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1 Prof. Rodrigo Rangel Literatura e Hermenêutica da Bíblia Hebraica Aula 4 Conversa Inicial Nas primeiras aulas, vimos as questões referentes à hermenêutica e à Bíblia Hebraica. Nesta aula, vamos começar a avaliar de uma forma mais específica os tipos de literatura que podemos encontrar. É certo que não poderemos ver todos os pormenores dos diferentes tipos, mas o objetivo é trazer ao estudante uma visão geral de cada tipo, bem como a forma de interpretá-los É bom relembrar que o tipo de literatura empregado pelo autor do texto é de fundamental importância, pois cada tipo tem uma forma de interpretação, o que interfere diretamente no entendimento correto do texto Para iniciar, veremos a poesia hebraica, suas características, os pontos de maior destaque, algumas curiosidades na forma de escrita e, por fim, como interpretá-la Tipo de literatura: poesia O objetivo é acrescentar força à verdade ensinada, com ênfase e profundidade de significado para intensificar o sentimento e a emoção, o que serve para dar um colorido, atrair a atenção e tornar concretas as ideias abstratas Não há uma concordância relacionada ao uso da rima nos moldes que temos em português, ou seja, rima de palavras Na poesia hebraica, temos o que alguns chamam de rima de ideias, de pensamentos, de conceitos. Por isso, alguns chamam de ritmo, não de rima 1 2 3 4 5 6 2 Esse ritmo da fluência ao pensamento, a forma mais utilizada para fazer isso chama-se paralelismo O paralelismo é o centro da poesia, o núcleo que organiza toda a estrutura poética. Chama-se paralelismo porque faz um paralelo entre a primeira frase e a segunda Veja um exemplo do Salmo 24.1: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” Para perceber o uso do paralelismo, basta colocar as sentenças em paralelo da seguinte forma “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, O mundo e os que nele vivem” A seguir, veremos outros exemplos e as diferentes formas de paralelismo. Mas o importante, nesse momento, é destacar que seu uso, bem como o das demais figuras de linguagem, são feitos de maneira a exprimir os sentimentos e as emoções, o que chamamos de linguagem do coração do autor Tipos de paralelismo Como vimos, se não for a principal forma de escrita, certamente uma das principais é o uso de paralelismo Em sua estrutura, as sentenças se organizam de forma paralela; sendo assim, essas sentenças podem se afirmar dizendo a mesma coisa com palavras diferentes: paralelismo sinônimo. Podem se contrariar, contrapondo a primeira sentença com a segunda: paralelismo antitético Podem, também, ampliar a ideia da primeira sentença, acrescentando outros elementos à segunda: paralelismo sintético. Por fim, a forma mais difícil de perceber é o paralelismo quiástico, em que as sentenças estão dispostas em forma de “X” Paralelismo sinônimo Vimos no item anterior o Salmo 24.1, exemplo clássico desse tipo de paralelismo, mas, na continuidade do mesmo texto, outras formas semelhantes são usadas pelo autor; veja o 24.2 Pois foi ele quem fundou-a sobre os mares e firmou-a sobre as águas Note que os verbos fundar e firmar combinam entre si e mares e águas também, assim perfazendo um sentido de sinônimo 7 8 9 10 11 12 3 Paralelismo antitético Diferentemente nesse tipo, a segunda frase vai contra por a primeira. Veja o Salmo 37.9 Pois os maus serão eliminados, mas os que esperam no Senhor receberão a terra por herança Note que há um sentido de antônimo, entre os maus e os que esperam no Senhor Paralelismo sintético A segunda sentença acrescenta e amplia e primeira. Veja o Salmo 19.7-9 A lei do Senhor é perfeita, e revigora a alma Os testemunhos do Senhor são dignos de confiança, e tornam sábios os inexperientes Os preceitos do Senhor são justos, e dão alegria ao coração (...) (...) Os mandamentos do Senhor são límpidos, e trazem luz aos olhos O temor do Senhor é puro, e dura para sempre As ordenanças do Senhor são verdadeiras, são todas elas justas Aqui é possível notar o acréscimo e a crescente que o texto vai tomando e expondo Paralelismo quiástico Essa forma é totalmente diferente das demais, pois os elementos estão conectados em “X”; perceba em Gênesis 12.1-3 Então o Senhor disse a Abrão:/”Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei./Farei de você um grande povo, e o abençoarei (...) (...) Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção./Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem;/e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” Observe que os sublinhados combinam entre si, assim como os em negrito. Entretanto, o principal é o que está em itálico; compõe o núcleo da estrutura Concepção artística 13 14 15 16 17 18 4 Um ponto a destacar é a construção artística em forma de acróstico. Pode-se encontrar na escrita da poesia hebraica e em outros trechos do texto sagrado, mas o foco e destaque aqui vão para os Salmos 119 e 145 O Salmo 119 é conhecido por ser o maior da Bíblia e, por isso, muitas vezes, deixado de lado. Traz na sua construção um interessante trabalho com o vocabulário da língua, e também um artifício de pedagogia Sua divisão está intimamente ligada às 22 letras do alfabeto hebraico, e a cada bloco de oito versos a letra é alterada na exata ordem alfabética ת ְיהָוֽה ים ְּבתֹוַר֥ ֹהְלִכ֗ ֶר ַהֽ֜ יֵמי־ָד֑ י ְתִמֽ ׃ ַאְׁשֵר֥ ב ִיְדְרֽׁשּוהּו׃ יו ְּבָכל־ֵל֥ י ֵעֹדָת֗ ְׁשֵרי ֹנְצֵר֥ ַא֭ כּו׃ יו ָהָלֽ ה ִּבְדָרָכ֥ א־ָפֲע֣לּו ַעְוָל֑ ֹֽ ף ל ַא֭ ד׃ ר ְמֹאֽ י ִלְׁשֹמ֥ יָתה ִפֻּקֶד֗ ָּתה ִצִּו֥ ַא֭ ׃ י ר ֻחֶּקֽ י ִלְׁשֹמ֥ נּו ְדָרָכ֗ ֲחַלי ִיֹּכ֥ ַא֭ ׃ י י ֶאל־ָּכל־ִמְצֹוֶתֽ ַהִּביִט֗ ז לֹא־ֵא֑בֹוׁש ְּב֜ ָא֥ ׃ י ִצְדֶקֽ י ִמְׁשְּפֵט֥ ָלְמִד֗ ב ְּב֜ ֶׁשר ֵלָב֑ ֭אֹוְד ְּבֹי֣ ד׃ ִני ַעד־ְמֹאֽ ל־ַּתַעְזֵב֥ ר ַאֽ י ֶאְׁשֹמ֑ ֶאת־ֻחֶּק֥ Nesse primeiro bloco, chamado Aleph, primeira letra do alfabeto hebraico, nota-se que todas as primeiras palavras se iniciam com Aleph. Já no segundo bloco de versos, todas vão iniciar com Beth, a segunda letra do alfabeto, e assim por diante ׃ ר ִּכְדָבֶרֽ ְׁשֹמ֗ ַער ֶאת־ָאְר֑חֹו ִל֜ ה ְיַזֶּכה־ַּנ֭ ַּבֶּמ֣ ׃ י ִני ִמִּמְצֹוֶתֽ ְׁשֵּג֗ י ַאל־ַּת֜ י ְדַרְׁשִּת֑ ְּבָכל־ִלִּב֥ ׃ ֱחָטא־ָלֽ א ֶאֽ ֹ֣ ַען ל ַמ֗ ְנִּתי ִאְמָרֶת֑ ְל֜ ִלִּבי ָצַפ֣ ְּב֭ ׃ י ִני ֻחֶּקֽ ה ַלְּמֵד֥ ה ְיהָו֗ ָּב֖רּו ַאָּת֥ ׃ י ל ִמְׁשְּפֵטי־ִפֽ ֗ ְרִּתי ֹּכ֜ י ִסַּפ֑ ִּבְׂשָפַת֥ ל ָּכל־ֽהֹון׃ ְׂשִּתי ְּכַע֣ י ַׂש֗ ֶר ֵעְדֹוֶת֥ ְּבֶד֖ ׃ י יָטה ֹאְרֹחֶתֽ ַאִּב֗ יָחה ְו֜ י ָאִׂש֑ ְּבִפֻּקֶד֥ ׃ א ֶאְׁשַּכ֣ח ְּדָבֶרֽ ֹ֭ ע ל ְׁשַּתֲעָׁש֑ י ֶאֽ ְּבֻחֹּקֶת֥ Essa forma de escrita facilitava a memorização e o ensino. Conta-se que o pai deixava como tarefa ao filho decorar cada bloco de oito versos e depois tomava a lição pedindo-lhe para recitar aleph, por exemplo, e a criança deveria falar de cor. Definitivamente o autor desse texto era um artista Uso de metáforas 19 20 21 22 23 24 5 Uma das figuras de linguagem mais utilizadas é a metáfora, que visa fazer comparações, algumas vezes com o objetivo claro de chamar a atenção e/ou destacar uma situação Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus Há uma comparação entre o desejo desesperado da corsa pelas águas e o desespero do autor por Deus. Interessante notar que, para entender o quanto o autor deseja por Deus, é necessário entender o quanto as águas correntes são desejosas pela corsa Como anel de ouro em focinho de porco, assim é a mulher bonita, mas indiscreta Mais uma vez o uso da metáfora é feito para dar um destaque e fazer uma comparação, ou seja, o anel com a mulher bonita, mas também o porco com a mulher indiscreta. De nada vale a beleza, pois em uma ou outra situação acaba sendo “suja”, ou na lama, ou na indiscrição Certamente outras figuras de linguagem, tal qual no português, são utilizadas para expressar os sentimentos poéticos Fica aquia sugestão para que o estudante invista um tempo em pesquisa para verificar os diferentes tipos O trabalho interpretativo da poesia A dinâmica de interpretação da poesia vai seguir os passos que já observamos na Aula 1 e na Aula 2. Lembre-se de que, ao considerar a hermenêutica uma ciência, é estabelecido um modo de se fazer Primeiro, estabeleça a perícope do seu texto; no caso da poesia hebraica, a quantidade de texto pode variar muito, desde um único versículo a um capítulo inteiro. Independentemente do tamanho, deve ter início, meio e fim 25 26 27 28 29 30 6 Agora é preciso analisar o texto, caso tenha condições de observar o original; não sendo possível, parta do português, mesmo. Verifique as palavras, os verbos e a forma usados. Existem figuras de linguagem? Nunca esqueça: a forma de escrita mais utilizada é o paralelismo. Procure descobrir o sentido de cada palavra e expressão que é utilizada Agora, pode-se aprofundar mais verificando a autoria, o local da escrita, a data em que provavelmente foi redigido o texto, para quem foi direcionado primeiramente e assim por diante. Isso é o que chamamos de contextos Nesse sentido, o texto está dentro de um livro, então é importante ter uma noção geral dele. Quanto mais informação tiver a respeito do conjunto da obra, mais fácil é pensar com o autor do texto. É evidente que em alguns casos isso será praticamente impossível, em que o autor é desconhecido. De qualquer forma, o escrito e sua importância religiosa, de maneira alguma, ficam prejudicados Alves destaca que, “nesses ritos, encontramos três características: a do sagrado, a da morte e a da sexualidade” (Alves, 2012, p.139). E continua O iniciado integra essas características à sua nova personalidade. Ele não é somente um “renascido”, mas uma pessoa que sabe, que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem transcendente durante o seu aprendizado, além de acesso aos mitos e às teogonias que descrevem as origens do mundo e dos deuses, de seus nomes, da função dos instrumentos rituais utilizados nas cerimônias religiosas etc. Feito isso, é possível interpretar o que o texto quis dizer quando redigido na linguagem empregada. Tirar as devidas conclusões Na Prática Agora é sua vez de treinar Procure um texto poético e nele aplique todo o conhecimento adquirido até agora 31 32 33 34 35 36 7 Lembre-se de que fazer a hermenêutica de um texto é sempre trabalhoso; requer paciência, empenho, dedicação e tempo. Em contrapartida, o entendimento do real sentido do texto traz ao estudante de ciências da religião a certeza de fazer determinadas afirmações, sem a preocupação de estar concluindo o que diz o texto. Uma coisa é interpretar equivocadamente Machado de Assis; outra bem diferente é interpretar um texto sagrado, que é a base de fé e prática de uma comunidade religiosa Uma prática é reflexo de uma doutrina, e uma doutrina é reflexo de um entendimento. Isso traz um peso de responsabilidade àqueles que se dispõem a interpretar um texto sagrado. Isso vale tanto para a Bíblia hebraica como para todo e qualquer texto sagrado Finalizando Estamos encerrando esta aula, na qual nos detivemos no tipo de literatura chamada poética; certamente, um dos tipos largamente usados na Bíblia Hebraica. Buscou-se verificar em linhas gerais como se dão o seu uso, suas características e o processo de interpretação Destacaram-se o paralelismo, suas formas de apresentação e as possibilidades artísticas na escrita da poesia. Por fim, foram relembrados os passos para uma hermenêutica aplicada à poesia, sempre com o objetivo de entender o que o texto realmente diz 37 38 39 40
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