação social dominante, com a qual, por força da ideologia, ele sente-se interpelado a identificar-se. Podemos explicar este fato tomando como base a teoria da heterogeneidade constitutiva do discurso, que tem seu respaldo exatamente nessa relação de submissão com o Outro (Authier-Revuz, 1982). Como afirma Maingueneau (2004) a teoria de heterogeneidade constitutiva de Authier-Revuz traz mais uma aproximação da AD e da psicanálise lacaniana, pois coloca ao lado do sujeito interpelado pela ideologia um sujeito que é também dividido pelo inconsciente e que ilusoriamente acredita ser dono do seu dizer. Assujeitado a um Outro que lhe faz exigências constantes e que apontam para onde dirigir seu desejo o sujeito das narrativas tenta sobreviver numa sociedade onde as crianças de rua são representadas e tratadas como marginais, além de terem origem em famílias desestruturadas. O excelente texto Notas Sobre a Experiência assinala que "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir- se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" (LAROSSA, 2000). 3 A experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquervestígio. O autor ressalta também que "o sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça". (LAROSSA, 2002, p. 20) A leitura dos textos-base da SEMANA 3 é imprescindível para você melhor preparar-se para a PROVA. Entre a Análise do Discurso e a Psicanálise, a Verdade do Sujeito-Análise de Narrativas Orais (Leda Verdiani Tfouni e Marcela Laureano) Link: e Notas sobre a experiência e o saber de experiência (Jorge Larrosa Bondía). Assista às videoaulas, que lhes ajudará a melhor compreender os conceitos e definições acima apresentados. Chegamos à SEMANA 4, que nos apresentou ou textos: Tipos de narrador e novas discussões em narratologia (Flávia Roberta Menezes de Souza) e São Bernardo: a posição do narrador no romance e no filme (Germana da Cruz Pereira e Georgia da Cruz Pereira). A narratologia é um campo do conhecimento que se desenvolveu graças a uma consciência linguística voltada sobretudo aos estudos literários – especificamente, à narrativa literária - e que alcançou grande espaço na crítica literária no final da década de 60, com a virada dos estudos estruturalistas. A retomada dos pressupostos formalistas, àquela época recém- descobertos, resgatou a preocupação com a construção de uma ciência da literatura. Ainda que o projeto estruturalista tenha se deparado com as limitações de seu próprio aparato teórico diante da complexidade do objeto que estudava, são inegáveis as contribuições que tanto renovaram a linguagem conceitual dos fenômenos literários os quais careciam de termos que oferecessem maior precisão nos trabalhos e pesquisas em torno da narrativa. Também não se pode desconsiderar que o rigor científico buscado pelos estruturalistas propiciou uma série de publicações que até hoje sobrevivem e subsidiam o estudo da narrativa. Gérard Genette (1995), em O Discurso da Narrativa, retomando a questão em torno do discurso e da narrativa, contribui para o estabelecimento de conceitos que, posteriormente, passaram a ser amplamente utilizados em estudos e trabalhos sobre narrativa, narrador heterodiegético e homodiegético em substituição às definições narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, tradicionalmente também conhecidas: Genette estabelece, então, um quadro que determina os tipos de narrador quanto à sua inserção na diegese (história) e ao nível narrativo a que pertence: extradiegéticoheterodiegético; extradiegético-homodiegético; intradiegético-heterodiegético; intradiegéticohomodiegético. Se é clara a compreensão do que seja heterodiegético e homodiegético quando se conhece a superada classificação narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, é possível dizer que as classificações extra- e intradiegético dizem respeito à posição do narrador em relação ao nível narrativo, uma vez que é possível o narrador pertencer ao primeiro nível da narrativa e, posteriormente, dentro da história, 4 outro narrador surgir e “se habilitar” a narrar outra história. Tem-se, assim, uma história dentro da história, e os narradores de ambas se encontram em níveis diferentes, pois falam de lugares diferentes. Genette, nesse mesmo trabalho, apresenta uma outra maneira de pensar o narrador, que é a focalização. A focalização diz respeito ao conhecimento que o narrador tem sobre a história em comparação com o conhecimento que o personagem tem. Genette adverte que a focalização “nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 1995, p. 189). Trata-se de uma questão importante, mas que nesse momento apenas será citada para retomar a tipologia de Friedman apresentada por Lígia Leite que relaciona tipos de narrador e ponto de vista como sendo um fenômeno apenas. Schmid (2010) estabelece onze critérios para se pensar a tipologia do narrador. Quantitativamente, trata-se de um painel mais criterioso, mas o ganho está na distinção entre tipologia e ponto de vista na narrativa. Um narrador não diegético, por exemplo, pode assumir o ponto de vista de um dos personagens para narrar determinada situação e nem por isso ocorre uma mudança de tipos. Paulo Honório, ao contar a história de São Bernardo e a sua, as quais estão interligadas, o faz crendo que a forma como conquistou as terras, sua ascensão e decadência seriam assuntos interessantes. O narrador é bastante realista, sobretudo, por expor seus pensamentos e impressões, sobre fatos “que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém” (RAMOS, 1981, p. 10). Para Bourn uf Ouellet (1976, p. 246), o personagem é o único capaz de contar sua própria história, pois “por mais fragmentário ou contestável que seja, o conhecimento de si mesmo pela introspecção é o único válido.” Se , visto por esse prisma, o romance funciona como uma espécie de diário de Paulo Honório feito com seus recortes de memória, lembranças que não o abandonam e o atormentam na solidão em que se encontra e vazio de uma casa que já fora habitada e visitada por muitos, é o retrato da decadência de um homem.Para uma melhor explanação, podemos dividir as obras em duas partes principais: conquista e ascensão de São Bernardo (já mencionados) e o casamento com Madalena, sendo este o responsável pelo declínio do homem próspero apresentado até então ao leitor. Atormentado pela dúvida com relação à fidelidade de sua esposa, Madalena, o narrador mostra na segunda parte do livro como passou a tratá-la, sempre desconfiando de cada barulho, de cada gesto, de cada carta, e a maneira como distanciava os seus prováveis amantes. Romance moderno, São Bernardo, apresenta um narrador que faz seu relato dando-lhe aspecto de realidade, visto que revela ao leitor o espaço, Viçosa, em Alagoas, e nomeia na escrita. demonstrando que a verdade presente naquelas linhas foi pensada e articulada, portanto, é interessante notar a relevância do livro São Bernardo para a literatura brasileira, sobretudo pelo fato de ter sido escrito em 1934 e manter-se atual até os nossos dias. Sua atualidade se deve, principalmente, a temas relacionados à alma, à solidão humana e à constante busca por explicações interiores; ademais, se observarmos os recursos técnicos utilizados por Graciliano Ramos para demonstrar a introspecção de Paulo Honório e sua reflexão sobre o fazer artístico, como a postura do narrador, perceberemos que são assuntos merecedores de atenção e estudo em nosso mundo contemporâneo. Leon Hirszman, ao adaptar o romance para o cinema, em 1973, reafirma sua atemporalidade e atualidade, visto que, passados quase quarenta anos, a situação política e social brasileira continuava a mesma ou até piorara devido aos regimes ditatoriais. Avançando, alcançamos a SEMANA 5. Nessa semana, vimos que, últimos anos, tem se tornado recorrente, no campo da literatura, a prática da reescrita de textos literários 5 canônicos a partir de múltiplas perspectivas, como as que se empenham em salientar as diferenças de gênero, de raça e de classe social. No contexto dos estudos sobre literatura de autoria feminina, trata-se de uma tendência, de fato, importante, já que se caracteriza pela produção de um texto novo e autônomo que denuncia a alteridade do/a oprimido/a, no caso, a mulher, e promove o desnudamento de sua identidade. Ana Maria Machado, em A audácia dessa mulher (1999), num interessante diálogo com Dom Casmurro, de Machado de Assis, reescreve a trajetória de Capitu. Do mesmo modo, Nélida Piñon, em Vozes do deserto (2003), reescreve a história de Scherezade, personagem de As mil e uma noites, coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana. Se, nos textos originais, essas personagensnão têm voz, nas referidas reescritas, elas são construídas imbuídas do direito de falar. No âmbito da literatura brasileira de autoria feminina, a estratégia da reescrita tem sido, não raramente, utilizada pelas escritoras brasileiras numa atitude de reinvenção, que põe em relevo o modo de construção e representação do universo da mulher. É o caso dos romances A audácia dessa mulher e Vozes do deserto. O primeiro consiste em um texto em que, em meio à teia narrativa que se desenvolve em torno da trajetória da audaciosa Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no finalzinho do século XX, a autora reescreve e/ou reinventa a trajetória de Capitu, a protagonista de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Se as leituras mais ingênuas desse clássico romance oitocentista giram em torno da polêmica da culpa ou da inocência de Capitu, uma das personagens femininas mais discutidas da literatura brasileira, as leituras mais lúcidas enfatizam a questão do ciúme de Bentinho, e a consequente impossibilidade de o leitor ter certeza se ele foi ou não traído pela mulher com seu melhor amigo. Isso porque o romance é narrado em primeira pessoa pelo próprio Bentinho, enlouquecido de ciúme, quando ele já se encontrava na velhice, visceralmente mergulhado na solidão e na sua casmurrice. Consequentemente, Capitu é silenciada, tal estratégia narrativa não lhe permite expressar seu ponto de vista, ainda que matizado pelas tintas da ideologia oitocentista. É fundamental nessa reescrita o fato de Capitu ser capaz de reinventar, a partir do nada, uma nova vida e dar sentido a ela. Apenas aparentemente ela cumpre a sina da mulher adúltera que, após ser desmascarada, morre na solidão e no abandono como forma de purgar seus pecados. Na verdade, ela ignora o rótulo de “fêmea infiel” e constrói uma vida digna a partir de seus próprios méritos. O fato de ter abandonado o apelido de menina e passado a usar a outra metade do nome, Lina, numa atitude de Fênix, aponta para sua capacidade de engendrar a própria história, independentemente das adversidades impostas a seu sexo pelo pensamento patriarcal. Indo em frente, chegamos à SEMANA 6 que nos instiga a pensar a tamanha contribuição que uma boa criação do espaço dá para o desenvolvimento da personagem. Há muitos sentidos ligados na organização dos espaços, e, com este estudo, você vai perceber que o ambiente narrativo pode até influenciar as personagens com relação ao seu jeito de ser e agir. Dessa forma, é possível salientar que a arte narrativa é toda entremeada por sutilezas que precisam estar bem articuladas para alcançar a verossimilhança. E que a ambientação diz muito em uma obra; revela, situa, antecipa, dá movimento, emociona... Em cada linha há intencionalidade. É preciso ficar atento aos detalhes. Ler os textos-base, assistir às videoaulas, fazer as atividades avaliativas lhe ajudará no processo de preparação para a Prova. Esteja atento aos estudos da topoanálise, isto é, a análise do espaço na obra literária. Lembre- se de que o autor parte da terminologia de Bachelard, mas amplia o seu alcance de sentido. 6 Destacamos que a topoanálise não se restringe à análise dos espaços íntimos, mas de todo e qualquer espacialidade representada na obra de ficção. Quase chegando ao final de nosso curso, temos a SEMANA 7. Entendendo os conceitos de memória e experiência na narrativa (as quais são adquiridas pelas personagens no espaço vivenciado na ficção), a ideia de tempo vai se mostrando crucial também para a atribuição de sentidos ao enredo. Para exemplificar: “A aceleração, como um “mal-estar” contemporâneo, articula-se tanto à efervescência da memória-arquivo quanto ao apagamento da dimensão memória-vida” (BRAGANÇA, 2012). Então, o tempo também delineia diferentes esferas da obra; seu percurso se transforma por meio das experiências, guardadas na memória, que também pode ser de espera (presente, passado, futuro. Dê atenção às videoaulas: 1ª) O tempo na literatura. Ressaltamos aqui que tempo, personagem, espaço – tudo deve estar bem articulado para fazer sentido, para se obter a verossimilhança, e alcançar o propósito da arte escrita: “tocar” o leitor, transformar seu olhar, aguçar suas buscas, entreter e, quem sabe, mudar “mundos”; 2ª) Confluências temporais em Clarice Lispector: Análise de “Uma Aprendizagem” e “Água Viva”. Esta videoaula analisará o tempo na narrativa por meio de algumas obras da escritora Clarice Lispector. E seu encantamento pela arte dela está garantido. E finalmente, a SEMANA 8, que nos brinda com o texto “Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, aponta os caminhos de Rosa. “Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães Rosa”, orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem uma ambição literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta um tipo de narrativa diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária, como os do romance greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até os da literatura mais moderna de seu tempo”. Lembre-se, caro aluno, a leitura, os estudos, os resumos e fichamentos dos textos-base e videoaulas, assim como a tarefa de realizar as atividades avaliativas e os quizzes irão ajudá-lo a sair-se muito bem na prova. Desejo que você possa aproveitar o resumo que ora lhes ofereço e que tenha construído muitos conhecimentos ao longo da disciplina. Profª Elaine Assolini A AUTORA Maria Cristina Palma Mungioli Pedagoga. Mestre em educaç30. Professora do curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Integraqâo Zona Oesie. APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DA NARRATIVA Narrativa revela sua importância para a compreensiio da cultura humana esde as rudimentares pinturas nas cavernas até os nossos dias, o ser humano tem encon- trado no gênero narrativo não só uma forma de demonstrar e interpretar suas relações com o mundo e com as pes- soas que o cercam como também de ser compreendido e interpretado. A narração é um genero onipresente em nossas vidas. Desde as histórias que ouvía- mos h hora de dormir, passando pelos jornais, histórias em quadrinhos, textos de ficção, anedotas, publicidade até às par5- bolas religiosas, a narração acornpanha- nos por toda a vida. Narrar é uma habili- dade inerente ao ser humano e para alguns estudiosos configura-se como o próprio fa- tor de humanização de nossa espécie. J5 nas primeiras manifestações da cul- tura escrita, o gênero narrativo fazia-se presente, como atestam os textos do Ve- lho Testamento, o livro dos Vedas ou os textos atribuídos a Homero. Quase tão antiga quanto a narrativa escrita, tem sido a preocupação com seu estudo. De Aristóteleç até hoje, especialistas das mais diversas areas t&m se dedicado i anáIise de textos narrativos com a intenção de compreendê-10s. Porém, podemos çonsi- derar que f ~ i somente a partir dos traba- lhos realizados por alguns pesquisadores sovi&ticos, conhecidos no Ocidente como Formalistas Russos', que o estudo siste- mritico da narrativa começou a se delinear e serviu como uma espécie de linha divi- sória entre fonnas distintas de se estudar a narrativa. Em termos históricos, o estudo da nar- rativa pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro caracteriza-se pelo estudo do texto narrativo centrado na sua interpretação, sendo a exegese a represen- tação máxima desse período. O segundo momento, que se caracteriza pelo estudo sistem5tiço da narrativa do ponto de vista de suas estruturas, tem inicio com a pu- I. Tcrmo qiic nbnrca as pesquisas linguisticas e literirias realizadas na Rússia nos Anos 20. (N. Ed.) 49 SEMANA 1 - TEXTO BASE 1 Apontamentos para o estudo da narrativa blicação, em 1928,do livro Molfologio do coiito, de Vladimir Propp7 . Os estudos empreendidos pelos Fornalistas Russos fundaram a nLurritologia como teoria da narrativa. Adam define a narratologia como "um braço da ciencia geral dos signos - a Semiologia - que se esforça em analisar o modo de organiza- ção interna de certos tipos de textos. Isso a relaciona com a Análise do Discurso e com a Linguistica textual que distingue os tipos de textos (argumentativo, explicativo, descritivo, narrativo etc.} dos tipos de dis- curso em que se encontram atualizados e misturados (romances, filmes, histórias em quadrinhos, foto-romances, faits divers, publicidade, anedotas e t ~ . ) " ~ . Na esfera dos estudos literários, pode- mos dizer que o estudo sistemático das narrativas propoicionou uma mudança no foco de atenção dos pesquisadores: a in- terpretação deixou de ser a única via de estudo do texto narrativo; surgiram, entiio, as análises sobre as estruturas e os discur- sos narrativos. Buscou-se, assim, "não apenas o que o texto queria dizer" mas tambem "como" o texto se construía e se organizava para conseguir significação. basicamente essa mudanqa de enfogue que tem aberto e possibilitado novas perspeç- tivas de analise que envolvem, alkm do texto propriamente dite, as formas de pen- samento humano4. NARRATIVA E COGNIÇAO Com a divulgação dos resultados de pes- quisas efetuadas por diversos esnidimos dos campos da lingüística, da semiótica e da psi- cologia cogni tiva, o interesse pelas formas de pensamento presentes na narrativa tem se tor- nado uma constante naç duas Últimas dw . Um dos fatos desencadeadores para essa nova abrdagem do texto narrativo foi a pu- blicação, em 1976, dos trabalhos de Havelock acerca dos poemas homéricos. Para esse estudioso, tais poemas representa- vam uma avançada civilização que utilizava a n m @ o como um modo de pensamento. Os estudos de Hctvelock ocupam um lugar privilegiado quando se discute a passagem da cultura oral grega i cultura escrita e abn- ram caminho para inúmeras pesquisas que abordafn a relação entre o desenvoEvimento da cultura escrita e do pensamento. Muitos desses crabalhosc' detêm-se em pesquisar as 2. PROPP, Vladimir I. Modologia do conto maravilhoso. Rio de Jancim: ForcnseNniversitária. 1984. 3. ADAM. J. I A rérit. Colletion Que sais-je9 (A narrativa. Coleçiio O que eu sei?) Paris: Prcsses Universiiaires de Francc. 1994. p. 4. (Rits-divcrs - do frances fatos diversos. Expressio para dcsignm noiícias corriqueiras dc iniercsse popular.) 4. Fazendo um apanhado hisiúrico sobre como se tem considerado a namtiva. Olson afirma que cla tem sido vista há bcolos como antagcinica no pcnsarncnto ncional:"Nnrmriin 4 lirita Jornrn de discrrrso irarrrml, niio-reJe.~iin e ncrificn qrfe i B O~JOSIO &jortiias ninis refleriiws & drscitr,fo r0i.r qrr l t i~ Itistrjrin rnrfilosojn" t nduç8o nossa). Cf. OLSON, D. R. ThriiLi i i~ uh(iiir i rnrmf i i .~ (Pensando sohrc a narraiiva) In: RRIJTON. 11. K. & PELLEGRINI. A. (oi-g.) Narrative Zhoughi and narrative Irn~uage. (Pensamento narrativo c linguagem narrativa.) Ncw lerwy: Lawrcnce Erlh~wm Assoc~rtes. Puhli~hem. 1990. p. 00. S. Sc~iindo Olson: "Narnitvns ( . . . I podcm ser vistas nZo somcnic como esquemas para nrrnazcnamento de inrormaqilo para SIIB ~ C U I I T I P ~ ~ ~ O mas lamhérn como formas de pnsarnento - csqucmas dc iiiierpretaçZn de expzriências c açifo rnrormativa." Cf. OLSON, D.R. Thirikriig ... op. rir. p. 101. 6. DRUNER. I. Realidades mentais, mundos porníveis Porto Alegre: Ancs MMicas, 1998. . Atos de sígnificaqíin. Porto Alcyc: Artes Médrcas. 1997. CHAFE. ilr Soiirc rlriirgr rltnr iinrmtii~cs teII 11s n h i i r /Iic iiriitd (Alyumas coisas quc ;is narr~tivas nos dizcm sobrc a menfe) in: BRITTON, B. K. & PELLEGRINI. A. D. (oi-g.) Nnrratiw ... up. rir. FELDMAN. C. F. & BRUNER, J. &L RENDERER. B. R: SPITZER. S. Narntivc romprchension. hi BRITTON, B. K. PELLEGRINI, A . D.(orp.) Narrative ... op. cir. OLSON. D. R. & TORRANCE. N. (og.) Cultlirra escrita e oralidadc. S90 Peulo: Atica. 1905.OI,50N. D. R. Thiiikiitg crlx~~i i i i , rrnrrnriw. In: BRITTON. B. K. PEI+I,EGKINB, A. (org.) Narrativc ... op. rir. Comunicação & Educação, São Paulo, (23): 49 a 56. jan./abr. 2002 relações entre o pensamento e a lingua- gem narrativa. Havelock7 apresenta e discute os poe- mas épicos da Jlíada e da Odisséia como sendo representantes de uma avançada ci- vilização que utilizava a narração como um modo de pensamento. Para Havelock, os poemas homéricos devem ser vistos como "imensos repositórios da inforrna- ção cultural, abrangendo costumes, leis e propriedades sociais que também foram armazenados"! Para ele, tais poemas encer- ravam não apenas palavras a serem memo- rizadas como também ritmos e métrica pr6- prioç que funcionavam como uma esp6cie de f6miuIa mnemônica a ser cantada. Entre os estudiosos que analisam a narrativa sob o aspecto do desenvolvi- mento cognitivo e que buscam compre- ender os esquemas cognitivos e as for- mas de pensamento que engendram e são engendradas pelo pensamento 16gic0, destaca-se Jerome Bruner. Esse psicó- logo norte-americana dedicou o livro Realidades metttais: mundos possíveis ao exame e h discussão do quão prepon- derante foi o papeI da narrativa na evo- lução da cultura humana. Nesse livro, publicado nos EUA em 1986, Bmner analisa a argumentação e a namaç5o como as duas femas de que o ser humano dispõe para construir seu pen- samento seja ele científico ou imaginati- vo, Ele não considera que uma dessas for- mas seja superior a outra; cada uma delas se adapta a necessidades humanas distin- tas em seus fins, mas têm em sua concep- ção semeIhanças. Segundo Bsuner, cada uma das duas formas de pensamento oferece caminhos distintos de fornecer experiências de cons- trução da realidade. Os modos argiimentativo e narrativo. embora complementares, são irredutíveis um ao outro e o primeiro niio representa um refinamento ou uma abstraç50 do outro. Cada um dos modos opera com seus pr6- prios procedimentos e critérios. Uma boa história e um argumento bem constmído têm suas características peculiares; porem, ambos podem ser usados para convencer uma pessoa. Suas formas de convencimen- to são diferentes: o argumento convence por sua verdade, histórias por sua semelhança com a vida (verossimilhança}. O primeiro verifica-se pelo uso de procedimentos for- mais e provas ernpírjcas. O outro estabele- ce não a verdade mas a verossimilhança. Essas formas de expressão funcionam diferentemente e a estrutura de um bem for- mado argumento lógico difere radicalmente daquela de uma história bem forjada. Em ambas utiliza-se a questão da causalidade, mas os tipos de causalidade implicados em cada um dos processos são diferentes. (O termo "então" funciona diferentemente numa proposição lógica - se x, então y - e num discurso narrativo - a rei morreu e en- 7. HAVELOCK, E. Origins o l western literacy. Toronto: OISE Press, 1976. . T11c literore wi~oliirinii iii Greecp rritrl i fs ciiliiiml c.oirseqiiriiç~s. Princeton New Jersey: Princeton Wniversity Press, 1982. 8. HAVELOCK, E. A eqrtnqfio do oorolidnrle-crrlritm escritn: uma Frmula para a mente moderna. In: OLSON. D. R., TORRANCE. N. (orgs.) Cultura escrifa e oralidade. São Paulo: Aiica, t99.5. p. 30. Apontamentos para o estudo da narrativa tão a rainha morreu). Um objetiva a busca por verdades universais, o outro por cone- x*s semelhantes entre dois eventos [mor- te, suicídio). Embora seja verdade que o mundo da histiiria, para adquirir verossimi- lhança, deva esiar conforme os c5nones da consistência lógica, ele pode violar esta con- sistência lógica (como por exemplo Kafka, Beckett). Da mesma forma a arte da retórica inclui o uso de instâncias dramlíticac para conseguir agudeza de um argumento cujas bases são principalmente lógicas, o que de- monstra que as categorizações estanques nem sempredão conta das inúmeras situa- ç k s de significação que ocorrem nas esfe- ras da comunicaçio. Brune? enfatiza que os critérios de aná- Iise de um argumento correto ou incorre- to são diferentes daqueles usados para jul- gar uma boa história e que sabemos que várias hipóteses científicas e matematicas começaram suas vidas como pequenas his- tórias ou metáforas, mas conseguiram sua maturidade através da verificação, formal ou ernpírica, e seu poder não repousa em suas origens dram aticas. ' ' O modo paradigrnático ou lógico-cien- tífico procura realizar o ideal de um siste- ma formal e "matematizado" de descrição e explanação. Ele utiliza categorizações ou conceituações, operações pelas quais categorias são estabelecidas, colocadas em instancias, idealizadas e relatadas de uma para outra forma de sistema. Seu an~iaiireiitnriuni (arsenal) de conecrivos inclui em seu lado formal idéias seme- lhantes como conjunção e disjunção, hipernomia e hiponomia, implicq5o es- trita e as fronteiras pelas quais proposi- ções gerais são extraídas de sentenças em seus contextos particulares. De maneira geral, o modo lógico-científico (ou paradigmático) negocia com causas gerais o seu estabelecimento e faz uso de proce- dimentos para assegurar a verificabilidade da referência e testar a verdade empírica. Sua linguagem 6 regulada por necessida- des de consistência e de não contradição. Seu domínio é definido não somente pe- las coisas observáveis que sua sentença bisica relata, por sua geração lógica, como tamwrn pela exposiçãto de possiveis mun- dos que podem ser logicamente gerados e testados contra coisas observ5veis - que são levadas pelas hipóteses de princípios. CUI,TURII NARRATIVA Bruner argumenta que sempre se pro- curou entender a narrativa tentando-se compreender o seu significado (ou o que o texto queria dizer), mas pouco se pesquisou em relaçzo aos processos de pensamento que engendram uma narrati- va e come esta passa a ter significado. Essa tem sido a tarefa relativamente recente de muitos psicólogos cognitivistas'O e pesqui- sadores da área de linguagem. 9. BRUNER. J. Realidades ... g. rir. 10. Bniner. como uni <ir>$ Fiind:idorcs do Centro dc Estudos Cogniiivo~ dc Harvard. em 1960. afirma quc a meta du clian~ada rcvoluçiio coTnifiw c desw ceniro era: "( ...) clcscobrir c dcscrcvcr forniulmctilc os significados que os seres hurnanrir cri:iv:ini a p ~ r t i r de scus encontros coni o nitiiido e e n t h levantar hipcíieses sobrc quc processos dc prodiiç30 dc significado esiavam implicados. El:i foc~lizou as :itivid,idcs simbblica~ que or wrez humanos crnprcgavnm para c.rlr:iir sigiiilic:~tlos nào upcnns do mundo. m.ir dc SI nicsnios." Bnincr cxplica qiic murioccdo a fnfase deixou de m a i r stibre o significado d:is rclaçtks Iiiiinnnns para privilegiar n id6i;ide "pmes~arncnto dc inforniaçócs". Çcgiindo clc. csw cnfquc p r i l i o ~ i força ctim r i pmgrewocla cornpiit:iç:rio quc passou a ser vistacomo umd espkic de nidelodc inicrigen- cin. As iniplicnçks dessa mudança dc cnfoquc sio inúmcnc e mio C vrtinente Qs prctcnK~s dcsic traballio discufi-lns. Cb BRUNER. J. Atos de sipnificaqíio. Porto Alcgrc: Artes MÇdicas. 1997. p. I6. Comunicação & Educação, São Paulo, (231 : 49 a 56, jan./abc 2002 Em Afos de sigr~i$cação, Bruner pru- cura demonstrar que é a cultura e não a bioIogia que "molda a vida e a mente hu- manas, que dá significado à ação, situan- do seus estados intencionais subjacentes em um sistema interpretativo. Ela faz isso impondo os padrões inerentes aos siste- mas simbóllicos da cultura, sua linguagem e modos de discurso, as formas de expli- cação 16giça e narrativa e os padrões de dependência mútua da vida c~rnurn" '~ . Acreditamos que o trabalho cientifi- co de Brunes possa ser visto como uma alternativa aos estudos cognitivistas que consideram a cognição humana se- gundo os padrões computacionais. Além disso, é possível notar, nos dois livros aqui mencionados, a farte influ- ência que as pesquisas e a teoria de Vygotsky lhe causaram. De acordo com Bruner, a maioria dos estudiosos, com e x c e ç h de Vygotsky, demoraram a se dar conta do valor primordial da cultura na evo1ul;ão do pensamento humano. A perspectiva sócio-histórica da teoria de Vygotsky, no que diz respeito h azivi- dade cognitiva, contempIa a visão de que o comportamento humano só pode ser entendido quando se observam os fatores históricos e sociais que o geraram. Uma das conseqüências dessa abordagem é que para Vygostyl% cognitivo e o afetivo são duas dimensões humanas inseparáveis que são construídas pelo seu inter-relaçiona- rnento e influências mútuas. Bruner, afinado com essa perspecti- va de Vygostky, argumenta: "A impli- cação mais geral é a de que a cuIitura se encontra em um constante processo de ser recriada à medida que é interpreta- da e renegociada por seus membros. Neste ponto de vista, a çuIitusa é tanto u m fórum para negociação e renegociação de significado e para ex- plicação da aqão quanto um conjunto de regras ou especificações para a ação. De fato, toda cultura mantém institui- ções especializadas ou ocasiões para in- tensificação dessa característica 'seme- lhante a um foro'. Narração de hist6fias, teatro, ciência e mesmo jurisprudência são tkcnicas para a intensificação desta função - maneiras de explorar mundos possíveis a partir do contexto de neces- sidade imediata"13. Essa sua análise acerca da psicologia cultural leva-o a formular um argumento, segundo ele próprio, bastante radical: " (...) é o impulso para construir narrativas que determina a ordem de prioridade na qual as formas gramaticais são dominadas pela criança pequena"14. A base de sua argumentação encontra- se na seguinte questão: se a ocorrência do pensamento narrativo é funcional no ní- vel do discurso, o mesmo deve ocorrer com relação i apropriação das estruturas gramaticais por parte das crianças. I 1. BRUNER. I. Atos ... op. cri.. p. 411. 12. Y YGOTSKY, L. S. Pcnssamento e linguagem. Sào Paulo: Manins Foiitcs. 1989. 13. BRUNER, J. Realidades mcntair, mundos possíveis Porto Alegre: Artes MWicns. i 998. p. 129. 14. BRUNER, J. htm ... <I/>. cir. p. 72. Apontamentos para o estudo da narrativa De acordo com seu raciocínio, a narra- tiva exerce uma função desencadeadora na aquisição da linguagem pela criança. O papel essencial da narrativa prosseguiria no decorrer da vida dos seres humanos, posto que é através da interpretação de narrativas que as pessoas agem e interagem. "Negociar e renegociar os sig- nificados por intermédio da interpretação narrativa é (. . .) um dos coroIários das con- quistas do desenvolvimento humano, no sentido ontogenetico, cul tural e filogenético desta expre~são"~~. Portanto, a atividade narrativa encerra um processo çognitivo-social na medida em que instrumentaliza o ser humano a se situar como individuo e como ser so- cial, pois: "( ...) as çrianqas reconhecem muito cedo que o que elas fizeram, ou planejam fazer, será interpretado não ape- nas pelo ato em si, mas pelo que elas con- tarão a respeito dele, logos e práxis são culturalmente inseparáveis. O cenário cultural das nossas pr6prias açoeç nos força a sermos narradore~"'~. Segundo Bruner, a criança apreende desde pequena e poder de argurnenta- çáo das narrativas e lança mão delas sempre que necessário: "A criança (. . .) logo domina as formas de linguagem para se referir a ações e suas consequên- cias, na medida em que elas ocorrem. Ela aprende em seguida que o que você faz é dramaticamente afetado por como você relata o que está fazendo, fará ou fez. Narrar torna-se não apenas um ato expositivo, mas retórico. Narrar de uma forma que coloca o seu argumento de maneira convincente requer não apenas linguagem, mas um domínio das formas canônicas, pois é necessário fazer nos- sas ações parecerem uma extensão do canônico, transformando-as atravésde circunstâncias atenuantes. No proces- so de obtenção dessas habilidades, a criança aprende a usar algumas das fer- ramentas menos atrativas do negócio retórico, engano, lisonja e tudo o mais. Mas ela também aprende muitas das formas úteis de interpretaçilo e, por meio delas, desenvolve uma empatia mais penetrante. Ela entra então na es- fera da cultura humana"". Bruner acredita que a prbpria constitriiçio de uma cuIturn humana viável s6 se torna possivel porque dispomos de narrativas que servem para inter-relacionar significados e aqões. "Estar em urna cultura viável é estar inserido em um conjunto de histórias conectadaç capazes de estabelecer vincu- 10s mesmo que essas histórias não repre- sentem um consenso " I 8 . Ao apresentar o processo de criação narrativa como sendo uma espécie de prin- cípio organizador do pensamento no qual a criança esta inserida desde a sua mais 15. BRUNER, J. Atos ... #/J. rir. p. 65. 16. BRUNER, I. Aios ... op. cii. p. 74. 17.BRUNER.J.Atm ... np .Nr .p .78 . t8. nRUN13K. J. Aios ... op- Nr. p. RS. Comunicação & Educaqão, São Paulo, (23): 49 a 56, jan./abr. 2002 tenra idade, Bruner aproxima-se muito de Bakhtin'" pois este argumenta que não aprendemos palavras descontextualisadas (neutras), aprendemos e utilizamos pala- vras impregnadas de intencionalidade tal COMO Bruner afirma acontecer com as nar- rativas - mesmo as de crianças pequenas. Portanto, podemos concluir que assim como usamos palavras de outrem, que passam a ser nossas, empregamos discur- sos narrativos e formas de narras de ou- trem que também passam a ser nossos, visto que os atualizamos, os impregna- mos e os empregamos com a nossa intencionalidade, integrando-os ao nos- so enunciado individual. Vygotsky, ao discutir o predomínio do sentido de uma palavra sobre seu significado, também abre espaço para relacionar os fenômenos psicológicos com os fenômenos sociais: "Uma pala- vra adquire seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes al- tera o seu ~en t ido ' "?~ . Resumo: O texto apresenta de manefra sucin- ta algumas ideias que nas iírtimas duas deca- das fizeram com que o interesse pelo estudo da narrativa tenha aumentado de maneira sig- nificativa. Tal interesse não se tem limitado ao tradicionalmente chamado campo de estudos dos generos liter6rios.Ao contrario, a cada dia, mais e mais pesquisadores ligados à área da cognição humana procuram, no estudo da narrativa, elementos que os levem a entender Outros pesquisadores têm relatado ex- perimentos em que fica clara a forte pre- sença da narrativa na forma de organizar os pensamentos humanos. Chafe afirma ver "( ...) as narrativas como manifesta- ções abertas da mente em ação: como ja- nelas que revelam em tempo real o con- teúdo da mente e suas operações no mo- mento mesmo em que elas se realizam"*' . (tradução livre) Segundo esse autor, "a mente é ao mes- mo tempo guiada e constrangida por es- quemas: expectativas prd-concebidas e modos de interpretação que já estão pre- parados para isso"". As perspectivas abertas pela recente abordagem dos estudos da narrativa são inúmeras e representam um terreno fértil para pesquisas sejam elas referentes ?I cognição ou ao gênero literário. Tais pes- quisas podem proporcionar subsídios im- portantes para a compreensão de como ela- boramos, representamos e expressamos nossos pensamentos de maneira narrativa. (Notes for studying narrative) Abstract The text presents, briefly, a few ideaç that have significantly increased the ínterest for the study of narrative in the past two decades. Such interest has not been Iimited to the traditional field o5 studying literary genre. On the contrary, more and more human cognition researchers have been looking, in the study of narrative, for elements that lead us to 19. "Podc-sc colocar que a palavra existe para n locutor sob t t s aspcctos: como palavra neutra da lingiia c que náo pcrtcnce a nrnguEm; como pnlavm do outro pcncncente arfi outms e que preenclic o eco (10s enunciados allicios: c iiiinlmcntc conio palavra minha. poiq. na mcdida cm que uso cssa palavra numa dctcrminada situaç5o. com unia inten- ç.50 discorsiva, ela j6 sc imprcgnoii dc minha exprcssividade. Sob cs.ws dois tiltimos aspecios. a p~lavra C cxprrissivn. nias esta expressividade, repeiimos. n5o pcncncc i própria palavri: nasce do ponto dc contaio entrc a pal.ivn c a realidade efetiva, nas circunsiUncias dc urnii siiuaç;ío mal, qtic se atualiza attnvvCs do enunciado individual". Cf. BA KHTIN, M. kktitira d n criafiio verha! Sàa Paulo: Mnnins Fontcs. 1992. p. 3 13 30. VYGOTSKY. L. S Pensamenta e linguagem. Si0 Paulo: Manins Fontes. 1989. p. 125. 2 I. ÇHAFE. W. Soiiie rliiiigi iIinr iirrrrarii~cs rctl ~isolioiir rheiiiiii(i. In: BRIlTON. B. K. & PELLEGRINI. A. D. (og.1 Narrative ... np. cii. p. 79. 22. CHAFE, W. Sotiir tl i i i igs ... np. cit. p. 80. Apontamentos para o estudo da narrativa e a desvendar os mecanismos intrínsecos ao pensamento humano. Isso tem feito com que especialistas de diversas areas (Psicologia, Neurologia, Literatura, Linguiçtica, Semiótica, Comunicação) se dediquem ao estudo siste- mático de narrativas tanto escritas quanto orais, produzidas por crianças, jovens ou adultos. A publicação de trabalhos de pesquisa que asso- ciam a narrativa a formas de pensamento e a consideram corno a responsável pelo proceç- ço de construção e representação do pensa- mento humano tem demonstrado que ainda há muito a se conhecer sobre o pensamento nar- rativo. A nova perspectiva aberta por tais traba- lhos colma os estudos sobre narrativa na or- dem do dia e iressignificam seu valor social. Palavras-chave: narrativa, linguagem narrati- va, pensamento narrativo, linguagem e cognição, cultura narrativa understand and uncwer the mechanisms that are intrinsic to human thought. This has led specialists in all areas (psychology, neurology, literature, linguistics, semioticç, cornrnunbation) to dedicate themselves to the systematiç study of narrative. both written and oral, produced by children, young people or adults. The publication of research papers that associate narrative to forms of thought, censidering it as responsible for the process of constructing and representing human thought, has demonstrated there is a loZ to be known about narrative thought. The new perspective opened by such studies puts narrative studies on the order of the day and brings new meaning to their social value. Key words: narrative, narrative language, narrative thought, language and cognition, narrative culture Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 1 1 A Construção Narrativa da Realidade* Jerome Bruner ∗∗ trad. Waldemar Ferreira Netto 1 Certamente desde o Iluminismo, senão antes, o estudo de mente se centrou principalmente em como o homem alcança o “verdadeiro” conhecimento do mundo. A ênfase nesse propósito variou: os empiricistas concentraram-se na interação da mente com o mundo externo da natureza, esperando achar a chave na associação entre sensações e idéias, enquanto os racionalistas procuraram nas próprias faculdades mentais os princípios da razão verdadeira. O objetivo, em ambos os casos, era descobrir como nós alcançamos a “realidade”, isto é, como nós adquirimos a perfeita convicção no mundo, um mundo que é, como sempre foi, entendido como imutável e que está, como sempre esteve, “lá para ser observado.” Essa questão teve um profundo efeito no desenvolvimento de psicologia, e as tradições empiricistas e racionalistas dominaram nossas concepções de como a mente se desenvolve e adquire seu apego ao “mundo real.” De fato, em meados do século, a teoria da Gestalt representou o braço racionalista desse empreendimento e a teoria da aprendizagem norteamericana, a empiricista. Ambas explicaram o desenvolvimento mental de uma maneira mais ou menoslinear e uniforme a partir da incompetência inicial na apreensão da realidade para uma competência final, num caso, atribuindo esse procedimento ao funcionamento de processos internos de organização mental, e, no outro, a algum princípio não-especificado de reflexão a partir do qual –seja reforço, associação ou condicionamento – nós passamos a responder para o mundo “tal como é.” Sempre houve visões dissidentes desafiando essas, mas as conjecturas sobre desenvolvimento mental humano foram influenciadas muito mais pelo racionalismo e pelo empiricismo do que por essas vozes dissidentes. Em tempos mais recentes, Piaget se tornou o porta-voz da tradição de racionalista clássica, ao discutir a universalidade de uma série de estágios invariantes no desenvolvimento, cada um com seu próprio conjunto de operações lógicas inerentes que * Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 ∗∗ Jerome Bruner é pesquisador de psicologia na New York University, onde ele também atuou como Meyer Visiting Professor of Law. Seu livro mais recente, Acts of Meaning, apareceu em 1990. Em 1987 ele recebeu o Prêmio Balzan por “uma vida de contribuição ao estudo da psicologia humana”. SEMANA 1 - TEXTO BASE 2 Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 2 2 sucessiva e inexoravelmente levavam a criança a construir uma representação mental do mundo real, de maneira semelhante ao cientista dedicado, imparcial. Embora ele não se dirigisse exatamente aos teóricos da aprendizagem empiricista a partir de sua esfera de ação (eles começaram a reviver por meio de suas formulações de simulações de computador de “conexionistas” da aprendizagem), as suas visões dominaram as três décadas que seguiram o Segunda Guerra Mundial. Agora há ajustes importante de seus pontos-de-vista. O desenvolvimento do conhecimento da “realidade” ou das faculdades mentais que permitem a ocorrência desse desenvolvimento, discutem os críticos, não é nem unilinear, estritamente derivacional num sentido lógico, nem ocorre, como se pensava, “a partir de uma tábula rasa.” O domínio de uma tarefa não assegura domínio de outras tarefas mesmo que, em um sentido formal, sejam governadas pelos mesmos princípios. Conhecimento e habilidade, mais do que isso, são domínios específicos e, por conseguinte, desiguais no seu desenvolvimento. Princípios e procedimentos aprendidos em um domínio não se transferem automaticamente a outros domínios. Tais resultados simplesmente não foram um “fracasso para confirmar” as hipóteses de Piaget ou da premissa racionalista de uma maneira general.1 Se a aquisição do conhecimento e das faculdades mentais são realmente específicas e não automaticamente transferíveis, isso certamente implica que um domínio é um conjunto de princípios e procedimentos, e não um artifício protético, que nos permite usar a inteligência de uma maneira mas não de outras. Cada maneira particular de usar a inteligência desenvolve a sua própria integridade – um tipo de integração conhecimento-mais-habilidade-mais- ferramenta – com o foco numa gama particular de aplicabilidade. É uma pequena realidade de nós mesmos que se constitui pelos princípios e procedimentos que nós usamos internamente. Esses domínios, observados de outro modo, constituem-se como um tesouro cultural de ferramentas. Poucas pessoas dominam a gama completa de ferramentas: nós crescemos inteligentes em certas esferas e permanecemos incompetentes em outras a cujas ferramentas pertinentes não fomos “apresentados”. De fato, pode-se ir até mais longe e discutir, como tem feito, se tais ferramentas culturais (se eu puder designar dessa maneira os princípios e procedimentos do desenvolvimento específico de um domínio) mostram pressões de seleção na evolução das capacidades humanas. Por exemplo, pode ser que as várias formas de inteligência propostas por Howard Gardner (que ele tenta validar pela evidência em comum de neuropatologias, gênio, e especialização cultural) sejam resultados da seleção evolutiva.2 O atrativo desse ponto-de-vista é que ele une o homem , seu Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 3 3 conhecimento aprendido e seu conhecimento de uso à cultura de que ele e os seus antepassados são e eram, respectivamente, membros ativos. E leva diretamente não só à questão da universalidade do conhecimento de um domínio para outro, mas à translatabilidade universal do conhecimento de uma cultura para outra. Dessa maneira, o conhecimento nunca ocorre desprovido de um “ponto-de-vista.” Esse ponto-de-vista é bastante compatível com outra tendência que surgiu na análise da inteligência humana e da “construção de realidade.” Não é uma visão nova, mas assumiu vida nova com uma roupa nova. Originalmente introduzida por Vygotsky e patrocinada por seu grande conjunto de admiradores, a nova postura é a de que produtos culturais, tais como a língua e outros sistemas simbólicos, intermedeiam o pensamento e colocam seu carimbo em nossas representações da realidade3. Em sua mais recente versão, leva o nome, depois de John Seely Brown e Allan Collins, de “inteligência distribuída.”4 O trabalho da inteligência de um indivíduo nunca é um “solo.” Não pode ser entendido sem levar em conta suas referências de reserva, notas, programas de computação e bases de dados, ou, o que é mais importante, a rede de amigos, colegas, ou mentores em quem a pessoa se apóia para ajuda e conselho. Sua chance de ganhar um Prêmio Nobel, Harriet Zuckerman me falou uma vez, aumenta bastante se você já trabalhou no laboratório de alguém que já ganhou um, não por causa do empurrão mas por causa do acesso às idéias e críticas desses que sabem mais. 2 Uma vez que se leve tais pontos-de vista tão seriamente quanto eles merecem, há algumas conseqüências interessantes e pouco óbvias. A primeira é que provavelmente há um número certo de domínios importantes apoiados por ferramentas culturais e redes de distribuição. A segunda é que os domínios provavelmente são diferentemente integrados em culturas diferentes, como os antropólogos têm insistido durante anos.5 E a terceira é que muitos domínios – especialmente esses que têm a ver com o conhecimento humano, seu mundo social, sua cultura – não estão organizados por princípios lógicos ou por conexões associativas. De fato, a maioria do nosso conhecimento sobre o conhecimento humano adquirido e sobre a construção da realidade é elaborado a partir de estudos de como as pessoas conhecem o mundo natural ou físico em vez de o mundo humano ou simbólico. Por muitas razões históricas, inclusive o poder prático inerente ao uso da lógica, Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 4 4 da matemática e da ciência empírica, nós nos concentramos no desenvolvimento da criança como um “pequeno cientista”, um “pequeno lógico”, um “pequeno matemático”. São estudos normalmente inspirados no Iluminismo. É curioso como se fez pouco esforço para descobrir como os humanos constroem o mundo social e as coisas que decorrem dele. Seguramente, alguns trabalhos recentes e desafiadores, como a magistral Interpersonal Perception de E. E. Jones, tornam claro que nós não alcançamos nosso domínio da realidade social crescendo como “pequenos cientistas”, “pequenos lógicos”, ou “pequenos matemáticos”.6 Assim, embora nós já tenhamos descoberto uma boa de como nós construímos e “explicamos” o mundo natural em termos de causas, probabilidades, muitas variações de espaço-tempo, e assim por diante, nós sabemos muito pouco sobre como nós construímos e representamos o domínio rico e confuso da interação humana. E é exatamente esse domínio que eu quero relacionar agora. Da mesma maneira que os domínios de construção da realidade lógico-científica , ele é sustentado por princípios e procedimentos.Tem ferramentas culturais e tradições disponíveis pelas quais seus procedimentos são modelados e seu alcance distribucional é tão largo e tão ativo quanto qualquer boato. Sua forma está tão familiarizada e onipresente que provavelmente será negligenciada, do mesmo modo como supomos que os peixes serão os últimos a descobrir água. Como discuti extensivamente alhures, nós organizamos nossa experiência e nossa memória de acontecimentos humanos principalmente na forma de narrativas: história, desculpas, mitos, razões para fazer e para não fazer, e assim em diante. A narrativa é uma forma convencional, transmitida culturalmente e restrita por cada nível de domínio individual de domínio e por seu conglomerado de dispositivos protéticos, colegas, e mentores. Ao contrário das construções geradas por procedimentos lógicos e científicos que podem ser destruídas por causa de falsificações, construções narrativas só podem alcançar “verossimilhança.” Assim, narrativas são uma versão de realidade cuja aceitabilidade é governada apenas por convenção e por “necessidade narrativa”, e não por verificação empírica e precisão lógica, e, ironicamente, nós não temos nenhuma obrigação de chamar as histórias de verdadeiras ou falsas.7 Eu proponho agora esboçar dez traços para as narrativas, e assim tentar construir um esqueleto a partir do qual uma explicação mais sistemática possa ser construída. Da mesma maneira que com todas as explicações de formas de representação do mundo, eu terei uma grande dificuldade para distinguir entre o que pode ser chamado de modo narrativo do pensamento e as formas de discurso narrativo. Como com todos os dispositivos protéticos, cada um habilita e dá forma para o outro, da mesma maneira que a estrutura de língua e a Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 5 5 estrutura de pensamento são mutuamente inextrincáveis. Conseqüentemente, é inútil tentar dizer o que é o mais básico – o processo mental ou a forma de discurso que o expressa –, da mesma maneira que nossa experiência do mundo natural tende a imitar as categorias de ciência familiar, assim nossa experiência fenômenos humanos leva a forma das narrativas que usamos ao contar sobre eles. Muito do que eu tenho a dizer não será nenhuma novidade para os que têm trabalhado nos campos de narratologia ou para quem se interessou por estudos críticos de formas narrativas. Realmente, a ascendência de muitas das idéias que me interessarão localizam-se nos debates que têm ocorrido entre os teóricos literários das últimas duas décadas. Meus comentários são ecos desses debates que agora reverberam nas ciências humanas – e não apenas na psicologia, na antropologia, e na lingüística, mas também na filosofia da linguagem. Por sua vez, a “revolução cognitiva” nas ciências humanas trouxe o assunto de como a “realidade” é representada no ato do conhecimento, deixando claro que não bastou comparar as representações com imagens, com proposições, com redes léxicas, ou até mesmo com veículos mais temporalmente extensos como orações. Há, aproximadamente, uma década atrás que os psicólogos não só ficaram conscientes da possibilidade da narrativa ser não somente uma forma de representar mas também de constituir realidade, um assunto sobre o qual eu terei mais para dizer. Nesse aspecto, psicólogos e antropólogos com inclinação cognitivista começaram a descobrir que foram profundamente absorvidos por seus colegas de teoria literária e de história nas perguntas semelhantes às questões narrativas textualmente situadas. Eu penso que se pode datar a “mudança de paradigma” no aparecimento de uma coleção de ensaios neste periódico em 1981: On Narrative.8 Se algo do que eu disse sobre as características de narrativa parecer chover no molhado para o teórico literário, deixe-o ou tenha em mente que o objeto é diferente. A preocupação central não é como o texto narrativo é construído, mas como ele opera como um instrumento mental de construção de realidade. E agora para as dez características de narrativa. 3 1. Diacronicidade narrativa. Uma narrativa é uma exposição de eventos que ocorrem com o passar do tempo. É irredutivelmente durativa. Pode ser caracterizada em termos aparentemente não-temporais (como uma tragédia ou uma farsa), mas isso apenas resume Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 6 6 quais são os padrões fundamentais dos eventos que ocorrem com o passar do tempo. Além disso, o tempo envolvido, como notou Paul Ricoeur, é o “tempo humano” e não o tempo abstrato ou o tempo do “relógio.”9 É o tempo cuja significação é determinada pelo significado atribuído aos eventos em seu próprio ritmo. William Labov, um dos maiores estudiosos da narrativa, também notou a seqüência temporal como essencial para narrativa, apesar de localizar essa temporalidade na sucessão de manutenções de sentido das orações do próprio discurso narrativo.10 Apesar de ser uma ajuda útil, essa análise lingüística, obscurece um aspecto importante de representação narrativa. Há muitas convenções para expressar a duração de seqüências narrativas num mesmo discurso, como retrospectos, flashbacks e flashforwards, sidédoques temporais, e assim em diante. Como adverte Nelson Goodman, a narrativa inclui um conjunto de maneiras de construir e de representar a ordem seqüencial, diacrônica, de eventos humanos, dentre os quais a seqüência de orações em “estórias” escritas ou orais é somente uma dessas maneiras.11 Mesmo os meios não- verbais têm convenções para diacronicidade narrativa, como a leitura da “esquerda-para- direita” e de “cima-para-baixo” das histórias em quadrinhos e das janelas de catedral. O que está subjacente a todas essas formas para representar narrativas é um “modelo mental” cuja propriedade definidora é o seu padrão único de eventos no tempo. E a isso viremos nós agora. 2. Particularidade. Narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência ostensiva. Mas isso é seu veículo e não o seu destino. Histórias obviamente planas caem em tipos mais gerais: homem-galantea-mulher, tiranos-recebem-seu-castigo e assim em diante. Neste sentido os pormenores das narrativas são símbolos de tipos mais abrangentes. No ponto em que o roteiro do homem-galantea-mulher apela para um ato de presentear, por exemplo, o presente servirá igualmente bem se forem flores, perfumes, ou até mesmo uma linha dourada infinita. Quaisquer desses presentes pode servir como um símbolo apropriado ou emblema de um presente. A particularidade atinge seu estado emblemático por sua incorporação em uma história que é, em algum sentido, genérica. E é exatamente em virtude dessa incorporação genérica que os pormenores da narrativa podem ser substituídos quando estiverem perdendo seu poder explicativo. A “sugestividade” de uma história, quanto à natureza emblemática de suas particularidades, é falsa, então, quanto à sua relevância para um tipo narrativo mais inclusivo. Por causa disso, uma narrativa não pode ser entendida por meio de uma incorporação particular. 3. Vínculos de estados intencionais. Narrativas são sobre pessoas que agem em um cenário, e os acontecimentos devem ser pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 7 7 atuando - com suas convicções, desejos, teorias, valores, e assim por diante. Quando animais ou objetos inanimados são colocados como protagonistas de narrativas, eles devem ser dotados de estados intencionais para a realização de seus objetivos, como a Little Red Engine das histórias infantis. Eventos físicos têm papel em histórias afetando principalmente os estados intencionais de seus protagonistas. O narrador só pode concordar com Baudelaire que o primeiro passo de um artista é substituir o homem pela natureza. Mas os estados intencionais na narrativanunca determinam completamente o curso dos eventos, uma vez que uma personagem com um estado intencional particular poderia fazer praticamente qualquer coisa. Em alguma medida, a intervenção está sempre presente na narrativa, e essa intervenção pressupõe uma escolha, um elemento de “liberdade.” Se as pessoas puderem predizer algo dos estados intencionais de uma personagem, será somente um indicativo de como ela se sentirá ou como perceberá a situação. A conexão livre entre os estados intencionais e a ação subseqüente é a razão por que explicações narrativas não podem apresentar explicações causais. Em vez disso, elas apresentam a base para interpretar por que uma personagem agiu dessa ou daquela maneira. A interpretação está relacionada com as “razões” das coisas acontecerem e não com suas “causas”, um assunto para a que voltaremos. 4. Composicionalidade Hermenêutica. Uma explicação preliminar é necessária. O termo hermenêutica implica haver um texto ou algo semelhante por meio do qual alguém esteja tentando expressar um significado e alguém esteja tentando extrair um significado. Isso, por sua vez, implica uma diferença entre o que é expresso no texto e o que o texto poderia significar, e implica também a ausência de uma solução única para a tarefa de determinar o significado para a expressão. Tal interpretação hermenêutica é requerida quando não há nenhum método racional de assegurar a “verdade” de um significado atribuído ao texto como um todo, nem um método empírico para determinar a confiabilidade dos elementos constituintes do texto. De fato, a melhor esperança de análise hermenêutica é apresentar uma explicação intuitivamente convincente do significado do texto como um todo, à luz de suas partes constituintes. Isso leva ao dilema do chamado círculo hermenêutico – no qual nós tentamos justificar a “justeza” de uma leitura de um texto em termos de outras leituras, e não por dedução racional ou prova empírica. O meio mais concreto para explicar esse dilema ou “círculo” é pela referência às relações entre os significados atribuídos ao texto como um todo (a história) e às suas partes constituintes. Como o Charles Taylor propôs, “nós tentamos estabelecer uma leitura de um texto completo, e para isto nós nos voltamos Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 8 8 à leitura de suas expressões parciais; e ainda porque lidamos com significados, com o senso-comum, em que expressões fazem sentido, ou não, somente na relação de umas com as outras, a leitura dessas expressões parciais depende das outras leituras e no, final das contas, do todo”. 12 Provavelmente não se ilustra isso melhor do que numa narrativa. As explicações dos protagonistas e dos eventos que constituem uma narrativa são moldadas em termos de uma história ou de um enredo hipotético que “contém” todos esse itens. Ao mesmo tempo, o “todo” (a história hipotética mentalmente representada) depende em sua formação de uma provisão de partes componentes possíveis. Neste sentido, como já notamos, partes e todo em uma narrativa se apóiam um no outro para sua viabilidade.13 Nos termos de Vladímir Propp, as partes de uma narrativa servem como “funções” da estrutura narrativa como um todo.14 Mas o todo não pode ser construído sem referência às partes apropriadas. Essa interdependência textual parte-todo na narrativa é uma ilustração da propriedade definidora do círculo hermenêutico, pois, uma história poderá realizar-se somente quando suas partes e o seu todo forem feitos para estarem juntos. Essa propriedade hermenêutica marca a narrativa tanto em sua construção quanto em sua compreensão, pois narrativas não existem em nenhum mundo real, esperando paciente e eternamente serem refletidas veridicamente em um texto. O ato de construir uma narrativa, além disso, é muito mais do que “selecionar” eventos da vida real, da memória ou da fantasia, colocando-os em uma ordem adequada. Os próprios eventos precisam se constituir, à luz da narrativa inteira – nos termos de Propp, para se tornarem “funções” da história. Esta é uma questão à qual voltaremos posteriormente. Voltemos à “composicionalidade hermenêutica.” Contar uma história e compreendê-la como uma história dependem da capacidade humana para processar conhecimento dessa maneira interpretativa. Trata-se de um modo de processar que foi, em grande parte, grosseiramente negligenciado por estudiosos da mente quer seja de tradição racionalista ou quer empiricista. Os primeiros têm relacionado a mente com um instrumento de raciocínio, com os meios que nós empregamos para estabelecer a verdade necessariamente inerente de um jogo de proposições conectadas. Piaget foi um exemplo notável dessa tradição racionalista. Os empiricistas, por sua vez, apóiam suas convicções em uma mente capaz de verificar as “proposições atômicas” que constituem um texto. Mas nenhum desses procedimentos, raciocínio ou verificação, são suficientes para explicar como uma narrativa é montada por um falante ou interpretada por um ouvinte. Isso é mais surpreendente, ainda, por que há evidências fortíssimas indicando que a compreensão de narrativas é uma Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 9 9 das habilidade mais precoces que aparecem nas crianças e é a forma de organizar a experiência humana mais largamente utilizada. 15 Muitos teóricos literários e filósofos da mente propuseram que nosso ato de interpretar desse modo forjou-se somente quando um texto do mundo ao qual ele presume referir está, de algum modo, “confuso, incompleto, nebuloso”.16 Indubitavelmente nós estamos mais atentos a nossos esforços interpretativos quando enfrentamos ambigüidades textuais ou referenciais. Mas eu entenderia que há uma exceção forte à idéia geral de que a interpretação só se forja em nós quando haja excesso de ambigüidade. A ilusão criada por uma narrativa bem feita, que não é esse caso, de que uma história “é como é” e não precisa de nenhuma interpretação, é produzida por meio de dois processos bastante diferentes. O primeiro deveria provavelmente ser chamado “sedução narrativa”. Grandes contadores de histórias têm mecanismos de realidade narrativa tão bons que suas narrações eliminam logo de início a possibilidade de não haver senão uma única interpretação – por mais estranha que possa ser. O famoso episódio de uma invasão marciana na radiodifusão de Orson Welles de The War of the Worlds dá um forte exemplo17. Sua exploração brilhante dos mecanismos do texto, contexto e mis-en-cene predispôs seus ouvintes a uma única interpretação, apesar de ela parecer bizarra de ponto de vista atual. Ele criou uma “necessidade narrativa”, um assunto que nós entendemos menos bem do que sua contraparte lógica, a necessidade lógica. A outra maneira para fazer uma história parecer evidente por si só e não necessitar de interpretação é a “banalização narrativa.” Quer dizer, nós podemos tomar uma narrativa como tão socialmente convencional, tão bem conhecida, tão bem de acordo com a forma canônica, que lhe atribuímos uma muito bem treinada e virtualmente automática rotina de interpretação. Essas narrativas constituem o que Roland Barthes chamou de textos de “leitores”, em contraste com os de “escritores” que desafiam o ouvinte ou leitor a uma atividade de interpretação não-ensaiada.18 Resumindo, então, não é ambigüidade textual ou referencial que impõe a atividade interpretativa na compreensão da narrativa, mas a narrativa por ela mesma. A sedução narrativa ou a banalização narrativa podem produzir uma atividade interpretativa restrita ou rotineira, mas isso não altera o ponto. A leitura interpretativa da história ou de construções de partes da história podem ser alteradas por instruções surpreendentemente pequenas.19 E num momento, um ouvinte suspeita dos “fatos” de uma história ou dos motivos ulteriores de um narrador,tornando-se de imediato hermeneuticamente alerta. Se eu puder usar uma metáfora grosseira, interpretações automatizadas de narrativas são comparáveis aos estados iniciais padronizados (default) de um computador: um modo econômico, um meio que Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 10 10 facilita a relação tempo e esforço para negociar com o conhecimento – ou, como foi chamado, uma forma “desmentalizada” (mind-lessness).20 A interpretação tem uma longa história na exegese bíblica e na jurisprudência. Ela é salpicada com problemas que ficarão mais familiares brevemente, problemas que têm a ver mais com o contexto do que com o texto, mais com as condições do contar do que com o que é contado. Deixe-me rotular melhor dois deles para identificá-los na discussão subseqüente: o primeiro refere-se à intenção: “por que” a história é contada, como e quando é contada, e interpretada como tal por interlocutores associados a posições intencionais diferentes. Narrativas não são, para usar a frase feliz de Roy Harris, “textos sem patrocinadores” para serem tomadas como se não existisse intencionalidade, como se fossem lançadas por sorte em uma página impressa.21 Mesmo quando o leitor as toma mais a maneira de declamação, ele normalmente atribui (a convenção seguinte) como se fosse emanada de um narrador onisciente. Mas esta condição não é negligenciada por parecer desinteressante. Ela deriva de um jogo de condições sociais que dão estatuto especial à palavra escrita em uma sociedade onde alfabetização é uma prerrogativa minoritária. Um segundo aspecto referente ao contexto é a questão do conhecimento partilhado – tanto do contador de histórias quanto do ouvinte, e como cada interpreta o conhecimento partilhado do outro. O filósofo Hilary Putnam, em um contexto bastante diferente, propõe dois princípios: o primeiro é o “Princípio do Benefício de Dúvida”, o segundo o “Princípio da Ignorância Razoável”: o primeiro nos “proíbe de assumir que... os peritos são de fato oniscientes” e o segundo que “qualquer falante é filosoficamente onisciente (ainda que inconscientemente).”22 Nós julgamos que suas explicações sejam adequadas. No outro extremo, nós somos condescendentes com a ignorância e perdoamos as crianças e os neófitos de seu conhecimento incompleto, “suplementando-os” conforme seja necessário. Dan Sperber e Dierdre Wilson, em sua famosa discussão sobre “relevância”, argumentaram que no diálogo nós normalmente pressupomos que o que o interlocutor nos está respondendo é tópico-pertinente, e nós freqüentemente adequamos uma interpretação para torná-lo pertinente, facilitando nossa tarefa para entender outras mentes.23 Nós também aceitamos, de fato nós institucionalizamos situações nas quais isso seja tomado como verdade, que o “registro de conhecimento” em que uma história é contada é diferente daquele no qual é aprendido, como quando o cliente conta sua história para o advogado em “conversa de vida” e é escutado na “forma de lei” de maneira que o advogado pode aconselhar sobre a legalidade (mais do que sobre a vida). O analista e o analisado em terapia são comparáveis ao advogado e o cliente numa consulta legal.24 Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 11 11 Ambos os domínios contextuais de atribuição de intenção e de conhecimento partilhado não provêem bases somente para a interpretação mas são, também, bases importantes para negociar como uma história será tomada ou como deve ser contada; um assunto reservado para depois. 5. Canonicidade e violação. Para começar, nem toda sucessão de eventos recontada constitui uma narrativa, mesmo quando é diacrônica, particular, e organizada a partir de estados intencionais. Alguns acontecimentos não justificam que se fale sobre eles e diz-se serem “sem-graça”, e não uma história. Um escrito de Schank-Abelson é um caso desses: é uma prescrição de comportamento canônico em uma situação culturalmente bem definida: como se comportar em um restaurante.25 Narrativas requerem tais roteiros como fundo necessário, mas eles não constituem por si próprios uma narrativa. Para se tornar apta a ser contada, uma história precisa ter implicitamente um enredo canônico que foi quebrado, violado, ou desviado de maneira a violentar o que Hayden White chamou de “legitimidade” do enredo canônico.26 Isto normalmente envolve o que Labov chama de “evento precipitador”, um conceito de que Barbara Herrnstein Smith faz bom uso em sua exploração da narrativa.27 Violações de cânones, como os enredos violados, são muitíssimo tradicionais e são fortemente influenciados pelas tradições narrativas. Tais violações são prontamente reconhecíveis como situações familiares humanas: a esposa traidora, o marido corneado, o inocente espoliado, e assim em diante. Novamente, eles são situações convencionais das narrativas. Mas os enredos e as suas violações também provêem bases ricas para a inovação, como testemunha a invenção literário-jornalística contemporânea do enredo “yuppy” ou a formulação da violação do criminoso de colarinho branco. E isto é, talvez, o que torna o contador de histórias inovador uma figura poderosa em uma cultura. Ele pode ir além dos enredos convencionais, levando as pessoas a verem acontecimentos humanos de um novo ponto-de-vista, de uma maneira que elas nunca haviam “notado” nem sequer sonhado. A substituição de Hesíodo por Homero, o advento de “aventura interna” em Laurence Sterne’s Tristram Shandy, o advento do perspectivismo de Flaubert, ou a epifanização de banalidades de Joyce – todas são inovações que provavelmente moldaram nossas versões narrativas de realidade cotidiana bem como mudaram o curso da história literária, coisas que talvez não sejam diferentes. É de Labov o grande crédito de ter reconhecido e apresentado uma explicação lingüística de estrutura narrativa em termos de dois componentes: o que aconteceu e por que merece ser contado.28 Foi para o primeiro destes que ele propôs a noção de sucessões Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 12 12 irredutíveis de orações. O segundo captura o elemento de violação de canonicidade e envolve o uso do que ele chama avaliação para justificar a “possibilidade narrativa” de uma história como comprovação de algo incomum. Da orientação inicial até o ponto final, a língua de avaliação contrasta com o idioma da sucessão de orações — em tempo, aspecto, ou outros marcadores. Observou-se que até mesmo em língua de sinais, a marcação de seqüência e a de avaliação são feitas em pontos diferentes no curso da narração de uma história, o primeiro no centro do corpo, o segundo ao lado. O componente de “violação” de uma narrativa pode ser criado através de meios lingüísticos como também pelo uso de um precipitador deslegitimante hipotético do evento no enredo. Deixe-me explicar. Os formalistas russos distinguiram entre “enredo” de uma narrativa, sua fábula, e seu modo de contar, o que eles chamam seu sjuzet. Da mesma maneira que há problemas de linearização na conversão de um pensamento em uma oração, há problemas na representação da fábula em seu sjuzet habilitador.29 O lingüista e teórico literário Tzvetan Todorov, cujas idéias nós posteriormente revisitaremos, argumenta que a função de uma narrativa inventiva não é tanto “fabular” novos enredos mas reapresentar aqueles já familiares que eram incertos ou problemáticos, para desafiar o leitor a novas atividades de interpretação – ecoando a definição famosa de Roman Jakobson de que a tarefa do artista é “tornar estranho o usual”.30 6. Referencialidade. Obviamente a aceitabilidade de uma narrativa não pode depender de sua correta referência à realidade, caso contrário não haveria nenhuma ficção. Realismo em ficção deve ser então realmente uma convenção literária e não uma questão de referência correta. A “verdade” narrativaé julgada por sua verossimilhança e não por sua verificabilidade. Isso parece apontar para o fato de que há algum sentido em dizer que a narrativa mais do que referir a “realidade”, pode criá-la da mesma maneira que a “ficção” cria um “mundo” para si própria – a “Dublin” de Joyce, onde lugares como St. Stephen’s Green ou Grafton Street, apesar de serem rótulos familiares, não menos reais ou imaginários do que as personagens que ele inventou para habitar esse lugares. Em um sentido talvez mais aprofundado, pode ser que as condições e os estados intencionais descritos em uma ficção “bem-sucedida” nos sensibilizem a experimentar nossa própria vida de maneira semelhante. Isso sugere que a distinção entre ficção narrativa e narrativa verdadeira não é tão óbvia quanto o senso comum e o uso nos faz crer. Por que o senso comum insiste que compartilhemos essa distinção é um outro problema, talvez relacionado à exigência de “suporte testemunhal”. Mas isso vai além da extensão deste ensaio. Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 13 13 O que nos interessa é por que a distinção é difícil de se fazer e de se sustentar. Seguramente, uma razão associa-se ao que eu chamei anteriormente de composicionalidade hermenêutica de narrativa. A composicionalidade cria problemas para a distinção convencional entre “sentido” e “referência”. Isto é, o “sentido” de uma história como um todo pode alterar a referência e até mesmo a referencialidade de suas partes componentes. Para os componentes de uma história, na medida em que se eles tornam suas “funções”, perdem o seu estatuto como expressões referentes singulares e definidas. St. Stephen’s Green torna-se, por exemplo, um tipo (type) de lugar e não um lugar específico (token), uma classe de lugares, inclusive o lugar assim nomeado em Dublin. É um referente inventado mas não totalmente livre dos significados dados ao lugar real. Da mesma maneira uma história, ao requerer uma “traição” como uma de suas funções constituintes, pode converter um evento normalmente mundano em algo que parece impelir a uma traição. E isto é o que faz a evidência circunstancial ser definitivamente e tão freqüentemente inadmissível em tribunais de lei. Dada a composicionalidade hermenêutica, expressões referentes na narrativa sempre são problemáticas, e nunca livres da narrativa como um todo. O que é significado pela “narrativa como um todo”? Isto nos conduz à lei denominada de gêneros, à qual nós nos voltaremos a seguir. 7. Genericidade. Todos nós sabemos que há “tipos” reconhecíveis de narrativa: farsa, humor negro, tragédia, autobiografia, romance, sátira, viagem, saga, e assim em diante. Mas, como Alastair Fowler tão bem põe isto, “gênero é muito menos uma toca de pombo do que um pombo.”31 quer dizer, nós podemos falar de gênero quer como uma propriedade de um texto, quer como um modo de compreender a narrativa. Mary McCarthy escreveu contos em vários gêneros literários. Posteriormente, ela reuniu alguns deles na ordem crescente da idade da protagonista feminina, acrescentou algumas seções de “avaliação” intermediárias e publicou o conjunto como uma autobiografia intitulada Memories of a Catholic.32 Ocorreu que os leitores interpretaram (indubitavelmente para o seu desânimo) as suas novas histórias como fatos adicionais de autobiografia. Gêneros parecem prover escritor e leitor com “modelos” confortáveis e convencionais para limitar a tarefa hermenêutica de atribuir sentido aos acontecimentos humanos – aqueles que narramos a nós mesmos bem como aqueles que ouvimos outros contarem. O que são gêneros de um ponto de vista psicológico? Somente representações convencionais de situações humanas? Há certamente tais situações em todas as culturas humanas: conflitos de lealdade familiar, o caprichos da verdade humana, as vicissitudes de romance, e assim em diante. Até mesmo poderia parecer que são universais, dado que os Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 14 14 clássicos podem ser apresentados em roupagem moderna e os contos de povos exóticos podem ser traduzidos localmente. Mas eu penso que a ênfase nas situações e na sua universalidade hipotética pode obscurecer um assunto mais profundo. A situação é só a forma do enredo de um gênero, sua fábula. Mas o gênero também é uma forma de contar, seu sjuzet. Até mesmo se os gêneros se especializarem em situações humanas convencionais, eles alcançarão seus efeitos usando a língua de uma maneira particular. Para traduzir o “modo de contar” de um gênero em outra língua ou cultura em que ele não existe, é necessária uma nova invenção lingüístico-literária.33 A invenção pode, é claro, estar culturalmente fora de alcance. Afinal de contas, a língua existe nos seus usos. Não é só uma sintaxe e um léxico. O assim chamado discurso interior da narrativa ocidental, por exemplo, pode ter se desenvolvido a partir do desenvolvimento da leitura silenciosa que é uma invenção muito recente. Se a reflexão produzida pela leitura silenciosa foi intensificada pela criação de novos gêneros – os chamados romances moderno e pós-modernos –, nós poderíamos esperar que tais gêneros não seriam facilmente acessíveis ao narrador não- ocidental e muito menos a um membro de uma cultura de não-letrada. Enquanto os gêneros realmente são maneiras livres mas convencionais de representar situações humanas, eles também são modos de contar que nos predispõem a usar nossas mentes e sensibilidades de maneira específica. Resumindo, enquanto são representações da ontologia social, eles também são convites a um estilo particular de epistemologia. Dessa maneira, podem ter o poder de influenciar na moldagem de nossos modos de pensamento, da mesma maneira que eles criam as realidades que seus enredos descrevem.34 Assim, por exemplo, nós realizamos inovações em gênero não somente mudando o conteúdo da imaginação mas seu também o seu modus operandi: Flaubert introduziu um relativismo de perspectiva que eliminou o narrador onisciente e a “verdadeira” história, Joyce usou da livre-associação com muita habilidade para quebrar os constrangimentos semânticos e até mesmo o convencionalismo sintático, Beckett quebrou as continuidades narrativas que nós tomávamos para assegurar a narração, Calvino converteu o pós-moderno antifoundationalism em uma forma mítica clássica, e assim em diante. O gênero narrativo, desta maneira, não só pode ser pensado como um modo de construir situações humanas mas também como um guia para usar a mente, na medida em que o uso de mente é guiado pelo uso de uma linguagem habilitadora. 8. Normatividade. Por causa de sua “narrabilidade” como uma forma de discurso basear- se em uma violação da expectativa convencional, a narrativa é necessariamente normativa. Uma violação pressupõe uma norma. Essa condição fundadora da narrativa levou teóricos Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 15 15 — de Hayden White e Victor Turner até Paul Ricoeur — a propor que a narrativa está centradamente preocupada com a legitimidade cultural.35 Uma nova geração de acadêmicos, não surpreendentemente, começou a explorar as normas implícitas inerentes ao testemunho legal, cuja forma é principalmente narrativa.36 Enquanto todos, desde Aristóteles até aos chamados gramáticos narrativos, concordam que uma história gira em torno de uma violação de legitimidade, as diferenças de como a noção de violação é concebida revela ela própria diferentes ênfases culturais. Leve-se em conta a célebre explicação de Kenneth Burke do “quinteto” dramático.37 O quinteto consiste em um Agente, um Ato, uma Cena, um Propósito e uma Função, o equilíbrio apropriado entre estes elementos define-se por uma “razão” * determinada por convenção cultural. Quando esta “razão” fica desequilibrada, quando a expectativa convencional é quebrada, problemas acontecem.E são os problemas que provêem o engenho do drama; problemas como um desequilíbrio entre um e os demais elementos do quinteto: por exemplo, Nora em A Doll’s House é um Agente rebelde em uma Cena inapropriadamente burguesa, e assim em diante. Eventos precipitadores são emblemas do desequilíbrio. A ênfase principal de Burke está em situações, fábulas. Está ontologicamente relacionada com o mundo cultural e seus arranjos, com as normas tais como elas “existem”. Na segunda metade do século vinte, como o aparato de ceticismo chega não só a ser aplicado para duvidar da legitimidade de realidades sociais herdadas mas também para questionar os verdadeiros modos pelos quais nós apreendemos ou construímos a realidade, o programa normativo da narrativa (literário e popular) mudou. O “problema” se tornou epistêmico: Julian Barnes escreveu uma narrativa atordoante no episteme do perspectivismo de Flaubert, Flaubert’s Parrot, ou Italo Calvino produziu um romance, Winter’s Night a Traveller, no qual o assunto é o que é texto e o contexto; e as teorias da poética mudam da mesma maneira. Elas, também, fazem uma “volta epistêmica”. E assim Todorov viu a poética da narrativa como um fato existente na própria língua, confiando que o uso das transformações lingüísticas dará conta de todas as ações humanas mais subjetivas, menos certas, e, sobretudo, sujeitas à dúvida sobre sua construção. Não é simplesmente que o “texto” se torne dominante, mas que o mundo ao qual ele hipoteticamente se refere é sua criação.38 A normatividade, em resumo, não é histórica ou culturalmente terminal. Sua forma muda com as preocupações do momento e das circunstâncias que cercam sua produção. Nem se requer da narrativa, a propósito, que os problemas com que lida sejam * N.T. O autor usa o termo “razão” no seu sentido matemático. Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 16 16 solucionados. A narrativa, eu acredito, é projetada mais para conter esquisitices do que para solucioná-las. Não tem que “dar certo”. O que Frank Kermode chama de “enredo consolador” não é o conforto de um final feliz mas a compreensão de situações que, ao se tornarem interpretáveis, tornam-se suportáveis.39 9. Sensibilidade de contexto e negociabilidade. Este é um tópico cujas complexidades nós já observamos nas discussões anteriores de “composicionabilidade hermêneutica” e na de “interpretabilidade de narrativa”. Ao se considerar o contexto, os assuntos familiares de intenção narrativa e de conhecimento partilhado surgem novamente. Em relação ao primeiro, muito de teoria literária abandonou o Coleridge’s dictum de que o leitor deveria suspender suas descrenças e estar nu diante do texto. Hoje nós teorizamos a resposta do leitor com livros intitulados O Leitor no Texto.40 Certamente, a visão predominante é a de que a noção de suspender totalmente as descrenças é muito mais uma idealização do leitor e, na pior das hipóteses, uma distorção do que o processo de compreensão da narrativa envolve. Inevitavelmente, nós assimilamos a narrativa em nossos próprios termos, (pela explicação de Wolfgang Iser) nós tratamos a ocasião de um recital narrativo como um ato de fala especializada.41 Nós inevitavelmente levamos em conta as intenções do narrador e fazemos assim em termos de nosso conhecimento partilhado (e, realmente, à luz de nossas pressuposições sobre o conhecimento partilhado do narrador). Eu tenho um forte pressentimento, que pode a princípio parecer countraintuitivo, de que é essa mesma sensibilidade de contexto que faz o discurso narrativo na vida cotidiana ser um instrumento viável para negociação cultural. Você conta sua versão, eu conto a minha, e nós raramente precisamos de confrontação legal para resolver a diferença. Princípios de caridade e presunções de relevância são enormemente equilibrados contra princípios de ignorância suficiente e dúvida suficiente em um grau que não se esperaria onde critérios de consistência e de verificação prevaleceriam. Nós parecemos ser hábeis para tomar versões diferentes de uma história com um certo cuidado, muito mais do que no caso de argumentos ou provas. O livro notável de Judy Dunn sobre o início da compreensão social em crianças mostra claramente que esse tipo de negociação de diferentes versões de narrativas começa cedo e é profundamente incorporado em ações sociais práticas como o oferecimento de desculpas, e não somente em narrações por si mesmas.42 Eu penso que é precisamente esta interação de perspectivas atingindo a “verdade narrativa” que levou os filósofos como Richard Rorty a abandonar o ponto de vista verificacionista da verdade em favor do pragmático.43 Nem surpreende que os antropólogos tenham se distanciado de descrições culturais positivistas de culturas na Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 17 17 direção de descrições interpretativas nas quais não se buscam categorias objetivas mas “significados”, não significados impostos ex hypothesi por um estranho, o antropólogo, mas os que chegam a partir dos próprios participantes indígenas imersos em seus próprios processos culturais de negociação de sentidos.44 Nesse ponto de vista, é a dependência do contexto da explicação narrativa que permite a negociação cultural que, quando bem sucedida, torna possível a coerência e interdependência que uma cultura pode alcançar. 10. Acréscimo narrativo. Como nós remendamos histórias juntas para torná-las um todo de algum tipo? Ciências alcançam o seu acréscimo por meio da derivação de princípios gerais, relacionando resultados particulares a paradigmas centrais, expressando resultados empíricos de forma a agrupá-los sob paradigmas alterados, e por outros incontáveis procedimentos para fazer ciência, como se costuma dizer, “cumulativa.” Isto é facilitado imensamente por procedimentos para assegurar a verificação, entretanto, como nós sabemos, critérios de verificação têm aplicabilidade limitada quando estados intencionais humanos estão relacionados, o que deixa a psicologia muito marginal. O acréscimo narrativo não é fundamental no sentido científico. As narrativas fazem acréscimos e, como insistem os antropólogos, os acréscimos eventualmente criam algo bastante variado chamado “cultura” ou “história” ou, mais livremente, “tradição”. Mesmo nossas próprias explicações caseiras dos acontecimentos de nossas vidas convertem-se em autobiografias mais ou menos coerentes centradas em um Ego que age intencionalmente em um mundo social.45 Famílias criam, similarmente, um corpus de histórias conectadas e compartilhadas; os estudos de Elinor Ochs, em desenvolvimento, sobre a conversa familiar da mesa-de-jantar começa a trazer luz para isso46. Instituições, como nós sabemos a partir do trabalho inovador de Eric Hobsbawm, também “inventam” tradições além daquelas relativas aos acontecimentos ordinariamente estabelecidos e então recebem status privilegiado.47 E há os princípios de jurisprudência que, como stare decisis, garantem uma tradição assegurando que uma vez que um “caso” foi interpretado de uma maneira específica, casos futuros que são “semelhantes” serão interpretados serão decididos da mesma maneira. À medida que a lei insiste em tal acréscimo de casos como “precedentes”, e à medida que “casos” são narrativas, o sistema legal impõe um processo ordenado de acréscimo narrativo. Surpreendentemente, tem havido pouco trabalho sendo feito neste assunto fascinante, embora haja estímulos entre antropólogos (influenciados principalmente por Clifford Geertz) e entre historiadores (estimulados pela inauguração de Michel Foucault na Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 18 18 Arqueologia de Conhecimento).48 Que tipos de estratégias poderiam guiar o acréscimo de narrativas em culturas ou tradiçõesde larga escala ou “versões de mundo”? Seguramente uma delas deve ser a imposição do falso vínculo histórico-causal: por exemplo, o assassinato de Arquiduque Ferdinand é visto como o “causador” da Primeira Guerra Mundial, ou a coroação do Papa Leão III de Charlemagne como Santo Imperador Romano no Dia de Natal em 800 é dada como “o primeiro passo” ou o precursor da promulgação da Comunidade européia em 1992. Há uma vasta literatura de precaução contra tais simplificações por filósofos e historiadores, mas nem ao menos tem diminuído essa nossa paixão por converter post hoc em proptor hoc. Outra estratégia poderia ser chamada, por falta de uma expressão melhor, coerência por contemporaneidade: a crença de que coisas que acontecem ao mesmo tempo devem estar correlacionadas. Eu fiz essa estranha descoberta, escrevendo minha autobiografia intelectual há vários anos atrás. Eu tinha descoberto no índice do New York Times o que mais estava acontecendo na mesma hora de algum evento pessoal. Dificilmente eu poderia resistir a conectar o conjunto de acontecimentos em um todo coerente – conectar, e não agrupar ou não criar vínculos histórico-causais, mas intrincando tudo em uma história. Meu primeiro artigo científico (sobre a maturação da receptividade sexual no rato fêmea), por exemplo, foi publicado por volta do momento em que Chamberlain tinha sido enganado por Hitler em Munique. Minha história original antes de consultar o New York Times Index era obscuramente sobre uma primeira descoberta feita dezenove anos antes, mais parecida com uma biografia romanceada. A história pós-New York Times Index, com Munique agora incluída, era um exercício de ironia: Nero jovem que toca violino com ratos enquanto Roma queimava! E pelo mesmo processo constrangedor, nós inventamos a Idade Média, fazendo de tudo um pedaço do todo, finalmente, a diversidade ficar muito grande e, então, inventarmos o Renascimento. Uma vez compartilhado culturalmente – distribuído no sentido discutido mais acima – acréscimos narrativos alcançam, como a representação do coletivo de Emile Durkheim, “exterioridade” e o poder de coação.49 A Idade Média passa a existir e nós passamos a falar maravilhados da “excepcionalidade” de qualquer filósofo não-tradicional ou teólogo anticonvencional que viveu em suas sombras. Eu estou dizendo que o ex-presidente e Nancy Reagan enviaram uma carta de condolência a uma personagem de novela nacionalmente conhecida que há pouco tinha ficado cego – não o ator, mas a personagem. Mas isso não é incomum: a cultura sempre se reconstitui engolindo suas próprias Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 19 19 narrativas: meninos holandeses com dedos no dique, Colombo catequizando índios, a lista das honras da Rainha, a eurofilia que advém de Charlemagne. O que cria uma cultura, seguramente, deve ser uma capacidade “local” de acrescentar histórias de acontecimentos do passado a algum tipo de estrutura diacrônica que permita uma continuidade até o presente – em resumo, construir uma história, uma tradição, um sistema legal, instrumentos que asseguram continuidade histórica senão legitimidade. Eu gostaria de terminar minha lista de propriedades narrativas neste ponto bastante “óbvio” por uma razão particular. A construção e a reconstrução perpétuas do passado provêem as formas de canonicidade que nos permitem reconhecer precisamente quando uma violação aconteceu e como poderia ser interpretada. O filósofo W. T. Stace propôs, duas gerações filosóficas atrás, que o único recurso que nós temos contra o solipsismo (a visão inexpugnável que discute que nós não podemos provar a existência de um mundo real, uma vez que tudo o que nós podemos saber é nossa própria experiência) é que as mentes humanas são semelhantes e que, o mais importante, “trabalham juntas”.50 Uma das principais maneiras pelas quais nós trabalhamos “mentalmente” em conjunto, eu gostaria de discutir, é pelo processo de acréscimo em narrativas comuns. Até mesmo nossas autobiografias, como eu discuti em outro lugar, depende de estarem colocadas em uma continuidade provida por uma história social construída e compartilhada, na qual nós localizamos nossos egos e nossas continuidades individuais.51 É este sentido de pertencer a este passado canônico que nos permite formar nossas próprias narrativas divergentes apesar de manter cumplicidade com o cânone. Talvez Stace estivesse muito preocupado com a metafísica quando ele invocou esse processo como uma defesa contra o solipsismo. Provavelmente, nós diríamos hoje que isso deve ser uma formação profilática contra a alienação. 4 Deixe-me voltar agora à premissa original de que há domínios específicos de conhecimento e habilidade e que eles são apoiados e organizados por meio de ferramentas culturais. Se nós aceitarmos esta visão, uma primeira conclusão seria que, entendendo a natureza e o desenvolvimento da mente em qualquer ambiente, nós não podemos tomar como nossa unidade de análise o indivíduo isolado que atua “dentro de si ou de sua própria pele” em um vácuo cultural. Mas, teremos de aceitar o ponto de vista de que a mente Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 20 20 humana não pode expressar seus poderes inatos sem a habilitação dos sistemas simbólicos de cultura. Enquanto muitos desses sistemas são relativamente autônomos em uma cultura determinada – as habilidades de chamanismo, de comércio especializado, e o outros semelhantes – alguns se relacionam a domínios de habilidade que devem ser compartilhados por virtualmente todos membros de uma cultura, se a cultura for ser efetiva. A divisão do trabalho em uma sociedade vai muito longe. Todos em uma cultura devem em alguma medida, por exemplo, ser hábeis para entrar na troca da comunidade lingüística, e até mesmo aceitar que esta comunidade possa ser dividida em idioletos e registros. Outro domínio que deve ser amplamente compartilhado (apesar de desagradável) em uma cultura para atuar com a efetividade requerida é o domínio de convicções sociais e de seus procedimentos — o que nós pensamos que as pessoas são e como eles têm que relacionar-se mutuamente, isso que alhures eu chamei de folk psychology e o que Harold Garfinkel chamou ethnosociology.52 Estes são domínios que são, principalmente, narrativamente organizados. O que eu tentei fazer neste artigo foi descrever algumas das propriedades de um mundo de “realidade” construído de acordo com princípios narrativos. Fazendo assim, eu fui de um lado para outro entre descrever “poderes” mentais narrativos e os sistemas simbólicos do discurso narrativo que torna possível a expressão destes poderes. É só um começo. Meu objetivo somente foi dispor o plano de base de realidades narrativas. A tarefa intimidadora que permanece agora é mostrar em detalhes como, com exemplos particulares, a narrativa organiza a estrutura da experiência humana — como, em resumo, “a vida imita a arte” e vice-versa. References 1. Veja Thinking and Learning Skills, ed. Judith W. Segal, Susan K Chipman, and Robert Glaser (Hillsdale, N. J., 1985). 2. Veja Howard Gardner, Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligence (New York, 1983). 3. Veja o livro a ser publicado por Michael Cole sobre mente e cultura; L. S. Vygotsky, Thought and Language, trad. e org. Eugenia Hanfmann and Gertrude Vakar (Cambridge, Mass., 1962), e Mind in Society: The Development of Higher Psychological Processes, ed. Cole (Cambridge, Mass., 1978); and Cultural Psychology: Essays on Comparative Human Development, ed. James W. Stigler, Richard A. Shweder, and Gilbert Herdt (Chicago, 1989). 4. Veja John Seely Brown, Allan Collins, and Paul Duguid, “Situated Cognition and the Culture of Learning,” Educational Researcher 18 (Jan.-Feb. 1989): 32-42. 5. Veja Thomas Gladwin, East Is a Big Bird (Cambridge, Mass.1970); Renato Rosaldo, Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis (Boston, 1989); Clifford Geertz, Local Knowledge; Further Essays in Interpreting Anthropology (New York, 1983); and Jerome Bruner, Acts of Meaning (Cambridge, Mass., 1990). 6. Veja E. E. Jones, Interpersonal Perception (New York, 1990). 7. Para uma explicação mais completa e mais discursiva sobre a natureza e o produto do pensamento narrativo vejo o meu livro Actual Minds, Possible Worlds (Cambridge, Mass., 1986), and Acts of Meaning. See also Theodore R. Sarbin, Narrative Psychology: The Storied Nature of Human Conduct (New York, 1986). FORMAÇÃO HUMANA: O PENSAMENTO NARRATIVO E O PENSAMENTO CIENTÍFICO INTEGRADOS Aparecida Barbosa* * Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e em Comunicação pela Escola Superior de Relações Públicas (1987). Atualmente é professora da UERN e doutoranda da UERJ/PROPED. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN Universidade do Rio de Janeiro – PROPED/UERJ aparecidabarbosa@uern.br RESUMO Este artigo procura caracterizar a formação humana, a partir de como o homem formula seus pensamentos e, com esses, age no mundo, ou seja, em quais circunstâncias são mobilizados. Não nos cabe esgotar tal assunto, e sim discuti-lo e apresentar um modelo de como esse processo possivelmente ocorre. Para tanto, trazemos os estudos acerca dos modos de pensamento estudados pelo psicólogo Jerome Bruner na década de 80: o pensamento narrativo e o pensamento científico. Esses dois modos de pensamento também são estudados por Luiz Antonio Gomes Senna, desde o final da década de 90 até os dias de hoje. Ambos os estudiosos defendem que esses dois tipos de pensamento atuam de forma independente, porém, estão inter-relacionados. Entendemos por pensamento narrativo a narrativa criada pelo homem, baseada em sua memória e na sua interação com os demais, e pensamento científico como as proposições derivadas da história narrada. O ser humano em contato com a sociedade, cultura e sua própria vivência cria suas narrativas que espelham narrativas coletivas e delas depreendem uma série de proposições. PALAVRAS-CHAVE: Pensamento narrativo. Pensamento científico. Formação humana. SEMANA 2 - TEXTO BASE 1 Introdução O homem é dotado de linguagem e pensamento, age no mundo e cria seu(s) mundo(s) interno(s), suas realidades mentais. A interação homem/ mundo, ou melhor, mundo externo/ mundo interno, acontece dialeticamente e de forma dinâmica. Partindo do pressuposto que o homem pensa e, portanto, interage ao seu redor, será analisada uma provável estratégia usada por ele para criar esta relação: pensamento narrativo e científico. Antes de entrar no debate em si dos conceitos, é bom esclarecer o escopo. Ao se falar em mundo interno, entenda mundo mental como o que é formulado na mente humana, e mundo externo tudo que os sentidos possam perceber, tudo que seja extracorpóreo. Contudo, consideramos imprescindível caracterizar pensamento, haja vista ser um conceito muito complexo e, hoje, não temos uma resposta conclusiva, mas muitas especulações a respeito. Das várias definições feitas, duas são bem claras. Para Jung: [...] o pensamento é uma função psicológica racional que estabelece relações de ordem comportamental entre conteúdos representativos, através da utilização de categorias de verdadeiro ou falso, ou como certo ou errado (JUNG, 1947, p. 542). Outra definição que pode ser complementar a essa é a de Jolivet: “[...] pensamento é a capacidade que tem o ser humano de conhecer em que consistem as coisas e as relações que elas têm entre si” (JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Edição Brasileira. Editora Agir. Rio de Janeiro,1972, p. 43.). Tomando por base esses dois conceitos, temos um terceiro que norteia nosso trabalho: pensar é relacionar dados, organizá-los em categorias e inferir deles regras. Sabe-se que o pensamento é realizado por palavras, sons, imagens visuais etc. Tomando-se por base os estudos da fala humana realizados por Vygotsky e Luria, esses pesquisadores mostram como a fala serve para resolver problemas e como ela é externalização de uma fala interna. Eles fizeram experiências e observaram que a criança, ao se esforçar para resolver os problemas, fala. Essa fala concomitante com a ação ocorre espontaneamente, quase sem interrupção até o final da atividade proposta. Ela se torna mais persistente à medida que as dificuldades aumentam. Assim, os estudiosos argumentam que é necessário e natural à criança falar enquanto resolve um problema, não apenas para contar o que está fazendo, mas, principalmente, porque está externando seu pensamento (sua fala interna). Dessa forma, a fala consiste numa ponte entre o mundo interno e o mundo externo da criança, e, através da fala, ela organiza, cria representações do mundo e consegue manipular diversos conceitos, expressando-os por meio da fala. Sendo assim, a definição de pensamento utilizada neste artigo é a seguinte: texto mental que relaciona signos e os organiza para depois inferir uma série de regras. Esse conceito traz algumas consequências, uma vez que a base do pensamento é a palavra. Assim, trazemos contribuições da linguística para entendermos seu funcionamento. De acordo com Bakhtin: [...] palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível da relação social (BAKTHIN, 2002, p. 36). Se a palavra é base do pensamento linguístico, podemos afirmar que o pensamento constrói discursos e reflete discursos construídos, tal qual um texto impresso. A linguagem é mediadora entre o homem e o mundo. Através dela, o ser humano se comunica e interage com sua sociedade, ou seja, ela é a base necessária para o pensamento humano, a base que liga os membros de uma mesma comunidade linguística. Brandão afirma que a linguagem não é neutra, ela é um suporte para representações ideológicas e gera conhecimento, que é o produto do pensamento. Para Schaff (1978): [...] a linguagem constitui, de algum modo, uma prática condensada que, aproveitando essa via como a mais sugestiva e a mais fácil, penetra no nosso conhecimento atual (SCHAFF, 1978, p.3). Assim, o homem para conhecer sua realidade usa a linguagem. Entretanto, como a linguagem é resultado de uma prática social, em que a ideologia se faz presente, o pensamento humano não é único, singular, ele é resultado do contato com o outro. Daí resulta um conceito fundamental: a subjetividade. Ao falarmos em sujeito, devemos nos esquecer do conceito romântico de subjetividade em que há um único “eu”. A análise do discurso nos demonstra que isso é uma utopia, porque o “eu” surge exatamente da relação com o outro, e isso se dá dentro de um contexto social e de uma forma dinâmica. Orlandi (1999) aponta que: A noção de discurso não comporta a ideia de linearidade presente nos esquemas primeiros da comunicação (emissor, receptor, código, referente e mensagem). Na realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não estão separados de forma estanque (ORLANDI, 1999, p.21). Iniciamos este artigo afirmando que a relação mundo interno/mundo externo é dinâmica e inseparável. Para simplificar, o mundo interno seria sinônimo de mental, e o externo, extracorpóreo. O pensamento pertenceria ao mundo interno, e a sociedade e cultura, ao externo. Se entendermos o pensamento como um texto e, portanto, um discurso, o que foi estudado até agora na Análise do Discurso pode servir de referência para estudarmos o pensamento e, consequentemente, a formação humana. Bruner (2002) defende que o “eu”, na verdade, está impregnadopelo outro e, como aquele, surge da relação, da interação social, e que nossos pontos de vistas nunca são constituídos apenas de nós mesmos, mas a partir dos pontos de vistas de outros seres humanos que estão à nossa volta. Portanto, eu não existo sozinho e, consequentemente, não me constituo sozinho. Podemos concluir, ainda que circunstancialmente, que somos formados e formamos através dos nossos pensamentos e linguagem, que não deixa de ser os nossos pensamentos, externados, falados. Para Bruner, há dois tipos de pensamento, o narrativo e o científico, os quais Senna chama de narrativo e cartesiano. Os dois, para ambos os autores, são complementares, porém não estão relacionados. Este artigo defende que esses dois tipos estão relacionados, são dois tipos de discursos, e um pode alimentar o outro. Pensamento narrativo e científico segundo Bruner Jerome Bruner, psicólogo da Universidade de Nova York, não chega a uma definição clara do que seja o pensamento. Entretanto, ele explica, por uma série de exemplos, que há dois tipos de pensamento: o narrativo e o científico. No capítulo do livro “Realidade mental: mundos possíveis – ‘Dois Modos de Pensamento’”, Bruner aponta as distinções entre o modo de pensar narrativo e o científico. O autor defende a tese de que esses dois modos de funcionamento cognitivo constroem realidades, ordenando a experiência cada um da sua forma. Apesar disso, ambos os discursos seriam complementares entre si, sem que um se reduza ao outro. O pensamento científico, que Bruner chama de paradigmático, se associa ao discurso teórico e ao logos, ou seja, são utilizados argumentos para estabelecer "o ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação”. Para isso, um cientista ou filósofo procura criar categorias ou conceitos, relacionando-os uns com os outros até formar um sistema geral baseado em hipóteses fundamentadas, isto é, que podem ser demonstradas como verdadeiras. Por sua vez, a narrativa, mítica ou literária, aborda a maneira pela qual as intenções humanas se comportam nas mais diversas situações. Nesse sentido, as histórias que são criadas traçam relatos de ações humanas em circunstâncias de experiências localizadas num tempo e espaço definidos, enquanto o discurso teórico tenta ir além dos fatos particulares, visando formulações de princípios gerais e abstratos: As realidades narrativizadas, eu suspeito, são demasiadamente onipresentes, sua construção é demasiadamente habitual ou automática para ser acessível à fácil inspeção. Vivemos em um mar de histórias, e como os peixes que (de acordo com o provérbio) são os últimos a enxergar a água, temos nossas próprias dificuldades em compreender o que significa nadar em histórias. Não que não tenhamos competência em criar nossos relatos narrativos da realidade longe disso -, somos, isso sim, demasiadamente versados. Nosso problema, ao contrário, é atingir uma consciência do que fazemos facilmente de forma tão automática, o antigo problema da prise de conscience (BRUNER, 2001, p.140). Segundo Bruner (2002), esses dois tipos de pensamentos funcionam de forma diferente no ordenamento da experiência pessoal do indivíduo e na construção da realidade. Para ele, os dois são complementares, porém irredutíveis. Este artigo aborda a relação existente entre o pensamento narrativo e o científico e como o primeiro pode desencadear o segundo e, consequentemente, permitir a formação do sujeito social real, não o idealizado pela instituição escolar, contribuindo, efetivamente, para uma autoformação; defende-se a coexistência desses dois mundos: o narrativo e o científico. Abaixo, o resumo das principais características de cada um, segundo Bruner: Cada uma das maneiras de conhecimento tem princípios operativos próprios e seus próprios critérios de boa formação. [...] ambos podem ser usados como meio de convencer o outro. Não obstante, do que eles convencem é fundamentalmente diferente: os argumentos convencem alguém de sua veracidade, as histórias de sua semelhança com a vida. O primeiro comprova através de um possível apelo a procedimentos para estabelecer provas formais e empíricas. O outro estabelece não a verdade, mas a verossimilhança (BRUNER, 2001, p. 140). Resumindo, o pensamento científico relaciona-se com: a) Busca pela verdade universal; b) Convencimento do interlocutor fornecendo provas empíricas; c) Causalidade (se x, então y); d) Formação de proposições; e) Preenchimento de um ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação, empregando a categorização ou a conceituação; f) Consistência; Já o pensamento narrativo estaria na outra ponta, com as seguintes características: a) Busca a verossimilhança; Podemos dizer que Bruner entende verossimilhança tal qual Aristóteles: [...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade (BRUNER, 2001, p.43). b) Apresenta condições prováveis entre dois eventos; c) Transgride a consistência podendo ser contraditório; d) Busca a abstração, transcende o particular; e) Existência de gatilho para mudança de um plano para o outro. Bruner, ao discorrer sobre a importância que a narrativa adquiriu numa sociedade regida cada vez mais pela forma de se contar um acontecimento do que pelo acontecimento em si, afirma: Na última metade de nosso século (XX), o drama tornou-se epistemológico, preso não apenas “por aquilo que acontece”, mas pelo enigma de como, em um mundo turbulento, passamos a conhecer ou a construir nossas realidades (ARISTÓTELES, 2005, p. 43). Bruner (2001) enfatiza que a narrativa é um dos meios pelos quais é possível desenvolver o pensamento metacognitivo1. Para ele, é por meio das histórias que o indivíduo se conhece e conhece o outro; sendo assim, as escolas deveriam adotar a narrativa como ferramenta para o ensino das mais diversas disciplinas. Ele mesmo descreve como seu 1 No artigo de Célia Ribeiro, há uma análise do que significa a palavra metacognição. Para a autora, não há um consenso entre os estudiosos; de maneira geral, ela resume: “a metacognição diz respeito, entre outras coisas, ao conhecimento do próprio conhecimento, à avaliação, à regulação e à organização dos próprios processos cognitivos. De acordo com Weinert (1987), as metacognições podem ser consideradas cognições de segunda ordem: pensamentos sobre pensamentos, conhecimentos sobre conhecimentos, reflexões sobre ações”. Não cabe entrarmos nessa discussão, entendemos metacognição como o ato de pensar sobre o próprio pensamento. interesse pela ciência fora despertado por um professor de seu colégio, ao narrar experiências científicas ao invés de usar somente fórmulas. Portanto, a narrativa adquire um papel fundamental na constituição do indivíduo e do ser social. Porém, o papel da narrativa como estruturadora da forma de pensar não se deve apenas ao fato de que contamos e/ou ouvimos histórias, mas ao fato de que nos constituímos seres pensantes devido ao desenvolvimento da fala interior, que, por sua vez, é decorrente da fala exterior. A perspectiva sócio-histórica da teoria de Vygotsky, no que diz respeito à atividade cognitiva, contempla a visão de que o comportamento humano só pode ser entendido quando se observam os fatores históricos e sociais que o geraram. Bruner, concordando com Vygotsky, argumenta: A implicação mais geral é a de que a cultura se encontra em um constante processo de ser recriada à medida que é interpretada e renegociada por seus membros. Neste ponto de vista, a cultura é tanto um fórum para negociação e renegociação de significado e para explicação da ação quanto um conjunto de regras ou especificações para a ação. De fato, toda cultura mantém instituições especializadas ou ocasiões para intensificação dessa característica “semelhante a um foro”. Narração de histórias, teatro, ciência e mesmo jurisprudência são técnicas para a intensificação desta função – maneiras de explorarmundos possíveis a partir do contexto de necessidade imediata (VIGOTSKY, 1989, p.44). Este artigo concorda com Bruner em sua maioria, porém, acredita que não só a narrativa possui papel importante para a interação social e formação humana; defendemos e acreditamos que o pensamento científico coexiste ou precisa coexistir com o narrativo para exercer o papel da formação humana. Por esse motivo, recorremos a Senna (2002), que nos dá um quadro sinóptico dos modos de pensamento: Modo Narrativo Modo Científico Centrado na realidade presente e imediata de mundo. Centrado na percepção de uma fração da realidade de mundo, de caráter abstrato e simbólico. Despreza o futuro e dedica pouca atenção à análise do passado. Privilegia a análise do passado, como forma de preparar um futuro melhor. Opera sob um esquema de atenção multidirecional, projetando-se, ao mesmo tempo, sobre diversos focos de atenção. Opera sob um esquema de atenção concentrada em apenas um foco, desprezando o seu contexto. Demanda um esquema psicomotor em constante ação diante do mundo, resultando no privilégio ao movimento e à agitação. Demanda um esquema psicomotor em repouso diante do foco de atenção, resultando no privilégio ao estático, à calma, ao silêncio. Privilegia esquemas de ação que se organizam à medida que agem sobre o mundo. Privilegia esquemas de ação que somente se põem em ação sobre o mundo após planejamento prévio. Privilegia acordos orais, negociados caso a caso, conforme as relações que se estabelecem a cada contrato. Privilegia acordos escritos, normatizados e formalizados, não necessariamente controlados por acordos interpessoais. Centraliza a experiência intelectual no sujeito, caracterizando-a como fenômeno profundamente marcado sócio- afetivamente. Centraliza a experiência intelectual no objeto/foco da atenção, caracterizando-a como fenômeno isolado de questões afetivas pessoais. O autor evidencia o trânsito desses dois modos de pensamento, em circunstâncias distintas, mas que esse movimento ou essa formação humana necessita urgente da legitimação da instituição escolar. Antes, porém, precisa ser (re)conhecida pelos professores, que, por sua vez, necessitam tomar conhecimento dessa nova agenda (ou não tão nova assim) de formação humana. Pensamento paradigmático derivado do pensamento narrativo: seu papel sócio-cultural Usaremos pensamento narrativo como texto mental que constrói sua realidade de acordo com o discurso narrativo, ou seja, este possui as características descritas por Bruner e Aristóteles. E pensamento científico, como o texto mental que constrói a realidade de acordo com o discurso científico, este com as características descritas por Bruner, e tendo como base de seu funcionamento as proposições. Como já foi dito, a relação mundo externo / mundo interno não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo a termo, isto é, não passa diretamente de um a outro. Não há uma sequência em que primeiro entra a informação, depois há a decodificação; esses processos são (quase) simultâneos, principalmente na mente dos jovens contemporâneos, onde a mente é multidirecionada, os dedos e as mãos conseguem ser tão rápidos quanto o pensamento. Logo, a representação interna do mundo é um sistema aberto, não só recebe as informações externas, como as filtra e as devolve reconstruídas. Esse processo é norteado pelo pensamento, que organiza essas informações em discursos, principalmente de dois tipos: narrativo e científico. Podemos resumir o processo da seguinte forma: a memória guarda não só a vivência particular do indivíduo, mas também valores da sociedade na qual o sujeito se insere, e os gêneros do discurso. Estes fatores constituem a estrutura do aparelho perceptivo do sujeito, a língua com a qual este pensa e que o dota de um aparelho conceitual determinando uma articulação e uma percepção determinadas da realidade, e os interesses de classe ou de grupo que decidem conjuntamente a escolha pelo indivíduo do seu sistema de valores, etc. A estrutura do pensamento narrativo está de acordo com os gêneros do discurso internalizados, por isso a não dissociabilidade desses dois modos de pensamento, conforme Bruner: [...] impossível distinguir de maneira bem definida o que é um modo narrativo de pensamento e o que é um “[...] texto” ou discurso narrativo. Cada um deles dá forma ao outro, do mesmo modo que o pensamento torna- se inextricável da linguagem que o expressa e que acaba moldando-o [...]. Já que nossa experiência no mundo natural tende a imitar as categorias de nossa ciência conhecida, nossa experiência dos assuntos humanos passa a assumir a forma das narrativas que utilizamos ao contá-los (BRUNER, 2001, p.129). Bruner está de acordo com o estudo de Bakhtin, que afirma que o homem ao longo da vida domina vários gêneros e estes são usados nas diversas esferas de nossa vida social, como uma espécie de pré-condição para que nossa capacidade de comunicação verbal: Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática. A língua materna – a composição de léxico e sua estrutura gramatical –, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam (BAKTHIN, 1992, p.301). O homem é um ser que interage com seu meio e nele forma-se, constitui-se. As informações externas são captadas por seus sentidos e reorganizadas em sua mente. Essa realidade capturada não única, nem virgem, ela já traz consigo muitos valores, conceitos e pré-conceitos do indivíduo; afinal, o homem está inserido em uma teia sócio-cultural da qual ele não pode se ver desprendido. Essas redes de conceitos e valores são geradas, armazenadas na memória e desempenham papel no desenvolvimento e na formação humana. Para facilitar nossa análise, vamos buscar exemplos de como o homem relaciona o pensamento narrativo ao científico cotidianamente. O homem vive o cotidiano e age sobre ele. Heller (1972) afirma que essa ação é fragmentada, já que o ser humano não dá conta da totalidade de acontecimentos ao seu redor; há um recorte do que lhe é apresentado. O próprio cotidiano, em sua temporalidade rotineira, impõe aos homens a necessidade de reações imediatas. Essas reações rápidas acabam gerando ultrageneralizações, que funcionam como um recurso operacional-prático. A formação de juízos provisórios é necessária para atender às demandas da vida social cotidiana, mas podem cristalizar-se em preconceitos, ultrageneralizações negativas, podendo resultar desse processo a alienação dos sujeitos. As características do comportamento cotidiano, sejam a espontaneidade, pragmatismo, economia, julgamentos provisórios baseados em precedentes, analogias, imitações, são os elementos, segundo Heller(1972), que tornam a vida cotidiana a esfera da realidade. Pode-se afirmar que temos os estereótipos e, em seu extremo, o preconceito. Para Kosik (1989): A vida cotidiana é antes de tudo organização, dia-a-dia, da vida individual dos homens; a repetição de suas ações vitais é fixada na repetição de cada dia, na distribuição do tempo em cada dia (KOSIK, 1989, p. 9). Ou seja, as nossas ações, os nossos conceitos empregados são circunstanciais, assim como os nossos discursos, pois revelam-se num determinado contexto, atendendo a demanda de certas situações. O estereótipo pode nos servir como ferramenta de análise. Tomando o cotidiano como descrito acima, imaginemos a seguinte situação: um novo vizinho se muda para seu prédio. Você observa que ele tem tatuagens e carrega uma guitarra. Automaticamente, seu cérebro aciona sua memória, que busca situações parecidas em que haja uma pessoa com tais características. Histórias internas são acionadas, histórias pertencentes a diversos gêneros. Você pode relacionar a sua adolescência ecriar uma história saudosista, ou associar o rock a uma história cheia de referências às drogas e delinquência. O resultado desse pensamento narrativo é uma proposição, ou seja, um pensamento paradigmático: - Se for uma história saudosista, provavelmente criará um estereótipo positivo, proposição, o rapaz deve ser gente boa. - Se for uma história com referências negativas, provavelmente criará um estereótipo negativo, a proposição, esse cara é um viciado. “Gente Boa” e “esse cara é um viciado” são proposições, conclusões de nossas narrativas internas que pode fazer-nos tomar uma atitude, no caso, afastar-se ou não do vizinho. Essa vivência alimentará memória, que será acessada em caso parecido. Outro exemplo é a imagem do Brasil no exterior. Garcia (2001), em sua tese de doutorado “O IT Verde e Amarelo de Carmen Miranda (1930-1946)”, analisa a trajetória de Carmen do começo de sua carreira até o estrelato em Hollywood. O que nos interessa aqui é percebermos que a cantora passou a representar, no imaginário americano, uma referência da cultura brasileira, e os intelectuais da época aprovaram essa imagem porque era uma forma de nos diferenciarmos da cultura norte-americana. Mas não é bem assim; Carmen fez todo esse sucesso por representar o exótico Brasil, país das bananas, e possuir todo o glamour das atrizes americanas. Carmen Miranda, trajada com a indumentária estilizada da baiana, correspondia à imagem exótica que os yankees tinham do povo latino- americano, ao mesmo tempo em que se identificava à estética do entretenimento yankee. (GARCIA, 2001, p.100) Assim, este exemplo nos mostra como o diálogo foi travado entre os americanos e os brasileiros: para os primeiros, Carmen representava o exótico com um tom de glamour, para os segundos, um diferencial entre as duas culturas. Imaginemos que o pensamento narrativo criado por um americano seja uma história de aventura em meio à floresta Amazônica e daí derive a proposição: “Brasil, um país exótico”. E para o brasileiro, uma cantora que representasse o país nos Estados Unidos é personagem de história de sucesso e glamour e disto deriva-se a proposição: “Carmem é uma estrela”. Por certo, todos nós temos exemplos de conhecidos que viajaram para os Estados Unidos e, tão logo desembarcaram no aeroporto, passaram por entrevistas nada agradáveis, por termos fama de lá querermos nos fixar ou, no caso de mulheres sozinhas, terem o estereótipo de quererem “se dar bem” ou se prostituírem. O importante é enfatizarmos como o pensamento narrativo e suas proposições são um processo em constante reavaliação, ou seja, dinâmico. Além disso, esses pensamentos conjugados constroem a realidade refletindo a cultura e a sociedade. Sendo assim, é uma forma natural e espontânea de nos conhecer e conhecer outro. Considerações finais Este artigo parte da seguinte premissa: pensamento é um texto mental que relaciona signos e os organiza para depois inferir uma série de regras. Como um texto carrega em si as características de um texto impresso: é ideológico e polifônico. Cria diálogo com a sociedade, a cultura, refletindo-a e interagindo com ela. Possui essencialmente duas formas de expressão: a narrativa e a proposição. De acordo com Bruner e Senna, o pensamento narrativo não está relacionado ao pensamento científico; eles são duas instâncias opostas. Nós defendemos que não, de uma narrativa pode derivar uma proposição e esta guiar uma ação do sujeito. Um exemplo didático para tanto é a construção de estereótipos. Basta fazermos um exercício mental para percebemos como estes pensamentos estão relacionados e como sua articulação pode servir de base para criarmos a representação da cultura, da sociedade e, claro, de nós mesmos; ou seja, a nossa autoformação, que urge novas formas de ser, pensar e agir. 117 CONTRACAMPO *Professor da UFMG. R E S U M O Esta contribuição discute as narrativas orais como uma espécie de comunicação cotidiana, abordadas sob duas perspectivas complementares: as formas e as funções. A análise formal trata a estruturação da sintaxe narrativa, segundo a tradição inaugurada pela análise estrutural de Labov/ Waletzky. O aspecto funcional trata também a função argumentativa (St. Toulmin), estabelecida entre a própria narrativa e a inserção na conversação. O recorte empírico é composto por narrativas orais de sonhos, já tratado em outros textos, na perspectiva da análise do discurso. ABSTRACT In this article, I analyze oral narratives as a form of everyday communication that can be analysed under two complementary perspectives: its forms and functions. The formal analysis deals with the arrangement of narrative syntax in conformity to the tradiction initiated by Labov/Waletzky structural analysis. The funcional aspect deals also with the argumentative function (St. Toulmin) instituted between the narrative itself and its insertion into the conversaton. The empirical indentation is composed by oral narratives of dreams, already observed in other texts, under the viewpoint of discourse’s analysis. Narrativas orais: formas e funções Michael Hanke* SEMANA 2 - TEXTO BASE 2 118 CONTRACAMPO Introdução Embora não exista uma definição, consensualmente aceita na ciência, para o termo “narrativa”, fica claro que narrar é uma forma básica de atividade lingüística. É um tipo próprio da comunicação cotidiana ou, segundo Wittgenstein, um “jogo de linguagem” (PU 23). Mesmo Aristóteles já considerava que a narrativa é uma dentre as formas (schemata) de linguagem.1 A habilidade de narrar, sendo específica do ser humano2 e sua inteligência, é parte integrante da sua competência lingüística e simbólica.3 Como produto arcaico da cultura humana, as narrativas servem, dentre outras funções básicas, para acumulação, armazenamento e transmissão de conhecimentos. Segundo o psicólogo Jerome Bruner (1991), as narrativas servem como meio de percepção e a nossa realidade é resultado de uma construção narrativa. Narrar contribui para a estruturação da experiência humana, pois “organizamos nossa experiência e nossa memória principalmente através da narrativa” (Bruner 1991, 14, 21). A partir das narrativas são construídas teorias sobre a realidade (Ochs et al. 1992), e, sendo assim, elas servem como “ponto de fuga através do qual torna-se possível a apreensão do cotidiano” (Mendonça et al. 2001, 9). Elas são meios de sociabilidade, pois através delas as experiências individuais são comunicadas e tornadas “públicas” ou socialmente conhecidas. Uma vez que uma narrativa é sempre proferida e fabricada por alguém, vista de longe esta pode parecer uma atividade monológica. Mas nesse jogo lingüístico sempre participam também os ouvintes e a construção de uma narrativa precisa da cooperação destes, e, como não há narrativa sem narrador e sem ouvinte (Barthes 1988, 125), a narrativa verbal é construída dialogicamente, num discurso. 1. Formas Uma narrativa é mais freqüentemente caracterizada como um ato de linguagem que faz referência a uma série de ações ou acontecimentos situados no passado, sejam esses reais ou ficcionais.4 Labov/Waletzky definem narrativa como um método para recapitular experiências passadas, capaz de estabelecer uma relação entre uma série de sentenças e uma série de acontecimentos. A narrativa faz uso da possibilidade de representação simbólica da linguagem e representa algo passado em termos de tempo e ausente em termos de espaço. Assim, ela transcende tempo e espaço, como uma referência a algo que não está presente no momento ou como representação de algo imaginado (Swearingen 1990, 181). Então a narrativa tem dois níveis: o ato de fala (em inglês: “story”) e a referência aos acontecimentos, aos objetos e às circunstâncias (em inglês: “history”). Através do “story”, que conta e seleciona os detalhes relevantes, a “history” se torna acessível. 119 CONTRACAMPO Com relação à natureza dos elementos obrigatórios numa narrativa não há um consenso entre os teóricos. A estrutura básica, obviamente,é composta por início, meio e fim; e, segundo Chafe (1990, 94), uma narrativa precisa de uma introdução, de um momento (quando?), um local (onde?), personagens atuantes (quem?) e uma situação de fundo (“background activity”), no qual o conteúdo da narrativa se desenvolve. Este conteúdo deve ser constituído por uma série de eventos conectados que foram realizados ou experienciados pelos sujeitos (Bal 1985, 8). Para Labov/Waletzky, a exigência mínima para se caracterizar uma narrativa é uma ligação temporal entre pelo menos duas sentenças. Apesar da dificuldade de se caracterizar uma narrativa cotidiana a partir de elementos obrigatórios, estas podem ser identificadas facilmente por causa da sua natureza dialógica, ou seja, a inserção num discurso. Para iniciar uma narrativa, o narrador precisa saber se os seus ouvintes estão interessados e dispostos a ouvi-la. Assim ele tem que sinalizar que ele quer produzir isto e “pedir permissão” para fazê-lo. Uma vez que aceitam, os ouvintes têm obrigações (mostrar interesse, não interromper, rir no momento certo ou reagir adequadamente, etc.), como também o narrador tem obrigações tais como terminar a narrativa corretamente, esclarecer partes que precisam informações suplementares, etc. No final da narrativa, o pacto sobre essas obrigações é anulado e as regras do discurso não-narrativo reinstaladas. Sendo assim, é indispensável uma sinalização de que a narrativa chegou ao fim. Uma vez identificadas através das marcações de início e fim, as narrativas podem ser isoladas como partes de um discurso e, assim segmentadas, terem a sua estrutura analisada. A análise formal da sintaxe narrativa A análise formal da estruturação da sintaxe narrativa foi inaugurada por Labov/Waletzky (1967), que através de uma análise estrutural, deram início à pesquisa linguística na área de narrativa conversacional e orientaram trabalhos posteriores nessa area.5 Segundo Labov/Waletzky, produtos da tradição literária ou verbal têm estruturas narrativas, que só podem ser analisadas segundo a sua função no contexto de origem. Essas estruturas fundamentais podem ser encontradas em versões verbais de experiências pessoais, em narrações cotidianas de pessoas comuns. A partir destas – e não nos produtos de alto nível da literatura – eles desenvolveram um sistema para analisar narrações cotidianas. Labov/Waletzky estabeleceram distinções entre as propriedades formais e funcionais. Propriedades formais são estruturas típicas, que podem ser encontradas tanto no nível de sentenças como também na narrativa como um todo, e permitem compreender a estrutura interna das narrativas. A análise funcional destaca que, uma série de elementos colocados numa ordem 120 CONTRACAMPO temporária ainda não constituem uma narrativa, mas apenas uma descrição. Para que seja constituída uma narrativa, é necessaria uma função, ou seja, um motivo pelo qual ela é contada, um interesse de ordem pessoal. Enquanto as propriedades formais correspondem ao nível de referência dos acontecimentos, as propriedades funcionais correspondem à avaliação pessoal do narrador, seus interesses e seus motivos. Essa é também a perspectiva de Astington, Feldman, Bruner et al.,6 segundo a qual uma narrativa é constituída de dois planos: um plano de ação, que contém o nível referencial, e um plano de consciência, no qual está presente o conhecimento, o pensamento e o sentimento, tanto daqueles que participam quanto daqueles que protagonizam a narrativa. Uma narrativa completa tem, segundo Labov/Waletzky, os seguintes elementos estruturais: 1. A síntese (“abstract”, do que se trata?), que resume a narrativa e indica qual a natureza do seu conteúdo; por exemplo7: “Trata-se em geral da questão de se procurar um banheiro e encontro grandes dificuldades em achar um. Esse sonho é muito mais complexo, mas eu consigo me lembrar muito bem dele. Estava ...” 2. A orientação (“orientation”, quem? quando? o quê? onde?), que dá referências do local, hora, da cena e das pessoas envolvidas; exemplo: “Ontem eu sonhei que minha mãe mudou-se para Paris, e eu arrumei um apartamento para ela lá num prédio velho e alto, no qual eu subi pelo elevador ....”. 3. O episódio inesperado (“complication”, o que aconteceu?), exemplo: “Estava andando de bicicleta, e o meu nenê estava na cesta da bicicleta. De algum modo ele caiu, e eu o perdi. Mas não me lembro como ... de repente eu percebo que ele está em cima de um muro amarrado e eu estou embaixo na rua gritando: “Não precisa chorar, eu vou pegar você”. 4. A avaliação (“evaluation”. qual reação?), que está ligada ao foco central. Numa outra contribuição (1972), Labov aprofunda o conceito de avaliação, classificando tipos diferentes. A avaliação deixa de ser um gesto isolado, feito num instante exato e único da narrativa, para estar presente de forma contínua e diversificada no desenrolar da narrativa. Exemplo: “A noite passada (ha!ha!ha!) depois do meu casamento na igreja (ha!ha!ha!) eu estava dentro do carro e (ha!ha!ha!) eu vi que no lugar das latinhas amarradas no pára- choque (ha!ha!ha!) tinha um ciclista (rir)”. Enquanto o texto sublinhado é articulado acompanhado de risos (“ha!ha!ha!”) e corresponde à avaliação contínua no desenrolar da narrativa; o “rir” final, que sucede a fala, corresponde à avaliação feita num exato instante. Este último não compõe a fala, mas compõe a narrativa. 5.Uma solução ou um resultado (“result”, qual o desfecho?). No sonho sobre uma visita a Paris, a protagonista enfrenta várias aventuras: o elevador serve como avião, ela sobrevoa a paisagem, consegue pilotá-lo como um 121 CONTRACAMPO carro, supera vários obstáculos como, por exemplo, a fiação elétrica, e finalmente: “Voltei para o prédio, entrei, apertei o “cinco”, subi até minha mãe, deixei o elevador, estava no quinto andar, e comentei com minha mãe: “Não usa o elevador, de jeito nenhum!” Assim, eu acordei. Era bem estranho. Também engraçado.” Todos esses elementos podem ser entendidos como respostas para as perguntas correspondentes e constituem a estruturação da sintaxe narrativa. 2. A função argumentativa Além das várias funções já mencionadas, as narrativas podem servir como argumentos (McGuire 1990, 231). Devido à sua estruturação sintática, a narrativa tem uma coerência lógica interna, a qual estabelece uma relação entre as suas partes constitutivas. Por ser uma forma de comunicação cotidiana, a narrativa sempre faz parte de um discurso falado, o que implica uma situação concreta de narrar “hic et nunc”, quer dizer, um momento definido, uma situação, circunstâncias espaço- temporais. Parte da situação é constituída pelos parceiros da comunicação e pelo tema do discurso. Essa conexão temática do discurso e as suas contribuições, ou seja, a rede temática, está relacionada à coesão argumentativa e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato lingüístico, a narrativa é construída tendo em vista todos esses parâmetros (situação, parceiros, rede temática/argumentativa etc.), e no modo como esses são percebidos pelo narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa está conectada ao discurso como um todo. A comunicação tem, em geral, um caráter argumentativo; até uma fala trivial, como parte de um discurso, tem uma conexão argumentativa, pois ela pode se tornar objeto de uma justificativa (“por que você falou isso?”). Sendo ação, ela implica uma intencionalidade. A narrativa como ação (lingüística) também desempenha uma função em relação a essa intenção. Assim, aplicando uma abordagem mais abrangente da argumentação, cada contribuição para um discurso ou fala está numa relação argumentativa, como foi mostrado por Toulmin (1958, 109-111). Para o autor cada argumentação tem os seguintes elementos: uma exposição (dado, “datum”, D), uma conclusão (C), uma modalidade (ou força) de dedução entre exposição e conclusão (modality, Q) e uma regra ou “licença de inferir” (razão, “warrant”, W).8 Este último (W) está novamente baseado em evidências diferentes (“backing”, B), e vale se não for objeto da regra de excessão(R). Esse esquema pode ser aplicado para a estrutura interna da narrativa assim como para a própria narrativa e a inserção desta na conversação. Dentro da narrativa, uma frase anterior pode funcionar como exposição para uma frase posterior e para a conclusão. Se por exemplo uma síntese anuncia “alguma coisa interessante” ou “engraçada”, os passos seguintes têm que 122 CONTRACAMPO cumprir essa anunciação e apresentar um conteúdo apropriado. Caso contrário, poderá ser cobrada a modalidade: “por que contou, se não é engraçado?”. Assim como as narrativas, a organização do discurso é um procedimento lógico que usa de argumentos (Petrilli 1991, 142). Narrativas têm um caráter argumentativo: se contadas como exemplos, elas desempenham uma função de criar evidências ou uma licença de inferir para uma exposição ou um complexo de exposição-conclusão. Assim, se conclusões são tiradas a partir delas, elas servem como dado ou exposição. As três formas da inferência lógica, segundo Peirce, a indução, dedução e abdução, são relevantes devido a sua universalidade, uma vez que estão presentes em qualquer tipo de pensamento, podendo ser encontradas tanto na lógica científica quanto na comunicação cotidiana, e portanto, nas narrativas cotidianas. Conseqüentemente, elas são também essenciais para a estrutura da argumentação, pois elas constituem a modalidade (ou força) de dedução entre a exposição e a conclusão. Aplicando essas três formas ao corpus dessa pesquisa, constituído por 113 narrativas de sonhos, encontram- se as seguintes classes: 1. Num primeiro padrão temos no início um argumento, muitas vezes acompanhado de uma declaração pessoal, seguido pela narrativa e uma finalização com o mesmo argumento inicial. Trata se do padrão dedutivo, pois o argumento é colocado em primeiro lugar e a narrativa assume uma posição dedutiva em relação a ele. Um caso (a narrativa) está subordinado a um argumento; a narrativa evidencia o argumento e é entendida de acordo com o sentido que o argumento oferece. O argumento inicial pode ser proferido por outro participante do discurso, o que evidencia o caráter dialógico da ação narrativa. 2. Num segundo padrão a narrativa funciona como ponto de partida inicial, do qual algo é derivado. Aqui a narrativa serve como dado (ou exposição), da qual conclusões são tiradas. A diferença entre esse padrão e o anterior (dedutivo), é que aqui não há uma argumentação anterior, mas esta é desenvolvida a partir da narrativa. Por isso, esse padrão é caraterizado como indutivo. Os argumentos desenvolvidos são inéditos, pois não foram introduzidos antes da narrativa. 3. O terceiro padrão estabelece uma conexão entre a narrativa e os discursos anterior e posterior a ela, através de uma semelhança hipotética, a qual é transformada numa relevância temática ao longo do discurso. Esse padrão é abdutivo no sentido de que algo é introduzido como supostamente (e verdadeiramente) relevante, e cuja relevância (que pode variar de intensidade) é evidenciada apenas depois. 200 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58 BIBLIOGRAFIA COOK, Timothy E. (1998), Governing with the news: the news media as a political ins- titution. Chicago, The University of Chi- cago Press. GRANT, Ruth W. 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São esses alguns dos elementos assentados pelo romantismo brasileiro na construção social da idéia de nação no Brasil. E o grau do sucesso do empreendimento românti- co, procedendo a análise de frente para trás, esta- ria no fato de que os seus elementos originais te- riam pautado em grande medida a forma pela qual a nação tem sido desde então entendida no Brasil. Veleidades e recursos intelectuais, sociais e políticos disponíveis, devidamente pesados, os in- telectuais românticos deram início ao processo de construção da nação e, mesmo em meio aos cons- trangimentos sociais impostos pela escravidão, le- varam-no adiante com as ambigüidades daí advin- das. E a idéia de nação por eles construída foi aos poucos tornando-se senso comum. É esta a proposição central de O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) de Ber- nardo Ricúpero. Para chegar até ela, o autor traça e percorre um plano analítico sistemático e parti- cularmente instigante, uma vez que combina um material empírico relativamente conhecido na his- tória literária e nas ciências sociais com uma pers- pectiva inovadora lançada sobre ele. De um lado, recuperando e revendo, da perspectiva da história das idéias políticas, o tema clássico da relação en- tre literatura e historiografia românticas e constru- ção da idéia de nação no Brasil, Ricúpero articula um conjunto bastante disperso de proposições da prolixa produção discursiva romântica sobre a “identidade nacional”. De outro, indagando os efeitos políticos mútuos entre processos ideológi- RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 200 SEMANA 2 - TEXTO BASE 3 RESENHAS 201 cos e estruturas de poder no âmbito da reconstru- ção das sociedades pós-coloniais em Estados-na- ção modernos entre os anos de 1830 e 1870, res- titui o sentido possível do papel das idéias e dos intelectuais nesse processo. A questão, contudo, é saber precisamente o que é uma nação no Brasil, e daí, qual o lugar do romantismo como seu condutor ideológico, e qual a possibilidade da idéia de nação estabelecer vínculos entre indivíduos e grupos sociais numa sociedade capitalista cindida para além do plano da imaginação.1 Creio ser possível apontar, nesse sentido, dois movimentos analíticos fundamentais e articulados que estruturam O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), concorren- do inclusive para lhe conferir alcance e interesse teóricos para além do tema abordado e do recor- te espacial/temporal adotado. Antes disso, porém, vejamos o plano do livro. Divide-se em três par- tes: “Tema: a nação”, em que se apresenta uma das mais sistemáticas e valiosas discussões teóri- cas de que dispomos sobre a idéia de nação em suas mais variadas tradições intelectuais e políti- cas e também em seus mais variados matizes. E ainda a explicação de por que o romantismo fran- cês se ter constituído a referência fundamental do congênere brasileiro; “Desenvolvimento: a nação segundo o romantismo brasileiro” revê temas como originalidade da produção discursiva român- tica, autonomia cultural, indianismo e um ponto de chegada paradigmático de todo esse processo – José de Alencar; na última parte, “Contraponto: a nação segundo o romantismo argentino”, percorre- se o pensamento de autores como Echeverria, Sarmiento e Alberdi, entre outros intelectuais “ro- mânticos” e “românticos” condutores da idéia de nação na Argentina. O primeiro dos movimentos analíticos que estruturam o livro, e do qual o segundo será, num certo sentido, uma exigência lógica, insere-se de modo renovado no debate sobre o dualismo, se não diretamente, por meio das críticas que lhe são dirigidas. Sugere que para que se possam apreen- der os efeitos políticos mútuos entre processos ideológicos e estruturasde poder não devemos nos deter na constatação da importação de insti- tuições e idéias que marcam as sociedades de ma- triz colonial. Mas, partindo desse mecanismo so- cial fundamental (Schwarz, 2000), qualificar as relações dialéticas entre importação e apropriação social que as podem singularizar. Assim, a pers- pectiva comparativa entre sociedades de matriz colonial impõe-se como recurso metodológico fundamental na definição do sentido político assu- mido pelas idéias e instituições importadas em cada sociedade, já que não é a mera importação mas a apropriação a partir dela em interação com suas estruturas sociais específicas que lhe definem o sentido político. Sim, para Bernardo Ricúpero, também a imaginação romântica fixara-se no Bra- sil na ausência ou, mais precisamente, no desloca- mento dos pressupostos históricos que haviam exigido e assentado seu congênere europeu – para Bernardo, em específico o romantismo fran- cês, como desenvolve na primeira parte do livro –, de onde, no entanto, provinha como decorrência do transplante ideológico e institucional a que so- ciedades, como a brasileira e a argentina, se en- contravam desafiadas a se recriar modernamente como Estados-nação. Trata-se de um problema muito mais complexo do que à primeira vista cer- ta visão mais vulgarizada sobre a crítica ao dualis- mo permite perceber. Complexo, em primeiro lugar, porque há sim, argumenta Ricúpero, uma afinidade comum entre romantismo e reação ao Antigo Regime, tanto na França como no Brasil, mas seus efeitos sociais e políticos não seguem um padrão sistêmico defini- do de modo independente da história. Complexo, em segundo lugar, porque é inútil operar com uma visão monolítica do romantismo seja no Brasil seja na França, como se os processos ideológicos pu- dessem ficar a salvo (em torres de marfim?) das dis- putas políticas objetivas e dos interesses materiais e civilizatórios do capitalismo que lhes conquistam significados e lhes imprimem sentido – contradito- riamente. A esse respeito, estão muito bem situa- das as nuanças sobre o sentido político e/ou cultu- ral assumidos pela idéia de nação nas diferentes conjunturas delimitadas pela Independência e in- RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 201 202 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58 serção do Brasil no capitalismo do período. E com- plexo, enfim, porque, associados de diferentes for- mas ao(s) romantismo(s), os próprios projetos de nação assumem, na experiência histórica, um cará- ter contraditório, produzindo tanto formas políticas autoritárias como democráticas, ou liberais e con- servadoras, como prefere Bernardo. O ponto em questão, portanto, é justamente a capacidade de os diferentes grupos sociais conquistarem espaços no âmbito da nação de modo a expressar seus interes- ses como programas nacionais, isto é, na perspec- tiva gramsciana adotada no livro, de conquistarem “hegemonia” na sociedade. Aqui a perspectiva histórica comparada pare- ce acionada em O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) justamente para garantir um certo controle das generalizações sobre o des- tino das ideologias e dos intelectuais em socieda- des periféricas. No caso, trata-se, da comparação entre as possibilidades do romantismo e da idéia de nação, no Brasil e na Argentina. O argumento fundamental, nesse ponto, é como o romantismo em interação dialética com os eventos característi- cos do violento – e violento não apenas no plano simbólico – processo de reconstrução de socieda- des coloniais em Estados-nação permitiu possibili- dades diferentes, segundo a própria combinação histórica com tais eventos, como a consolidação de uma unidade territorial, o assentamento de uma autoridade pública centralizada, a dinamização das forças produtivas, a reprodução do capital e, so- bretudo, a presença estrutural da escravidão no caso da sociedade brasileira. E nessa interação en- tre romantismo e processos sociais foi-se confor- mando destinos distintos para a idéia de nação em cada uma daquelas sociedades. Ainda que, susten- ta o autor, o caráter processual e aberto da idéia de nação seja a garantia mesma de outras possibilida- des e de novas perspectivas de futuro para essas sociedades. O segundo movimento analítico que estrutu- ra o livro diz respeito à própria idéia de nação. E o faz recusando a visão disjuntiva, também mais vulgarizada, de duas das tradições intelectuais ou perspectivas de abordagem da idéia de nação que, de fato, têm conhecido uma extraordinária recep- ção. Uma que, tendo em vista o pretenso caráter imanente da nação, como elemento durável no de- correr do tempo e subjacente à experiência histó- rica, se poderia designar de essencialista; outra que, baseada na idéia da vontade dos indivíduos em refazer permanentemente o pacto que os reú- ne como coletividade social, se poderia designar de voluntarista. A primeira tem sido identificada ao romantismo alemão e particularmente à idéia de cultura como base à legitimidade de constituição de um Estado-nação, e de sua soberania, difundi- da na obra do lingüista prusiano Johann Gottfried Herder. Perspectiva em geral associada ao pensa- mento conservador, mas que aparece também e de modo decisivo naquelas investigações/proposições sobre o relacionamento entre Estado e sociedade que se mostram mais preocupadas com as relações sociais em jogo, do que com as instituições políti- cas propriamente ditas. Da segunda tradição intelectual é paradigmá- tica a célebre conferência de Ernest Renan proferi- da em 11 de março de 1882 na Sorbonne, e a afir- mação nela feita de que a nação é um “plebiscito de todos os dias”. Entre o passado e o presente, embaraçada em lembranças e esquecimentos com- partilhados, a nação, dizia Renan, é uma “vontade de continuar a fazer valer a herança que se rece- beu intacta”. E se ela pode ser um elemento durá- vel no decorrer do tempo, não está necessariamen- te baseada em pretensões imanentes ou atávicas, como sugeria o romantismo alemão. Seu funda- mento está na vontade dos indivíduos em refazer permanentemente o pacto que os reúne como co- munidade política, daí a ênfase nos princípios con- tratualistas e republicanos divisados na acepção de Renan. Ainda que, nessa perspectiva, vontade não precise ser entendida de modo voluntarista, uma vez que, também no caso da nação, ações e pro- cessos sociais se conformam mutuamente. Mas é porque recusa, como se disse, uma vi- são disjuntiva dessas tradições intelectuais que O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830- 1870) não negligencia a condição conflitante que, no plano histórico, aqueles dois conceitos de na- RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 202 RESENHAS 203 ção – o conceito cultural, de Herder, e o concei- to político, de Renan – sempre apresentaram. Para Ricúpero é possível considerar que [...] entre o Estado e a sociedade civil estabelece- se a nação como mediação ideológica que dá aos homens e mulheres a impressão de pertencerem a uma comunidade política maior. A nação pare- ce ter uma função quase complementar; se, no ca- pitalismo, entende-se o Estado como organismo estranho aos indivíduos e a sociedade civil como espaço no qual prevalecem interesses particula- res, os membros de diferentes nações, ao se iden- tificarem com os demais membros de sua nação, sentem-se como fazendo parte de uma espécie de “todo” coletivo. A nação aparece dessa maneira, como uma forma de identidade em face da frag- mentação da vida social e da exterioridade da vida política (p. 9). E justamente porque assume de modo dialé- tico aquele conflito, logra explorar com interesse renovado a hipótese clássica de que a “nação” pode concorrer para proporcionar um sentido de solidariedade social mais amplo e necessário a qualquer comunidade política, já que o monopó- lio do uso legítimo da força física parece mesmo obter a aceitação de seus cidadãos na medida em queeles puderem se sentir ligados uns aos outros por um propósito comum. É a valorização da di- mensão política como arena em que se combinam “violência” e “consentimento”, portanto, que per- manentemente desperta o interessa e coloca em questão o papel das representações ideais da na- ção e do Estado, assim como dos seus efeitos recí- procos na sociedade moderna. E, por isso, também o papel das idéias e dos intelectuais nesse proces- so. Quanto menos democrático o processo de construção nacional, a perspectiva histórica com- parada o tem demonstrado, maior e mais proble- mático parece ser o papel a que os intelectuais, como minorias ativas, são desafiados a desempe- nhar nas suas sociedades, e das batalhas de idéias por eles travadas na construção de legitimidade, consensos e senso comum. É esse também em grande medida o caso do Brasil imperial, segundo a interpretação proposta por Ricúpero, que retoma a problemática da legiti- midade, da política e do poder ideológico da pers- pectiva do pensador italiano Antonio Gramsci, o mesmo que, indagando o processo pelo qual os grupos sociais fundamentais criam “uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogenei- dade e consciência de sua própria função, não apenas no terreno econômico, mas também no so- cial e no político” (Gramsci, 2000, p. 15), acaba por reintroduzir a questão dos intelectuais no coração da política. E porque sempre político, a necessida- de de discutir o efeito das idéias e do exercício do poder ideológico, ou dos intelectuais simplesmente, como tendo concorrido em geral e fundamental- mente para o declínio do domínio e do poder exer- cidos exclusivamente por meios coercitivos tradicio- nais e, nesse passo, para dar forma ao mundo moderno em que ainda vivemos. E se idéias como a de nação em sociedades de matriz colonial como a brasileira, escravista no passado e profundamente desigual ainda no presente, podem parecer fora de lugar, isso não significa absolutamente que elas se- jam carentes de função; mas sim que, como estão ligadas muito mais a soluções de “conveniência”, do que de “princípio”, podem sempre tornar ele- mentos incompatíveis em tese, superpostos na rea- lidade (Schwarz, 2000). É a constatação da própria dinâmica social conformada pela convivência de contrários que confere ainda mais importância à política. O fato de que idéias como as de nação, de um lado, tenham se tornado extremamente familiares – o que aliás pouco favorece a compreensão dos im- passes, dos constrangimentos e das potencialidades do próprio Estado-nação atualmente, poder-se-ia argumentar –, e, de outro, que elas conformem em larga medida, mesmo levando em conta o relativo sucesso de certos processos globalizados de “iden- tidade” em curso, o sentido da existência dos indi- víduos como membros de uma coletividade social, torna candente na agenda das ciências sociais bra- sileiras a tarefa retomada e assumida por Bernar- do Ricúpero. Ao realizá-la, e pelo modo como a realiza, O romantismo e a idéia de nação no Bra- sil (1830-1870) questiona a crença, em parte ge- neralizada nas ciências sociais contemporâneas, RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 203 204 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 58 de que idéias são pouco relevantes nos processos de mudança social, como os de modernização e construção nacional. Posição que, a despeito da dimensão potencialmente crítica que envolve, já que torna problemática a pretensão das idéias de governar o mundo, pode acabar por obscurecer, no entanto, o papel que valores, representações e normas largamente compartilhadas podem assumir na sociedade mediante o trabalho ideológico dos intelectuais, como bem mostra o autor em relação ao romantismo. Confirmando, num certo sentido, o caráter aberto da idéia de nação, e na medida em que a pudermos entender justamente como solida- riedade social, e em face das relações de poder que isso sempre implica, não será demais lembrar que, como fez o romantismo, também o modernis- mo dos anos de 1920 retomará em diferentes com- binações seus significados cultural e político. Mas fará isso noutro patamar, uma vez que vencidos os impasses formais para a cidadania com a abolição da escravidão e com a República, a tarefa premen- te era então tornar o Brasil efetivamente mais fa- miliar aos brasileiros, o que exigiu novas rotinas intelectuais e políticas para a formação dos porta- dores sociais do Estado-nação. NOTAS 1 Embora não possa desenvolver o argumento, regis- tro aqui o fato de que, ao chegar à tarefa realizada em O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), o autor já parte de uma igualmente bem-sucedida pesquisa sobre um dos autores mais complexos a esse respeito do pensamento social brasileiro, Caio Prado Júnior (Ricúpero, 2000). BIBLIOGRAFIA GRAMSCI, A. (2000), Cadernos do cárcere [vol. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo]. Edição de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. RICÚPERO, B. (2000), Caio Prado Jr. e a naciona- lização do marxismo no Brasil. São Paulo, Departamento de Ciência Política da USP/Fapesp/Editora 34. SCHWARZ, R. (2000), Ao vencedor as batatas: for- ma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5 ed. São Paulo, Livraria Duas Cidades/Editora 34. ANDRÉ BOTELHO é professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropo- logia – PPGSA/IFCS/UFRJ e autor de Aprendi- zado do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais (Editora da Unicamp) e de O Brasil e os dias: Estado-nação, moder- nismo e rotina intelectual (Edusc, no prelo). RBCS - v.20 n.58 2005-ok 02.07.05 09:41 Page 204 Entre a Análise do Discurso e a Psicanálise, a Verdade do Sujeito — Análise de Narrativas Orais* Leda Verdiani Tfouni FFCLRP — Universidade de São Paulo Marcella Marjory Massolini Laureano Doutoranda/FFCLRP — Universidade de São Paulo Resumo: Partindo do conceito de interpretação, nosso objetivo é promover possíveis articulações entre duas disciplinas indiciárias, a análise do discurso francesa (AD) e a psicanálise lacaniana. Os trabalhos de Pêcheux em AD e os de Lacan em psicanálise trazem uma posição distinta para conceitos cruciais desta pesquisa. Completando a discussão teórica, realizamos a análise de narrativas orais de ficção, com o intuito de apontar como a interpretação em AD e em psicanálise podem contribuir para o avanço do paradigma indiciário e também para fazer retornar na análise de dados a teoria, numa constante checagem. Pudemos observar, com este procedimento, que é possível promover uma junção de conceitos centrais destas duas disciplinas, tais como ideologia, desejo e inconsciente. Tais constatações apontam para uma harmonia possível entre a interpretação em AD e em psicanálise, o que parece dar garantia ao analista de uma interpretação que leva em consideração o sujeito da ideologia e o do inconsciente. Palavras-chave: Análise do Discurso; Pêcheux; Lacan. Abstract: Starting from the concept of interpretation, our objective is to promote possible connections between two indiciary disciplines, the French discourse analysis (AD) and the Lacan-oriented psychoanalysis. Both Pêcheux’s and Lacan’s works bring a distinct position for crucial concepts in this research. To complement the theory, we carried out an analysis of oral fictional narratives, trying to point out, first, the articulation between AD and psychoanalysis; second, how they can contribute for the advance of the indiciary paradigm; and third, to promote a constant check up between the analysis and the theory. This analysis showed a possible junction of central concepts of these two disciplines such as ideology, unconscious and desire. Such conclusions point to a harmony between interpretation in AD and in psychoanalysis, guaranteeing to the analyst a critical vision concerning the subject of the ideology and the unconscious.Key-words: Discourse Analysis; Pêcheux; Lacan. Résumé : En partant du concept d’intérpretation, notre objectif est promouvoir les articulations possibles entre deux disciplines indiciaires, l’analyse française du discours (AD) et la psychanalyse lacanienne. Les travaux de Pêcheux dans l’Analyse du Discours et ceux de Lacan dans la psychanalyse apportent une position distincte par les conceptes principaux de cette recherche. En ajoutant la discussion théorique, on a réalisé l’analyse de narratives orales de fiction avec l’intention de montrer comme l’interprétation dans * Apoio Financeiro desta pesquisa: CAPES e CNPq. SEMANA 3 - TEXTO BASE 1 l’Analyse du Discours et dans la psychanalyse peuvent contribuer à l’avancement du paradigme indiciaire et aussi reprendre dans l’analyse des fais donnés, la théorie, dans une constante vérification. On a pu observer avec ce processus, que c’est possible promouvoir une jonction des concepts centraux de ces deux disciplines, comme l’ideologie, le désir et l’inconscient. Ces constatations indiquent une possible harmonie entre l’interprétation dans l’Analyse du Discours et dans la psychanalyse, celles garantissent à l’analyste une interprétation qui prend en compte le sujet de l’ideologie et de l’inconscient. Mots-clés: Analyse française du discours, Pêcheux ; Lacan. Introdução Desde a concepção da análise do discurso (AD), a teoria psicanalítica lacaniana sempre foi tocada de maneira discreta por Pêcheux, porém, pode-se dizer que a presença de Lacan na AD sempre foi, ao mesmo tempo, velada e incisiva. Isto pode ser verificado na proposta do quadro epistemológico geral da AD proposto por Pêcheux e Fuchs (1997:163-164), onde se lê: Ele [o quadro epistemológico] reside, a nosso ver, na articulação de três regiões do conhecimento científico: 1. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. A lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3. A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica). (grifos nossos) Do materialismo histórico, a AD adota o conceito de ideologia, postulado por Althusser a partir de sua releitura da obra de Marx. Em relação à lingüística, a maior influência para a AD foi a de Ferdinand de Saussure e seu Curso de Lingüística Geral, principalmente no que diz respeito a uma releitura moderna, em especial aquela empreendida por Gadet (1990) e Milner (1987), relativa a conceitos até então recalcados pelo Estruturalismo Científico, tais como: valor do signo, arbitrariedade do signo e relação. Finalmente, a teoria do discurso e a adoção do conceito de formação discursiva de Foucault (1996) dão à AD seu objeto de estudo: o discurso, que passa, nesta disciplina, a ter o acréscimo do estudo de suas condições de produção. Como notamos no trecho grifado acima, Pêcheux e Fuchs (op.cit.) referem-se a uma teoria do sujeito de base psicanalítica, porém a articulação da AD com a psicanálise não chegou a ser trabalhada em profundidade por Pêcheux, conforme comenta Maldidier (2003). É nessa área de interface que este artigo se insere, dando seqüência a vários trabalhos de investigação desenvolvidos pelo grupo de pesquisa coordenado pela segunda autora há vários anos (Carreira 1997; 2000; Molena 2003; Moraes 2002; Tfouni e Carreira 1996; 1997; 1999; 2000). Nossa tentativa, neste trabalho, é articular a AD e a psicanálise lacaniana a partir do conceito de interpretação. Sabemos que interpretar é inerente ao homem, pois, inserido no mundo simbólico, é exigido do sujeito um dar sentido a todo o momento. O surgimento das Ciências Humanas e Biológicas, no século XVII, representou uma tentativa de padronizar estes dados que sempre reclamaram por interpretação, e o modelo adotado inicialmente (que se origina em Aristóteles (cf. Pêcheux 1969) para interpretá-los, foi aquele baseado no paradigma positivista/galileano, cuja tentativa é padronizar o homem e seu discurso através de categorias fixas e rígidas de classificação e estatísticas. Tal postura sempre trouxe problemas para as ciências humanas, pois de acordo com o positivismo, os dados sempre vêm para provar algo que já está posto, e, portanto, não se presta a lidar com o inesperado, nem com a deriva, fatos indiscutivelmente importantes nos estudos do discurso. Para contornar essa falha, por volta do século XIX surgem disciplinas que adotam o chamado paradigma indiciário (Ginzburg 1989). Entre elas, estão a AD e a psicanálise, nas quais a busca por índices não acessíveis a olho nu, nem diretamente observáveis, devolve aos dados todas as suas qualidades individuais, seus contextos, bem como as histórias de suas condições de produção (Tfouni 1992). Ao contrário da análise de conteúdo, de natureza positivista, que determina seus dados a partir de uma dada condição de produção em detrimento de muitas outras possíveis (Henry e Moscovici 1968), a AD e a psicanálise devolvem ao sentido sua opacidade, e ao sujeito sua singularidade (entendida aqui como o modo singular pelo qual a ideologia interpela o indivíduo em sujeito). Aspectos teóricos A partir destas considerações, faz-se necessária uma breve apresentação de dois conceitos destas duas disciplinas: o de real da língua e o de real da história. O primeiro diz respeito àquilo que escapa à língua e que a revela enquanto sujeita a falhas. É o que Lacan (1996) denominou de lalangue, em português, alíngua. O segundo diz respeito ao real que a história comporta e que seria o da luta de classes (Pêcheux e Gadet 1981). A psicanálise lacaniana trabalha essencialmente com o real da língua e a AD alia a este conceito o real da história. Juntos, estes dois reais trabalham para a construção de sentidos do objeto de estudo da AD, e também da psicanálise, que é o discurso (Safouan 1993). Como assinalamos anteriormente, não foi apenas a adoção do discurso como objeto de estudo e de todos os conceitos a que nos referimos que fizeram com que a AD e a psicanálise operassem um giro na postura de interpretação de dados. É preciso considerar aqui também o resgate que estas duas disciplinas fazem do sujeito que produz seu(s) discurso(s) ao interpretar o mundo. Tanto na AD quanto na psicanálise, o sujeito não é aquele do empirismo, não podendo, portanto, ser reduzido a categorias de classificação. Como dissemos, o sujeito é singular, pois é interpelado ideologicamente (Althusser 1983) e não é um indivíduo, visto que é aquele que emerge entre significantes (Lacan 1998a) de modo único. Estes fatos marcam sua particularidade. Vale lembrar, com relação ao exposto acima, que Pêcheux (1997a), ao falar da forma-sujeito do discurso, postula os dois esquecimentos, ou ilusões constitutivas deste sujeito, que foram denominados, respectivamente, de esquecimento no. 1, no qual o sujeito acredita ser a origem do sentido (esquecimento ideológico/inconsciente) e esquecimento no. 2, no qual o sujeito crê que aquilo que diz é exatamente igual àquilo que pensa (esquecimento lingüístico/pré-consciente). O que temos, portanto, é um sujeito antes de tudo assujeitado e que se constitui como um efeito no interior do discurso. Como diz Henry (1992:188-189): “O sujeito é sempre e ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e do inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação”. Com conceitos tão complexos e um trabalho bem diverso em relação às ciências positivistas (tanto no que diz respeito à interpretação de dados quanto à concepção de sujeito) vale aqui falarum pouco sobre como se dá o trabalho de interpretação e produção de sentidos na AD e na psicanálise. Para Pêcheux (1997b:53): [...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. [...] Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que se pretende trabalhar a análise de discurso. O que temos a partir destas considerações é que o analista de discurso vai trabalhar num lugar logicamente desestabilizado e marcado pela tensão entre o dito e o não-dito, pois será nos deslizes e pontos de deriva da língua que o analista vai pinçar um sentido (entre outros possíveis) no corpus a ser analisado. Os conceitos fundamentais neste processo são o de efeito metafórico (Pêcheux 1997c), que atesta o deslize e a possibilidade de múltiplos sentidos, e o de ideologia, cujo papel é naturalizar o sentido para o sujeito no momento da enunciação, lembrando sempre que estas manobras devem ser consideradas pelo analista, no sentido de acatar tanto o equívoco, quanto a opacidade da língua. Na psicanálise, desde o trabalho freudiano com os sonhos, iniciado em 1900, até a associação livre, a interpretação sempre teve papel fundamental. Lacan (1998b), relendo Freud e incorporando a essa leitura tanto a Lingüística, quanto a elaboração de conceitos como o de Outro (lugar da verdade do sujeito) e o de objeto a (objeto causa do desejo), deposita na interpretação do analista o testemunho da verdade sobre o sintoma e o desejo. A respeito da interpretação analítica, diz Lacan (1998c:599): “A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõe algo que, de repente, possibilite a tradução – precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento faltante”. Em outra obra, Lacan (1998d:236-237), afirma: “A interpretação é uma significação que não é não importa qual (...) Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) A interpretação não é aberta a todos os sentidos”. O que temos em psicanálise é uma interpretação que vai de encontro ao sintoma e ao desejo do sujeito, revelados a partir dos vestígios do inconsciente, o que aparece no discurso sob a forma de atos falhos, lapsos, repetições e esquecimentos, por exemplo. Essas manobras do inconsciente são evidenciadas por dois conceitos postulados por Lacan (1998b): o de metáfora, que compreende a substituição de um significante por outro culminando com o ocultamento do significante que foi suprimido; e o de metonímia que liga um significante a outro numa relação de contigüidade, fato este que materializa o desejo, pois a metonímia engana a censura do inconsciente ao substituir um significante por outro, deixando, deste modo, o significante substituído velado, porém sempre presente na cadeia. Diante deste quadro extremamente complexo, levantamos a suposição de que uma análise de dados poderia servir como lugar para verificação de como esses quadros teóricos podem articular-se, visto que a análise de dados nos serve para colocar a interpretação em funcionamento (a partir do paradigma indiciário) tanto de um ponto de vista da AD quanto da psicanálise. Vale ressaltar que ao usarmos a psicanálise na interpretação do corpus não pretendemos de forma alguma psicanalisar o sujeito, visto que o referencial psicanalítico nos auxiliará a desvendar o desejo do sujeito a partir dos deslizes presentes na materialidade lingüística e também a mostrar o trabalho do inconsciente sobre este mesmo sujeito, o que é bem distinto da análise de divã. Análise de dados sobre o corpus O corpus escolhido constitui-se de narrativas orais de ficção produzidas por uma criança de rua, que foram coletadas pelo nosso grupo de pesquisa. A escolha de narrativas tem relevância para este trabalho, pois, como afirma Tfouni (2005: 73-74): (...) o discurso narrativo aparece como lugar privilegiado para elaboração da experiência pessoal, para a transformação do real em realidade, por meio de mecanismos lingüísticos discursivos, e também para a inserção da subjetividade (entendida aqui, do ponto de vista discursivo, como um lugar que o sujeito pode ocupar para falar de si próprio, de suas experiências, conhecimento do mundo, ou, mais sucintamente, entendida com a forma pela qual o sujeito organiza sua simbolização particular). A análise de narrativas nos permite, assim, detectar as formas pelas quais o desejo está amarrado à ideologia. Isto retoma a proposição de Pêcheux de que a questão da subjetividade deve ser pesquisada por uma teoria psicanalítica, o que influi certamente no trabalho de interpretação do analista, ao mesmo tempo que aponta meios de se articular a AD com a psicanálise lacaniana. As análises que apresentaremos a seguir dizem respeito às narrativas Mônica e Cebolinha e João e o Pé de feijão, que foram contadas por J. (11 anos, sexo feminino). Inicialmente, propomos analisá-las de forma isolada, para, posteriormente, relacionar estas duas análises. Conforme preconiza a AD, o trabalho de análise parte da eleição de recortes. A noção de recorte adotada pela AD não é aquela de uma simples eleição de palavras-chave, tal como o faz a análise de conteúdo. O recorte pode ser visto como um fragmento discursivo, que, para ser analisado, requer que se descrevam suas condições de produção, que incluem o contexto histórico, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do outro e do referente. O recorte em AD será, portanto, uma série de manifestações lingüísticas que mantém uma relação direta com a história dos discursos (condições de produção) de onde foram pinçados (Courtine 1982). Neste trabalho, elegemos para a análise as repetições, recurso discursivo significativo tanto para a AD, quanto para a psicanálise (Lacan 1998e). Observaremos também as posições de sujeito que J. ocupa ao narrar. Essas posições fornecerão pistas sobre o processo de identificação do sujeito com uma, ou outra, formação discursiva, mostrando-nos desta maneira, sua verdade, ou o modo pelo qual a ideologia o interpela, constituindo-o enquanto sujeito do desejo e do inconsciente. Passemos, então, às análises. Análise Análise 1 — Mônica e Cebolinha Esta foi a primeira narrativa produzida. É uma história curta, na qual o narrador faz uso de conhecidos personagens de gibis infantis. A história conta uma situação que envolve principalmente a Mônica e o Cebolinha. Os pais da Mônica vão sair de casa e pedem para que a filha não saia. Pouco tempo depois, chega o Cebolinha e convida Mônica para sair de casa, ela não aceita, ele insiste, e ela retruca, como podemos ver no recorte: - Vamo Mônica, vamo, tua mãe não vai sabê que você saiu. - Não, papai não qué e mamãe não gosta. A passagem grifada chama a atenção por ser repetida três vezes no decorrer da narrativa, e nos aponta uma direção do desejo do sujeito de não descontentar um pedido dos pais. Vale destacarmos aqui que J. nunca teve este tipo de atenção dos pais (que nem sequer moravam juntos), e que ela freqüentemente ia para a rua em busca de comida. Nos relatos de J., vemos que ela sempre atrelava as idas para a rua com fazer algo errado, como roubar frutas em um pomar, por exemplo. A narrativa continua e os pais da Mônica chegam; o Cebolinha, então, foge, e Mônica vai até a sala, onde a mãe pergunta se ela saiu ao que ela responde prontamente que não e repete pela terceira vez o trecho que destacamos no recorte acima: “... papai não qué e mamãe não gosta”. O que notamos nesta curta história é que o sujeito, atravessadopor uma formação discursiva dominante que tem um modelo de família constituída por pai/mãe/filhos, deseja também para si esta família que é julgada “natural” e ideal. O que sabemos é que a narradora morava com uma tia e uma irmã, mal conhecia o pai, e na instituição era sempre vítima de comentários sobre a cor de sua pele, pois ela era negra e sua irmã loira, fato que explicava a todos dizendo que as duas (ela e a irmã) eram filhas de pais diferentes, o que indicia vida promíscua da mãe. Destaca-se também o fato de o sujeito sentir a necessidade de ter a quem obedecer, fato que não faz parte de sua realidade. Supomos que o sujeito queira apenas ser criança, como todas as que ela vê, sobretudo na televisão. Apesar de estar em uma posição diferente da personagem principal da narrativa, o sujeito depara-se aqui com um desejo: ser cuidada, e, ao narrar esta história, nos mostra o lugar que desejaria ocupar, fato este que obriga a assumir uma posição de censura na ficção em relação a posturas que ele adota na vida real. Apesar de ir para a rua na vida real, na ficção, entretanto, o sujeito vê isto como incorreto, pois para ele a ação de ir para a rua está atrelada a fazer algo errado, como já destacamos anteriormente. Análise 2 — João e o Pé de Feijão Esta narrativa conta a história de um menino que a pedido da mãe sai para vender a única vaca da família para comprar comida. O menino (João), porém, troca a vaca por 3 feijões mágicos que se transformam numa grande planta e que leva até um castelo. João sobe até o castelo para pedir comida e encontra a mulher de um gigante que lhe dá comida em troca de trabalho. Escondido do gigante, João lhe rouba ovos de ouro e depois sua galinha, porém diz à mãe que ganhou tais coisas e acaba por fim por matar o gigante. No final da história João e sua mãe enriquecem com a galinha e recuperam a vaca que havia sido trocada pelos feijões. Inicialmente, o que nos chama a atenção são as alternâncias e relutâncias do sujeito para definir as ações dos personagens, o que torna confusa a atribuição de papéis. Por exemplo, nota-se que, muitas vezes, as ações do gigante e do menino confundem-se, como podemos notar no recorte abaixo: Aí, depois ele fez assi, começô a durmi assim, ó. Aí, começô durmi, chegô uma hora que ele durmiu. Aí, ele durmiu... Aí, depois ele subiu assim quietinho na mesa. Um outro ponto são os desfechos para a ação do personagem: num primeiro momento o menino é repreendido pela mãe por ter trocado a vaca por três feijões mágicos: “Cê trocô o que eu disse por isso?” Para tentar compensar o erro o sujeito recorre mais adiante ao pé de feijão que, depois de crescido, iria conduzi-lo até a casa do gigante. Ele vai até lá, “finge” trabalhar para a mulher do gigante, e, num descuido deste (que nem sabia de sua presença) lhe rouba os ovos de ouro. Porém, como podemos notar no recorte abaixo, o sujeito elabora uma manobra para amenizar o “erro” cometido pelo personagem: “Depois ele desceu, falô pra mãe dele o que ele ganhô.” Sabemos que na verdade o que aconteceu foi um roubo, mas devemos nos lembrar que a narradora encontrava-se, na época da constituição deste corpus, numa instituição, cujo lema é a Educação pelo trabalho, e onde é comum, como em muitas outras com a mesma proposta, tentar doutrinar os internos a respeito de como ser um bom filho, de que não se deve roubar ou enganar os outros para “levar” vantagem, e coisas deste tipo. Numa posição de dominado em relação à instituição, o sujeito identifica-se com a formação discursiva dominante, porém, como podemos observar um pouco mais adiante na narrativa, o narrador faz com que o menino retorne à casa do gigante para pegar a galinha, só que desta vez o faz de maneira mais discreta, e numa posição de resistência: Aí, a mema coisa: depois chegô o marido dela, falô assim: - Esconde, porque se o meu marido te catá aqui, ele xin, ele te come. Aí, depois ele falô assim: - Tá bom, eu escondo. Aí, depois, é... aí depois ele fez tudo de novo. A galinha tava botando ovo de oro. Aí, a galinha tava botando ovo de, ovo de oro, e começô a falá assim: - Tô cherando um chero... - Não, é uma coisa que eu tô fazendo pra você. Aí, depois ele foi lá, pegô. (grifos nossos) O narrador dá ao gigante um final trágico, e encerra deste modo a participação desse personagem, que poderia de alguma forma revelar a verdadeira origem dos ovos de ouro e da galinha, bem como julgar as atitudes do personagem Joãozinho. Como estratégia para executar esta ação, o personagem usa a ajuda da mãe, que nada sabe sobre o que realmente aconteceu: O moleque desceu correndo. Ele falô assim: - Mãe, dá o martelo, dá o ma, dá o ma, dá o martelo! Dá o martelo! Bau, bau, bau! Bateu assim, ó. (grifos nossos) Diante de uma aparente resolução deste conflito entre certo ou errado, o narrador acrescenta que mãe e filho ficaram ricos: “Aí, eles conseguiu ficá rico com a galinha.” No entanto, este fechamento, que poderia ser um final feliz para a narrativa, não satisfaz o sujeito, e ele acrescenta um final complementar para encerrar a narrativa: “Ficô bem rico e cus... Aí, depois o home entregô a vaca deles de novo.” Ao acrescentar esta outra informação, o sujeito consegue, afinal, compensar o erro inicial do personagem, que era o de ter feito algo que descontentou a mãe. Podemos dizer que todo o conteúdo desta narrativa serviu como uma metáfora do funcionamento inconsciente do sujeito, e suas manobras para revelar-se diante das coisas que lhe escapam. Os dois finais consecutivos levam a pensar que, realmente, o sujeito vive dilemas e conflitos sobre discernir o que seria certo ou errado em uma sociedade que o coloca à margem. As relutâncias que foram constatadas pelo uso confuso do pronome “ele” nas diversas passagens já apontadas, situam-nos neste mar revolto de identificações do sujeito, que se coloca, hora numa posição de “errada”, e hora numa posição julgada como “correta”. Atravessado por uma formação discursiva dominante, o sujeito encontra-se em uma encruzilhada entre “escolher” qual posição ocupar e de que maneira deve/pode lidar com esta “escolha”, e, ao narrar, produz metáforas, deslizamentos, no sentido lacaniano, que são colocadas nos desfechos dados aos personagens, e que podem ser interpretadas como o modo possível pelo qual o sujeito pode responder às demandas por punir-se e/ou bonificar-se, de acordo com suas tomadas de posição. Porém o desejo de contentar, não só a si, como aos outros (e diria aqui, a posição do sujeito em relação à demanda do Outro) percorre toda a história. Na verdade o sujeito sempre irá colocar-se numa posição de alguém que deve responder a uma demanda: o personagem estava cumprindo ordens da mãe, ao desobedecê-la sente-se impelido a atender seu desejo de qualquer maneira, ou seja, roubando e enganando o gigante; e, uma vez satisfeita a demanda inicial, seus erros são apagados, a vaca é recuperada, eles se tornam ricos e o filho consegue finalmente atender ao desejo da mãe. A mãe, apesar de aparecer muito pouco na narrativa tem papel fundamental e é em sua função dela que irão guiar-se todas as atitudes do personagem. Conclusões Vimos, aqui, que o sujeito põe-se à mercê do discurso do Outro, que lhe faz exigências às quais ela tenta de todo modo responder, mesmo sem ter certeza se é isto o que realmente quer, talvez porque este discurso do Outro lhe venha revestido de um discurso dominante, de uma formação social dominante, com a qual, por força da ideologia, ele sente-se interpelado a identificar-se. Podemos explicar este fato tomando como base a teoria da heterogeneidade constitutiva do discurso, que tem seu respaldo exatamente nessa relação de submissão com o Outro (Authier-Revuz 1982). Como afirma Maingueneau (2004) a teoria de heterogeneidade constitutiva deAuthier-Revuz traz mais uma aproximação da AD e da psicanálise lacaniana, pois coloca ao lado do sujeito interpelado pela ideologia um sujeito que é também dividido pelo inconsciente e que ilusoriamente acredita ser dono do seu dizer. Assujeitado a um Outro que lhe faz exigências constantes e que apontam para onde dirigir seu desejo o sujeito das narrativas tenta sobreviver numa sociedade onde as crianças de rua são representadas e tratadas como marginais, além de terem origem em famílias desestruturadas. Tal discurso, que é o dominante na nossa sociedade, exige das crianças de rua que muito cedo elaborem carapaças, ou escudos, para enfrentar os “trancos” que a vida lhe impõe. Deste modo, imaginariamente, o sujeito adota uma posição de identificação com heróis que sempre “dão um jeito”, para enfrentar e resolver essas dificuldades. Com base em tais considerações, podemos, ainda, aventar aqui a hipótese de que o desejo do sujeito está perpassado pela ideologia, e que a constituição deste desejo no inconsciente, vai depender de como esta a interpela em sujeito. Cremos que a ideologia é o cenário de estruturação do desejo do sujeito e também do inconsciente; será a ideologia que dará os tons para a tela discursiva, e apontará, assim, as posições que o sujeito pode/deve ocupar em uma determinada formação discursiva, sem deixar de implicá-lo em seu desejo e em sua relação/submissão ao Outro (Tfouni e Laureano 2004). Resistindo e escondendo-se numa indecisão sem fim, o sujeito tenta posicionar-se neste mundo, que lhe aparece como algo ideal a ser atingido, por exemplo, através da constituição de uma família completa que se preocupe com ele. Pela análise realizada, podemos dizer que fica evidente a riqueza desta forma de interpretar, qual seja, a de articular a interpretação em AD e em psicanálise, pois temos em nossas mãos o retrato do sujeito singular e o funcionamento da sociedade na qual ele está inserido: sua verdade. Analisar dados à luz da AD e da psicanálise lacaniana nos dá um novo meio de interpretar o sujeito do discurso, e também de levar em consideração as formações sociais que o determinam: o real da língua e o real da história atuando conjuntamente. Referências Bibliográficas — ALTHUSSER, L.1983. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graal. — AUTHIER-REVUZ, J.1982. Hétérogénéité montrée et Hétérogénéité constitutive: élements pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV – Revue de linguistique, 26. — CARREIRA, A. F.1997. Era uma vez Três Sereias: análise de narrativas de crianças de rua. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, FFCLRP, USP, Ribeirão Preto. 20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19 Notas sobre a experiência e o saber de experiência* Jorge Larrosa Bondía Universidade de Barcelona, Espanha Tradução de João Wanderley Geraldi Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística No combate entre você e o mundo, prefira o mundo. Franz Kafka Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a uma perspectiva política e crítica. De fato, somente nesta última perspectiva tem sentido a palavra “refle- xão” e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipado- ra” etc. Se na primeira alternativa as pessoas que tra- balham em educação são concebidas como sujeitos técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na se- gunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem como sujeitos críticos que, armados de distintas estra- tégias reflexivas, se comprometem, com maior ou menor êxito, com práticas educativas concebidas na maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo isso é suficientemente conhecido, posto que nas últi- mas décadas o campo pedagógico tem estado separa- do entre os chamados técnicos e os chamados críti- cos, entre os partidários da educação como ciência aplicada e os partidários da educação como práxis política, e não vou retomar a discussão. O que vou lhes propor aqui é que exploremos juntos outra possibilidade, digamos que mais existen- cial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é sugerir certo significado para estas duas palavras em distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar algumas palavras e tratar de compartilhá-las. E isto a partir da convicção de que as palavras * Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC. A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon- sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re- vista Brasileira de Educação. SEMANA 3 - TEXTO BASE 2 Notas sobre a experiência e o saber de experiência Revista Brasileira de Educação 21 produzem sentido, criam realidades e, às vezes, fun- cionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as pala- vras o modo como nos colocamos diante de nós mes- mos, diante dos outros e diante do mundo em que vi- vemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como zôon lógon échon. A tradução desta expressão, porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do que “animal dotado de razão” ou “animal racional”. Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir logos por ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não signi- fica que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto pa- lavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, atividades como con- siderar as palavras, criticar as palavras, eleger as pala- vras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transfor- mar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como no- meamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos. Nomear o que fazemos, em educação ou em qual- quer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não é somente uma questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo contro- ledas palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simples- mente palavras, algo mais que somente palavras. 1. Começarei com a palavra experiência. Pode- ríamos dizer, de início, que a experiência é, em espa- nhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a experiência é “o que nos acontece”; em francês a ex- periência seria “ce que nous arrive”; em italiano, “quello che nos succede” ou “quello che nos accade”; em inglês, “that what is happening to us”; em alemão, “was mir passiert”. A experiência é o que nos passa, o que nos acon- tece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acon- tece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. 1 Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o con- trário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir- nos como sujeitos informantes e informados; a infor- mação não faz outra coisa que cancelar nossas possi- 1 Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como “Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se nos passe” (Nota do tradutor). Jorge Larrosa Bondía 22 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19 bilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo sa- ber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assis- tir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que te- mos mais informação sobre alguma coisa; mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu. Além disso, seguramente todos já ouvimos que vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimen- to” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”. Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade entre os termos “informação”, “conhecimento” e “aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação. E não deixa de ser interessante também que as velhas metáforas organicistas do social, que tantos jogos per- mitiram aos totalitarismos do século passado, estejam sendo substituídas por metáforas cognitivistas, segu- ramente também totalitárias, ainda que revestidas agora de um look liberal democrático. Independentemente de que seja urgente problematizar esse discurso que se está instalando sem crítica, a cada dia mais profunda- mente, e que pensa a sociedade como um mecanismo de processamento de informação, o que eu quero apon- tar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a experiência é impossível. Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supos- tamente própria e, às vezes, supostamente crítica so- bre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogân- cia, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça. Benjamin dizia que o periodismo é o grande dis- positivo moderno para a destruição generalizada da experiência. 2 O periodismo destrói a experiência, so- bre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra coisa que a aliança perversa entre informação e opi- nião. O periodismo é a fabricação da informação e a fabricação da opinião. E quando a informação e a opi- nião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa que o suporte informado da opinião individual, e o sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história se- gundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da in- formação e da opinião, um sujeito incapaz de expe- riência. E o fato de o periodismo destruir a experiên- cia é algo mais profundo e mais geral do que aquilo que derivaria do efeito dos meios de comunicação de massas sobre a conformação de nossas consciências. O par informação/opinião é muito geral e permeia 2 Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss. Notas sobre a experiência e o saber de experiência Revista Brasileira de Educação 23 também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos cha- mam de “aprendizagem significativa”. Desde peque- nos até a universidade, ao largo de toda nossa traves- sia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opi- nar, há que dar uma opinião obviamente própria, críti- ca e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão “significativa” da assim chamada “aprendizagem significativa”. A informação seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como rea- ção subjetiva, é uma reação que se tornou para nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maio- ria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para res- ponder como Deus manda as perguntas dos professo- res que, cada vez mais, se assemelham a comprova- ções de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dis- positivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna impossível a experiência. Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, ime- diatamente substituído por outro estímulo ou por ou- tra excitação igualmente fugaz e efêmera. O aconteci-mento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impe- dem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada aconteci- mento é imediatamente substituído por outro que igual- mente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está in- formado e opina, mas também é um consumidor vo- raz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar per- manentemente excitado e já se tornou incapaz de si- lêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência. Nessa lógica de destruição generalizada da expe- riência, estou cada vez mais convencido de que os apa- ratos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já disse, pelo funciona- mento perverso e generalizado do par informação/ opinão, mas também pela velocidade. Cada vez esta- mos mais tempo na escola (e a universidade e os cur- sos de formação do professorado são parte da escola), mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da for- mação permanente e acelerada, da constante atualiza- ção, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação esta- mos sempre acelerados e nada nos acontece. Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos li- vros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o sa- ber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quando se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e expe- riência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa ten- dência aparentemente progressista no campo educa- cional que, depois de criticar o modo como nossa sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pre- tende implantar e homologar formas de contagem de Jorge Larrosa Bondía 24 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19 créditos para a experiência e para o saber de experiên- cia adquirido no trabalho. Por isso estou muito inte- ressado em distinguir entre experiência e trabalho e, além disso, em criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer conversão da experiência em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha tese não é somente porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pes- soas, com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal da experiência. O sujeito moderno, além de ser um sujeito infor- mado que opina, além de estar permanentemente agi- tado e em movimento, é um ser que trabalha, quer di- zer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo “natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, se- gundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito moderno é animado por portentosa mescla de otimis- mo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua ativi- dade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo, regular algo. Independentemente de este desejo estar motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o sujeito moderno está atravessado por um afã de mu- dar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os peda- gogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, trans- bordantes de opiniões e superestimulados, mas tam- bém sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup- ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sen- tir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. 2. Até aqui, a experiência e a destruição da expe- riência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é “o que nos pas- sa”, o sujeito da experiência seria algo como um terri- tório de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como “aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. Em qualquer caso, seja como território de passa- gem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua recep- tividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposi- ção entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponi- bilidade fundamental, como uma abertura essencial. O sujeito da experiência é um sujeito “ex-pos- Notas sobre a experiência e o saber de experiência Revista Brasileira de Educação 25 to”. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im- posição” (nossa maneira de impormos), nem a “pro- posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex- posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz deexperiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. 3. Vamos agora ao que nos ensina a própria pala- vra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra- vés, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se ex- põe atravessando um espaço indeterminado e perigo- so, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportu- nidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, 3 de exílio, de estranho 4 e também o ex de existência. A experiência é a passa- gem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simples- mente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germâni- cas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. 4. Em Heidegger (1987) encontramos uma defi- nição de experiência em que soam muito bem essa exposição, essa receptividade, essa abertura, assim como essas duas dimensões de travessia e perigo que acabamos de destacar: [...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que nós a fa- çamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, to- mar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Pode- mos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143) O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um su- jeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus po- deres, mas um sujeito que perde seus poderes precisa- mente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o su- jeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apá- tico, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade. Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode ler- se outro componente fundamental da experiência: sua capacidade de formação ou de transformação. É ex- 3 Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor) 4 Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor) Jorge Larrosa Bondía 26 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19 periência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação. 5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo en- quanto sujeito passional. E a palavra paixão pode re- ferir-se a várias coisas. Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é sim- plesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os pade- cimentos, como um viver, ou experimentar, ou supor- tar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às ve- zes, inclusive, algo público, ou político, ou social, como um testemunho público de algo, ou uma prova pública de algo, ou um martírio público em nome de algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita solidão, no mais completo anonimato. “Paixão” pode referir-se também a certa hetero- nomia, ou a certa responsabilidade em relação com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liber- dade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmen- te, de outra liberdade e de outra autonomia diferente daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A paixão funda sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar. E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma expe- riência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um desejo que permanece desejo e que quer permane- cer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o su- jeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodo- mínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cati- vado pelo alheio, alienado, alucinado. Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e es- cravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é, precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por quem está apaixonado. Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apai- xonado encontra sua felicidade ou ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é preci- samente sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coi- sa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de possibilidade de todo renascimento. 6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o que poderia ser a experiência e o sujeito da experiên- cia. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia e do perigo, da abertura e da exposição, da receptivi- dade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao saber da experiência. Definir o sujeito da experiência como sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação. A experiência funda também uma ordem epistemoló- gica e uma ordem ética. O sujeito passional tem tam- bém sua própria força, e essa força se expressa produ- tivamente em forma de saber e em forma de práxis. O que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da informação,e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho. O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiên- Notas sobre a experiência e o saber de experiência Revista Brasileira de Educação 27 cia é uma espécie de mediação entre ambos. É impor- tante, porém, ter presente que, do ponto de vista da experiência, nem “conhecimento” nem “vida” signi- ficam o que significam habitualmente. Atualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que somente pode crescer; algo universal e objetivo, de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamen- talmente com o útil no seu sentido mais estreitamente pragmático, num sentido estritamente instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamen- te, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação acelerada como o dinhei- ro. Recordem-se as teorias do capital humano ou es- sas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a so- ciedade da informação. Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimen- são biológica, à satisfação das necessidades (geral- mente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da so- ciedade. Pense-se no que significa para nós “qualida- de de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute. Nestas condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa que a apro- priação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como “conhecimento” para as necessidades que se nos dão como “vida” e que são completamente indistintas das necessidades do Capital e do Estado. Para entender o que seja a experiência, é necessá- rio remontar aos tempos anteriores à ciência moderna (com sua específica definição do conhecimento obje- tivo) e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a definição moderna de vida como vida burguesa). Du- rante séculos, o saber humano havia sido entendido como um páthei máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe aconte- cendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coi- sas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acon- tece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por pon- to, ao que entendemos como conhecimento. Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fa- zem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do in- divíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da expe- riência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria. A primeira nota sobre o saber da experiência su- blinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e con- creta de um existente singular e concreto. A experiên- cia e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida pró- pria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, qua- se tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos Jorge Larrosa Bondía 28 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19 existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma es- sência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construin- do e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. 7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que forma e transforma a vida dos homens em sua singu- laridade, mas o método da ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experi- mental. Mas aí a experiência converteu-se em experi- mento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e pre- visível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da experiência e uma vez separado o conhecimento da existência humana, temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana, nela inserindo-se e trans- formando-a. A vida humana se fez pobre e necessita- da, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se. A segunda nota sobre o saber da experiência pre- tende evitar a confusão de experiência com experi- mento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da expe- riência produz diferença, heterogeneidade e plurali- dade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funcio- na heterologicamente do que uma dialogia que fun- ciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsí- vel, a experiência tem sempre uma dimensão de in- certeza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido,para o que não se pode anteci- par nem “pré-ver” nem “pré-dizer”. JORGE LARROSA BONDÍA é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é profes- sor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o portu- guês: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Au- têntica, 1999). Referências Bibliográficas HEIDEGGER, Martin, (1987). La esencia del habla. In: . De camino al habla. Barcelona: Edicionaes del Serbal. BENJAMIN, Walter, (1991). El narrador. In: . Para uma cri- tica de la violencia y otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss. (Ou, na edição brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: . Obras escolhidas. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I). Recebido em novembro de 2001 Aprovado em janeiro de 2002 129SESSÃO LIVRE TIPOS DE NARRADOR E NOVAS DISCUSSÕES EM NARRATOLOGIA Flávia Roberta Menezes de Souza1 RESUMO O objetivo desse artigo é discutir conceitos já estabelecidos no campo da narratologia, mais precisamente, os que se referem aos tipos de narrador. Nesse sentido, partiremos das formulações de Gérard Genette (1972), em que ele discute e propõe novos termos para o desenvolvimento de análises de textos narrativos. Esses termos levam em consideração questões que até aquele momento não haviam sido discutidas pelos estudiosos da narrativa, como por exemplo, “os níveis narrativos”, as “metadiegeses” e as implicações percebidas pela presença ou ausência do narrador na história. Durante muitos anos, os termos propostos por Genette passaram a subsidiar análises de narrativas, e hoje é sabido, o quanto o campo da narratologia evoluiu, no sentido da problematização dos conceitos dessa área de conhecimento, uma vez que é possível identificá-la não somente auxiliando a leitura de textos literários escritos, mas também de outras formas textuais, como cinema, fotografia, jogos eletrônicos etc. Dessa maneira, serão relacionadas as propostas de Genette e a de Wolf Schmid (2010), que em um estudo mais recente, revisou termos e conceitos desse campo de estudo, abrindo caminhos para novas propostas. Em Narratology: na introduction, Schmid identifica os grandes problemas em torno da nomenclatura que serve aos tipos de narrador, já discutidos antes por Genette. O artigo enfatiza justamente o diálogo entre as duas propostas de organização dos tipos de narrador de Genette e de Schmid. Palavras-chave: Narratologia. Gerard Genette. Wolf Schmid. Tipos de narrador. ABSTRACT The purpose of this article is to discuss concepts already established in the field of narratology, more precisely, those that refer to the types of narrator. In this sense, we will start with the formulations of Gérard Genette (1972), in which he discusses and proposes new terms for the development of narrative texts analysis. These terms take into account questions that have not been discussed by narrative scholars, such as "narrative levels," "metadiegeses," and the implications perceived by the narrator's presence or absence in history. For many years, the terms proposed by Genette began to support analysis of narratives, and it is now known, how much the field of narratology has evolved, in the sense of problematizing the concepts of this area of knowledge, since it is possible to identify not only helping to read written literary texts, but also in other textual forms, such as cinema, photography, electronic games, etc. In this way, the proposals of Genette and Wolf Schmid (2010) will be related, which in a more recent study, revised terms and concepts of this field of study, opening the way for new proposals. In Narratology: in the introduction, Schmid identifies the major problems surrounding the nomenclature that serves the types of narrator discussed earlier by Genette. The article emphasizes precisely the dialogue between the two proposals of organization of the types of narrator of Genette and of Schmid. Keywords: Narratology. Gerard Genette. Wolf Schmid. Types of narrator. Recebido em: 10/08/2017 Aprovado em: 04/09/2017 1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal do Pará. E-mail: flaviamenezes19@hotmail.com SEMANA 4 - TEXTO BASE 1 NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346130 INTRODUÇÃO A narratologia subsidiou diversos estudos de obras literárias de caráter narrativo: serviu tanto aos estudos da literatura escrita quanto da literatura oral. Trata-se, hoje, de um campo do conhecimento que contribuiu ao longo dos anos com ferramentas conceituais e teóricas para o desenvolvimento de análises de textos, sobretudo, literários. A publicação do Dicionário de Teoria da Narrativa de Ricardo Reis e Ana Cristina Lopes em 1988, é um exemplo do quanto a narratologia tem desempenhado papel importante, ao fornecer ao estudioso uma série de conceitos que possibilita a descrição técnica de muitos procedimentos já observados em obras, tais como a existência de níveis narrativos, tipos de narrador e etc. Descrever e compreender tais procedimentos, contribuem significativamente para uma visão mais objetiva sobre a construção da obra, e permite estabelecer critérios de investigação quando se pretende trabalhar com mais de um autor, ou ainda quando se pretende estabelecer diálogos entre obras de diferentes épocas e estilos. Em 1988, ao publicar um trabalho de teor prático ao estudioso de narrativas, como é o caso do Dicionário, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes reforçaram a ideia da importância que teve a reflexão em torno da narrativa, desde que se desenvolveu um conjunto de teorias com um caráter disciplinar, impulsionado pela Estruturalismo Francês. No Brasil, dentre muitas publicações específicas sobre os tipos de narrador, destaca-se a leitura de Lígia Chiappini Moraes Leite, com a publicação de O Foco Narrativo. Nesse trabalho, a professora apresenta ao leitor, de forma panorâmica, uma discussão sobre narrativa desde Aristóteles, passando por Henry James, Percy Lubbock, Jean Pouillon, até alcançar os autores do Estruturalismo Francês: Roland Barthes e Tzvetan Todorov. O objetivo dela nesse conhecido trabalho é abordar a tipologia do narrador de Norman Friedman. A autora cita e exemplifica cada um dos tipos: Narrador Onisciente Intruso; Narrador Onisciente Neutro; "Eu" como testemunha; Narrador Protagonista; Onisciência Seletiva Múltipla; Onisciência Seletiva; Modo Dramático e Câmara Ressalta-se que nesta leitura, não há diferença entre “ponto de vista” e “tipologia de narrador”. O fato é que essa abordagem de Lígia Leite tornou-se conhecida e muitas análises de narrativas, sem, no entanto, problematizar determinados aspectos típicos dos romances modernos que devem incluir não só a compreensão do tipo de narrador como a percepção do ponto de vista adotado na narrativa. É dentro desse contexto que nos interessa discutir alguns problemas de ordem conceitual, uma vez que ao lermos essas publicações posteriores às contribuições dos estruturalistas da década de 60, é possível notar alguns aspectos que podem ser postos em 131SESSÃO LIVRE diálogo com as recentes contribuições de Wolf Schmid, que não são tão populares em nossa tradição acadêmica. Para isso, partiremos das reflexões de Gérard Genette (2008) sobre o narrador, que não deixa de se inserir em uma discussão maior, que é a relação entre narrativa e discurso. 1. GÉRARD GENETTE: O DISCURSO E A NARRATIVA A narratologia é um campo do conhecimento que se desenvolveu graças a uma consciência linguística voltada sobretudo aos estudos literários – especificamente, à narrativa literária - e que alcançou grande espaço na crítica literária no final da década de 60, com a virada dos estudos estruturalistas. A retomada dospressupostos formalistas, àquela época recém-descobertos, resgatou a preocupação com a construção de uma ciência da literatura. Ainda que o projeto estruturalista tenha se deparado com as limitações de seu próprio aparato teórico diante da complexidade do objeto que estudava, são inegáveis as contribuições que tanto renovaram a linguagem conceitual dos fenômenos literários os quais careciam de termos que oferecessem maior precisão nos trabalhos e pesquisas em torno da narrativa. Também não se pode desconsiderar que o rigor científico buscado pelos estruturalistas propiciou uma série de publicações que até hoje sobrevivem e subsidiam o estudo da narrativa. Nessa perspectiva, propomos lembrar as provocações contidas no texto Fronteiras da Narrativa, de Gérard Genette, publicado pela primeira vez na revista Comunits sobre narratologia, na linha do estruturalismo. Nesse texto, após discutir as noções de Aristóteles e Platão sobre o valor da narrativa enquanto representação literária, Genette rebate a ideia dos dois filósofos de que a narrativa mimesis é diegesis Genette, não era possível continuar colocando a ficção poética na condição de simulacro da realidade, pois o objeto da ficção se reduz por ela a um real fingido e que espera ser representado. Analisando por essa perspectiva, não seria possível alcançar a natureza da narrativa em sua forma particular de representar os acontecimentos, pois a linguagem só pode imitar perfeitamente a linguagem, ou ainda, um discurso só pode imitar ele mesmo. Sendo assim, não existe imitação perfeita, pois o perfeito seria a própria coisa e não a imitação; a única possibilidade de imitação é imperfeita. Posto o lugar da narrativa como representação literária, e, adentrando cada vez mais no campo que realmente lhe interessa, Genette (2008) questiona-se sobre a possibilidade de se NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346132 distinguir descrição de narração, já que essa ideia, apesar de não pensada pelos filósofos, foi colocada em uma tradição mais recente, sobretudo, escolar. Reflete que, enquanto modo de representação literária, a distinção entre narração e descrição não é tão nítida, nem por conta de uma autonomia de seus fins, nem por uma originalidade de seus meios, para que seja necessário o rompimento da unidade narrativo-descritiva. Para Genette (2008), se existe uma fronteira que separa a descrição da narrativa, é bem uma fronteira interna, que ainda sim se dá de modo indeciso. À noção de narrativa, portanto, pode ser englobada todas as formas de representação literária, considerando a descrição como um de seus modos, ou, mais modestamente, como um de seus aspectos. A última fronteira da narrativa estabelecida por Genette é a que vai evidenciar as particularidades entre narrativa e discurso. Retomando o ponto de vista de Aristóteles, que não considerava poeta quem não escrevesse uma obra que consistisse em imitação por narrativa ou representação cênica, ficando de fora da noção de literatura representativa a poesia lírica, satírica e didática, Genette (2008) procura questionar o lugar, negligenciado na Poética, de uma vasta quantidade de textos, anunciando a necessidade de se pensar as particularidades entre narrativa e discurso. Exemplifica Genette, “para Aristóteles, e apesar de que usa o mesmo metro que Homero, Empédocles não é um poeta” (p. 277), pois sua obra não consiste em imitação, mas simplesmente em um discurso mantido por ele mesmo e em seu próprio nome. A necessidade de pensar essa fronteira diz respeito, segundo Genette (2008), à distinção proposta por Emile Benveniste entre narrativa e discurso. Benveniste mostra que certas formas gramaticais, como o pronome eu, que implica de certa forma a existência de tu, os “indicadores” pronominais (certos demonstrativos) ou adverbiais (como aqui, agora, hoje, ontem, amanhã, etc.), e certos tempos do verbo, como o presente, o passado composto ou futuro, encontram-se reservados ao discurso, enquanto que a narrativa em sua forma estrita é marcada pelo emprego exclusivo da terceira pessoa. Daí chega-se à relação entre objetividade da narrativa e subjetividade do discurso que, como ressalta Genette, é totalmente definida por critérios de ordem linguística. O subjetivismo do discurso está, por exemplo, presente na referência a um eu, que não se define de nenhum modo como a pessoa que fala. Semelhantemente ocorre com o tempo do modo discursivo, que é por excelência o presente, sem com isso significar que o discurso é enunciado no tempo presente. Inversamente, expõe Genette (2008), a objetividade da narrativa se define pela ausência de toda referência ao narrador, revelando a inexistência dele e até mesmo uma autonomia da própria organização da sucessão dos acontecimentos. 133SESSÃO LIVRE Somente nesse momento é possível observar a narrativa em seu estado puro, pois o texto não apresenta nenhuma informação que necessite, para ser compreendido, ser relacionado com a sua fonte. É preciso dizer ainda que as essências da narrativa e do discurso não se encontram em estado puro no texto. Cada texto apresenta em proporções diferentes a primeira e o segundo, embora um e outro se afetem de maneiras diferentes. A inserção de elementos narrativos no plano do discurso não basta para emancipar este último plano, pois eles permanecem com maior frequência ligados à referência do locutor. Por outro lado, o autor situa que qualquer intervenção de elementos discursivos no interior de uma narrativa é percebida como uma infração ao rigor narrativo. O fato é que “a pureza da narrativa é mais fácil de preservar do que a do discurso” (GENETTE, 2008, p. 282) e a explicação de Genette para isso é muito simples: Na verdade, o discurso não tem nenhuma pureza a preservar, pois é o modo “natural” da linguagem, o mais aberto e o mais universal, acolhendo por definição todas as formas; a narrativa, ao contrário, é um modo particular, definido por um certo número de exclusões e de condições restritivas (recusa o presente da primeira pessoa, etc.). O discurso pode “narrar” sem cessar de ser discurso, a narrativa não pode “discorrer” sem sair de si mesma. (GENETTE, 2008, p. 282) O mesmo autor expressa, sobre a comparação entre narração e discurso, como uma relação que atingiu diferentes configurações ao longo dos anos, mas que nunca se resolveu por completo. Com o objetivo de mostrar como essa relação se deu na literatura ao longo dos tempos, ele exemplifica o caso da época clássica, “em um Cervantes, um Scarron, um Fielding”, em que o autor-narrador, assumindo o próprio discurso, intervém na narrativa e interpela o leitor num tom de conversação familiar; assim como, no mesmo período, identificam-se procedimentos diferentes: romances cuja responsabilidade do discurso era totalmente transferida a um personagem principal que narrava e comentava ao mesmo tempo os acontecimentos na primeira pessoa. Ainda não podendo se resolver nem a falar em seu próprio nome nem a confiar essa tarefa a um só personagem, o autor reparte o discurso entre diversos atores, seja sob a forma de cartas, como fez frequentemente os romances do século XVIII, seja à maneira mais ágil e sutil de um Joyce ou de um Faulkner, fazendo sucessivamente a narrativa ser assumida pelo discurso interior de seus principais personagens. NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346134 2. TIPOS DE NARRADOR Gérard Genette (1995), em O Discurso da Narrativa, retomando a questão em torno do discurso e da narrativa, contribui para o estabelecimento de conceitos que, posteriormente, passaram a ser amplamente utilizados em estudos e trabalhos sobre narrativa, narrador heterodiegético e homodiegético em substituição às definições narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, tradicionalmente também conhecidas:A escolha do romancista não é feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas (de que as formas gramaticais são apenas uma consequência mecânica): fazer contar a história por uma das personagens, ou por um narrador estranho a essa história. A presença de verbos na primeira pessoa num texto narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que a gramática confunde mas a análise narrativa deve distinguir. (GENETTE, 1195, p.243) Genette estabelece, então, um quadro que determina os tipos de narrador quanto à sua inserção na diegese (história) e ao nível narrativo a que pertence: extradiegético- heterodiegético; extradiegético-homodiegético; intradiegético-heterodiegético; intradiegético- homodiegético. (para formatar). Seé clara a compreensão do que seja heterodiegético e homodiegético quando se conhece a superada classificação narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, é possível dizer que as classificações extra- e intradiegético dizem respeito à posição do narrador em relação ao nível narrativo, uma vez que é possível o narrador pertencer ao primeiro nível da narrativa e, posteriormente, dentro da história, outro narrador surgir e “se habilitar” a narrar outra história. Tem-se, assim, uma história dentro da história, e os narradores de ambas encontram-se em níveis diferentes, pois falam de lugares diferentes. Genette, nesse mesmo trabalho, apresenta uma outra maneira de pensar o narrador, que é a focalização. A focalização diz respeito ao conhecimento que o narrador tem sobre a história em comparação com o conhecimento que o personagem tem. Genette adverte que a focalização “nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 1995, p. 189). Trata-se de uma questão importante, mas que nesse momento apenas será citada para retomar a tipologia de Friedman apresentada por Lígia Leite que relaciona tipos de narrador e ponto de vista como sendo um fenômeno apenas. Ao apresentarmos a proposta traçada por Wolf Schmid (2010), para uma tipologia de narrador, apontaremos as suas críticas em relação à abordagem que o assunto vem recebendo ao longo dos anos, conforme o quadro a seguir: 135SESSÃO LIVRE Tabela.1- Critérios estabelecidos por Schmid para uma tipologia de narrador Critérios Tipos de narrador Modo de representação Explícito-Implícito Status diegético Diegético – Não diegético Hierarquia Primário – Secundário - Terciário Grau de marcação Fortemente marcado – pouco marcado Pessoalidade Pessoal – impessoal Homogeneidade Compacto - Difuso Posição avaliativa Objetivo - Subjetivo Habilidade Onisciente – Conhecedor Limitado Fixação espacial Onipresente – Fixo em um espaço específico Acessibilidade à consciência dos personagens Expressa – Não expressa Confiabilidade Confiável – Não confiável Schmid (2010) estabelece onze critérios para se pensar a tipologia do narrador. Quantitativamente, trata-se de um painel mais criterioso, mas o ganho está na distinção entre tipologia e ponto de vista na narrativa. Um narrador não diegético, por exemplo, pode assumir o ponto de vista de um dos personagens para narrar determinada situação e nem por isso ocorre uma mudança de tipos. É o que acontece por exemplo em um dos romances de Dalcídio Jurandir, Os habitantes: Calou-se com muito embaraço e igual reserva. Calou-se. Calado. Está ouvindo o grito da irmã? A modo que foi ontem, a irmã arranca os três dias da folhinha, vai ao tabocal jogando terra nos bichos de criação: jogar nosso confete, senhoras e cavalheiros. É uma batalha. E aquele repente em que se enfia no velho fraque do pai, a máscara ela mesma fez, a cavalo para o pagode dos Ervedosas, tamanho sábado gordo, no Mutá. Precisou ir atrás dela, escondido da mãe, esta na fiúza que a filha só tinha ido desinflamar um pirralho no retiro com garapa de aninga. Flechou o galope atrás da irmã. Desajuízo dela era mais de contrariação que lhe faziam de não poder pôr o pé na cidade? Só? Estava entra-não-entra no pagode, oculta num mirizal, ali agachou-se, de fraque e máscara. (JURANDIR, 1976, p. 36) O narrador de Os habitantes não participa da história que conta, mas assume o ponto de vista do personagem ao narrar um episódio envolvendo a irmã desse último. É perceptível isso devido à linguagem usada pelo narrador, impregnada de um sentimento que só poderia pertencer ao personagem: “Desajuízo dela era mais de contrariação que lhe faziam de não pôr o pé na cidade?”. Nesse momento, não é a tipologia do narrador que se evidencia mas o ponto de vista assumido por ele na narrativa. Explicar o fenômeno apenas determinando que esse NOVA REVISTA AMAZÔNICA - ANO V - VOLUME 3 - SETEMBRO 2017- ISSN: 2318-1346136 narrador é um narrador onisciente é não levar em consideração a complexidade da construção narrativa. Em Relatos de um certo Oriente de Milton Hatoum, podemos também fazer uma leitura do tipo de narrador que atravessa a obra, segundo a proposta de Schmid: “quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da manhã nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao cansaço de uma noite maldormida” (HATOUM, 2017, p.7) Tem-se um narrador diegético, explícito e bem marcado. Conforme avançamos a leitura, percebemos que cada capítulo é narrado por um personagem diferente. Hakim é um dos mais importante, inclusive, pela quantidade de capítulos que narra. Mas é necessário observar certos aspectos que fazem toda a diferença. A primeira narradora do romance é responsável pela parte inicial do relato, enquanto que os demais personagens têm seus relatos adicionados à narrativa, marcados com aspas. Em outras palavras, há ali sempre a palavra de alguém, de um outro, que narra a partir do seu ponto de vista, exprimindo suas subjetividades: “tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia” (HATOUM, 2017, p. 35) Em Relatos de um certo Oriente, os personagens revezam o papel de narradores do romance, sem, no entanto, haver modificação no tipo de narrador. Essas considerações ajudam a pensar as técnicas narrativas presentes em romances e até mesmo estabelecer comparações entre obras. Podem ajudar a pensar por que determinada obra apresenta uma narrativa em que o tipo de narrador permanece o mesmo do início ao fim. Ou ainda, o que torna estável a presença de determinado tipo de narrador em uma obra? Essas questões ajudam a pensar a construção da narrativa, seus aspectos formais, para posteriormente relacioná-los aos aspectos internos da obra. REFERÊNCIAS GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Tradução: Fernando Cabral Martins. 3ª edição. Lisboa: Veja, 1995. GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: Análise Estrutural da narrativa. Tradução: Maria Zélia Barbosa. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008. HATOUM, Milton. Relatos de um certo Oriente. Companhia das Letras: São Paulo, 2017. JURANDIR, Dalcídio. Os habitantes. Artenova: Rio de Janeiro, 1976. 30 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. SÃO BERNARDO: A POSIÇÃO DO NARRADOR NO ROMANCE E NO FILME Germana da Cruz Pereira ** Georgia da Cruz Pereira *** RESUMO Com o presente artigo objetivamos analisar a posição do narrador na obra literária São Bernardo (1934),de Graciliano Ramos, e no filme homônimo realizado por Leon Hirszman em 1971. Ambas as histórias trazem Paulo Honório, um narrador- personagem, que apresenta sua trajetória de vida a partir de uma narrativa de aspectos metalinguísticos. Nossa análise se baseia nos trabalhos sobre traduçãointersemiótica de Roman Jakobson (1991), que a entende como a tradução de signos verbais em sistemas de signos não-verbais, e de Julio Plaza (2003), que teoriza sobre as tipologias de traduções a partir da semiótica peirceana. Traçamos um estudo de natureza analítico- comparativa de modo a determinar como o narrador se constrói e se posiciona diante de sua narrativa nas duas obras, considerando as relações de tradução indiciais entre texto literário e composição audiovisual. PALAVRAS-CHAVE: Narrador; Discurso; Tradução intersemiótica. ABSTRACT With the present article we aim to analyze the narrator's position in Graciliano Ramos's São Bernardo (1934) and in the homonymous film directed by Leon Hirszman in 1971. Both stories bring Paulo Honório, a first-person narrator, who presents his life trajectory from a narrative with metalinguistic aspects. Our analysis is based on the work about intersemiotic translation by Roman Jakobson (1991), who understands it as the translation of verbal signs in nonverbal systems of signs, and Julio Plaza (2003),who theorizes about the typologies of translations from Peircean concepts. We draw a study of an analytical-comparative nature in order to determine how the narrator construction and position works in both products, considering the relations of index translation between literary text and audiovisual composition. KEYWORDS: Narrator; Discourse; Intersemiotic Translation. Trabalho desenvolvido pelo Discursiva - Grupo de Pesquisas em Narrativas Multimídias e Estudos do Discurso, da Universidade Federal do Ceará. *** Georgia PEREIRA, doutora, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) georgia@virtual.ufc.br SEMANA 4 - TEXTO BASE 2 31 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. Introdução Narrar, viver, contar. Hábito antigo entre pessoas de diferentes gerações, línguas e etnias, a transmissão das experiências vividas e vistas. Sejam histórias de amor e de guerra, de conquistas e derrotas, sob a ótica do vencedor ou do vencido, sempre encontramos alguém disposto a relatar o ocorrido de modo a gerar interesse em alguém que dele queira saber. Desde o princípio dos tempos o ato de narrar fascina tanto a quem o pratica quanto a quem dele usufrui. Diversos tipos de narradores se apresentaram ao longo da história literária, alguns se mantêm tão afastados por meio do discurso em terceira pessoa que o leitor não consegue identificá-los, como ocorre em Os Novos, de Luiz Vilela; outros se apresentam claramente, mas dividem seu relato, modificando o ponto de vista da narrativa, como em Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar e, se quisermos observar o cinema, Rashomon, de Akira Kurosawa; entretanto, é bem frequente o narrador que se apresenta diretamente ao leitor, em primeira pessoa, identifica-se. A literatura e o audiovisual estão repletos de exemplos marcantes de narradores como esses, por exemplo Riobaldo de Grande Sertão: veredas, Conselheiro Aires de Memorial de Aires,Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, e Paulo Honório de São Bernardo, narrador sobre o qual nos deteremos neste artigo. A figura do contador de histórias tem em suas mãos o poder de alimentar o imaginário das pessoas com seus relatos carregados de mitos e simbologias. Mas, e quando o fato é contado como realidade, qual posição adota o narrador? Paulo Honório se apresenta aos leitores diante da difícil tarefa de contar a história de São Bernardo, tem ajuda de alguns companheiros a princípio, mas o narrador acaba por ser ele e, portanto, a construção e a organização da narrativa estão sob sua responsabilidade. Adorno (2003, p. 60) afirma que o narrador contemporâneo “busca, como um atento comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva”, sua posição diante dos fatos. O objetivo deste estudo é perceber como se apresenta esse narrador contemporâneo na obra literária São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, e na produção cinematográfica São Bernardo (1973), do diretor Leon Hirszman, levando em consideração o conceito de Tradução Intersemiótica de Roman Jakobson (1991), que a entende como a tradução de signos verbais em sistemas de signos não-verbais, e as particularidades de cada arte. 32 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. A transposição de produções literárias para as telas é entendida aqui como uma reescritura, releitura e recriação do texto de partida, conforme afirma Lefevere (1992), não cabendo, portanto, nesta análise o conceito de originalidade, por isso as obras são tomadas como produtos únicos. O filme, texto-alvo, é visto como uma nova e independente produção que buscou o texto literário como fonte ou ponto de partida. Por esse motivo, não cabe se fazer nenhum juízo de valor com relação à originalidade ou comparar as duas produções para valorá-las, visto que aqui estamos tratando de meios semióticos distintos. Apesar de não se poder hierarquizar ambas as obras, é possível traçar um paralelo entre elementos que se assemelham em ambas as obras. Partindo de uma análise semiológica, na qual se “vê o signo mover-se no campo da significação, enumera as suas valências, traça a sua configuração” (BARTHES, 1977, p. 294-295), o signo é visto como uma “idéia sensível”, pois todo o signo inclui ou implica três relações. Em primeiro lugar, uma relação interior, aquela que une o seu significante ao seu significado; depois, duas relações exteriores: a primeira é virtual, une o signo a uma reserva específica de outros signos, da qual o destacamos para o inserirmos no discurso; a segunda é actual, ela junta o signo aos outros signos do enunciado que o precedem ou lhe sucedem. (BARTHES, 1977, p. 289) Julio Plaza (2003), a partir das tipologias de signo estabelecidas por Peirce, apresenta três matrizes de classificação de traduções intersemióticas correspondentes aos valores de ícone, índice e símbolo: Tradução Icônica, Indicial e Simbólica. Essa tipologia tem por objetivo instrumentalizar o analista com ferramentas que operacionalizem de maneira mais específica a atividade em questão sem, contudo, se constituírem em valores estanques. Semelhante ao conceito de ícone peirceano, a Tradução Icônica diz respeito àquela que "se pauta pelo princípio de similaridade de estrutura" (p.89), ou seja, ela estabelece uma analogia entre texto-fonte e texto-alvo. Essa tradução tem como marca um reagrupamento, um rearranjo na sintaxe, de modo a apresentar uma outra possibilidade significativa a partir da atividade tradutória. A Tradução Indicial estabelece uma relação de continuidade entre o texto-fonte e o texto- alvo, "o objeto imediato do original é apropriado e transladado para um outro meio" (p.90). Essa transposição traz consigo uma relação semântica, em que a mudança de meio (canal) e a adaptação aos sistemas semióticos desse fazem com que outros e novos sentidos emerjam. A Tradução Simbólica, por sua vez, semelhante ao conceito de símbolo, tem sua ação pautada pela convenção de sentidos; dessa forma, "a tradução simbólica define a priori significados lógicos, mais abstratos e intelectuais do que sensíveis" (p.93). 33 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. Nossa proposta é buscar estas relações entre os signos das obras analisadas, observando as soluções encontradas no texto-alvo para traduzir os signos verbais para os imagético-verbais. 1. Devagar é que se vai ao longe... Para que possamos analisar o narrador de São Bernardo faz-se necessária a apresentação das obras visando a melhor compreensão do estudo aqui empreendido. Apresentar o texto literário, seu enredo, neste caso, significa falar concomitantemente do texto fílmico homônimo, visto que este tem seu roteiro baseado naquele,inclusive tomando longas passagens do livro, e, portanto, evitamos um trabalho repetitivo e cansativo. 1.1. São Bernardo: a conquista de uma vida Após a morte de sua esposa, Paulo Honório, abandonado por todos, decide contar a história de São Bernardo, e essa se confunde com sua própria biografia, visto que desde jovem alimentava o desejo de possuir a propriedade. Inicialmente, crendo não dominar „as letras‟, convoca alguns velhos companheiros de prosa que o ajudarão nessa empreitada, dividindo as responsabilidades da seguinte forma: Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira, com a pontuação, a ortografia e a sintaxe; Arquimedes, com a composição tipográfica; Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, com a composição literária; e a Paulo Honório caberia traçar o plano, introduzir na “história rudimentos de agricultura e pecuária”, arcar com as despesas e colocar seu nome na capa. Porém, como seus colaboradores foram desanimando ou desviando o curso dos planos arquitetados para a história, como Gondim, que lhe dá um caráter literário, Paulo Honório decide escrever ele mesmo o livro sobre São Bernardo, que começa mostrando as dificuldades enfrentadas para a composição da obra, desde a convocação dos colegas até a decisão de trabalhar sozinho. Em seguida, apresenta-se deixando o leitor ciente do narrador que o conduzirá por entre os acontecimentos: Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinqüenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor. (RAMOS, 1981, p. 12) Paulo Honório, ao contar a história de São Bernardo e a sua, as quais estão 34 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. interligadas, o faz crendo que a forma como conquistou as terras, sua ascensão e decadência seriam assuntos interessantes. O narrador é bastante realista, sobretudo, por expor seus pensamentos e impressões, sobre fatos “que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém” (RAMOS, 1981, p. 10). Para Bourneuf & Ouellet (1976, p.246), o personagem é o único capaz de contar sua própria história, pois “por mais fragmentário ou contestável que seja, o conhecimento de si mesmo pela introspecção é o único válido.” Se, visto por esse prisma, o romance funciona como uma espécie de diário de Paulo Honório feito com seus recortes de memória, lembranças que não o abandonam e o atormentam na solidão em que se encontra e no vazio de uma casa que já fora habitada e visitada por muitos, é o retrato da decadência de um homem. Para uma melhor explanação, podemos dividir as obras em duas partes principais: conquista e ascensão de São Bernardo (já mencionados) e o casamento com Madalena, sendo este o responsável pelo declínio do homem próspero apresentado até então ao leitor. Atormentado pela dúvida com relação à fidelidade de sua esposa Madalena, o narrador mostra na segunda parte do livro como passou a tratá-la, sempre desconfiando de cada barulho, de cada gesto, de cada carta, e a maneira como distanciava os seus prováveis amantes. Muitos desses, amigos e companheiros de Paulo Honório de uma vida. Por não suportar mais a situação, Madalena comete o suicídio. Paulo Honório isola-se do convívio da casa, de onde aos poucos os habitantes vão indo embora, para restar apenas ele, o filho (por quem não tem amizade) e Casimiro Lopes (seu capataz). 2 “E se souberem que o autor sou eu...” Romance moderno, São Bernardo, apresenta um narrador que faz seu relato dando-lhe aspecto de realidade, visto que revela ao leitor o espaço, Viçosa, em Alagoas, e nomeia personagens de sua convivência, alguns até convidados a ajudar na escrita. Narrando em primeira pessoa a sua própria história, o que, de acordo com Genette (1979, p. 247), o caracteriza como um narrador extradiegético-homodiegético, deixa explícito sua condição de quem constrói sua narrativa com grande cuidado. Constantemente o narrador mostra a consciência e reflexão sobre seu texto, demonstrando que a verdade presente naquelas linhas foi pensada e articulada, portanto, 35 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. os fatos estão dispostos da maneira mais adequada para ele e não obrigatoriamente como se desenrolaram. Afinal, como comenta Paulo Honório num trecho metadiscursivo, em que reflete sobre como transcreve uma conversa travada com D. Glória, o propósito de seus escritos é ser lido, por isso “houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras” (RAMOS, 1981, p. 77). Outro aspecto relevante a ser percebido nesta narração é o efeito do tempo sobre a memória, que já se mostra nas primeiras páginas, ao relatar uma visita à casa de Mendonça: “E saí, descontente. Creio que foi mais ou menos o que aconteceu. Não me lembro com precisão” (RAMOS, 1981, p. 31). A memória alimenta as lembranças contidas nas páginas da obra seja pela narração direta, pelos diálogos ou pelos flashes de pensamentos introduzidos pelo narrador. Paulo Honório faz metadiscursivos os dois primeiros capítulos do livro, nos quais explica os procedimentos utilizados para a elaboração do romance, as reuniões, já mencionadas, com os colegas, a linguagem e a preocupação com sua recepção por parte do público: O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero. Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expressões técnicas, desconhecidas do público, e a ser tido por pedante. Saindo daí, a minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos cinqüenta anos munir-me de noções que não obtive na mocidade. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão. (RAMOS, 1981, p. 10-11) O início do filme São Bernardo se constitui, primordialmente, daquilo que podemos chamar de tradução indicial ou transposição, para usarmos a terminologia proposta por Julio Plaza (2003), uma vez que o texto-fonte aparece de modo contíguo, acentuando por meio das particularidades e peculiaridades do meio certas características presentes na descrição de origem. Os metacapítulos 1 presentes do livro são transpostos no filme de modo a agregar a apresentação do espaço e do narrador. As sequências das imagens de Paulo Honório a tomar café, escrever, fumar e 1 Empregamos o termo metacapítulo, pois eles trazem reflexões sobre a criação discursiva de todos os outros capítulos, sobre a diegese da obra de modo geral. 36 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. observar suas terras do alpendre de casa, enquanto o espectador ouve em voice-over 2 o narrador Paulo Honório introduzindo a história, que se confunde entre a do livro e a do filme, revelam o drama de iniciar o enredo e são um claro exemplo dessa relação de referencialidade que se estabelece entre ambas as obras: Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá à venda. (HIRSZMAN, 1973; RAMOS, 1981) Em seguida, as imagens junto com a narraçãooff revelam como viveu a personagem principal – Paulo Honório – até a conquista de São Bernardo. Percebemos que o tom documental dado à narração, enxuta e simples, interrompida por diálogos entre as personagens, demonstra o intuito de reafirmar o dito pelo narrador, dar-lhe caráter de verdade. Paulo Honório, ao convidar os companheiros a enfrentar o desafio de escrever um livro, indiretamente os coloca no papel de ghost writer, autor anônimo de textos sob encomenda, visto que todos participarão da criação, mas o único a levar o título de autor será ele. A Paulo Honório cabe desempenhar a função de quem compra um livro numa agência de escritores: encomendar a história e colocar o nome na capa para ganhar os louros. Aos demais caberia a condição do escritor fantasma, ou seja, aquele que escreve o texto alheio, isto é, que redige o texto para atribuí-lo a outro, que subtrai o nome autoral da obra e da capa do livro que escreve para um terceiro, cabendo a este ser o signatário, assumir publicamente a autoria da obra, receber os aplausos e a consagração do público, enquanto o verdadeiro autor permanece na sombra e no anonimato. (FARIAS, 2004). A narrativa de São Bernardo tem a marca do narrador, pois, homem com pouca, ou quase nenhuma, escolaridade, ele realiza períodos curtos utilizando vocabulário simples, bem como uma aproximação à linguagem cotidiana do interior, com expressões regionais. O narrador vai sendo “constituído pelo conjunto dos signos que constroem a figura daquele que narra no texto” (REUTER, 1995, p. 39), seja ele literário ou fílmico. Na película, Leon Hirszman apresenta este narrador por meio de imagens de Paulo Honório refletindo diante dos papéis, juntamente com a narração off. O voice-over permeia toda a produção cinematográfica, funcionando como fio condutor 2 Termo utilizado para se referir a um narrador que também figura como personagem da história que narra. 37 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. desta, a qual se apropria do texto literário, visto que utiliza as mesmas palavras de Graciliano Ramos como roteiro. Mais do que ser o fio condutor, o voice-over nos permite identificar o narrador e a sua postura diante da narrativa, bem como a perspectiva em que os fatos estão relatados. Apesar de o narrador não possuir amplo conhecimento literário, demonstra refletir sobre o estilo e a linguagem que utilizará na narrativa principal e nas pequenas narrativas contadas a ele, as quais reproduz em seu relato, como a história de Ribeiro, guarda-livros de São Bernardo. Antes de apresentá-lo por meio dos fatos revelados pelo próprio homem, mostra a tentativa de forjar o estilo em que lhe foi contada a trajetória “que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quase a linguagem dele” (RAMOS, 1981, p. 35). A distância estética em que o narrador coloca o leitor “varia como as posições da câmera no cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas” (ADORNO, 2003, p. 61). Dita distância estética podemos observar no romance através da exteriorização dos pensamentos do narrador, os quais formam capítulos inteiros só de divagações mentais, e em situações do convívio social, como numa conversa com Padilha quando São Bernardo ainda pertencia a este: - Resolvi. Aquilo como está não convém. Produz bastante, mas poderá produzir muito mais. Com arados... O senhor não acha? Tenho pensado numa plantação de mandioca e numa fábrica de farinha, moderna. Que diz? Burrice. Estragar terra tão fértil plantando mandioca! - É bom. E não prestei mais atenção ao caso, deixei que ele se entusiasmasse só e fosse discutir o seu projeto no Gurganema. (RAMOS, 1981, p.17-18) Na adaptação percebemos os movimentos de aproximação e afastamento feitos pela câmera, com closes em Paulo Honório durante suas divagações, estas que o espectador toma conhecimento através da narração em voice-over. Importante ressaltar o fato de o narrador informar tanto leitor quanto espectador sobre seus pensamentos, dúvidas, conflitos e desejos, deixando-o à vontade para inferir, ou interpretar, da maneira como lhe aprouver: Madalena procurava convencê-lo, mas não percebi o que dizia. De repente invadiu-me uma espécie de desconfiança. Já havia experimentado um sentimento assim desagradável. Quando? Quando? [...] Comunista, 38 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. “Palestras amenas e variadas”. Que haveria nas palestras? Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem feita, a voz insinuante. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a sentir ciúmes. (HIRSZMAN,1973; RAMOS,1981) Jean Pouillon (LEITE, 1989, p. 19-21), crendo que a narração depende de onde o narrador está situado no momento em que cria o seu texto, propõe a existência de três possibilidades para as relações entre narrador e personagem: a visão com a personagem, a visão por trás da personagem e a visão de fora da narrativa. Na visão por trás, o narrador conhece a vida da personagem, inclusive seu futuro; é o que se chama normalmente de narrador onisciente, o deus da narrativa, pois sabe o que dizem, pensam e fazem suas criaturas. Na visão com, o narrador não mais assume a postura de um deus que tudo sabe e vê, mas “limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos”. Já na visão de fora, o narrador não sabe nem mesmo sobre o interior, sentimentos e intenções da própria personagem. O narrador de São Bernardo, texto literário, assume a postura da visão com, visto que Paulo Honório conhece a história vivida por ele, apenas sabe contar os fatos em que estava inserido, deixando o que não viu à mercê de suas especulações. Porém, na produção cinematográfica são assumidas duas posturas: a visão com do narrador- personagem por meio do voice-over e do olhar objetivo que mostra ao espectador o visto pelo olhar do narrador; e a visão por trás, na qual a câmera assume o papel de narrador, revelando momentos das personagens nos quais Paulo Honório não está presente e imagens do próprio Paulo, que seriam impossíveis de serem vistas por ele, como quando a câmera gira ao seu redor ou faz close em seu rosto, demonstrando momentos de introspecção. Paulo Honório encontra-se solitário, querendo dividir a angustiante lembrança dos acontecimentos que culminaram com a ausência absoluta de companhia. Sabendo que “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p. 201), notamos nele o desejo de continuar o hábito do relato da conquista de suas terras e de seu patrimônio, como fazia a Madalena. Em meio a um turbilhão de sentimentos com relação aos que o cercavam, confiança-desconfiança, amor-ódio, Paulo Honório demonstra reconhecer, como narrador, que 39 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. [...] O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (BENJAMIN, 1994, p. 221) Como justo e digno, o narrador de São Bernardo dá à sua história um tom, além de documental, confessional ao assumir seu estado de espírito na época em que a história acontece, revelando: “Creio que estava quase maluco” (p. 151), e seu caráter de “indivíduo medianamente impressionável” (p. 156). Dita transparência do narrador dá credibilidade a seu relato, feito sob opessimismo e a desesperança de alguém ciente de que chegou a um nível de brutalidade e desconfiança irreversíveis: Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige. (p. 186- 187) Obra literária e produção cinematográfica terminam da mesma maneira, com Paulo Honório solitário, no meio da noite, buscando um sussurro qualquer para lhe fazer companhia, mas a única companhia é o fim de uma vela queimando, como a réstia de esperança extinguindo-se diante de seus olhos que teimam em não dormir e da aliança (lembrança de Madalena) que continua a brilhar: A vela está quase a extinguir-se. Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão. É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! [silêncio] Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos. (HIRSZMAN, 1973; RAMOS, 1981) Vale ressaltar que Paulo Honório conhece e admite os motivos que o levaram a ficar solitário, mas constrói sua narrativa buscando a empatia do leitor para com seu vazio existencial. Escolhe o léxico garimpando uma solidariedade do leitor que já conhece sua história, sabendo que ficará ali em São Bernardo “às escuras” até conseguir descansar “uns minutos”. 40 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. 2 “A Vela está quase a extinguir-se”... Podemos observar que a postura do narrador tanto no livro quanto no filme faz com que o leitor seja conduzido pela narrativa, sob o ponto de vista do narrador- personagem Paulo Honório. O leitor passa então a ser uma espécie de confidente do narrador, que ora é personagem, ora é contador, o que fica explícito com a mudança de ponto de vista da câmera no filme, que ora está com a personagem e ora está por trás da personagem. Dessa forma, o leitor vai descobrindo e presenciando as situações mais recônditas da alma de quem narra o que viveu, vai percebendo pelo dito e pelo que não é dito a importância dos fatos, já que no discurso o espaço do não-dito tem tanta ou mais importância que aquilo que está previamente estabelecido. No filme o não-dito aparece com closes do rosto pensativo de Paulo Honório, revelando também sua sisudez. O narrador age de forma a deixar claro em seu discurso que aquela é a narrativa de um homem sozinho, sem variações de foco narrativo ou vozes, com direito a fluxos de consciência narrados e apresentados ao leitor, quase numa epifania telúrica, rudimentar, feita aos moldes do personagem bruto conhecido como Paulo Honório e que pode ser tomado como o alter ego do narrador. Essa postura narrativa é percebida principalmente no filme, em que a narração em voice-over faz com que esse narrador seja personificado, sendo sua voz uma segunda personalidade, já que imagem e voz divergem em suas ideias e visões dos fatos. Podemos apontar ainda a associação verbal divergente em cada uma das obras analisadas, o que permite uma construção distinta do narrador e da história narrada: no texto literário, a narração em primeira pessoa nos coloca diante da memória, nos apresenta a eventos passados que se presentificam pela elaboração autoral; já no filme, essas ações acontecem em dois tempos narrativos distintos: o das ações do personagem e o da narração. Essa duplicação temporal e as características semióticas próprias do meio audiovisual, permitem outros regimes significativos. É interessante notar a relevância do livro São Bernardo para a literatura brasileira, sobretudo pelo fato de ter sido escrito em 1934 e manter-se atual até os nossos dias. Sua atualidade se deve, principalmente, a temas relacionados à alma, à solidão humana e à constante busca por explicações interiores; ademais, se observarmos os recursos técnicos utilizados por Graciliano Ramos para demonstrar a introspecção de Paulo 41 Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 30-41, 2016. Honório e sua reflexão sobre o fazer artístico, como a postura do narrador, perceberemos que são assuntos merecedores de atenção e estudo em nosso mundo contemporâneo. Leon Hirszman, ao adaptar o romance para o cinema, em 1973, reafirma sua atemporalidade e atualidade, visto que, passados quase quarenta anos, a situação política e social brasileira continuava a mesma ou até piorara devido aos regimes ditatoriais. Referências ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOURNEUF, Roland; OUELLET, Real. As personagens. In: O universo do romance. Trad.: José Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976. FARIAS, Sônia L. Ramalho. Budapeste: as fraturas identitárias da ficção.In: FERNANDES, Rinaldo de. (org). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa.Ensaio de método. Lisboa: Arcádia, 1979. GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In:Lingüística e comunicação.Trad. IzidoroBlikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 63- 72. LEITE, Lígia Chiappini. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1993. LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à Retomada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. Coleção Estudos, nº 93. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 38ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1981. REUTER, Yves. Introdução à análise do romance.Trad. Ângela Bergamini et al. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Filmografia HIRSZMAN, Leon. São Bernardo. 1973. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. ZOLIN, Lúcia Osana. A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mu- lheres. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 9, Julho 2011.[http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br] A construção dA personAgem femininA nA literAturA brAsileirA contemporâneA (re)escritA por mulheres Lúcia Osana Zolin* Resumo Nos últimos anos, tem se tornado recorrente, no campo da literatura, a prática da reescrita de textos literários canônicos a partir de múltiplas perspectivas, como as que se empenham em salientar as di- ferenças de gênero, de raça e de classe social. No contexto dos estudos sobre literatura de autoria femi- nina, trata-se de uma tendência, de fato, importante, já que se caracteriza pela produção de um texto novo e autônomo que denuncia a alteridade do/a oprimido/a, no caso, a mulher, e promove o desnu- damento de sua identidade. Ana Maria Machado, em A audácia dessa mulher (1999), num interessante diálogo com Dom Casmurro, de Machado de Assis, reescreve a trajetória de Capitu. Do mesmo modo, Nélida Piñon, em Vozes do deserto (2003), reescreve a história de Scherezade, personagem de As mil e uma noites, coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana. Se, nos textos originais, essas personagens não têm voz, nas referidas reescritas, elas são construídas imbuídas do direito de falar. É dessa questão que nos ocupamos neste artigo, amparados por teorias críticas feministas. PalavRas-chave: personagem feminina, autoria feminina, reescrita. abstRact In recent years,the rewriting of canonical literary texts from a variety of perspectives highlighting differences in gender, race and class has become frequently utilized. This fact constitutes an important trend within the context of literature written by female authors, characterized by a new and indepen- dent text that denounces the alterity of the oppressed, precisely women, and triggers the revealing of their identity. The author of A audácia dessa mulher (1999), Ana Maria Machado, rewrites Capitu’s trajectory in a very interesting dialogue with Machado de Assis’s Dom Casmurro. Further, in Vozes * luciazolin@yahoo.com.br Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. SEMANA 5 - TEXTO BASE 1 gusta Máquina de escrever https://doi.org/10.35520/diadorim.2011.v9n0a3923 96A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. do deserto (2003), Nélida Piñon rewrites Scherezade’s story, a character of the Arabic (of Persian and Hindu origin) narrative, The One Thousand and One Nights. Although in the original stories the fe- male characters lack their voices, in the rewritten novels they are constructed as characters with the right of speak. Foregrounded by Feminist Critical Theory, the current research deals with the above- -mentioned issues and strategies. KeywoRds: female characters, women writers, rewriting. O modo de construção da personagem feminina em textos literários escritos por mulheres nos últimos anos (década de 1990 em diante) aponta para uma tendência que, se não surpreende efetivamente as/os estudiosas/os acostumadas/os às abordagens feministas da literatura, certamente surpreende o leitor familiarizado com a representação de imagens recorrentes de mulher na tradição literária, construídas de modo a repetirem ad infinitum os discursos historicamente edificados ao seu redor (Scholze, 2002). Assim, elegendo o corpus constituído pelos romances A audácia dessa mulher (1999), de Ana Maria Machado, e Vozes do deserto (2004), de Nélida Piñon, tratamos de demonstrar que, ao invés de aparecerem enredadas nas relações de gênero, desempenhando papéis sociais que as identificam como mulheres-objeto, as personagens femininas protagonistas dessas narrativas são construídas como mu- lheres-sujeito, capazes de traçarem os rumos da própria trajetória e desafiarem as manifestações de poder de ideologias semelhantes à patriarcal que, embora não mais encontrem espaço em certos seg- mentos da nossa sociedade, ainda são dominantes em outros. Partindo do clássico estudo de Elaine Showalter, A literature of their own (1985), Elódia Xavier, em A hora e a vez da autoria feminina: de Clarice Lispector a Lya Luft (2002), traça o perfil da trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, já apontando essa especificidade nas obras publicadas a partir da década de 1990. Se a literatura produzida nos primórdios dessa tradição reduplica os padrões ideológicos referentes ao modo de a mulher estar na sociedade, a produzida a partir de meados do sé- culo passado até os anos 80 põe em discussão as relações de gênero, promovendo o desnudamento e a consequente desestabilização da opressão feminina. Já a partir dos anos 90, o modo como os conflitos dramáticos passam a ser solucionados apontam para uma terceira etapa da referida trajetória, na qual as personagens são construídas de modo a agregarem novas identidades que, por si, apregoam o declí- nio da ordem patriarcal. Os textos de Ana Maria Machado e de Nélida Piñon, objetos desta discussão, integram as narrati- vas dessa última fase, sendo que talvez até pudéssemos pensar em classificá-los em um quarto momento, 97 Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. já que a mudança de rumo em relação aos papéis representados pelas suas protagonistas não são verificá- veis apenas no modo como são solucionados os conflitos; aparecem já desde o início de suas trajetórias. Ressaltamos, todavia, que se trata de textos marcados por esta peculiaridade de trazerem à tona figuras femininas libertárias, mas que diferem de outros do gênero na medida em que foram construídos a partir de narrativas do passado, nas quais suas protagonistas oprimidas pelo sistema patriarcal trilhavam caminhos bem diferentes. Trata-se da estratégia da reescrita. No âmbito dos estudos pós-coloniais, a reescrita consiste em uma estratégia bastante recorren- te com a qual se pretende edificar uma visão crítica acerca de determinado corpus literário e da ideolo- gia que subjaz a ele. Em O pós-colonialismo e a literatura (2000), Bonnici define a reescrita como uma estratégia em que “o autor se apropria de um texto da metrópole, geralmente canônico, problematiza a fábula, os personagens ou sua estrutura e cria um novo texto que funciona como resposta pós-colonial à ideologia contida no primeiro texto” (p. 40). Um dos exemplos citados pelo crítico é Wide sargasso sea (1966), da escritora caribenha Jean Rhys, romance que se apropria da história contada por Charlot- te Brontë no clássico Jane Eyre (1847) para, então, recriá-la, salientando questões de gênero, racismo, escravidão e colonialismo, as quais não são problematizadas no texto original. No âmbito da literatura brasileira de autoria feminina, a estratégia da reescrita tem sido, não raramente, utilizada pelas escritoras brasileiras numa atitude de reinvenção, que põe em relevo o modo de construção e representação do universo da mulher. É o caso dos romances A audácia dessa mulher e Vozes do deserto. O primeiro consiste em um texto em que, em meio à teia narrativa que se desenvolve em torno da trajetória da audaciosa Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no finalzinho do sé- culo XX, a autora reescreve e/ou reinventa a trajetória de Capitu, a protagonista de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Se as leituras mais ingênuas desse clássico romance oitocentista giram em torno da polêmica da culpa ou da inocência de Capitu, uma das personagens femininas mais discutidas da literatura brasileira, as leituras mais lúcidas enfatizam a questão do ciúme de Bentinho e a consequente impossi- bilidade de o leitor ter certeza se ele foi ou não traído pela mulher com seu melhor amigo. Isso porque o romance é narrado em primeira pessoa pelo próprio Bentinho, enlouquecido de ciúme, quando ele já se encontrava na velhice, visceralmente mergulhado na solidão e na sua casmurrice. Consequente- mente, Capitu é silenciada, tal estratégia narrativa não lhe permite expressar seu ponto de vista, ainda que matizado pelas tintas da ideologia oitocentista. Trata-se, talvez, do mais clássico exemplo, no âmbito da literatura brasileira, do que Bourdieu (2005) chama de “dominação masculina”, uma estrutura social estabelecida ao longo da história da 98A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. humanidade e “naturalizada” de acordo com os interesses da ideologia dominante responsável por sua construção, na qual a figura masculina impõe seu desejo, suas regras, seu pensamento que, via de regra, submetem a mulher, desconsiderando-lhe a capacidade de discernimento acerca dos valores cir- cundantes. Segundo o sociólogo, “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem legitimá-la” (p. 18). Os códigos sociais, portanto, ao alicerçarem-se sobre a dominação masculina, ratificam-na, entre outros fatores, por meio da divisão social/sexual do trabalho, da divisão social/sexual do espaço (rua/casa), da estruturação do tempo em constantes momentos de ruptura masculinos e longos perío- dos de gestação/amamentação/educação femininos.São princípios como esses, de visão e divisão sexualizantes, que regem o modo de o narrador- -protagonista de Dom Casmurro se relacionar com a mulher e impor a ela e ao seu destino sua visão de mundo. As críticas mais comuns, empreendidas pelos estudos contemporâneos de gênero, ao autor do romance se concentram no fato de ele ter construído a Capitu silenciada, sem vez e voz, bem aos moldes da ideologia patriarcal, que defendia a subjugação e o emudecimento da mulher. A Capitu acusada de adultério pelo marido, por meio de um discurso jurídico e, como tal, manipulador, é exilada com o filho na Suíça, onde morre na solidão e no abandono, sem direito à defesa. Daí a pergunta mais recorrente: quais seriam os contornos de Capitu senão aqueles que lhe conferem a ótica do marido-advogado? Ana Maria Machado, imbuída da crença de que “os livros continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgá-los separadamente” (1999, p. 185), retoma a trajetória de Capitu, recriando-lhe os contornos, reinventando-lhe os caminhos percorridos durante o casamento com Bentinho e após seu exílio na Suíça. O argumento central da retomada dessa história é o “cadernão da Lina”, um misto de caderno de receitas e de diário íntimo que, após ter passado por diversas gerações de mulheres, du- rante mais de um século, chega às mãos de Beatriz, a protagonista do romance, acompanhado de uma carta assinada por Maria Capitolina. A estratégia do livro consiste, portanto, em fazer com que Capitu, a personagem de ficção machadiana do século XIX, seja reconhecida por Beatriz, personagem de ficção ambientada no final do século XX, como uma mulher real que, apesar de ter sido também personagem de Machado, existiu de fato. Desse modo, está construída uma situação narrativa que permite à escritora, no limiar do século XXI, de posse de todas as conquistas viabilizadas pelo feminismo em relação ao modo de estar da mulher na sociedade, engendrar uma narrativa que funciona como resposta feminista à ideologia patriarcal que subjaz à construção de Dom Casmurro. É dentro desse espírito e/ou desejo de dar pros- seguimento às narrativas de outros tempos, as quais de um jeito, ou de outro, refletem a sociedade da época, que os caminhos que teriam sido trilhados por Capitu, e que não caberiam no campo de visão do narrador Dom Casmurro, são iluminados. Tudo o que não foi dado ao leitor do romance original saber sobre essa intrigante personagem feminina, a quem Machado não deu voz, sendo-lhe o perfil filtrado pela ótica do marido ciumento, é permitido conhecer agora. A carta destinada a Sancha, que acompanha o caderno de receitas, enviada quarenta anos após Capitu ter partido para a Suíça, revela o fato de ela ter presenciado, na véspera da morte de Escobar, a 99 Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. comprometedora troca de olhares entre o marido e a melhor amiga. Essa revelação, que inverte a situa- ção básica do romance oitocentista, já que Capitu passa de adúltera para vítima de traição, desencadeia uma série de outras situações que funcionam como respostas às lacunas deixadas no texto original em relação ao comportamento da protagonista: 1) em face da confissão de adultério do marido, a decisão da separação é dela; 2) a semelhança entre Ezequiel e Escobar, com o tempo, desaparece, dissipando as dúvidas acerca de sua paternidade; 3) ela responde à situação disfórica com a “audácia de se parir novamente” (Machado, 1999, p. 199). É fundamental nessa reescrita o fato de Capitu ser capaz de reinventar, a partir do nada, uma nova vida e dar sentido a ela. Apenas aparentemente ela cumpre a sina da mulher adúltera que, após ser desmascarada, morre na solidão e no abandono como forma de purgar seus pecados. Na verdade, ela ignora o rótulo de “fêmea infiel” e constrói uma vida digna a partir de seus próprios méritos. O fato de ter abandonado o apelido de menina e passado a usar a outra metade do nome, Lina, numa atitude de Fênix, aponta para sua capacidade de engendrar a própria história, independentemente das adver- sidades impostas a seu sexo pelo pensamento patriarcal. Ganha relevo, nessa nova trajetória que Ana Maria Machado confere a Capitu, em que o ele- mento “parir-se novamente” é central e decisivo, o fato de esse ato ser sustentado por dois pilares fundamentais: a conquista da vida profissional e o desejo de mulher de redefinir os papéis sociais que representa. No que diz respeito ao primeiro, a vida profissional que vai aos poucos conquistando lhe viabiliza a independência definitiva: ela passa de ajudante de cozinha, em uma pensão, para camareira, depois para governanta e, finalmente, para proprietária. Isso lhe garante o direito de cortar os laços que a ligam ao marido opressor e à “escravidão branca” que encontrava na mulher do tempo seu objeto (Lima, 1981). Em relação ao segundo pilar referido, não se pode deixar de considerar que, embora a reescrita da trajetória da personagem machadiana lhe preserve a ambientação no século XIX, ela se concretiza dentro de um outro contexto. Trata-se de uma homenagem a Machado de Assis, no ano do centenário da publicação de Dom Casmurro, realizada em um momento em que é visível na literatura, sobretudo na literatura de autoria feminina, a representação da nova situação da mulher na sociedade, viabilizada pelo feminismo. Num certo sentido, também o romance de Nélida Piñon, Vozes do deserto, publicado em 2003, inscreve-se nessa estratégia narrativa da reescrita. Em homenagem aos contadores de histórias e à ci- vilização árabe, a escritora construiu o livro sobre Scherezade, a protagonista de As mil e uma noites, coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana, escrita presumivelmente entre os séculos VIII e IX por autores anônimos. O texto original gira em torno da história do poderoso e perverso rei Schariar que, tendo sido traído pela Sultana com um escravo negro, vingava-se das mulheres, casando-se diariamente e fazendo matar a esposa na manhã seguinte. Assim procede até o Vizir, não encontrando mais “candidatas” ao 100A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. posto, ver-se obrigado a entregar-lhe a própria filha, Scherezade, que aceita, mas pede à irmã que a acompanhe e que lhe peça à noite para contar uma história. Graças a seus contos, interrompidos pela manhã, no momento mais interessante, safa-se da morte e termina como rainha, mãe dos filhos do rei. O texto de Piñon desenvolve-se em torno desse mesmo argumento inicial, com a diferença de que é a própria Scherezade que, contrariando a vontade do pai, se oferece para o posto, imbuída da missão de livrar as mulheres do reino do despotismo do Califa. Também a narrativa em si é construída sobre bases completamente diferentes: o leitor não tem acesso às histórias narradas pela protagonis- ta; ao invés de trazê-las para a cena principal, como no texto original, a escritora põe em evidência o mundo interior de Scherezade e das demais personagens femininas envolvidas na trama. É dado ao/a leitor/a o privilégio de conhecer o seu modo de olhar a realidade circundante, bem como os contornos de seu caráter, de seus valores e, sobretudo, os detalhes de seus projetos. Assim, se a primeira Schere- zade, retratada de fora, harmoniza com sua origem na remota civilização oriental de séculos passados, que, além de objetificar, silenciava a mulher, a Scherezade de Nélida Piñon se mostra ao/a leitor/a. Ao “mostrar-se”, torna-se bastante condizente com o modo de estar da mulher na sociedade de um tempo marcado pela revisão de valores que inclui, entre muitas coisas, a valorização do universo feminino e o desnudamento das formas veladas de poder que, de uma maneira ou de outra, suas atitudes sempre permitiram inferir. A trajetória de Scherezade, em Vozes do deserto (2003), embora se cumpra no contextoem que fora concebida originalmente, traz em si as marcas da revolução feminista responsável por assinalar o fim do patriarcado. Na contramão de certo “rumo equivocado” que, segundo a teórica francesa Eliza- beth Badinter (2005), setores do feminismo têm assumido na atualidade, tendo em vista se dispersa- rem da meta fundamental do movimento – a da igualdade entre os sexos –, para, no lugar, proporem a melhoria das relações entre eles, Piñon rejeita a estratégia da vitimização feminina. A protagonista do romance, antes de se colocar como vítima indefesa nas mãos do Califa predador – protótipo da dominação masculina referida por Bourdieu (2005), tanto quanto o é o narrador de Dom Casmurro –, é construída como guerreira e estrategista; capaz de valorizar as armas de que dispõe e se lançar na conquista da libertação de seu sexo. Para melhor traçar os contornos do modo como Piñon representou a mulher na figura dessa curiosa personagem feminina resgatada da literatura árabe, pareceu-nos importante perscrutar o diá- logo que se estabelece entre o seu modo de construção e o do Califa. 101 Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. Apesar de estar ambientada em um contexto que toma como natural a objetificação da mulher, a Scherezade de Piñon soma à capacidade de narrar e de manipular dissimuladamente da Scherezade original a educação esmerada que recebera, a vivência da vida prosaica experimentada nas ruas de Bagdá e, sobretudo, a lucidez em relação à problemática em que voluntariamente se envolvera. Ela parece se saber capaz de vencer o Califa de antemão, a despeito do medo, da angústia e do cansaço que permeiam as suas ações. 102A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. Apesar de estar ambientada em um contexto que toma como natural a objetificação da mulher, a Scherezade de Piñon soma à capacidade de narrar e de manipular dissimuladamente da Scherezade original a educação esmerada que recebera, a vivência da vida prosaica experimentada nas ruas de Bagdá e, sobretudo, a lucidez em relação à problemática em que voluntariamente se envolvera. Ela parece se saber capaz de vencer o Califa de antemão, a despeito do medo, da angústia e do cansaço que permeiam as suas ações. A habilidade com que planeja cada palavra com que tece as narrativas que encantam o sobe- rano, com que confere cada gesto às personagens e lhes decide o destino, com que interrompe ou dá continuidade às histórias convida o/a leitor/a a relativizar os conceitos estabelecidos no contexto da dominação masculina que, tradicionalmente, marca a relação entre os sexos e que confere à mulher a pecha de objeto/dominada/oprimida e, ao homem, a de sujeito/dominador/opressor (Bourdieu, 2005). À medida que a narrativa vai se desenvolvendo, os papéis vão se invertendo ou, pelo menos, perdem essa configuração rígida. Se ela é prisioneira dele, não podendo se ausentar dos limites da alcova e ten- do a cada manhã a ameaça de ter a cabeça cortada, ele também se faz prisioneiro de seus contos. Na verdade, sob a aparência do soberano perverso e opressor, que encontra na memória da “insultuosa luxúria” da Sultana a mola propulsora de seu ódio e sentimento de vingança contra as mulheres, subjaz a figura de um homem atormentado com a humilhação imposta por essa esposa que, embora morta, lhe povoa a lembrança com atitudes arrogantes, blasfemando contra a inexorável sentença que lhe impusera a morte: “Em nome de que poder o Califa arroga-se o direito de puni-la simplesmente por desfrutar do gozo que encontra nos braços suados e exuberantes de seus escravos?” (p. 135). Trata-se, certamente, da “lei social incorporada”, referida por Bourdieu, que remete à neces- sidade de validação da virilidade pelos outros homens: matar a mulher que ousou se deitar com um reles escravo seu, bem como matar todas as mulheres com quem vem a se casar, após esse lamentável episódio, logo na manhã seguinte às núpcias, implica manter-se digno de certa ideia de homem erigida sobre os alicerces do pensamento patriarcal. Em função, talvez, dessa situação que lhe rouba a ilusão de imortalidade e lhe relativiza o poder, realçando-lhe a solidão e o sentimento de perda das pequenas alegrias, as aventuras narradas por Scherezade ganham relevo. O prazer advindo delas abranda-lhe o coração, conferindo-lhe certo conforto para o espírito. É como se mediante identificação com personagens como Ali Babá e Aladim, que povoam os enredos da contadora de histórias, ele se desligasse da situação de opressão imposta pela traição referida. Daí, cada vez mais, sentir-se atado pela teia narrativa de Scherezade; daí, também, adiar a cada dia sua execução, contrariando as leis do califado, até, por fim, reavaliá-las e admitir o equívoco de que a morte das esposas lhe traria paz e lhe redimiria da humilhação. Os excertos, a seguir, 103 Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. ilustram esse momento da sua trajetória e salientam o processo de transformação por que passa em relação ao modo de olhar o universo feminino: Graças às filhas do Vizir e à escrava Jasmine, ia ele decifrando devagar os risos destituídos de sentido que surpreendia a qualquer hora do dia nas mulheres. Uma espécie de alegria que lhes permitia colocar à margem uma realidade cujos funda- mentos dramáticos feriam seu corpo e sua dignidade. (...) Pela primeira vez o Califa admitia para si mesmo já não prescindir da fortaleza moral advinda daquelas mulheres. Ou da arguta montagem tão natural daquela espécie. Naqueles dias calorentos, que lhe devolviam suor e incertezas, o soberano parecia resignar-se que simples fêmeas, presas aos aposentos, lhe guiassem os pas- sos, ditassem regras (p. 304). Ouviu a história de Scherezade com a curiosidade de sempre. Um prazer que lhe vinha de tal modo abrandando o coração que se viu tentado a confessar-lhe, pouco antes de amanhecer, enquanto ela ainda lhe falava, que, a partir daquela noite, es- taria dispensada de seu veredicto. Isto é, não haveria castigo para ela. Estava livre para deixá-lo, seguir para onde quisesse, levando consigo a garantia de nunca mais punir uma jovem de Bagdá (p. 341). O que se constata, portanto, é que Scherezade atingiu o seu intento. O Califa déspota e in- sensível que prazerosamente valia-se de seu poder de monarca para aniquilar as mulheres com quem se relacionava, numa atitude de vingança contra a traição que lhe foi impingida por uma delas, não existe mais. Por meio de suas narrativas, ela o submete a um processo de humanização e sai vencedora. Mediante a vivência de outras experiências a ele permitidas pelo império narrativo de Scherezade, o fantasma da sultana desaparece e lhe ocorre “a superação da agonia de punir as mulheres” (p. 341). Em face dessas considerações, é imperiosa a constatação de que a Scherezade construída por Nélida Piñon, e desnudada aos olhos do leitor pelo/a narrador/a onisciente, tem o controle do próprio destino. Se, em certos momentos de sua trajetória, ela se angustia com a possibilidade de ter o projeto desmascarado pelo “soberano” e, consequentemente, a cabeça entregue ao carrasco, na maior parte do tempo, tem consciência de que, ainda que deseje, o Califa é incapaz de vasculhar os seus segredos, de decifrar-lhe as intenções. Ela sabe, exatamente, aonde vai chegar. Tanto é assim que, se para atingir sua meta é preciso entregar-lhe o corpo, ela o faz, mas preserva a alma. Isso implica dizer que, ao não se envolver emocionalmente com o Califa, nem se permitir o prazer sexual, apesar do clima de erotismo 104A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 9, p. 95 - 105, Julho 2011. que serve de cenário à sua empreitada, ela se mantém inabalada. E,tão logo, percebe que alcançara o objetivo, ou seja, quebrara no Califa a vontade de fazer das mulheres de Bagdá suas vítimas, ela vai viver outras aventuras, quem sabe, até, amorosas. Conforme mencionamos no início de nossas considerações, tendo em vista o modo de repre- sentação da mulher em cada uma das etapas da trajetória da literatura de autoria feminina brasileira, identificadas por Xavier (2002), as protagonistas dos romances A audácia dessa mulher e Vozes do deserto evocam imagens de mulher que excedem o script básico das representações mais recorrentes do feminino. Tanto a Scherezade criada por Piñon, quanto Lina (além da jornalista Beatriz Bueno que não enfocamos neste estudo), da narrativa de Ana Maria Machado, obedecem a uma outra lógica: a da superação da representação de papéis tradicionais. Parece que ambas as escritoras, ao adentrarem a seara da reescrita, mais comumente visitada por pós-colonialistas interessados em subverter as bases literárias, os valores e os pressupostos históri- cos de obras canônicas/metropolitanas, deixam no leitor a sugestão de que subjaz a livros como esses, erigidos sobre bases indubitavelmente feministas, um desejo de contribuir para com a subversão de fórmulas recorrentes e reducionistas relacionadas ao modo de compreender e representar o universo feminino. Trata-se, talvez, de promover, por meio da reincidência da palavra escrita, a substituição da degradação da mulher, cometida por ideologias como a patriarcal e reproduzida na literatura, por esquemas femininos de atuação mais libertários. Ecoando as tendências emanadas das discussões incentivadas pelo “multiculturalismo”, pensa- mento implementado no final de século XX que tem incentivado a emergência do diferente, das vozes divergentes e marginalizadas, salientando os conceitos de “Alteridade” e de “O Outro”, esses romances focalizam personagens femininas que se negam a enquadrar-se nas hierarquias de gênero por meio das quais a ordem patriarcal tem garantido a perpetuação de seus ideais; num movimento contrário às ideologias da opressão, fazem emergir situações em que as mulheres assumem a autoria da própria vida. No entanto, longe de se configurarem como libelos feministas, trazem em seu bojo muito mais que a defesa panfletária dos direitos da mulher: trazem reflexões sobre experiências de vida e sobre os contraditórios sentimentos e desejos humanos; trazem, também, as lições de transcendência de que fala Simone de Beauvoir (1980), ligadas à liberdade de escolha e a projetos de vida incompatíveis com práticas sustentadas pelo autoritarismo e pela opressão. Vozes do deserto, em especial, é um romance erigido sobre a condição humana em geral e, de modo particular, sobre a arte da criação, da imagina- ção, da invenção, enfim. Artigo recebido: 20/03/2011 Artigo aceito: 30/07/2011 48 A arte do encontro: leitor e personagem Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008 A arte do encontro: leitor e personagem. Carlos Pinto Corrêa* *Psicanalista. Membro Fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia. Unitermos: psicanálise; obra literária; personagem; interpretação; literatura. Resumo O autor focaliza a figura do personagem na obra literária, e sua autonomia frente ao criador que é o autor, ou frente ao leitor, que tenta lhe impor sua interpretação. Passando da questão literária à psicanálise, observa que a relação sujeito-objeto e vazio ocorre também na literatura. Escritor e leitor não se encontram via personagem. Ambos seguem seu destino que aponta para o vazio. Quem entender a linguagem entende Deus Cujo filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda muda, Foi inventada para ser calada. Adélia Prado Sem intenção prévia, percorremos o caminho teórico da criação literária em uma seqüência cronológica, que diria quase didática. Iniciamos por uma revisão da teoria da criação (1998), passamos ao objeto da criação (1998- b) e chegamos ao efeito da publicação com o desamparo do autor (2000). Para a jornada Artes da Psicanálise, avançando o ciclo, tomaremos a questão do encontro do leitor com o personagem da obra literária. Antes de tudo se torna necessário retirar o foco do tema da criação (obra) ou de quem cria (autor) para focalizar o personagem, e o estatuto de sua existência, independente de qualquer relação com o texto. FERRO (1999) fez interessante abordagem lembrando um importante diálogo entre dois personagens de A Ilha do Tesouro. Silver temendo a raiva do Capitão Smollet, se defende dizendo: "eu sou apenas um personagem de um conto sobre o mar. Eu não existo". Na verdade, ao tentar negar, mostra de forma inequívoca e paradoxal a realidade de sua existência. O personagem tem um estatuto fortemente realístico. Sua credibilidade depende da coerência de seus pensamentos e ação com as pessoas que o leitor traz em sua mente. Ele deve se situar em diferenças que o torne particular ou original, mas deve possuir algo universalizado no que pensa ou fala e na sua história. A ligação entre os personagens em suas relações recíprocas marca os parâmetros que dão o sentido do existir para o leitor. Quando Silver diz ser apenas um personagem, além de estar absolutamente consciente de que é um sujeito, está insurgindo contra seu criador e tenta passar de criatura a autor para o próprio autor. Este simples diálogo nos propõe três questões: 1 - O personagem possui vida autônoma? 2 - Mesmo depois de criado, o personagem permanece sendo uma marionete ao gosto do autor? 3 - O personagem, como objeto, pode ser completamente manipulado pelo leitor? Quando se inicia a leitura de um texto o personagem é incógnito e o leitor pode escapar do que este lhe sugere, abandonando a leitura. Prosseguindo no texto, quanto mais o leitor tenta apreender para dominar o personagem, mais ele escapa e o verdadeiro sentido da escrita pode se perder. Podemos fazer uma analogia proposta por BARTHES (2003), dizendo que o bom leitor precisa, em princípio, aceitar sua ignorância expressa em relação do incognoscível: "Que quero eu afinal, eu quero conhecer você?" Na leitura, este outro que é o personagem não reage às minhas provocações. Assim, "o meu outro se definiria apenas pelo sofrimento ou pelo prazer que me proporciona", de outro modo diria que o personagem vale pelo que é capaz de me colocar frente ao meu desejo. Literariamente, personagem é a "pessoa que é objeto de atenção por suas qualidades, posição social ou por circunstâncias" escreveu HOUAISS Psicanálise e Literatura SEMANA 5 - TEXTO BASE 2 49 Carlos Pinto Corrêa Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008 (2001) em uma curiosa conjugação. Freud, na Interpretação dos Sonhos, chama de personagem as figuras representadas que aparecem na narração dos sonhos. Podemos pensar também que o personagem é a encarnação de alguém recortado da realidade do escritor, que se torna uma espécie de espelho da realidade com a qual o leitor se defronta. Ele está situado entre o escritor e o leitor. Mesmo tendo sido inventado pelo autor, o personagem aparece como figura independente do seu criador e tem vida própria entre seus pares. Esta condição mantém sua autonomia frente ao leitor que vai buscar nele uma existência real. Na narração literária ele se torna o elemento fundamental que regula a coesão do texto, permitindo que a narrativa seja legível. A coerência do texto nos leva, entretanto, a repensar até que ponto a autonomia do personagem se impõe a compreensão do leitor. De outro modo, se sua soberania ditatorial poderia anular escritor e leitor em nome de sua sobrevivência. Em posição oposta, alguns críticos defendem a primazia do leitor que teria ampla liberdade de interpretação sobre o que lê, havendo ainda os que garantem a imposição do escritor diretamente sobre o leitor, transformando o personagem apenas em um intermediário manipulado. Esta questão é o cerne de uma polêmica entre ROTY (1989) e Umberto ECO (1990). O primeiro, simplificando a questão,afirma que qualquer tipo de leitura de um texto literário é perfeitamente legítima, porque o texto é, por si só, um esboço que necessita ser integrado e feito viver, seja como for. Eco se opõe, sustentando que o importante não é a vontade do leitor, já que o texto tem, em sua estrutura, determinados elementos que autorizam uma leitura e invalidam outra. A polêmica aponta uma verdade impossível para a literatura, tentando aproximação ou afastamento de uma objetividade frente à criatura imaginada. Como na segunda crítica de KANT (1788), podemos também situar o leitor entre a admiração e o temor quando refletimos sobre o céu estrelado acima de nós e a lei moral dentro de nós. A reflexão é nossa, mas a partir da escolha entre o céu ou o interior, percorremos todas as possibilidades, desde a idealização suprema de um deus até o recôndito de nossa culpa original ou da busca do primeiro objeto perdido. Mas se falamos de Kant, para quem o mundo é essencialmente incognoscível, aprendemos que nunca podemos conhecer de fato a realidade. Levando- se em conta a "realidade literária," ainda é mais difícil sustentar uma existência do personagem independente de quem o cria (escritor) ou de quem o encontra (leitor). O personagem é este outro que faz o sujeito crer e também mentir. A narração trata de uma história acontecida que é revista no presente com a leitura, ocasião em que o personagem adquire o fórum de real (realidade), mas aos olhos de quem lê, qualquer discordância pode mostrar que o personagem mente. LACAN (1955/56) no seminário 3 mostra que a fala de sujeito a sujeito é uma fala que pode enganar, mas que há também algo que não engana. A descoberta do engano no personagem impõe ao leitor a descoberta em si de algo que não engana. Lacan nos diz que não é de realidade que se trata no psicótico, mas da certeza. Parafraseando, diríamos que na literatura o personagem não tem compromisso com a realidade, mas a sua certeza impõe ao leitor a noção de realidade, mesmo quando sabe tratar-se de uma história de ficção. Na verdade, a literatura escorre no campo do imaginário, inicialmente na criação do autor, com quem os significantes guardam uma conexão inconsciente. Na obra literária os personagens adquirem sua vida própria e até mesmo em obra autobiográfica, a escrita é na verdade o lugar em que se fala da falta, como uma das maneiras de passar pela castração. E, este sujeito (autor) "às vezes fala de forma não-sabida por ele mesmo, já que o sujeito sempre diz mais do que pensa ou pretende" BRANDÃO (2001). Se o personagem vai além do autor e se apresenta ao leitor como uma realidade nova, o imaginário do leitor vai recortar o que lê, produzindo novas conexões com os significantes encontrados. A recriação do personagem pelo leitor, mesmo sendo uma construção inicialmente imaginária, não pode ser tomada como arbitrária. Na leitura, o personagem pertence a quem lê, desvinculado de sua origem. O autor entra em cena quando o personagem mente e marca um corte no imaginário do leitor que vai tentar uma nova verdade, provavelmente na busca do equívoco. Cito a interessante posição de um colega psicanalista que terminando a leitura de Abismos (1998-b), me telefonou indignado com o destino que eu dera a André. Durante algum tempo, a cada encontro nosso reclamava com ênfase que eu não tinha o direito de ter escrito aquele final. O personagem o tocara como ex residente em Paris. Ele convivera com o romance escrito, até que o acontecimento inconcebível no seu imaginário o remetera ao autor, como se ainda fosse possível modificar seu destino. Sartre (1963) em Os dados estão lançados, descreveu interessante situação de inconformismo do personagem que insiste por uma chance de ter uma vida menos desastrada. Pedro e Eva pedem a Deus, metáfora do autor, que em princípio seria o senhor da vida e morte do personagem, que sabendo do final, pudessem tentar que tudo fosse diferente para triunfo do amor e da felicidade. Com a aceitação de Sartre, ou de Deus, novas esperanças surgem. Pedro e Eva tentam por vias diferentes, mas as ciladas do destino conduzem a uma repetição trágica do mesmo fim. Por possuir vida própria, o personagem deve cumprir seu destino muitas vezes até contrariando o imaginado poder supremo do autor. É verdade que "o autor constitui o momento forte da individuação na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências", disse FOUCAULT (1969), mas falou também no apagar das marcas demasiado visíveis do autor. Desde Mallarmé, o desaparecimento do autor se tornou uma exigência para anulação dos privilégios que ele possuía no século XIX, quando sua palavra era lei. Desaparecendo na obra, o autor deixa um espaço vazio, uma lacuna como outras fissuras da 50 A arte do encontro: leitor e personagem Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008 literatura que nos possibilita perscrutar os espaços e funções livres. A ausência do autor anula o espaço do mestre que ocupava na literatura antiga e remete o leitor ao vazio, ou à sua falta. A tentativa de se estabelecer uma ponte entre o leitor a o escritor, retirando do personagem sua autonomia, tem sido freqüente na crítica e na crônica literária. Machado de Assis, nosso escritor mais estudado, é repensado através de seus personagens, do mesmo modo que estes são examinados e analisados na busca de suas vinculações genéticas com o pai. Ele é reconhecido, freqüentemente, como pessimista, um clichê que reduz a complexidade da leitura e entendimento de seus textos. Machado afirma: "o que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama rabugens do pensamento", e mais adiante, assumindo-se como autor: "Escrevi com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Aqui é o autor quem se revela, mas o que fala do personagem não é o que qualquer leitor pensa a respeito. Há possivelmente quem não concorde e até possa se assustar com o que diz o criador: o leitor não se obriga a concordar com o autor, sua autoridade foi esgotada no momento da publicação em que entregou sua obra ao editor. Pode-se pensar que o personagem ocupa posição privilegiada na relação de encontro dos sujeitos - autor-leitor com seu objeto e suas faltas. Do ponto de vista do autor, o personagem se torna um significante em uma cadeia que aponta para um real oculto na obra literária. Do ponto de vista do leitor, este mesmo personagem é um significante de quem lê. Destituído de objetividade, o personagem faz um semblante que possibilita sua apreensão de tantos modos quantos são os leitores e irá sempre apontar para o vazio (sem resposta) do escritor. Seria interessante acrescentar a diferença entre os conceitos lacanianos de letra e significante, que permitem pensar a escrita ou o ato de escrever, como produtores de uma forma material, concreta, na escavação de um real que aparece no local do impossível, "neste lugar resistente de toda significação prévia, onde alguma coisa de legível fecha" (BRANDÃO, 2001). A partir do seminário Livro 4 de Lacan (1957), capítulo sobre o véu, podemos ousar uma representação esquemática do que foi dito. Entre o sujeito e o objeto surge o véu como ídolo da ausência. Aí está o sujeito, o objeto, e este mais além que é o nada. Tomando o escritor como o sujeito, e como na relação literária, o personagem como o objeto, este aponta para o nada, como acontece com a obra publicada. Véu ///// Sujeito--------- \\\\\ ---- Objeto ---------------> ///// VAZIO ESCRITOR \\\\\ PERSONAGEM ------> Em seguida, o leitor, tantas vezes apontado em trajetória oposta ao caminho do autor, deverá ser repensado. Tomando o mesmo esquema do véu, o leitor como sujeito, terá também como objeto o personagem, que é uma criação sua, diferente daquilo que o autor concebeu, mas do mesmo modo, aponta para o vazio. Véu ////// Sujeito Virtual ----- \\\\\ ------ Objeto ------------->///// VAZIO LEITOR \\\\\ PERSONAGEM-------> O esquema mostra que na verdade, autor e leitor, seguindo a trajetória do personagem, encontram o vazio. A literatura, morada da escrita e do sujeito, acolhe as manifestações da subjetividade, lugar de encenação possível do desejo impossível, deslizante metonímico. O sujeito escreve para quem sua escrita marca um encontro faltoso com o real, ou ponto de ancoragem para o seu desamparo. 51 Carlos Pinto Corrêa Cógito • Salvador • n. 9 • p. 48 - 51 • Outubro. 2008 A partir da melhor localização do personagem, estamos questionando o tipo de encontro possível na literatura e, parafraseando Vinícius de Morais, diríamos que a literatura é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pelas letras. Falamos do desamparo do escritor pela publicação de sua obra e agora chegamos ao desamparo do leitor conduzido pelo personagem. Continuando o poema de Adélia Prado: A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda Foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, Se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado (1881) Memórias Póstumas de Brás Cubas. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971. BARTHES, Rolan. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRANDÃO, Ruth Silviano. A Vida Escrita: Os Impasses do Escrever. Rio de Janeiro: Imago, 2001. CORRÊA, Carlos Pinto [1998]. Imaginação e Criatividade: uma Introdução ao Tema da Criação e Psicanálise. In: Cógito, v. 2. Salvador: Círculo Psicanalítico da Bahia, 2000. CORRÊA, Carlos Pinto. Criar para Quem? [1998 b] In: Corpo e Psicanálise. Porto Alegre: Unisinos,1998. CORRÊA, Carlos Pinto. [1998 c] Abismos. Belo Horizonte: A S. Passos, 1998. CORRÊA, Carlos Pinto. Literatura Sintoma e Desamparo. In: Estudos de Psicanálise, v. 23. Belo Horizonte: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2000. ECO [1990] Os limites da Interpretação, São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. FERRO, Antonino. [1999] A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000. FOUCAULT, Michel [1969]. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 2003 HOUAISS,A [2001]. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. KANT, Immanuel [1788]. Crítica da razão prática. In: Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LACAN, Jacques. [1957]. O Seminário. Livro 4. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. LACAN, Jacques.[1955/56]. O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1985. PRADO, Adélia [1976] Antes do Nome. In: Poesia Revivida. São Paulo: Siciliano, 2001. RORTY, R. [1989] La filosofia dopo la filosofia. Roma: Tr. It. Laterza, 1992 ctit Ferro [1999]. SARTRE, Jean Paul. Os Dados Estão Lançados, Lisboa: Presença, 1963. SEMANA 6 - TEXTO BASE 1 XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 1 Espaço e literatura: introdução à topoanálise Prof. Dr. Ozíris Borges Filho1 (UFTM) Resumo: O presente texto pretende apresentar os três primeiros itens da topoanálise, isto é, a análise do espaço na obra literária. Partimos da terminologia de Bachelard, mas ampliamos o seu alcance de sentido. Para nós, a topoanálise não se restringe à análise dos espaços íntimos, mas de todo e qualquer espacialidade representada na obra de ficção. Neste artigo, primeiramente, dissertamos sobre algumas das mais importantes funções do espaço. Em seguida, falamos sobre algumas das relações entre espaço e enredo. Finalmente, apresentamos o que a topoanálise entende por cenário, natureza, ambiente, paisagem e território. Palavras-chave: Topoanálise, espaço, cenário, natureza, ambiente. Introdução Chamamos de topoanálise ao estudo do espaço na obra literária. Retiramos esse termo do livro A poética do espaço de Gaston Bachelard. Segundo este autor: A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima. (BACHELARD,1989, p. 28) Apesar de aceitarmos a sugestão de Bachelard em relação à terminologia, divergimos do pensador francês em relação à definição. Por topoanálise, entendemos mais do que o “estudo psicológico”, pois a topoanálise abarca também todas as outras abordagens sobre o espaço. Assim, inferências sociológicas, filosóficas, estruturais, etc., fazem parte de uma interpretação do espaço na obra literária. Ela também não se restringe à análise da vida íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a personagem seja no âmbito cultural ou natural. Do ponto de vista de uma topoanálise, isto é, de uma teoria literária do espaço, acredito que a oposição entre espaço e lugar não é funcional e nada acrescenta à teoria. Ficamos com a conceituação clássica da teoria literária. Por isso, preferimos conservar o conceito de espaço como um conceito amplo que abarcaria tudo o que está inscrito em uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações. Esse espaço seria composto de cenário e natureza. A idéia de experiência, vivência, etc., relacionada ao conceito de lugar segundo vários estudiosos, seria analisada a partir da identificação desses dois espaços sem que, para isso, seja necessário o uso da terminologia ‘lugar’. Dessa maneira, não falaríamos de lugar, mas de cenário ou natureza e da experiência, da vivência das personagens nesses mesmos espaços. 1 As funções do espaço A criação do espaço dentro do texto literário serve a variados propósitos e seria tarefa ingrata e fracassada separar e classificar todos eles. Entretanto, entre essas funções do espaço, poderíamos destacar algumas. É o que faremos a seguir. 1.1 Caracterizar as personagens, situando-as no contexto sócio-econômico e psicológico em que vivem. Muitas vezes, mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais serão as atitudes da personagem, pois essas ações já foram indiciadas no espaço que a mesma ocupa. Note que esses espaços são fixos da personagem, são espaços em que elas moram ou freqüentam com grande assiduidade. Um exemplo clássico dessa afirmação, é a descrição que o narrador faz do quarto de Fernando Seixas no romance Senhora de José de Alencar. Através dessa descrição, percebemos claramente o SEMANA 6 - TEXTO BASE 2 XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 2 caráter de Seixas. É uma personagem que vive só de aparências. Aliás, o próprio narrador comenta esse fato. 1.2 Influenciar as personagens e também sofrer suas ações. Outras vezes, o espaço não somente explicita o que é ou será a personagem. Muitas vezes, o espaço influencia a personagem a agir de determinada maneira. Os exemplos mais claros dessa relação poderão ser encontrados, na literatura brasileira, nos romances naturalistas. Exemplo dessa função espacial pode ser encontrado na personagem Jerônimo de O cortiço de Aluízio Azevedo. Vindo de Portugal, Jerônimo, no início do enredo é o mais trabalhador de todos os habitantes do cortiço. No entanto, com o tempo, vai sendo influenciado pelo espaço em que vive até se tornar um trabalhador relapso. O que era diferente vai-se homogeneizando através do espaço em que vive. 1.3 Propiciar a ação. Uma função muito simples do espaço é a de propiciar a ação que será desenvolvida pela personagem. Nesse caso, não há nenhuma influência sobre a ação. A personagem é pressionada por outros fatores a agir de tal maneira, não pelo espaço. Entretanto, ela age de determinada maneira, pois o espaço é favorável a essa ação. Exemplificando, podemos tomar o romance O guarani. Peri, o protagonista do romance, vive em um espaço aberto, amplo, características que o fazem movimentar-se para todos os lados, correr, saltar, atirar flechas, etc. Nada disso seria possível num espaço fechado e restrito. Nesses casos, o espaço favoreceas ações da personagem. 1.4 Situar a personagem geograficamente. Às vezes, o espaço assume uma função denotativa. Nesses momentos, o espaço é meramente factual, pobre, por assim dizer, na medida em que não possibilita uma imbricação simbólica com as personagens. Em outras palavras, não há nenhuma relação de pressuposição entre personagem, espaço e ação. A função do espaço é apenas dizer onde está a personagem quando aconteceu determinado fato. Por exemplo, suponhamos um caso de demissão do trabalho. A personagem é descrita numa sala em que se encontra o patrão. A personagem sai e é só isso. A sala, de modo algum, caracteriza a personagem. Não há outra função dentro da narrativa a não ser a de informar onde o fato aconteceu. Nenhum aspecto simbólico, psicológico ou social povoa o espaço. Apenas o evento em si importa, o espaço é inteiramente denotado. No entanto, esses espaços são importantes na arquitetura geral da obra. 1.5 Representar os sentimentos vividos pelas personagens. Esses não são espaços em que a personagem vive, mas são espaços transitórios, muitas vezes, casuais. Assim, em determinadas cenas, observamos que existe uma analogia entre o espaço que a personagem ocupa e o seu sentimento. Por exemplo, teremos uma cena de alegria que se passa sob o sol fresco de um fim de tarde, brilhante, num céu com poucas nuvens e passarinhos voando. Parece que, como a personagem, a natureza está alegre, portanto há uma relação de homologia entre personagem e espaço. Trata-se de um espaço homólogo. 1.6 Estabelecer contraste com as personagens. Nesse caso, ocorre o oposto do mencionado anteriormente. Isto é, não há nenhuma relação entre sentimento da personagem e espaço. O espaço mostra-se indiferente, estabelece uma relação de contraste. Por exemplo, suponhamos que o protagonista tenha perdido sua mãe, devido a uma terrível infecção. No momento do enterro, temos o seguinte espaço: sol, céu azul, poucas nuvens, vento fresco, passarinhos cantando alegremente. Nesse caso, o espaço estabelece um contraste com o íntimo da personagem, há, portanto, uma relação de heterologia. Trata-se de um espaço heterólogo. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 3 1.7 Antecipar a narrativa. Através de índices impregnados no espaço, o leitor atento percebe os caminhos seguintes da narrativa. Em outras palavras, há uma prolepse espacial. Por exemplo, suponhamos que o herói está se escondendo de seu algoz. O narrador, ao apresentar o espaço em que o herói se encontra, mostra- nos uma faca em cima de uma mesa. Momentos depois, é justamente aquela faca que servirá para a defesa do herói. 2 Espaço e enredo Antes do mais, façamos a seguinte divisão. Podemos, de modo geral, perceber três gradações ficcionais na representação do espaço na obra literária. É claro que, em se tratando de literatura, todos os espaços representados na obra serão ficcionais por mais fiéis à realidade que sejam, no entanto, tomando a realidade por parâmetro, podemos dividir o espaço da obra literária em três: 2.1 Realista O espaço construído na obra semelha-se à realidade cotidiana da vida real. Nesse caso, o narrador se vale freqüentemente das citações de lugares existentes. Ele cita prédios, ruas, praças, etc. que são co-referenciais ao leitor real. Na literatura brasileira, Machado de Assis poderia exemplificar essa tendência plenamente. Nomes de ruas e de bairros como Botafogo são lugares realmente existentes no Rio de Janeiro à época do autor. Tal estratégia narrativa confere ao enredo maior verossimilhança. 2.2 Imaginativo O espaço será classificado de imaginativo quando os lugares citados na obra literária não existirem no mundo real. São lugares inventados, imaginados pelo narrador, no entanto, são lugares semelhantes aos que vemos em nosso mundo. 2.3 Fantasista Temos ainda a possibilidade de encontrarmos espaços que não possuem nenhuma semelhança com a realidade e que não seguem nenhuma regra do mundo natural que nós conhecemos. Esses mundos têm suas próprias regras. A esse tipo de espaço chamamos de fantasista. Esse tipo de espaço é comum, às vezes predominante, nas obras classificadas como fantásticas, no conto maravilhoso e na ficção científica. 2.4 Enredo O enredo, geralmente, se compõe de quatro etapas. Dizemos geralmente, pois a narrativa moderna vem fazendo várias experiências no sentido de uma nova estruturação do enredo. Independente disso, no entanto, o certo é que algumas dessas partes insistem em aparecer. Cabe ao topoanalista perceber a praticidade de identificá-las, vinculando-as aos espaços em que acontecem. Ao encadeamento dos espaços que formam a narrativa, chamamos de percurso espacial. Dentro desse percurso, revelam-se as quatro etapas do enredo. Uma primeira parte do enredo é chamada de exposição ou apresentação. É a parte introdutória da narrativa. É nela que se apresentam as personagens, os fatos iniciais. Também é nessa parte que se apresenta o primeiro espaço da narrativa. É o espaço inicial. Deve-se identificá-lo, perceber suas características e estar atento no seu papel no desenrolar da narrativa. É sempre interessante contrastar esse espaço inicial da narrativa com o espaço final, verificando os efeitos de sentido que essa relação provoca. Após a exposição, temos a complicação. Esse momento ocorre quando algo interfere e quebra aquela situação inicial, impulsionando a história. Cabe-nos, então perguntar, em que espaço ocorre essa quebra da situação inicial e qual o efeito de sentido que ele provoca dentro da narrativa. Será o XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 4 espaço inicial o mesmo da complicação? São diferentes? Por quê? Já que se pode ter mais de uma complicação dentro de uma narrativa também se pode ter mais de um espaço vinculado a ela. Cumpre analisá-los e verificar suas inter-relações. O desenvolvimento da narrativa atinge um ponto em que não há mais possibilidade de continuidade, é o ponto de maior tensão da narrativa. Esse ponto, geralmente, é chamado de clímax. É o ponto mais próximo do desfecho. Nesse momento também deve-se perguntar a respeito da espacialidade que está ali organizada. De que maneira o narrador organizou aquele espaço e quais os sentidos que se podem depreender dele. Por que o narrador escolheu determinado espaço para situar personagens e ação e não outro? Após o clímax, segue-se naturalmente o desfecho, a conclusão do texto. Resta analisar qual é o espaço em que isso ocorre. É o mesmo espaço em que ocorre uma das outras partes do enredo? Existe essa coincidência ou não? Quais os efeitos de sentido daí decorrentes? O espaço inicial, por exemplo, é o mesmo do espaço final? Houve alguma metamorfose nesse espaço entre o início e o fim da narrativa? Enfim, a relação entre as partes do enredo e o percurso espacial favorece inúmeras reflexões que possibilitam a interpretação profunda do texto literário. 3 Topografia literária Acreditamos que a primeira tarefa de uma topoanálise é o levantamento dos espaços do texto, uma espécie de topografia literária. Assim sendo, é interessante termos, desde já, um critério de divisão para essa topografia. 3.1 A segmentação do texto Como estamos analisando um texto do ponto de vista do espaço, a segmentação que nos interessa é, obviamente, a espacial. Isto é, devemos verificar se no texto há grandes e/ou pequenas movimentações vinculadas ao espaço. Em outras palavras, cumpre verificar se o texto pode ser dividido em macro e microespaços. 3.2 Macroespaços Às vezes, o texto pode ser dividido em dois grandes espaços, tais como: o campo e a cidade como acontece no romance de Eça de Queiroz A cidade e as serras. Há outras maneiras ainda, por exemplo, será que no texto analisado encontramos oposição entre regiões? norte-sul, leste-oeste?Existem ainda a possibilidade de oposição entre continentes como, por exemplo, Europa-América. A esses espaços maiores, polarizados em regiões ou países, podemos chamar de macroespaços. Esta seria uma primeira segmentação do texto. Após essa primeira etapa, passar-se-ia a uma outra. Saliente-se o óbvio: nem todo texto possui macroespaços. 3.3 Microespaços Detectada a presença do macroespaço, cumpre verificar os microespaços que o compõem. Se não houver macroespaço, passa-se diretamente à verificação dos microespaços. Nesse caso, toma-se por base a característica específica dos dois tipos essenciais do espaço, a saber: o cenário e a natureza. E ligado a esses dois tipos de espaço, temos o ambiente, a paisagem e o território. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 5 3.4 Cenário No âmbito da topoanálise, entendemos por cenário os espaços criados pelo homem. Geralmente, são os espaços onde o ser humano vive. Através de sua cultura, o homem modifica o espaço e o constrói a sua imagem e semelhança. Ao topoanalista cumpre fazer o levantamento, o inventário mesmo desses espaços bem como os temas e valores presentes nele. Sendo assim, é imprescindível atentarmos para espaços tais como: a casa e seus cômodos, a rua, os meios de transporte, escola, a biblioteca, o labirinto, os cafés, o cinema, o metrô, a igreja, a cabana, o carro, o prédio, o corredor, as escadas, o barco, a catedral, etc. O número é infinito, cumpre ao topoanalista estar atento e fazer uma leitura cuidadosa e minuciosa da obra literária. 3.5 Natureza Por natureza, entendem-se os espaços não construídos pelo homem. Espaços tais como: o rio, o mar, o deserto, a floresta, a árvore, o lago, o córrego, a montanha, a colina, o vale, a praia, etc. Esses espaços devem ser inventariados e estudados dentro de seus múltiplos efeitos de sentido na obra literária. Após essa topografia literária formada de cenários e naturezas, o topoanalista deve observar se esses espaços recebem figurativizações a ponto de os transformar em ambiente, paisagem ou território. 3.6 Ambiente Na perspectiva da topoanálise, o ambiente se define como a soma de cenário ou natureza mais a impregnação de um clima psicológico. Esquematicamente, teríamos: 1º) Cenário + clima psicológico = ambiente; 2º) Natureza + clima psicológico = ambiente. Tomemos como exemplo a seguinte seqüência de figuras: noite, chuva forte, vento forte, trovões, relâmpagos. Se essas figuras estiverem simplesmente apresentando o clima meteorológico teríamos aí um espaço ao qual podemos denominar de natureza. Entretanto, se a essas figuras, o narrador justapõe uma personagem que tramou um crime e que se encontra em vias de praticá-lo, temos aí uma sinergia entre ação e natureza. Um reforça o sentido do outro. Ou seja, à ação negativa, vil da personagem corresponde uma natureza tempestuosa, que evoca e favorece ações macabras. De acordo com o imaginário humano esse clima meteorológico está impregnado de negatividade, de augúrios. Assim, em vez de natureza, temos aí um ambiente. 3.7 Paisagem O conceito de paisagem é um tema clássico dos estudos geográficos. Como outros conceitos no âmbito dos estudos espaciais, este é visto de diversas formas, por diferentes especialistas (geógrafos, historiadores, arquitetos, pintores). Entretanto, muitos deles conservam um traço comum na definição de paisagem que é a questão do olhar. Portanto, uma primeira definição de paisagem é aquela que diz ser ela uma extensão de espaço que se coloca ao olhar. Em princípio, temos duas categorias de paisagens: a natural: que sofreu pouca ou nenhuma influência do homem; a cultural: que sofreu muita influência do homem. Assim, como o ambiente, o conceito de paisagem está ligado à idéia do olhar, portanto à idéia de subjetivização. Uma hipótese, que ainda precisa ser verificada, é a de que o ambiente está mais ligado ao olhar do narrador enquanto que a paisagem pode ligar-se tanto ao olhar do narrador quanto à de personagem. O conceito de paisagem parece-nos interessante e operacional para a topoanálise. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP – São Paulo, Brasil 6 Os espaços básicos de um texto são natureza e cenário, mas as implicações subjetivas desses espaços transformam-nos em ambiente, paisagem ou território, algumas vezes. O cenário ou a natureza serão classificados como paisagem quando tiverem três características: extensão; vivência; fruição. A idéia de paisagem estará ligada ao olhar do narrador ou da personagem. Quando se apresentar uma grande extensão de espaço aí teremos a presença da paisagem. Como se sabe, nenhum olhar é neutro, daí que a vivência da personagem e ou narrador determinará o conceito que esta terá do espaço que vê. Tal conceito circulará entre dois pólos: o de beleza ou o de feiúra. 3.8 Território No conceito de território temos a possibilidade de análise das relações de poder na obra literária. O cenário ou a natureza transformar-se-ão em território quando houver uma disputa por sua ocupação e/ou posse. O conceito de território é extremamente útil para a análise literária e, sem dúvida, imprescindível em uma topoanálise. Portanto, cabe ao estudioso perguntar que tipo de cenário e/ou natureza forma um território, isto é, que espaço está em relação de dominação-apropriação com as personagens. E, em conseqüência, de que forma o poder é ali exercido. Encerrando, esse item, afirme-se o seguinte. Na medida em que se selecionam os microespaços, isto é, os cenários e as naturezas também se devem perceber duas coisas. Primeiro, será que esses microespaços são englobados por macroespaços? Segundo, esses cenários e natureza transformam-se, em algum momento da narrativa, em ambiente, paisagem ou território? Em resumo, num primeiro momento, cumpre observar os macro e os microespaços. Após essa percepção, passamos à análise de cada um desses espaços. Para tanto, apontamos em seguida vários itens que deverão ser levados em consideração na análise dos trechos selecionados. Conclusão Este texto teve a intenção de apresentar a metodologia de análise do espaço no texto literário a que vimos chamando de topoanálise ou topanálise. Para tanto, escolhemos os itens iniciais dessa metodologia: as funções do espaço, a relação entre espaço e enredo, os conceitos de cenário, natureza, paisagem, ambiente e território. Para maior aprofundamento das questões aqui tratadas e para o conhecimento dos outros itens dessa metodologia, remetemos o leitor a nosso livro: Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Referências Bibliográficas [1] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989. [2] BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão gráfica e editora, 2007. [3] BERTRAND, Denis. L’espace et le sens. Essai de sémiotique discursive. Amsterdam: Hadier Benjamins, 1985. [4] LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. [5] LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978. SEMANA 7 - TEXTO 1 SEMANA 7 - TEXTO 2 O TEXTO COMEÇA AQUI 1/8 9 de outubro de 2018 “Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, aponta os caminhos de Rosa jornal.usp.br/cultura/sagarana-livro-exigido-pela-fuvest-aponta-os-caminhos-de-rosa/ Por Leila Kiyomura Em “Conversa de bois”, o penúltimo conto de Sagarana, os animais falam e raciocinam – Foto: Cecília Araujo de Oliveira … . Sagarana, de João Guimarães Rosa, tem muitos motivos para estar entre as leituras obrigatórias da Fuvest. É a primeira obra publicada do escritor mineiro, em 1946, que apresenta e inicia os estudantes no universo de um sertão marcado pela lei do mais forte, pela busca da vingança e pela traição.E, ao mesmo tempo, remete o leitor a um SEMANA 8 - TEXTO BASE https://jornal.usp.br/cultura/sagarana-livro-exigido-pela-fuvest-aponta-os-caminhos-de-rosa/ https://jornal.usp.br/author/leilakiyomura/ 2/8 universo mítico-religioso de tradição clássica. O desafio de Guimarães Rosa é encontrar caminhos para aliar as mitologias afro e indígena à mitologia grega. E narrar, ao mesmo tempo, a realidade do sertão e o encantamento do sertanejo. “Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães Rosa”, orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem uma ambição literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta um tipo de narrativa diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária, como os do romance greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até os da literatura mais moderna de seu tempo.” O professor Luiz Roncari: pesquisa sobre a obra de Guimarães Rosa resultou em vários livros – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens . Roncari vem pesquisando Guimarães Rosa há três décadas, trabalho que já resultou em vários livros, como O Brasil de Rosa – O Amor e o Poder e O Cão do Sertão, ambos editados pela Editora Unesp; Buriti do Brasil e da Grécia – Patriarcalismo e Dionisismo no Sertão de Guimarães Rosa, da Editora 34; e O Brasil de Rosa II – Lutas e Auroras, no prelo, da Editora Unesp. Em entrevista ao Jornal da USP (veja também o vídeo abaixo), o professor orienta sobre a leitura de Guimarães Rosa. “É importante que o vestibulando leia com muita atenção. Quando não entender, não passe batido. Recorra aos dicionários, em especial ao Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, da Edusp (Editora da USP). Guimarães pensa e explora as possibilidades de cada palavra, buscando tanto os seus sentidos mais arcaicos como os possíveis, virtuais. Cada palavra é como um desafio a ser enfrentado. Diante de um termo mais estranho, o leitor deve sempre se perguntar por que ele usou esse e não outro, mais comum.” . 3/8 Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos germânicos e rana é um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”. . Guimarães, de certo modo, procurou sintetizar também a luta pela formação de uma nação no título do livro. “Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos germânicos e rana é um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”, explica Roncari. “Ou seja, são histórias que parecem com uma saga. Mas não são sagas. Guimarães Rosa explora as possibilidades literárias de diferentes tipos narrativos, e está contando também uma espécie de formação do Brasil, tendo como um elemento marcante a violência. Ao mesmo tempo que tem uma pretensão de fazer uma literatura grande, universal, ele reflete o lugar onde nasceu e viveu, o da sua experiência.” Ilustração de Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido por Poty, para Sagarana – Foto: Reprodução . O professor lembra que, para chegar à universalidade, “Guimarães Rosa sabia que precisaria passar pela sua particularidade, que é o regional e o nacional, o sertão ou o mundo de sua experiência”. Roncari explica que a primeira versão de Sagarana é de 1937. “Porém, o livro foi publicado só nove anos depois, em um tempo em que estudiosos como Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Oliveira Vianna se perguntavam se o Brasil iria dar sertão ou civilização. Um questionamento que já começou nos anos 1920 e se estendeu até os anos de 1960.” Guimarães Rosa, ao contrário de Graciliano Ramos, resistiu ao regionalismo crítico e social que vinha sendo o dominante desde os modernistas. “O Modernismo rompeu com o Parnasianismo, o Simbolismo. A meta era uma literatura que focasse a originalidade brasileira. O escritor, no entanto, não queria uma ruptura, e sim uma literatura que pudesse, ao mesmo tempo que a modernização, integrar também as antigas tradições. Não era um sujeito de exclusão.” 4/8 Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução . Roncari deixa clara, no entanto, a importância do movimento. “Os modernistas tiveram a grandeza, a generosidade de procurar entender e incorporar a cultura popular, principalmente a negra. Eles valorizaram a dança, a religiosidade, como o candomblé, o canto e o artesanato.” . Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, tinha a esperança de que o Brasil pudesse vir a se constituir num espaço institucional civilizado.” . Sagarana traz o desafio de relatar as agruras do cotidiano do sertão, mas, ao mesmo tempo, seus sertanejos são construídos com a referência da mitologia clássica. “Eles têm um elemento empírico, histórico, e um mitológico que enobrece o personagem”, observa Roncari. “Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, tem esperança de que o Brasil possa vir a ser também algo civilizado.” 5/8 Watch Video At: https://youtu.be/DM8H9EwhWU4 . Sagarana começa a sua travessia com “O burrinho pedrês”, que, segundo descreveu o próprio Rosa, nasceu de um acontecimento real passado em sua terra, com o afogamento de um grupo de vaqueiros num córrego cheio. Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual. Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução https://youtu.be/DM8H9EwhWU4 6/8 . No primeiro parágrafo, está a arte de contar de Rosa, resgatando as narrativas tradicionais. “Os boiadeiros seguem contando casos e histórias, como os peregrinos de The Canterbury Tales, de Chaucer”, explica. “O leitor, junto com os casos contados, acompanha também um outro incubado na comitiva, o de um boiadeiro que quer matar outro por ter roubado a sua namorada. Um caso de vingança está para ocorrer ao longo do percurso. Uma violência está sempre prestes a explodir, como nas demais histórias.” Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução . O leitor segue com “A volta do marido pródigo”, a história de um mulato que abandona o trabalho, negocia a mulher e vai para o Rio de Janeiro. “Sarapalha” mostra uma região devastada pela malária, onde dois primos padecem da doença e da solidão e brigam por serem apaixonados pela mesma mulher. A vingança e a traição também estão em “Duelo“, com a história de Turíbio, que surpreende a mulher, Silvana, com o ex-militar Cassiano. Só que, por engano, ele mata o irmão desse amante. “Minha gente” é uma história de amor em primeira pessoa movimentada pelo clima das eleições. . Um homem erudito vivendo a experiência de um mundo onde impera a superstição e a crendice.” . A travessia pelo sertão continua com “São Marcos“. “Comecei a estudar Sagarana por esse conto a que ninguém dava muita importância”, diz Roncari. “Rosa fez e refez essa história. Tem uma característica importante: o autor é também o narrador e o personagem.” 7/8 João Guimarães Rosa – Foto: Domínio Público via Wikimedia Commons Capas de diferentes edições do livro de contos de Guimarães Rosa – Fotos: Divulgação . Em “São Marcos”, o autor deixa entrever também as suas experiências no sertão de Minas Gerais. O conto se passa no Calango-Frito. “Todo domingo, o protagonista saía de casa e ia para a floresta contemplar a natureza, nos seus elementos mais comezinhos, como as ervas daninhas, as formigas, os insetos. Um dia ele entra no fundo do bosque e é tomado pelo terror pânico, medo comum de quem se acredita perdido no meio da escuridão do matagal. Acreditava-se que ele era provocado pela possessão do deus Pan da mitologia grega, que habita no interior dos bosques que ataca e cega os que lá se perdem.” “Corpo fechado” conta a história de Manuel Fulô, um sujeito que ama maissua mula do que a noiva, cobiçada por um valentão. Mas, para salvar a noiva, ele entrega a mula a um feiticeiro para fechar o seu corpo e enfrenta com êxito o valentão. “Conversa de bois” narra a viagem de um carro de bois. Nele, o penúltimo dos nove contos que se encontram em Sagarana, os animais falam e raciocinam. O último conto do livro, “Hora e vez de Augusto Matraga”, foi apontado por Rosa como uma “vitória íntima”, pois desde o começo do livro era o estilo que procurava descobrir. “Essa é uma das histórias mais divulgadas do livro e realmente um dos contos mais bem 8/8 acabados”, considera o professor Roncari. “Augusto Matraga é um sujeito truculento, poderoso, autoritário. Um personagem que faz parte da história do País. Quantos Matragas não estão hoje no Senado, na Câmara, no Judiciário, na comitiva da Presidência, sem legitimidade, mas ditando as regras da política para a sociedade brasileira?” . …