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1 GÊNEROS NARRATIVOS NA LITERATURA BRASILEIRA RESUMO: PRINCIPAIS PONTOS DOS CONTEÚDOS SEMANAIS Na SEMANA 1, os nossos estudos abordaram a narração, destacando que ela é um gênero presente em nossas vidas. Desde a escuta de histórias de nossos antepassados, passando por parábolas religiosas, acontecimentos cotidianos, textos de ficção, anedotas, textos jornalísticos, histórias em quadrinho, ela está presente em nossas vidas. Na esfera dos estudos literários, podemos dizer que uma mudança no foco de atenção dos pesquisadores: a interpretação deixou de ser a única via de estudos do texto narrativo; surgiram, então as análises sobre as estruturas e os discursos narrativos. Jerome Bruner dedicou o livro Realidades mentais:mundos possíveis ao exame e discussão do quão preponderante foi o papel a narrativa na evolução da cultura humana. Dando sequência, chegamos à SEMANA 2, e procuramos caracterizar a formação humana, a partir de como o homem formula seus pensamentos e, com esses, age no mundo, ou seja, em quais circunstâncias são mobilizados. Entendemos por pensamento narrativo a narrativa criada pelo homem, baseada em sua memória e na sua interação com os demais, e pensamento científico como as proposições derivadas da história narrada. O ser humano em contato com a sociedade, cultura e sua própria vivência cria suas narrativas que espelham narrativas coletivas e delas depreendem uma série de proposições. No capítulo do livro “Realidade mental: mundos possíveis – ‘Dois Modos de Pensamento’”, Bruner aponta as distinções entre o modo de pensar narrativo e o científico. O autor defende a tese de que esses dois modos de funcionamento cognitivo constroem realidades, ordenando a experiência cada um da sua forma. Apesar disso, ambos os discursos seriam complementares entre si, sem que um se um reduza ao outro. O pensamento científico, que Bruner chama de paradigmático, se associa ao discurso teórico e ao logos, ou seja, são utilizados argumentos para estabelecer "o ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação”. Para isso, um cientista ou filósofo procura criar categorias ou conceitos, relacionando-os uns com os outros até formar um sistema geral baseado em hipóteses fundamentadas, isto é, que podem ser demonstradas como verdadeiras. Por sua vez, a narrativa, mítica ou literária, aborda a maneira pela qual as intenções humanas se comportam nas mais diversas situações. Nesse sentido, as histórias que são criadas traçam relatos de ações humanas em circunstâncias de experiências localizadas num tempo e espaço definidos, enquanto o discurso teórico tenta ir além dos fatos particulares, visando formulações de princípios gerais e abstratos: As narrativas podem servir como argumentos (McGuire, 1990, p. 231). Devido à sua estruturação sintática, a narrativa tem uma coerência lógica interna, a qual estabelece uma relação entre as suas partes constitutivas. Por ser uma forma de comunicação cotidiana, a narrativa sempre faz parte de um discurso falado, o que implica uma situação concreta de narrar “hic et nunc”, quer dizer, um momento definido, uma situação, circunstâncias espaço- temporais. Parte da situação é constituída pelos parceiros da comunicação e pelo tema do discurso. Essa conexão temática do discurso e as suas contribuições, ou seja, a rede temática, está relacionada à coesão argumentativa e ao papel argumentativo da narrativa. Como ato 2 linguístico, a narrativa é construída tendo em vista todos esses parâmetros (situação, parceiros, rede temática/argumentativa etc.), e no modo como esses são percebidos pelo narrador. Assim, a estrutura interna da narrativa está conectada ao discurso como um todo. A comunicação tem, em geral, um caráter argumentativo; até uma fala trivial, como parte de um discurso, tem uma conexão argumentativa, pois ela pode se tornar objeto de uma justificativa (“por que você falou isso?”). Sendo ação la implica uma intencionalidade. A narrativa como ação (linguística) também desempenha uma função em relação a essa intenção. Assim, aplicando uma abordagem mais abrangente da argumentação, cada contribuição para um discurso ou fala está numa relação argumentativa, como foi mostrado por Toulmin. (1958, pp. 109-111) Assim como as narrativas, a organização do discurso é um procedimento lógico que usa de argumentos (Petrilli, 1991, p. 142). Narrativas têm um caráter argumentativo: se contadas como exemplos, elas desempenham uma função de criar evidências ou uma licença de inferir para uma exposição ou um complexo de exposição-conclusão. Assim, se conclusões são tiradas a partir elas, elas servem como dado ou exposição. Para melhor aprofundar os seus estudos, é desejável que você se dedique também às videoaulas. Assistir e destacar os conteúdos apresentados contribuirá para que seus conhecimentos sejam solidamente construídos. Indo em frente, aprendemos na SEMANA 3 que: "(...) o discurso narrativo aparece como lugar privilegiado para elaboração da experiência pessoal, para a transformação do real em realidade, por meio de mecanismos linguísticos discursivos, e também para a inserção da subjetividade (entendida aqui, do ponto de vista discursivo, como um lugar que o sujeito pode ocupar para falar de si próprio, de suas experiências, conhecimento do mundo, ou, mais sucintamente, entendida com a forma pela qual o sujeito organiza sua simbolização particular). (TFOUNI, 2005, p. 73-74) Aos conhecimentos construídos, somam-se os argumentos segundo os quais o sujeito põe- se à mercê do discurso do Outro, que lhe faz exigências às quais ela tenta de todo modo responder, mesmo sem ter certeza se é isto o que realmente quer, talvez porque este discurso do Outro lhe venha revestido de um discurso dominante, de uma formação social dominante, com a qual, por força da ideologia, ele sente-se interpelado a identificar-se. Podemos explicar este fato tomando como base a teoria da heterogeneidade constitutiva do discurso, que tem seu respaldo exatamente nessa relação de submissão com o Outro (Authier-Revuz, 1982). Como afirma Maingueneau (2004) a teoria de heterogeneidade constitutiva de Authier-Revuz traz mais uma aproximação da AD e da psicanálise lacaniana, pois coloca ao lado do sujeito interpelado pela ideologia um sujeito que é também dividido pelo inconsciente e que ilusoriamente acredita ser dono do seu dizer. Assujeitado a um Outro que lhe faz exigências constantes e que apontam para onde dirigir seu desejo o sujeito das narrativas tenta sobreviver numa sociedade onde as crianças de rua são representadas e tratadas como marginais, além de terem origem em famílias desestruturadas. O excelente texto Notas Sobre a Experiência assinala que "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir- se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara" (LAROSSA, 2000). 3 A experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquervestígio. O autor ressalta também que "o sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça". (LAROSSA, 2002, p. 20) A leitura dos textos-base da SEMANA 3 é imprescindível para você melhor preparar-se para a PROVA. Entre a Análise do Discurso e a Psicanálise, a Verdade do Sujeito-Análise de Narrativas Orais (Leda Verdiani Tfouni e Marcela Laureano) Link: e Notas sobre a experiência e o saber de experiência (Jorge Larrosa Bondía). Assista às videoaulas, que lhes ajudará a melhor compreender os conceitos e definições acima apresentados. Chegamos à SEMANA 4, que nos apresentou ou textos: Tipos de narrador e novas discussões em narratologia (Flávia Roberta Menezes de Souza) e São Bernardo: a posição do narrador no romance e no filme (Germana da Cruz Pereira e Georgia da Cruz Pereira). A narratologia é um campo do conhecimento que se desenvolveu graças a uma consciência linguística voltada sobretudo aos estudos literários – especificamente, à narrativa literária - e que alcançou grande espaço na crítica literária no final da década de 60, com a virada dos estudos estruturalistas. A retomada dos pressupostos formalistas, àquela época recém- descobertos, resgatou a preocupação com a construção de uma ciência da literatura. Ainda que o projeto estruturalista tenha se deparado com as limitações de seu próprio aparato teórico diante da complexidade do objeto que estudava, são inegáveis as contribuições que tanto renovaram a linguagem conceitual dos fenômenos literários os quais careciam de termos que oferecessem maior precisão nos trabalhos e pesquisas em torno da narrativa. Também não se pode desconsiderar que o rigor científico buscado pelos estruturalistas propiciou uma série de publicações que até hoje sobrevivem e subsidiam o estudo da narrativa. Gérard Genette (1995), em O Discurso da Narrativa, retomando a questão em torno do discurso e da narrativa, contribui para o estabelecimento de conceitos que, posteriormente, passaram a ser amplamente utilizados em estudos e trabalhos sobre narrativa, narrador heterodiegético e homodiegético em substituição às definições narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, tradicionalmente também conhecidas: Genette estabelece, então, um quadro que determina os tipos de narrador quanto à sua inserção na diegese (história) e ao nível narrativo a que pertence: extradiegéticoheterodiegético; extradiegético-homodiegético; intradiegético-heterodiegético; intradiegéticohomodiegético. Se é clara a compreensão do que seja heterodiegético e homodiegético quando se conhece a superada classificação narrador em primeira pessoa, narrador em terceira pessoa, é possível dizer que as classificações extra- e intradiegético dizem respeito à posição do narrador em relação ao nível narrativo, uma vez que é possível o narrador pertencer ao primeiro nível da narrativa e, posteriormente, dentro da história, 4 outro narrador surgir e “se habilitar” a narrar outra história. Tem-se, assim, uma história dentro da história, e os narradores de ambas se encontram em níveis diferentes, pois falam de lugares diferentes. Genette, nesse mesmo trabalho, apresenta uma outra maneira de pensar o narrador, que é a focalização. A focalização diz respeito ao conhecimento que o narrador tem sobre a história em comparação com o conhecimento que o personagem tem. Genette adverte que a focalização “nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser muitíssimo breve” (GENETTE, 1995, p. 189). Trata-se de uma questão importante, mas que nesse momento apenas será citada para retomar a tipologia de Friedman apresentada por Lígia Leite que relaciona tipos de narrador e ponto de vista como sendo um fenômeno apenas. Schmid (2010) estabelece onze critérios para se pensar a tipologia do narrador. Quantitativamente, trata-se de um painel mais criterioso, mas o ganho está na distinção entre tipologia e ponto de vista na narrativa. Um narrador não diegético, por exemplo, pode assumir o ponto de vista de um dos personagens para narrar determinada situação e nem por isso ocorre uma mudança de tipos. Paulo Honório, ao contar a história de São Bernardo e a sua, as quais estão interligadas, o faz crendo que a forma como conquistou as terras, sua ascensão e decadência seriam assuntos interessantes. O narrador é bastante realista, sobretudo, por expor seus pensamentos e impressões, sobre fatos “que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém” (RAMOS, 1981, p. 10). Para Bourn uf Ouellet (1976, p. 246), o personagem é o único capaz de contar sua própria história, pois “por mais fragmentário ou contestável que seja, o conhecimento de si mesmo pela introspecção é o único válido.” Se , visto por esse prisma, o romance funciona como uma espécie de diário de Paulo Honório feito com seus recortes de memória, lembranças que não o abandonam e o atormentam na solidão em que se encontra e vazio de uma casa que já fora habitada e visitada por muitos, é o retrato da decadência de um homem.Para uma melhor explanação, podemos dividir as obras em duas partes principais: conquista e ascensão de São Bernardo (já mencionados) e o casamento com Madalena, sendo este o responsável pelo declínio do homem próspero apresentado até então ao leitor. Atormentado pela dúvida com relação à fidelidade de sua esposa, Madalena, o narrador mostra na segunda parte do livro como passou a tratá-la, sempre desconfiando de cada barulho, de cada gesto, de cada carta, e a maneira como distanciava os seus prováveis amantes. Romance moderno, São Bernardo, apresenta um narrador que faz seu relato dando-lhe aspecto de realidade, visto que revela ao leitor o espaço, Viçosa, em Alagoas, e nomeia na escrita. demonstrando que a verdade presente naquelas linhas foi pensada e articulada, portanto, é interessante notar a relevância do livro São Bernardo para a literatura brasileira, sobretudo pelo fato de ter sido escrito em 1934 e manter-se atual até os nossos dias. Sua atualidade se deve, principalmente, a temas relacionados à alma, à solidão humana e à constante busca por explicações interiores; ademais, se observarmos os recursos técnicos utilizados por Graciliano Ramos para demonstrar a introspecção de Paulo Honório e sua reflexão sobre o fazer artístico, como a postura do narrador, perceberemos que são assuntos merecedores de atenção e estudo em nosso mundo contemporâneo. Leon Hirszman, ao adaptar o romance para o cinema, em 1973, reafirma sua atemporalidade e atualidade, visto que, passados quase quarenta anos, a situação política e social brasileira continuava a mesma ou até piorara devido aos regimes ditatoriais. Avançando, alcançamos a SEMANA 5. Nessa semana, vimos que, últimos anos, tem se tornado recorrente, no campo da literatura, a prática da reescrita de textos literários 5 canônicos a partir de múltiplas perspectivas, como as que se empenham em salientar as diferenças de gênero, de raça e de classe social. No contexto dos estudos sobre literatura de autoria feminina, trata-se de uma tendência, de fato, importante, já que se caracteriza pela produção de um texto novo e autônomo que denuncia a alteridade do/a oprimido/a, no caso, a mulher, e promove o desnudamento de sua identidade. Ana Maria Machado, em A audácia dessa mulher (1999), num interessante diálogo com Dom Casmurro, de Machado de Assis, reescreve a trajetória de Capitu. Do mesmo modo, Nélida Piñon, em Vozes do deserto (2003), reescreve a história de Scherezade, personagem de As mil e uma noites, coleção de contos da literatura árabe, de origem persa e indiana. Se, nos textos originais, essas personagensnão têm voz, nas referidas reescritas, elas são construídas imbuídas do direito de falar. No âmbito da literatura brasileira de autoria feminina, a estratégia da reescrita tem sido, não raramente, utilizada pelas escritoras brasileiras numa atitude de reinvenção, que põe em relevo o modo de construção e representação do universo da mulher. É o caso dos romances A audácia dessa mulher e Vozes do deserto. O primeiro consiste em um texto em que, em meio à teia narrativa que se desenvolve em torno da trajetória da audaciosa Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no finalzinho do século XX, a autora reescreve e/ou reinventa a trajetória de Capitu, a protagonista de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Se as leituras mais ingênuas desse clássico romance oitocentista giram em torno da polêmica da culpa ou da inocência de Capitu, uma das personagens femininas mais discutidas da literatura brasileira, as leituras mais lúcidas enfatizam a questão do ciúme de Bentinho, e a consequente impossibilidade de o leitor ter certeza se ele foi ou não traído pela mulher com seu melhor amigo. Isso porque o romance é narrado em primeira pessoa pelo próprio Bentinho, enlouquecido de ciúme, quando ele já se encontrava na velhice, visceralmente mergulhado na solidão e na sua casmurrice. Consequentemente, Capitu é silenciada, tal estratégia narrativa não lhe permite expressar seu ponto de vista, ainda que matizado pelas tintas da ideologia oitocentista. É fundamental nessa reescrita o fato de Capitu ser capaz de reinventar, a partir do nada, uma nova vida e dar sentido a ela. Apenas aparentemente ela cumpre a sina da mulher adúltera que, após ser desmascarada, morre na solidão e no abandono como forma de purgar seus pecados. Na verdade, ela ignora o rótulo de “fêmea infiel” e constrói uma vida digna a partir de seus próprios méritos. O fato de ter abandonado o apelido de menina e passado a usar a outra metade do nome, Lina, numa atitude de Fênix, aponta para sua capacidade de engendrar a própria história, independentemente das adversidades impostas a seu sexo pelo pensamento patriarcal. Indo em frente, chegamos à SEMANA 6 que nos instiga a pensar a tamanha contribuição que uma boa criação do espaço dá para o desenvolvimento da personagem. Há muitos sentidos ligados na organização dos espaços, e, com este estudo, você vai perceber que o ambiente narrativo pode até influenciar as personagens com relação ao seu jeito de ser e agir. Dessa forma, é possível salientar que a arte narrativa é toda entremeada por sutilezas que precisam estar bem articuladas para alcançar a verossimilhança. E que a ambientação diz muito em uma obra; revela, situa, antecipa, dá movimento, emociona... Em cada linha há intencionalidade. É preciso ficar atento aos detalhes. Ler os textos-base, assistir às videoaulas, fazer as atividades avaliativas lhe ajudará no processo de preparação para a Prova. Esteja atento aos estudos da topoanálise, isto é, a análise do espaço na obra literária. Lembre- se de que o autor parte da terminologia de Bachelard, mas amplia o seu alcance de sentido. 6 Destacamos que a topoanálise não se restringe à análise dos espaços íntimos, mas de todo e qualquer espacialidade representada na obra de ficção. Quase chegando ao final de nosso curso, temos a SEMANA 7. Entendendo os conceitos de memória e experiência na narrativa (as quais são adquiridas pelas personagens no espaço vivenciado na ficção), a ideia de tempo vai se mostrando crucial também para a atribuição de sentidos ao enredo. Para exemplificar: “A aceleração, como um “mal-estar” contemporâneo, articula-se tanto à efervescência da memória-arquivo quanto ao apagamento da dimensão memória-vida” (BRAGANÇA, 2012). Então, o tempo também delineia diferentes esferas da obra; seu percurso se transforma por meio das experiências, guardadas na memória, que também pode ser de espera (presente, passado, futuro. Dê atenção às videoaulas: 1ª) O tempo na literatura. Ressaltamos aqui que tempo, personagem, espaço – tudo deve estar bem articulado para fazer sentido, para se obter a verossimilhança, e alcançar o propósito da arte escrita: “tocar” o leitor, transformar seu olhar, aguçar suas buscas, entreter e, quem sabe, mudar “mundos”; 2ª) Confluências temporais em Clarice Lispector: Análise de “Uma Aprendizagem” e “Água Viva”. Esta videoaula analisará o tempo na narrativa por meio de algumas obras da escritora Clarice Lispector. E seu encantamento pela arte dela está garantido. E finalmente, a SEMANA 8, que nos brinda com o texto “Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, aponta os caminhos de Rosa. “Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães Rosa”, orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem uma ambição literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta um tipo de narrativa diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária, como os do romance greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até os da literatura mais moderna de seu tempo”. Lembre-se, caro aluno, a leitura, os estudos, os resumos e fichamentos dos textos-base e videoaulas, assim como a tarefa de realizar as atividades avaliativas e os quizzes irão ajudá-lo a sair-se muito bem na prova. Desejo que você possa aproveitar o resumo que ora lhes ofereço e que tenha construído muitos conhecimentos ao longo da disciplina. Profª Elaine Assolini A AUTORA Maria Cristina Palma Mungioli Pedagoga. Mestre em educaç30. Professora do curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Integraqâo Zona Oesie. APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DA NARRATIVA Narrativa revela sua importância para a compreensiio da cultura humana esde as rudimentares pinturas nas cavernas até os nossos dias, o ser humano tem encon- trado no gênero narrativo não só uma forma de demonstrar e interpretar suas relações com o mundo e com as pes- soas que o cercam como também de ser compreendido e interpretado. A narração é um genero onipresente em nossas vidas. Desde as histórias que ouvía- mos h hora de dormir, passando pelos jornais, histórias em quadrinhos, textos de ficção, anedotas, publicidade até às par5- bolas religiosas, a narração acornpanha- nos por toda a vida. Narrar é uma habili- dade inerente ao ser humano e para alguns estudiosos configura-se como o próprio fa- tor de humanização de nossa espécie. J5 nas primeiras manifestações da cul- tura escrita, o gênero narrativo fazia-se presente, como atestam os textos do Ve- lho Testamento, o livro dos Vedas ou os textos atribuídos a Homero. Quase tão antiga quanto a narrativa escrita, tem sido a preocupação com seu estudo. De Aristóteleç até hoje, especialistas das mais diversas areas t&m se dedicado i anáIise de textos narrativos com a intenção de compreendê-10s. Porém, podemos çonsi- derar que f ~ i somente a partir dos traba- lhos realizados por alguns pesquisadores sovi&ticos, conhecidos no Ocidente como Formalistas Russos', que o estudo siste- mritico da narrativa começou a se delinear e serviu como uma espécie de linha divi- sória entre fonnas distintas de se estudar a narrativa. Em termos históricos, o estudo da nar- rativa pode ser dividido em dois grandes momentos. O primeiro caracteriza-se pelo estudo do texto narrativo centrado na sua interpretação, sendo a exegese a represen- tação máxima desse período. O segundo momento, que se caracteriza pelo estudo sistem5tiço da narrativa do ponto de vista de suas estruturas, tem inicio com a pu- I. Tcrmo qiic nbnrca as pesquisas linguisticas e literirias realizadas na Rússia nos Anos 20. (N. Ed.) 49 SEMANA 1 - TEXTO BASE 1 Apontamentos para o estudo da narrativa blicação, em 1928,do livro Molfologio do coiito, de Vladimir Propp7 . Os estudos empreendidos pelos Fornalistas Russos fundaram a nLurritologia como teoria da narrativa. Adam define a narratologia como "um braço da ciencia geral dos signos - a Semiologia - que se esforça em analisar o modo de organiza- ção interna de certos tipos de textos. Isso a relaciona com a Análise do Discurso e com a Linguistica textual que distingue os tipos de textos (argumentativo, explicativo, descritivo, narrativo etc.} dos tipos de dis- curso em que se encontram atualizados e misturados (romances, filmes, histórias em quadrinhos, foto-romances, faits divers, publicidade, anedotas e t ~ . ) " ~ . Na esfera dos estudos literários, pode- mos dizer que o estudo sistemático das narrativas propoicionou uma mudança no foco de atenção dos pesquisadores: a in- terpretação deixou de ser a única via de estudo do texto narrativo; surgiram, entiio, as análises sobre as estruturas e os discur- sos narrativos. Buscou-se, assim, "não apenas o que o texto queria dizer" mas tambem "como" o texto se construía e se organizava para conseguir significação. basicamente essa mudanqa de enfogue que tem aberto e possibilitado novas perspeç- tivas de analise que envolvem, alkm do texto propriamente dite, as formas de pen- samento humano4. NARRATIVA E COGNIÇAO Com a divulgação dos resultados de pes- quisas efetuadas por diversos esnidimos dos campos da lingüística, da semiótica e da psi- cologia cogni tiva, o interesse pelas formas de pensamento presentes na narrativa tem se tor- nado uma constante naç duas Últimas dw . Um dos fatos desencadeadores para essa nova abrdagem do texto narrativo foi a pu- blicação, em 1976, dos trabalhos de Havelock acerca dos poemas homéricos. Para esse estudioso, tais poemas representa- vam uma avançada civilização que utilizava a n m @ o como um modo de pensamento. Os estudos de Hctvelock ocupam um lugar privilegiado quando se discute a passagem da cultura oral grega i cultura escrita e abn- ram caminho para inúmeras pesquisas que abordafn a relação entre o desenvoEvimento da cultura escrita e do pensamento. Muitos desses crabalhosc' detêm-se em pesquisar as 2. PROPP, Vladimir I. Modologia do conto maravilhoso. Rio de Jancim: ForcnseNniversitária. 1984. 3. ADAM. J. I A rérit. Colletion Que sais-je9 (A narrativa. Coleçiio O que eu sei?) Paris: Prcsses Universiiaires de Francc. 1994. p. 4. (Rits-divcrs - do frances fatos diversos. Expressio para dcsignm noiícias corriqueiras dc iniercsse popular.) 4. Fazendo um apanhado hisiúrico sobre como se tem considerado a namtiva. Olson afirma que cla tem sido vista há bcolos como antagcinica no pcnsarncnto ncional:"Nnrmriin 4 lirita Jornrn de discrrrso irarrrml, niio-reJe.~iin e ncrificn qrfe i B O~JOSIO &jortiias ninis refleriiws & drscitr,fo r0i.r qrr l t i~ Itistrjrin rnrfilosojn" t nduç8o nossa). Cf. OLSON, D. R. ThriiLi i i~ uh(iiir i rnrmf i i .~ (Pensando sohrc a narraiiva) In: RRIJTON. 11. K. & PELLEGRINI. A. (oi-g.) Narrative Zhoughi and narrative Irn~uage. (Pensamento narrativo c linguagem narrativa.) Ncw lerwy: Lawrcnce Erlh~wm Assoc~rtes. Puhli~hem. 1990. p. 00. S. Sc~iindo Olson: "Narnitvns ( . . . I podcm ser vistas nZo somcnic como esquemas para nrrnazcnamento de inrormaqilo para SIIB ~ C U I I T I P ~ ~ ~ O mas lamhérn como formas de pnsarnento - csqucmas dc iiiierpretaçZn de expzriências c açifo rnrormativa." Cf. OLSON, D.R. Thirikriig ... op. rir. p. 101. 6. DRUNER. I. Realidades mentais, mundos porníveis Porto Alegre: Ancs MMicas, 1998. . Atos de sígnificaqíin. Porto Alcyc: Artes Médrcas. 1997. CHAFE. ilr Soiirc rlriirgr rltnr iinrmtii~cs teII 11s n h i i r /Iic iiriitd (Alyumas coisas quc ;is narr~tivas nos dizcm sobrc a menfe) in: BRITTON, B. K. & PELLEGRINI. A. D. (oi-g.) Nnrratiw ... up. rir. FELDMAN. C. F. & BRUNER, J. &L RENDERER. B. R: SPITZER. S. Narntivc romprchension. hi BRITTON, B. K. PELLEGRINI, A . D.(orp.) Narrative ... op. cir. OLSON. D. R. & TORRANCE. N. (og.) Cultlirra escrita e oralidadc. S90 Peulo: Atica. 1905.OI,50N. D. R. Thiiikiitg crlx~~i i i i , rrnrrnriw. In: BRITTON. B. K. PEI+I,EGKINB, A. (org.) Narrativc ... op. rir. Comunicação & Educação, São Paulo, (23): 49 a 56. jan./abr. 2002 relações entre o pensamento e a lingua- gem narrativa. Havelock7 apresenta e discute os poe- mas épicos da Jlíada e da Odisséia como sendo representantes de uma avançada ci- vilização que utilizava a narração como um modo de pensamento. Para Havelock, os poemas homéricos devem ser vistos como "imensos repositórios da inforrna- ção cultural, abrangendo costumes, leis e propriedades sociais que também foram armazenados"! Para ele, tais poemas encer- ravam não apenas palavras a serem memo- rizadas como também ritmos e métrica pr6- prioç que funcionavam como uma esp6cie de f6miuIa mnemônica a ser cantada. Entre os estudiosos que analisam a narrativa sob o aspecto do desenvolvi- mento cognitivo e que buscam compre- ender os esquemas cognitivos e as for- mas de pensamento que engendram e são engendradas pelo pensamento 16gic0, destaca-se Jerome Bruner. Esse psicó- logo norte-americana dedicou o livro Realidades metttais: mundos possíveis ao exame e h discussão do quão prepon- derante foi o papeI da narrativa na evo- lução da cultura humana. Nesse livro, publicado nos EUA em 1986, Bmner analisa a argumentação e a namaç5o como as duas femas de que o ser humano dispõe para construir seu pen- samento seja ele científico ou imaginati- vo, Ele não considera que uma dessas for- mas seja superior a outra; cada uma delas se adapta a necessidades humanas distin- tas em seus fins, mas têm em sua concep- ção semeIhanças. Segundo Bsuner, cada uma das duas formas de pensamento oferece caminhos distintos de fornecer experiências de cons- trução da realidade. Os modos argiimentativo e narrativo. embora complementares, são irredutíveis um ao outro e o primeiro niio representa um refinamento ou uma abstraç50 do outro. Cada um dos modos opera com seus pr6- prios procedimentos e critérios. Uma boa história e um argumento bem constmído têm suas características peculiares; porem, ambos podem ser usados para convencer uma pessoa. Suas formas de convencimen- to são diferentes: o argumento convence por sua verdade, histórias por sua semelhança com a vida (verossimilhança}. O primeiro verifica-se pelo uso de procedimentos for- mais e provas ernpírjcas. O outro estabele- ce não a verdade mas a verossimilhança. Essas formas de expressão funcionam diferentemente e a estrutura de um bem for- mado argumento lógico difere radicalmente daquela de uma história bem forjada. Em ambas utiliza-se a questão da causalidade, mas os tipos de causalidade implicados em cada um dos processos são diferentes. (O termo "então" funciona diferentemente numa proposição lógica - se x, então y - e num discurso narrativo - a rei morreu e en- 7. HAVELOCK, E. Origins o l western literacy. Toronto: OISE Press, 1976. . T11c literore wi~oliirinii iii Greecp rritrl i fs ciiliiiml c.oirseqiiriiç~s. Princeton New Jersey: Princeton Wniversity Press, 1982. 8. HAVELOCK, E. A eqrtnqfio do oorolidnrle-crrlritm escritn: uma Frmula para a mente moderna. In: OLSON. D. R., TORRANCE. N. (orgs.) Cultura escrifa e oralidade. São Paulo: Aiica, t99.5. p. 30. Apontamentos para o estudo da narrativa tão a rainha morreu). Um objetiva a busca por verdades universais, o outro por cone- x*s semelhantes entre dois eventos [mor- te, suicídio). Embora seja verdade que o mundo da histiiria, para adquirir verossimi- lhança, deva esiar conforme os c5nones da consistência lógica, ele pode violar esta con- sistência lógica (como por exemplo Kafka, Beckett). Da mesma forma a arte da retórica inclui o uso de instâncias dramlíticac para conseguir agudeza de um argumento cujas bases são principalmente lógicas, o que de- monstra que as categorizações estanques nem sempredão conta das inúmeras situa- ç k s de significação que ocorrem nas esfe- ras da comunicaçio. Brune? enfatiza que os critérios de aná- Iise de um argumento correto ou incorre- to são diferentes daqueles usados para jul- gar uma boa história e que sabemos que várias hipóteses científicas e matematicas começaram suas vidas como pequenas his- tórias ou metáforas, mas conseguiram sua maturidade através da verificação, formal ou ernpírica, e seu poder não repousa em suas origens dram aticas. ' ' O modo paradigrnático ou lógico-cien- tífico procura realizar o ideal de um siste- ma formal e "matematizado" de descrição e explanação. Ele utiliza categorizações ou conceituações, operações pelas quais categorias são estabelecidas, colocadas em instancias, idealizadas e relatadas de uma para outra forma de sistema. Seu an~iaiireiitnriuni (arsenal) de conecrivos inclui em seu lado formal idéias seme- lhantes como conjunção e disjunção, hipernomia e hiponomia, implicq5o es- trita e as fronteiras pelas quais proposi- ções gerais são extraídas de sentenças em seus contextos particulares. De maneira geral, o modo lógico-científico (ou paradigmático) negocia com causas gerais o seu estabelecimento e faz uso de proce- dimentos para assegurar a verificabilidade da referência e testar a verdade empírica. Sua linguagem 6 regulada por necessida- des de consistência e de não contradição. Seu domínio é definido não somente pe- las coisas observáveis que sua sentença bisica relata, por sua geração lógica, como tamwrn pela exposiçãto de possiveis mun- dos que podem ser logicamente gerados e testados contra coisas observ5veis - que são levadas pelas hipóteses de princípios. CUI,TURII NARRATIVA Bruner argumenta que sempre se pro- curou entender a narrativa tentando-se compreender o seu significado (ou o que o texto queria dizer), mas pouco se pesquisou em relaçzo aos processos de pensamento que engendram uma narrati- va e come esta passa a ter significado. Essa tem sido a tarefa relativamente recente de muitos psicólogos cognitivistas'O e pesqui- sadores da área de linguagem. 9. BRUNER. J. Realidades ... g. rir. 10. Bniner. como uni <ir>$ Fiind:idorcs do Centro dc Estudos Cogniiivo~ dc Harvard. em 1960. afirma quc a meta du clian~ada rcvoluçiio coTnifiw c desw ceniro era: "( ...) clcscobrir c dcscrcvcr forniulmctilc os significados que os seres hurnanrir cri:iv:ini a p ~ r t i r de scus encontros coni o nitiiido e e n t h levantar hipcíieses sobrc quc processos dc prodiiç30 dc significado esiavam implicados. El:i foc~lizou as :itivid,idcs simbblica~ que or wrez humanos crnprcgavnm para c.rlr:iir sigiiilic:~tlos nào upcnns do mundo. m.ir dc SI nicsnios." Bnincr cxplica qiic murioccdo a fnfase deixou de m a i r stibre o significado d:is rclaçtks Iiiiinnnns para privilegiar n id6i;ide "pmes~arncnto dc inforniaçócs". Çcgiindo clc. csw cnfquc p r i l i o ~ i força ctim r i pmgrewocla cornpiit:iç:rio quc passou a ser vistacomo umd espkic de nidelodc inicrigen- cin. As iniplicnçks dessa mudança dc cnfoquc sio inúmcnc e mio C vrtinente Qs prctcnK~s dcsic traballio discufi-lns. Cb BRUNER. J. Atos de sipnificaqíio. Porto Alcgrc: Artes MÇdicas. 1997. p. I6. Comunicação & Educação, São Paulo, (231 : 49 a 56, jan./abc 2002 Em Afos de sigr~i$cação, Bruner pru- cura demonstrar que é a cultura e não a bioIogia que "molda a vida e a mente hu- manas, que dá significado à ação, situan- do seus estados intencionais subjacentes em um sistema interpretativo. Ela faz isso impondo os padrões inerentes aos siste- mas simbóllicos da cultura, sua linguagem e modos de discurso, as formas de expli- cação 16giça e narrativa e os padrões de dependência mútua da vida c~rnurn" '~ . Acreditamos que o trabalho cientifi- co de Brunes possa ser visto como uma alternativa aos estudos cognitivistas que consideram a cognição humana se- gundo os padrões computacionais. Além disso, é possível notar, nos dois livros aqui mencionados, a farte influ- ência que as pesquisas e a teoria de Vygotsky lhe causaram. De acordo com Bruner, a maioria dos estudiosos, com e x c e ç h de Vygotsky, demoraram a se dar conta do valor primordial da cultura na evo1ul;ão do pensamento humano. A perspectiva sócio-histórica da teoria de Vygotsky, no que diz respeito h azivi- dade cognitiva, contempIa a visão de que o comportamento humano só pode ser entendido quando se observam os fatores históricos e sociais que o geraram. Uma das conseqüências dessa abordagem é que para Vygostyl% cognitivo e o afetivo são duas dimensões humanas inseparáveis que são construídas pelo seu inter-relaçiona- rnento e influências mútuas. Bruner, afinado com essa perspecti- va de Vygostky, argumenta: "A impli- cação mais geral é a de que a cuIitura se encontra em um constante processo de ser recriada à medida que é interpreta- da e renegociada por seus membros. Neste ponto de vista, a çuIitusa é tanto u m fórum para negociação e renegociação de significado e para ex- plicação da aqão quanto um conjunto de regras ou especificações para a ação. De fato, toda cultura mantém institui- ções especializadas ou ocasiões para in- tensificação dessa característica 'seme- lhante a um foro'. Narração de hist6fias, teatro, ciência e mesmo jurisprudência são tkcnicas para a intensificação desta função - maneiras de explorar mundos possíveis a partir do contexto de neces- sidade imediata"13. Essa sua análise acerca da psicologia cultural leva-o a formular um argumento, segundo ele próprio, bastante radical: " (...) é o impulso para construir narrativas que determina a ordem de prioridade na qual as formas gramaticais são dominadas pela criança pequena"14. A base de sua argumentação encontra- se na seguinte questão: se a ocorrência do pensamento narrativo é funcional no ní- vel do discurso, o mesmo deve ocorrer com relação i apropriação das estruturas gramaticais por parte das crianças. I 1. BRUNER. I. Atos ... op. cri.. p. 411. 12. Y YGOTSKY, L. S. Pcnssamento e linguagem. Sào Paulo: Manins Foiitcs. 1989. 13. BRUNER, J. Realidades mcntair, mundos possíveis Porto Alegre: Artes MWicns. i 998. p. 129. 14. BRUNER, J. htm ... <I/>. cir. p. 72. Apontamentos para o estudo da narrativa De acordo com seu raciocínio, a narra- tiva exerce uma função desencadeadora na aquisição da linguagem pela criança. O papel essencial da narrativa prosseguiria no decorrer da vida dos seres humanos, posto que é através da interpretação de narrativas que as pessoas agem e interagem. "Negociar e renegociar os sig- nificados por intermédio da interpretação narrativa é (. . .) um dos coroIários das con- quistas do desenvolvimento humano, no sentido ontogenetico, cul tural e filogenético desta expre~são"~~. Portanto, a atividade narrativa encerra um processo çognitivo-social na medida em que instrumentaliza o ser humano a se situar como individuo e como ser so- cial, pois: "( ...) as çrianqas reconhecem muito cedo que o que elas fizeram, ou planejam fazer, será interpretado não ape- nas pelo ato em si, mas pelo que elas con- tarão a respeito dele, logos e práxis são culturalmente inseparáveis. O cenário cultural das nossas pr6prias açoeç nos força a sermos narradore~"'~. Segundo Bruner, a criança apreende desde pequena e poder de argurnenta- çáo das narrativas e lança mão delas sempre que necessário: "A criança (. . .) logo domina as formas de linguagem para se referir a ações e suas consequên- cias, na medida em que elas ocorrem. Ela aprende em seguida que o que você faz é dramaticamente afetado por como você relata o que está fazendo, fará ou fez. Narrar torna-se não apenas um ato expositivo, mas retórico. Narrar de uma forma que coloca o seu argumento de maneira convincente requer não apenas linguagem, mas um domínio das formas canônicas, pois é necessário fazer nos- sas ações parecerem uma extensão do canônico, transformando-as atravésde circunstâncias atenuantes. No proces- so de obtenção dessas habilidades, a criança aprende a usar algumas das fer- ramentas menos atrativas do negócio retórico, engano, lisonja e tudo o mais. Mas ela também aprende muitas das formas úteis de interpretaçilo e, por meio delas, desenvolve uma empatia mais penetrante. Ela entra então na es- fera da cultura humana"". Bruner acredita que a prbpria constitriiçio de uma cuIturn humana viável s6 se torna possivel porque dispomos de narrativas que servem para inter-relacionar significados e aqões. "Estar em urna cultura viável é estar inserido em um conjunto de histórias conectadaç capazes de estabelecer vincu- 10s mesmo que essas histórias não repre- sentem um consenso " I 8 . Ao apresentar o processo de criação narrativa como sendo uma espécie de prin- cípio organizador do pensamento no qual a criança esta inserida desde a sua mais 15. BRUNER, J. Atos ... #/J. rir. p. 65. 16. BRUNER, I. Aios ... op. cii. p. 74. 17.BRUNER.J.Atm ... np .Nr .p .78 . t8. nRUN13K. J. Aios ... op- Nr. p. RS. Comunicação & Educaqão, São Paulo, (23): 49 a 56, jan./abr. 2002 tenra idade, Bruner aproxima-se muito de Bakhtin'" pois este argumenta que não aprendemos palavras descontextualisadas (neutras), aprendemos e utilizamos pala- vras impregnadas de intencionalidade tal COMO Bruner afirma acontecer com as nar- rativas - mesmo as de crianças pequenas. Portanto, podemos concluir que assim como usamos palavras de outrem, que passam a ser nossas, empregamos discur- sos narrativos e formas de narras de ou- trem que também passam a ser nossos, visto que os atualizamos, os impregna- mos e os empregamos com a nossa intencionalidade, integrando-os ao nos- so enunciado individual. Vygotsky, ao discutir o predomínio do sentido de uma palavra sobre seu significado, também abre espaço para relacionar os fenômenos psicológicos com os fenômenos sociais: "Uma pala- vra adquire seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes al- tera o seu ~en t ido ' "?~ . Resumo: O texto apresenta de manefra sucin- ta algumas ideias que nas iírtimas duas deca- das fizeram com que o interesse pelo estudo da narrativa tenha aumentado de maneira sig- nificativa. Tal interesse não se tem limitado ao tradicionalmente chamado campo de estudos dos generos liter6rios.Ao contrario, a cada dia, mais e mais pesquisadores ligados à área da cognição humana procuram, no estudo da narrativa, elementos que os levem a entender Outros pesquisadores têm relatado ex- perimentos em que fica clara a forte pre- sença da narrativa na forma de organizar os pensamentos humanos. Chafe afirma ver "( ...) as narrativas como manifesta- ções abertas da mente em ação: como ja- nelas que revelam em tempo real o con- teúdo da mente e suas operações no mo- mento mesmo em que elas se realizam"*' . (tradução livre) Segundo esse autor, "a mente é ao mes- mo tempo guiada e constrangida por es- quemas: expectativas prd-concebidas e modos de interpretação que já estão pre- parados para isso"". As perspectivas abertas pela recente abordagem dos estudos da narrativa são inúmeras e representam um terreno fértil para pesquisas sejam elas referentes ?I cognição ou ao gênero literário. Tais pes- quisas podem proporcionar subsídios im- portantes para a compreensão de como ela- boramos, representamos e expressamos nossos pensamentos de maneira narrativa. (Notes for studying narrative) Abstract The text presents, briefly, a few ideaç that have significantly increased the ínterest for the study of narrative in the past two decades. Such interest has not been Iimited to the traditional field o5 studying literary genre. On the contrary, more and more human cognition researchers have been looking, in the study of narrative, for elements that lead us to 19. "Podc-sc colocar que a palavra existe para n locutor sob t t s aspcctos: como palavra neutra da lingiia c que náo pcrtcnce a nrnguEm; como pnlavm do outro pcncncente arfi outms e que preenclic o eco (10s enunciados allicios: c iiiinlmcntc conio palavra minha. poiq. na mcdida cm que uso cssa palavra numa dctcrminada situaç5o. com unia inten- ç.50 discorsiva, ela j6 sc imprcgnoii dc minha exprcssividade. Sob cs.ws dois tiltimos aspecios. a p~lavra C cxprrissivn. nias esta expressividade, repeiimos. n5o pcncncc i própria palavri: nasce do ponto dc contaio entrc a pal.ivn c a realidade efetiva, nas circunsiUncias dc urnii siiuaç;ío mal, qtic se atualiza attnvvCs do enunciado individual". Cf. BA KHTIN, M. kktitira d n criafiio verha! Sàa Paulo: Mnnins Fontcs. 1992. p. 3 13 30. VYGOTSKY. L. S Pensamenta e linguagem. Si0 Paulo: Manins Fontes. 1989. p. 125. 2 I. ÇHAFE. W. Soiiie rliiiigi iIinr iirrrrarii~cs rctl ~isolioiir rheiiiiii(i. In: BRIlTON. B. K. & PELLEGRINI. A. D. (og.1 Narrative ... np. cii. p. 79. 22. CHAFE, W. Sotiir tl i i i igs ... np. cit. p. 80. Apontamentos para o estudo da narrativa e a desvendar os mecanismos intrínsecos ao pensamento humano. Isso tem feito com que especialistas de diversas areas (Psicologia, Neurologia, Literatura, Linguiçtica, Semiótica, Comunicação) se dediquem ao estudo siste- mático de narrativas tanto escritas quanto orais, produzidas por crianças, jovens ou adultos. A publicação de trabalhos de pesquisa que asso- ciam a narrativa a formas de pensamento e a consideram corno a responsável pelo proceç- ço de construção e representação do pensa- mento humano tem demonstrado que ainda há muito a se conhecer sobre o pensamento nar- rativo. A nova perspectiva aberta por tais traba- lhos colma os estudos sobre narrativa na or- dem do dia e iressignificam seu valor social. Palavras-chave: narrativa, linguagem narrati- va, pensamento narrativo, linguagem e cognição, cultura narrativa understand and uncwer the mechanisms that are intrinsic to human thought. This has led specialists in all areas (psychology, neurology, literature, linguistics, semioticç, cornrnunbation) to dedicate themselves to the systematiç study of narrative. both written and oral, produced by children, young people or adults. The publication of research papers that associate narrative to forms of thought, censidering it as responsible for the process of constructing and representing human thought, has demonstrated there is a loZ to be known about narrative thought. The new perspective opened by such studies puts narrative studies on the order of the day and brings new meaning to their social value. Key words: narrative, narrative language, narrative thought, language and cognition, narrative culture Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 1 1 A Construção Narrativa da Realidade* Jerome Bruner ∗∗ trad. Waldemar Ferreira Netto 1 Certamente desde o Iluminismo, senão antes, o estudo de mente se centrou principalmente em como o homem alcança o “verdadeiro” conhecimento do mundo. A ênfase nesse propósito variou: os empiricistas concentraram-se na interação da mente com o mundo externo da natureza, esperando achar a chave na associação entre sensações e idéias, enquanto os racionalistas procuraram nas próprias faculdades mentais os princípios da razão verdadeira. O objetivo, em ambos os casos, era descobrir como nós alcançamos a “realidade”, isto é, como nós adquirimos a perfeita convicção no mundo, um mundo que é, como sempre foi, entendido como imutável e que está, como sempre esteve, “lá para ser observado.” Essa questão teve um profundo efeito no desenvolvimento de psicologia, e as tradições empiricistas e racionalistas dominaram nossas concepções de como a mente se desenvolve e adquire seu apego ao “mundo real.” De fato, em meados do século, a teoria da Gestalt representou o braço racionalista desse empreendimento e a teoria da aprendizagem norteamericana, a empiricista. Ambas explicaram o desenvolvimento mental de uma maneira mais ou menoslinear e uniforme a partir da incompetência inicial na apreensão da realidade para uma competência final, num caso, atribuindo esse procedimento ao funcionamento de processos internos de organização mental, e, no outro, a algum princípio não-especificado de reflexão a partir do qual –seja reforço, associação ou condicionamento – nós passamos a responder para o mundo “tal como é.” Sempre houve visões dissidentes desafiando essas, mas as conjecturas sobre desenvolvimento mental humano foram influenciadas muito mais pelo racionalismo e pelo empiricismo do que por essas vozes dissidentes. Em tempos mais recentes, Piaget se tornou o porta-voz da tradição de racionalista clássica, ao discutir a universalidade de uma série de estágios invariantes no desenvolvimento, cada um com seu próprio conjunto de operações lógicas inerentes que * Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 ∗∗ Jerome Bruner é pesquisador de psicologia na New York University, onde ele também atuou como Meyer Visiting Professor of Law. Seu livro mais recente, Acts of Meaning, apareceu em 1990. Em 1987 ele recebeu o Prêmio Balzan por “uma vida de contribuição ao estudo da psicologia humana”. SEMANA 1 - TEXTO BASE 2 Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 2 2 sucessiva e inexoravelmente levavam a criança a construir uma representação mental do mundo real, de maneira semelhante ao cientista dedicado, imparcial. Embora ele não se dirigisse exatamente aos teóricos da aprendizagem empiricista a partir de sua esfera de ação (eles começaram a reviver por meio de suas formulações de simulações de computador de “conexionistas” da aprendizagem), as suas visões dominaram as três décadas que seguiram o Segunda Guerra Mundial. Agora há ajustes importante de seus pontos-de-vista. O desenvolvimento do conhecimento da “realidade” ou das faculdades mentais que permitem a ocorrência desse desenvolvimento, discutem os críticos, não é nem unilinear, estritamente derivacional num sentido lógico, nem ocorre, como se pensava, “a partir de uma tábula rasa.” O domínio de uma tarefa não assegura domínio de outras tarefas mesmo que, em um sentido formal, sejam governadas pelos mesmos princípios. Conhecimento e habilidade, mais do que isso, são domínios específicos e, por conseguinte, desiguais no seu desenvolvimento. Princípios e procedimentos aprendidos em um domínio não se transferem automaticamente a outros domínios. Tais resultados simplesmente não foram um “fracasso para confirmar” as hipóteses de Piaget ou da premissa racionalista de uma maneira general.1 Se a aquisição do conhecimento e das faculdades mentais são realmente específicas e não automaticamente transferíveis, isso certamente implica que um domínio é um conjunto de princípios e procedimentos, e não um artifício protético, que nos permite usar a inteligência de uma maneira mas não de outras. Cada maneira particular de usar a inteligência desenvolve a sua própria integridade – um tipo de integração conhecimento-mais-habilidade-mais- ferramenta – com o foco numa gama particular de aplicabilidade. É uma pequena realidade de nós mesmos que se constitui pelos princípios e procedimentos que nós usamos internamente. Esses domínios, observados de outro modo, constituem-se como um tesouro cultural de ferramentas. Poucas pessoas dominam a gama completa de ferramentas: nós crescemos inteligentes em certas esferas e permanecemos incompetentes em outras a cujas ferramentas pertinentes não fomos “apresentados”. De fato, pode-se ir até mais longe e discutir, como tem feito, se tais ferramentas culturais (se eu puder designar dessa maneira os princípios e procedimentos do desenvolvimento específico de um domínio) mostram pressões de seleção na evolução das capacidades humanas. Por exemplo, pode ser que as várias formas de inteligência propostas por Howard Gardner (que ele tenta validar pela evidência em comum de neuropatologias, gênio, e especialização cultural) sejam resultados da seleção evolutiva.2 O atrativo desse ponto-de-vista é que ele une o homem , seu Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 3 3 conhecimento aprendido e seu conhecimento de uso à cultura de que ele e os seus antepassados são e eram, respectivamente, membros ativos. E leva diretamente não só à questão da universalidade do conhecimento de um domínio para outro, mas à translatabilidade universal do conhecimento de uma cultura para outra. Dessa maneira, o conhecimento nunca ocorre desprovido de um “ponto-de-vista.” Esse ponto-de-vista é bastante compatível com outra tendência que surgiu na análise da inteligência humana e da “construção de realidade.” Não é uma visão nova, mas assumiu vida nova com uma roupa nova. Originalmente introduzida por Vygotsky e patrocinada por seu grande conjunto de admiradores, a nova postura é a de que produtos culturais, tais como a língua e outros sistemas simbólicos, intermedeiam o pensamento e colocam seu carimbo em nossas representações da realidade3. Em sua mais recente versão, leva o nome, depois de John Seely Brown e Allan Collins, de “inteligência distribuída.”4 O trabalho da inteligência de um indivíduo nunca é um “solo.” Não pode ser entendido sem levar em conta suas referências de reserva, notas, programas de computação e bases de dados, ou, o que é mais importante, a rede de amigos, colegas, ou mentores em quem a pessoa se apóia para ajuda e conselho. Sua chance de ganhar um Prêmio Nobel, Harriet Zuckerman me falou uma vez, aumenta bastante se você já trabalhou no laboratório de alguém que já ganhou um, não por causa do empurrão mas por causa do acesso às idéias e críticas desses que sabem mais. 2 Uma vez que se leve tais pontos-de vista tão seriamente quanto eles merecem, há algumas conseqüências interessantes e pouco óbvias. A primeira é que provavelmente há um número certo de domínios importantes apoiados por ferramentas culturais e redes de distribuição. A segunda é que os domínios provavelmente são diferentemente integrados em culturas diferentes, como os antropólogos têm insistido durante anos.5 E a terceira é que muitos domínios – especialmente esses que têm a ver com o conhecimento humano, seu mundo social, sua cultura – não estão organizados por princípios lógicos ou por conexões associativas. De fato, a maioria do nosso conhecimento sobre o conhecimento humano adquirido e sobre a construção da realidade é elaborado a partir de estudos de como as pessoas conhecem o mundo natural ou físico em vez de o mundo humano ou simbólico. Por muitas razões históricas, inclusive o poder prático inerente ao uso da lógica, Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 4 4 da matemática e da ciência empírica, nós nos concentramos no desenvolvimento da criança como um “pequeno cientista”, um “pequeno lógico”, um “pequeno matemático”. São estudos normalmente inspirados no Iluminismo. É curioso como se fez pouco esforço para descobrir como os humanos constroem o mundo social e as coisas que decorrem dele. Seguramente, alguns trabalhos recentes e desafiadores, como a magistral Interpersonal Perception de E. E. Jones, tornam claro que nós não alcançamos nosso domínio da realidade social crescendo como “pequenos cientistas”, “pequenos lógicos”, ou “pequenos matemáticos”.6 Assim, embora nós já tenhamos descoberto uma boa de como nós construímos e “explicamos” o mundo natural em termos de causas, probabilidades, muitas variações de espaço-tempo, e assim por diante, nós sabemos muito pouco sobre como nós construímos e representamos o domínio rico e confuso da interação humana. E é exatamente esse domínio que eu quero relacionar agora. Da mesma maneira que os domínios de construção da realidade lógico-científica , ele é sustentado por princípios e procedimentos.Tem ferramentas culturais e tradições disponíveis pelas quais seus procedimentos são modelados e seu alcance distribucional é tão largo e tão ativo quanto qualquer boato. Sua forma está tão familiarizada e onipresente que provavelmente será negligenciada, do mesmo modo como supomos que os peixes serão os últimos a descobrir água. Como discuti extensivamente alhures, nós organizamos nossa experiência e nossa memória de acontecimentos humanos principalmente na forma de narrativas: história, desculpas, mitos, razões para fazer e para não fazer, e assim em diante. A narrativa é uma forma convencional, transmitida culturalmente e restrita por cada nível de domínio individual de domínio e por seu conglomerado de dispositivos protéticos, colegas, e mentores. Ao contrário das construções geradas por procedimentos lógicos e científicos que podem ser destruídas por causa de falsificações, construções narrativas só podem alcançar “verossimilhança.” Assim, narrativas são uma versão de realidade cuja aceitabilidade é governada apenas por convenção e por “necessidade narrativa”, e não por verificação empírica e precisão lógica, e, ironicamente, nós não temos nenhuma obrigação de chamar as histórias de verdadeiras ou falsas.7 Eu proponho agora esboçar dez traços para as narrativas, e assim tentar construir um esqueleto a partir do qual uma explicação mais sistemática possa ser construída. Da mesma maneira que com todas as explicações de formas de representação do mundo, eu terei uma grande dificuldade para distinguir entre o que pode ser chamado de modo narrativo do pensamento e as formas de discurso narrativo. Como com todos os dispositivos protéticos, cada um habilita e dá forma para o outro, da mesma maneira que a estrutura de língua e a Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 5 5 estrutura de pensamento são mutuamente inextrincáveis. Conseqüentemente, é inútil tentar dizer o que é o mais básico – o processo mental ou a forma de discurso que o expressa –, da mesma maneira que nossa experiência do mundo natural tende a imitar as categorias de ciência familiar, assim nossa experiência fenômenos humanos leva a forma das narrativas que usamos ao contar sobre eles. Muito do que eu tenho a dizer não será nenhuma novidade para os que têm trabalhado nos campos de narratologia ou para quem se interessou por estudos críticos de formas narrativas. Realmente, a ascendência de muitas das idéias que me interessarão localizam-se nos debates que têm ocorrido entre os teóricos literários das últimas duas décadas. Meus comentários são ecos desses debates que agora reverberam nas ciências humanas – e não apenas na psicologia, na antropologia, e na lingüística, mas também na filosofia da linguagem. Por sua vez, a “revolução cognitiva” nas ciências humanas trouxe o assunto de como a “realidade” é representada no ato do conhecimento, deixando claro que não bastou comparar as representações com imagens, com proposições, com redes léxicas, ou até mesmo com veículos mais temporalmente extensos como orações. Há, aproximadamente, uma década atrás que os psicólogos não só ficaram conscientes da possibilidade da narrativa ser não somente uma forma de representar mas também de constituir realidade, um assunto sobre o qual eu terei mais para dizer. Nesse aspecto, psicólogos e antropólogos com inclinação cognitivista começaram a descobrir que foram profundamente absorvidos por seus colegas de teoria literária e de história nas perguntas semelhantes às questões narrativas textualmente situadas. Eu penso que se pode datar a “mudança de paradigma” no aparecimento de uma coleção de ensaios neste periódico em 1981: On Narrative.8 Se algo do que eu disse sobre as características de narrativa parecer chover no molhado para o teórico literário, deixe-o ou tenha em mente que o objeto é diferente. A preocupação central não é como o texto narrativo é construído, mas como ele opera como um instrumento mental de construção de realidade. E agora para as dez características de narrativa. 3 1. Diacronicidade narrativa. Uma narrativa é uma exposição de eventos que ocorrem com o passar do tempo. É irredutivelmente durativa. Pode ser caracterizada em termos aparentemente não-temporais (como uma tragédia ou uma farsa), mas isso apenas resume Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 6 6 quais são os padrões fundamentais dos eventos que ocorrem com o passar do tempo. Além disso, o tempo envolvido, como notou Paul Ricoeur, é o “tempo humano” e não o tempo abstrato ou o tempo do “relógio.”9 É o tempo cuja significação é determinada pelo significado atribuído aos eventos em seu próprio ritmo. William Labov, um dos maiores estudiosos da narrativa, também notou a seqüência temporal como essencial para narrativa, apesar de localizar essa temporalidade na sucessão de manutenções de sentido das orações do próprio discurso narrativo.10 Apesar de ser uma ajuda útil, essa análise lingüística, obscurece um aspecto importante de representação narrativa. Há muitas convenções para expressar a duração de seqüências narrativas num mesmo discurso, como retrospectos, flashbacks e flashforwards, sidédoques temporais, e assim em diante. Como adverte Nelson Goodman, a narrativa inclui um conjunto de maneiras de construir e de representar a ordem seqüencial, diacrônica, de eventos humanos, dentre os quais a seqüência de orações em “estórias” escritas ou orais é somente uma dessas maneiras.11 Mesmo os meios não- verbais têm convenções para diacronicidade narrativa, como a leitura da “esquerda-para- direita” e de “cima-para-baixo” das histórias em quadrinhos e das janelas de catedral. O que está subjacente a todas essas formas para representar narrativas é um “modelo mental” cuja propriedade definidora é o seu padrão único de eventos no tempo. E a isso viremos nós agora. 2. Particularidade. Narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência ostensiva. Mas isso é seu veículo e não o seu destino. Histórias obviamente planas caem em tipos mais gerais: homem-galantea-mulher, tiranos-recebem-seu-castigo e assim em diante. Neste sentido os pormenores das narrativas são símbolos de tipos mais abrangentes. No ponto em que o roteiro do homem-galantea-mulher apela para um ato de presentear, por exemplo, o presente servirá igualmente bem se forem flores, perfumes, ou até mesmo uma linha dourada infinita. Quaisquer desses presentes pode servir como um símbolo apropriado ou emblema de um presente. A particularidade atinge seu estado emblemático por sua incorporação em uma história que é, em algum sentido, genérica. E é exatamente em virtude dessa incorporação genérica que os pormenores da narrativa podem ser substituídos quando estiverem perdendo seu poder explicativo. A “sugestividade” de uma história, quanto à natureza emblemática de suas particularidades, é falsa, então, quanto à sua relevância para um tipo narrativo mais inclusivo. Por causa disso, uma narrativa não pode ser entendida por meio de uma incorporação particular. 3. Vínculos de estados intencionais. Narrativas são sobre pessoas que agem em um cenário, e os acontecimentos devem ser pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 7 7 atuando - com suas convicções, desejos, teorias, valores, e assim por diante. Quando animais ou objetos inanimados são colocados como protagonistas de narrativas, eles devem ser dotados de estados intencionais para a realização de seus objetivos, como a Little Red Engine das histórias infantis. Eventos físicos têm papel em histórias afetando principalmente os estados intencionais de seus protagonistas. O narrador só pode concordar com Baudelaire que o primeiro passo de um artista é substituir o homem pela natureza. Mas os estados intencionais na narrativanunca determinam completamente o curso dos eventos, uma vez que uma personagem com um estado intencional particular poderia fazer praticamente qualquer coisa. Em alguma medida, a intervenção está sempre presente na narrativa, e essa intervenção pressupõe uma escolha, um elemento de “liberdade.” Se as pessoas puderem predizer algo dos estados intencionais de uma personagem, será somente um indicativo de como ela se sentirá ou como perceberá a situação. A conexão livre entre os estados intencionais e a ação subseqüente é a razão por que explicações narrativas não podem apresentar explicações causais. Em vez disso, elas apresentam a base para interpretar por que uma personagem agiu dessa ou daquela maneira. A interpretação está relacionada com as “razões” das coisas acontecerem e não com suas “causas”, um assunto para a que voltaremos. 4. Composicionalidade Hermenêutica. Uma explicação preliminar é necessária. O termo hermenêutica implica haver um texto ou algo semelhante por meio do qual alguém esteja tentando expressar um significado e alguém esteja tentando extrair um significado. Isso, por sua vez, implica uma diferença entre o que é expresso no texto e o que o texto poderia significar, e implica também a ausência de uma solução única para a tarefa de determinar o significado para a expressão. Tal interpretação hermenêutica é requerida quando não há nenhum método racional de assegurar a “verdade” de um significado atribuído ao texto como um todo, nem um método empírico para determinar a confiabilidade dos elementos constituintes do texto. De fato, a melhor esperança de análise hermenêutica é apresentar uma explicação intuitivamente convincente do significado do texto como um todo, à luz de suas partes constituintes. Isso leva ao dilema do chamado círculo hermenêutico – no qual nós tentamos justificar a “justeza” de uma leitura de um texto em termos de outras leituras, e não por dedução racional ou prova empírica. O meio mais concreto para explicar esse dilema ou “círculo” é pela referência às relações entre os significados atribuídos ao texto como um todo (a história) e às suas partes constituintes. Como o Charles Taylor propôs, “nós tentamos estabelecer uma leitura de um texto completo, e para isto nós nos voltamos Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 8 8 à leitura de suas expressões parciais; e ainda porque lidamos com significados, com o senso-comum, em que expressões fazem sentido, ou não, somente na relação de umas com as outras, a leitura dessas expressões parciais depende das outras leituras e no, final das contas, do todo”. 12 Provavelmente não se ilustra isso melhor do que numa narrativa. As explicações dos protagonistas e dos eventos que constituem uma narrativa são moldadas em termos de uma história ou de um enredo hipotético que “contém” todos esse itens. Ao mesmo tempo, o “todo” (a história hipotética mentalmente representada) depende em sua formação de uma provisão de partes componentes possíveis. Neste sentido, como já notamos, partes e todo em uma narrativa se apóiam um no outro para sua viabilidade.13 Nos termos de Vladímir Propp, as partes de uma narrativa servem como “funções” da estrutura narrativa como um todo.14 Mas o todo não pode ser construído sem referência às partes apropriadas. Essa interdependência textual parte-todo na narrativa é uma ilustração da propriedade definidora do círculo hermenêutico, pois, uma história poderá realizar-se somente quando suas partes e o seu todo forem feitos para estarem juntos. Essa propriedade hermenêutica marca a narrativa tanto em sua construção quanto em sua compreensão, pois narrativas não existem em nenhum mundo real, esperando paciente e eternamente serem refletidas veridicamente em um texto. O ato de construir uma narrativa, além disso, é muito mais do que “selecionar” eventos da vida real, da memória ou da fantasia, colocando-os em uma ordem adequada. Os próprios eventos precisam se constituir, à luz da narrativa inteira – nos termos de Propp, para se tornarem “funções” da história. Esta é uma questão à qual voltaremos posteriormente. Voltemos à “composicionalidade hermenêutica.” Contar uma história e compreendê-la como uma história dependem da capacidade humana para processar conhecimento dessa maneira interpretativa. Trata-se de um modo de processar que foi, em grande parte, grosseiramente negligenciado por estudiosos da mente quer seja de tradição racionalista ou quer empiricista. Os primeiros têm relacionado a mente com um instrumento de raciocínio, com os meios que nós empregamos para estabelecer a verdade necessariamente inerente de um jogo de proposições conectadas. Piaget foi um exemplo notável dessa tradição racionalista. Os empiricistas, por sua vez, apóiam suas convicções em uma mente capaz de verificar as “proposições atômicas” que constituem um texto. Mas nenhum desses procedimentos, raciocínio ou verificação, são suficientes para explicar como uma narrativa é montada por um falante ou interpretada por um ouvinte. Isso é mais surpreendente, ainda, por que há evidências fortíssimas indicando que a compreensão de narrativas é uma Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 9 9 das habilidade mais precoces que aparecem nas crianças e é a forma de organizar a experiência humana mais largamente utilizada. 15 Muitos teóricos literários e filósofos da mente propuseram que nosso ato de interpretar desse modo forjou-se somente quando um texto do mundo ao qual ele presume referir está, de algum modo, “confuso, incompleto, nebuloso”.16 Indubitavelmente nós estamos mais atentos a nossos esforços interpretativos quando enfrentamos ambigüidades textuais ou referenciais. Mas eu entenderia que há uma exceção forte à idéia geral de que a interpretação só se forja em nós quando haja excesso de ambigüidade. A ilusão criada por uma narrativa bem feita, que não é esse caso, de que uma história “é como é” e não precisa de nenhuma interpretação, é produzida por meio de dois processos bastante diferentes. O primeiro deveria provavelmente ser chamado “sedução narrativa”. Grandes contadores de histórias têm mecanismos de realidade narrativa tão bons que suas narrações eliminam logo de início a possibilidade de não haver senão uma única interpretação – por mais estranha que possa ser. O famoso episódio de uma invasão marciana na radiodifusão de Orson Welles de The War of the Worlds dá um forte exemplo17. Sua exploração brilhante dos mecanismos do texto, contexto e mis-en-cene predispôs seus ouvintes a uma única interpretação, apesar de ela parecer bizarra de ponto de vista atual. Ele criou uma “necessidade narrativa”, um assunto que nós entendemos menos bem do que sua contraparte lógica, a necessidade lógica. A outra maneira para fazer uma história parecer evidente por si só e não necessitar de interpretação é a “banalização narrativa.” Quer dizer, nós podemos tomar uma narrativa como tão socialmente convencional, tão bem conhecida, tão bem de acordo com a forma canônica, que lhe atribuímos uma muito bem treinada e virtualmente automática rotina de interpretação. Essas narrativas constituem o que Roland Barthes chamou de textos de “leitores”, em contraste com os de “escritores” que desafiam o ouvinte ou leitor a uma atividade de interpretação não-ensaiada.18 Resumindo, então, não é ambigüidade textual ou referencial que impõe a atividade interpretativa na compreensão da narrativa, mas a narrativa por ela mesma. A sedução narrativa ou a banalização narrativa podem produzir uma atividade interpretativa restrita ou rotineira, mas isso não altera o ponto. A leitura interpretativa da história ou de construções de partes da história podem ser alteradas por instruções surpreendentemente pequenas.19 E num momento, um ouvinte suspeita dos “fatos” de uma história ou dos motivos ulteriores de um narrador,tornando-se de imediato hermeneuticamente alerta. Se eu puder usar uma metáfora grosseira, interpretações automatizadas de narrativas são comparáveis aos estados iniciais padronizados (default) de um computador: um modo econômico, um meio que Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 10 10 facilita a relação tempo e esforço para negociar com o conhecimento – ou, como foi chamado, uma forma “desmentalizada” (mind-lessness).20 A interpretação tem uma longa história na exegese bíblica e na jurisprudência. Ela é salpicada com problemas que ficarão mais familiares brevemente, problemas que têm a ver mais com o contexto do que com o texto, mais com as condições do contar do que com o que é contado. Deixe-me rotular melhor dois deles para identificá-los na discussão subseqüente: o primeiro refere-se à intenção: “por que” a história é contada, como e quando é contada, e interpretada como tal por interlocutores associados a posições intencionais diferentes. Narrativas não são, para usar a frase feliz de Roy Harris, “textos sem patrocinadores” para serem tomadas como se não existisse intencionalidade, como se fossem lançadas por sorte em uma página impressa.21 Mesmo quando o leitor as toma mais a maneira de declamação, ele normalmente atribui (a convenção seguinte) como se fosse emanada de um narrador onisciente. Mas esta condição não é negligenciada por parecer desinteressante. Ela deriva de um jogo de condições sociais que dão estatuto especial à palavra escrita em uma sociedade onde alfabetização é uma prerrogativa minoritária. Um segundo aspecto referente ao contexto é a questão do conhecimento partilhado – tanto do contador de histórias quanto do ouvinte, e como cada interpreta o conhecimento partilhado do outro. O filósofo Hilary Putnam, em um contexto bastante diferente, propõe dois princípios: o primeiro é o “Princípio do Benefício de Dúvida”, o segundo o “Princípio da Ignorância Razoável”: o primeiro nos “proíbe de assumir que... os peritos são de fato oniscientes” e o segundo que “qualquer falante é filosoficamente onisciente (ainda que inconscientemente).”22 Nós julgamos que suas explicações sejam adequadas. No outro extremo, nós somos condescendentes com a ignorância e perdoamos as crianças e os neófitos de seu conhecimento incompleto, “suplementando-os” conforme seja necessário. Dan Sperber e Dierdre Wilson, em sua famosa discussão sobre “relevância”, argumentaram que no diálogo nós normalmente pressupomos que o que o interlocutor nos está respondendo é tópico-pertinente, e nós freqüentemente adequamos uma interpretação para torná-lo pertinente, facilitando nossa tarefa para entender outras mentes.23 Nós também aceitamos, de fato nós institucionalizamos situações nas quais isso seja tomado como verdade, que o “registro de conhecimento” em que uma história é contada é diferente daquele no qual é aprendido, como quando o cliente conta sua história para o advogado em “conversa de vida” e é escutado na “forma de lei” de maneira que o advogado pode aconselhar sobre a legalidade (mais do que sobre a vida). O analista e o analisado em terapia são comparáveis ao advogado e o cliente numa consulta legal.24 Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 11 11 Ambos os domínios contextuais de atribuição de intenção e de conhecimento partilhado não provêem bases somente para a interpretação mas são, também, bases importantes para negociar como uma história será tomada ou como deve ser contada; um assunto reservado para depois. 5. Canonicidade e violação. Para começar, nem toda sucessão de eventos recontada constitui uma narrativa, mesmo quando é diacrônica, particular, e organizada a partir de estados intencionais. Alguns acontecimentos não justificam que se fale sobre eles e diz-se serem “sem-graça”, e não uma história. Um escrito de Schank-Abelson é um caso desses: é uma prescrição de comportamento canônico em uma situação culturalmente bem definida: como se comportar em um restaurante.25 Narrativas requerem tais roteiros como fundo necessário, mas eles não constituem por si próprios uma narrativa. Para se tornar apta a ser contada, uma história precisa ter implicitamente um enredo canônico que foi quebrado, violado, ou desviado de maneira a violentar o que Hayden White chamou de “legitimidade” do enredo canônico.26 Isto normalmente envolve o que Labov chama de “evento precipitador”, um conceito de que Barbara Herrnstein Smith faz bom uso em sua exploração da narrativa.27 Violações de cânones, como os enredos violados, são muitíssimo tradicionais e são fortemente influenciados pelas tradições narrativas. Tais violações são prontamente reconhecíveis como situações familiares humanas: a esposa traidora, o marido corneado, o inocente espoliado, e assim em diante. Novamente, eles são situações convencionais das narrativas. Mas os enredos e as suas violações também provêem bases ricas para a inovação, como testemunha a invenção literário-jornalística contemporânea do enredo “yuppy” ou a formulação da violação do criminoso de colarinho branco. E isto é, talvez, o que torna o contador de histórias inovador uma figura poderosa em uma cultura. Ele pode ir além dos enredos convencionais, levando as pessoas a verem acontecimentos humanos de um novo ponto-de-vista, de uma maneira que elas nunca haviam “notado” nem sequer sonhado. A substituição de Hesíodo por Homero, o advento de “aventura interna” em Laurence Sterne’s Tristram Shandy, o advento do perspectivismo de Flaubert, ou a epifanização de banalidades de Joyce – todas são inovações que provavelmente moldaram nossas versões narrativas de realidade cotidiana bem como mudaram o curso da história literária, coisas que talvez não sejam diferentes. É de Labov o grande crédito de ter reconhecido e apresentado uma explicação lingüística de estrutura narrativa em termos de dois componentes: o que aconteceu e por que merece ser contado.28 Foi para o primeiro destes que ele propôs a noção de sucessões Bruner, Jerome (1991) Critical Inquiry, 18(1), pp. 1-21 página - 12 12 irredutíveis de orações. O segundo captura o elemento de violação de canonicidade e envolve o uso do que ele chama avaliação para justificar a “possibilidade narrativa” de uma história como comprovação de algo incomum. Da orientação inicial até o ponto final, a língua de avaliação contrasta com o idioma da sucessão de orações — em tempo, aspecto, ou outros marcadores. Observou-se que até mesmo em língua de sinais, a marcação de seqüência e a de avaliação são feitas em pontos diferentes no curso da narração de uma história, o primeiro no centro do corpo, o segundo ao lado. O componente de “violação” de uma narrativa pode ser criado através de meios lingüísticos como também pelo uso de um precipitador deslegitimante hipotético do evento no enredo. Deixe-me explicar. Os formalistas russos distinguiram entre “enredo” de uma narrativa, sua fábula, e seu modo de contar, o que eles chamam seu sjuzet. Da mesma maneira que há problemas de linearização na conversão de um pensamento em uma oração, há problemas na representação da fábula em seu sjuzet habilitador.29 O lingüista e teórico literário Tzvetan Todorov, cujas idéias nós posteriormente revisitaremos, argumenta que a função de uma narrativa inventiva não é tanto “fabular” novos enredos mas reapresentar aqueles já familiares que eram incertos ou problemáticos, para desafiar o leitor a novas atividades de interpretação – ecoando a definição famosa de Roman Jakobson de que a tarefa do artista é “tornar estranho o usual”.30 6. Referencialidade. Obviamente a aceitabilidade de uma narrativa não pode depender de sua correta referência à realidade, caso contrário não haveria nenhuma ficção. Realismo em ficção deve ser então realmente uma convenção literária e não uma questão de referência correta. A “verdade” narrativa
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