Buscar

O livro negro da nova esquerda

Prévia do material em texto

El Libro Negro de la Nueva Izquierda
© Nicolás Marquez, 2016
© Agustín Laje, 2016.
 
Tradução: Jefferson Bombachim
 
Ficha Catalográfica:
Laje, Agustín, 1989
Marquez, Nicolás, 1975
O livro negro da nova esquerda – Curitiba, PR: Danúbio, 2018.
ISBN: 978-85-67801-18-6
1.Ciência política. 2. História. 3. Ciências sociais. I.Título.
CDD: 320
 
Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional
e Tecnológico. Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP
 
Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio - CNPJ:
17.764.031/0001-11
 
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer
meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação
ou qualquer meio.
 
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos
fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas,
que não são necessariamente as da editora, nem comprometem a
organização.
 
Sumário
Agradecimentos
Introdução
PARTE I: Pós-marxismo e feminismo radical por Agustín Laje
Capítulo 1: Do Marxismo ao pós-marxismo
Marx e Engels
A exceção russa e a hegemonia
A revolução teórica de Antonio Gramsci
O pós-marxismo de Ernesto Lacleu e Chantal Mouffe
Os pensadores do “socialismo do século XXI”
Capítulo 2: Feminismo e ideologia de gênero
A primeira onda do feminismo
A segunda onda do feminismo
O feminismo do socialismo real
A terceira onda do feminismo
A ideologia queer
O Dr. Money, o meninos sem pênis e algumas considerações
científicas
A mulher e o capitalismo
Da teoria à práxis
Breve comentário final da primeira parte
PARTE II
Homossexualismo Ideológico por Nicolás Márquez
Capítulo 1: Comunismo e sodomia
A “homofobia” marxista
Do extermínio à utilização proselitista
Aliança nova e eterna?
Capítulo 2: Os pensadores da perversão
A Primeira Geração
O patriarca dos progressistas
A herança envenenada
Capítulo 3
A batalha psico-política
O diálogo como armadilha de persuasão
Pela razão ou pela força
O “casamento” homossexual
A adoção homossexual
Capítulo 4
A confederação filicida
Advertência preliminar
A pergunta de cabeceira
A ciência por cima das patacoadas ideológicas
O almanaque progressista
Os métodos de “saúde reprodutiva” favoritos do direito-
humanismo
O sentimentalismo abortista
Capítulo 5
E na Argentina, como estamos?
Um amor não correspondido
Democracia e Peste Rosa
O homosexualismo noventista
As causas do internismo
O kirchnerismo e a estatização da homossexualidade
Os sindicalistas mais apresentáveis
Capítulo 6
A autodestruição homossexual
Natureza e distorção da sexualidade
AIDS e autodestruição
A autodestruição para além da AIDS
A homossexualidade como bandeira comunizante
Capítulo 7: Comentário final
Bibliografia
 
Agradecimentos
Quando alguém escreve um livro, agradecer muitas vezes se
torna um ato de injustiça, porque é muito difícil abarcar todas as
pessoas que, de uma forma ou de outra, ajudaram em alguma das
etapas do trabalho: pesquisa, redação e/ou publicação.
No entanto, assumindo o risco de cair nessa injustiça, não
queremos deixar de utilizar este curto espaço para agradecer,
especialmente a: Dr. Gerardo Palacio Hardy, Dr. Bernardino
Montejano, Dr. Roberto Castellano, Professor Cristián Rodrigo
Iturralde, Lic. em psicologia Andrés Irasuste, Lic. em economia Iván
Carrino, Professor Cristian Rodríguez Iglesias, Dr. Mario Caponnetto
e a Fernando Romero (Departamento de Filosofia do Centro de
Estudos LIBRE). Finalmente, agradecemos às contribuições na
correção fornecida por María José Montenegro na Parte II do livro.
Introdução
Terminavam os anos 80, o Império Soviético cambaleava e,
preocupado, o tirano e proprietário da Cuba comunista, Fidel Castro,
antecipando-se à muito provável implosão de seu patrocinador
moscovita, em 26 de julho de 1989, anunciou em discurso público o
seguinte: “porque se amanhã ou qualquer dia desses nós
despertarmos com a notícia de que uma grande guerra civil se
desenrola no seio da URSS ou, inclusive, se nós despertarmos com
a notícia de que a URSS se desintegrou, coisa que esperamos não
aconteça jamais, ainda nessas circunstâncias Cuba e a revolução
cubana seguiriam lutando e seguiriam resistindo”.[1] Mau olfato não
tinha o loquaz tirano, pois quatro meses depois caía o muro de
Berlim e essa sua histórica declaração foi uma espécie de alocução
pré-inaugural daquilo que no ano seguinte, ele mesmo (junto ao
então jovem Luiz Inácio Lula da Silva, líder do Partido dos
Trabalhadores, que se consagraria presidente do Brasil em 2002),
fabricaria como uma estrutura paralela ou suplementar diante da
evidente agonia do imperialismo russo: nos referimos ao conclave
marxista conhecido como Foro de São Paulo, criado em 1990,
justamente na cidade de São Paulo.
À convocatória do mencionado Foro compareceram 68 forças
políticas pertencentes a 22 países latino-americanos. Desde então a
dita confraria se reuniria regularmente e apenas 6 anos depois de
sua fundação (em 1996 na cidade de San Salvador), essa
assembléia revolucionária já era integrada por 52 organizações-
membro, entre as quais se encontravam grupos criminosos como o
Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC),[2] sendo esse último grupo o
principal produtor mundial de cocaína, 600 toneladas anuais,[3]
motivo pelo qual, com tão extraordinária arrecadação, a supracitada
organização, com vultuosas quantias, forneceu suporte financeiro ao
nascente conluio transnacional.
Desde então, o dito Foro e as organizações afins vêm
recrutando, atualizando e reciclando toda a esquerda regional por
meio de calculadas sessões políticas e ideológicas que buscaram e
buscam intensamente dar novos impulsos a velhas idéias. Com
efeito, o começo dos anos 90 foi um momento chave para a
reconversão e reinvenção de uma ideologia que já não podia exibir
a “Foice e o Martelo”, nem oferecer expropriação de latifúndios, nem
reformas agrárias, nem divagar sobre a mais-valia, nem tampouco
seduzir aos potenciais clientes com a desgastada luta de classes. Já
mais nada de todo esse discurso mostrava-se atrativo à opinião
pública ocidental e, ademais, cheirava à naftalina.
Porém, existe um ano, no começo dessa convulsionada
década, que parecia marcar um vertiginoso ponto de inflexão: 1992.
Foi quando uma série de movimentos estranhos, inovadores e
aparentemente inconexos começaram a brotar em distintos lugares
do mundo em geral e da América Latina em particular. Com o
amparo de 458 ongs[4] criadas repentinamente para propagar um
relato pré-colombiano fictício, em 12 de outubro ocorreu na Bolívia a
primeira grande marcha “indigenista”,[5] aproveitando a data exata
dos “500 anos de submissão” (em referência à chegada de
Cristóvão Colombo às Américas em 1492),[6] na qual já se
destacava a liderança do jovem Evo Morales[7] (que se consagraria
presidente da Bolívia em 2005). Um pouco mais ao sul, na Argentina
democrática de 1992, apareceu em cena a primeira “Marcha do
Orgulho Gay”,[8] alimentada em parte pelo crescente feminismo
radical de inspiração lésbio-marxista, o qual, desde alguns meses,
vinha influenciando mundialmente através da publicação do livro
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade[9] de
Judith Butler, texto abraçado desde então como “bíblia” por todos os
movimentos promotores da “ideologia de gênero”. Entrementes,
também em 1992, porém na coloria cidade do Rio de Janeiro,
levaram-se adiante as sessões de “ecologismo popular”, que
apareceu com 1.500 organizações de todo o mundo reunindo-se
para debater e redefinir a estratégia, incluindo a reivindicação da
chamada “deusa ecológica”.[10] E foi nesse mesmíssimo ano que, na
Venezuela, um coronel tagarela de ideologia desconhecida
chamado Hugo Chávez Frías liderou duas tentativas de golpe de
Estado,[11] nas quais não só se pretendia matar o presidente Carlos
Andrés Pérez, como de fato mataram 20 compatriotas.[12] A
intentona golpista não deu frutos; Chávez acabou preso por dois
anos, porém ganhou fama e celebridade: sete anos depois
assumiria como presidente/ditador em seupaís, e o Foro obteria
outra conquista de grandes proporções.
O que ocorreu no mundo em 1992 que forjou tamanha
promoção de movimentos tão inovadores quanto heterogêneos? Por
mais que popularmente se reconheça a queda do Muro de Berlim (9
de novembro de 1989) como o marco histórico da queda de um
sistema e de uma ameaça (o socialismo), a realidade é que aquele
evento foi o prenúncio do que, política e formalmente, se
materializaria dois anos depois, ou seja, em 1992, quando a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sob o comando de Boris
Yeltsin, deixou de existir oficialmente como tal.[13] Foi por ele que,
após uma implosão geopolítica, todo o império comunista no leste
europeu foi desmembrado e dividido em pequenos países ou
territórios.
Logo, ante a ausência do suporte soviético, e com a
conseqüente necessidade de solucionar esse vazio, todas as
estruturas de esquerda tiveram que fabricar ongs e organizações de
variadas índoles para acomodar não somente a sua cartilha, mas
também A sua militância, as suas bandeiras, os seus clientes e as
suas fontes de financiamento. Ao começar a última década do
século XX, um sem-número de dirigentes, escritores, delinqüentes
juvenis e organizações varidas encontraram-se desamparadas, sem
suporte discursivo e sem revolução que pudessem defender ou
enaltecer, verificando, essas correntes, a necessidade de maquiar-
se e encastelar-se por detrás de novos argumentos e bandeiras,
que oxigenariam seus envelhecidos e desacreditados slogans.
Silenciosamente, a esquerda substituiu as balas das antigas
guerrilhas por cédulas eleitorais; trocou seu discurso classista por
aforismos igualitários que ocuparam o extenso território cultural;
deixou de recrutar “trabalhadores explorados” e começou a capturar
almas atormentadas ou marginais, a fim de programá-las ou lançá-
las como provocadoras de conflitos, sob desculpas de aparência
nobre, as quais prima facie, pouco ou nada teriam que ver com o
stalinismo, nem muito menos com o terrorismo subversivo, mas,
sim, com a “inclusão” e a “igualdade” entre os homens: indigenismo,
ambientalismo, direito-humanismo, garanto-abolicionismo e
ideologia de gênero (essa última, por sua vez, subdividida em
feminismo, abortismo e homossexualismo cultural) começaram a ser
os seus cartazes modernizados de protesto e de vanguarda.
Neste entretanto, o que faziam os setores do anticomunismo
capitalista ante a crescente fabricação e proliferação das renovadas
confabulações que pululavam? Longe de tomar nota dessas súbitas
rebeliões, encontravam-se despreocupados e festivos, não somente
celebrando a queda “definitiva” do comunismo, mas também lendo
com dilatado triunfalismo o propagandístico best-seller de notável
fama mundial O fim da história e o último homem, de Francis
Fukuyama[14] (publicado no insistente ano de 1992), o qual
sentenciava o triunfo irreversível da democracia capitalista como
fato linear e inalterável, algo de agradável determinismo histórico,
agora vaticinado pela direita liberal, e que consistiu num gravíssimo
erro de menosprezo do inimigo. O comunismo não morreu com o
desaparecimento formal de seus Estados pois o mais importante
eram as organizações auxiliares, que já existiam desde muito antes
da criação da URSS, e que seguiram existindo depois da sua
extinção.
O certo é que foram poucos os que prestaram atenção nessa
metamorfose e, vinte e cinco anos depois, a esquerda não somente
se apoderou politicamente de grande parte da América Latina, como
também, o que é muitíssimo mais grave, conquistou a hegemonia
nas salas de aula, nas cátedras, nas letras, nas artes, nos meios de
comunicação e no jornalismo, tendo, em suma, seqüestrado a
cultura e modificado em muito a mentalidade da opinião pública: a
revolução deixou de expropriar contas bancárias para expropriar
mentes.
Após notar a inadvertência social que existe em torno desse
perigo e, pior ainda, a vergonhosa concessão que o acovardado
centrismo ideológico e o politicamente correto vêm fazendo a essa
dissolvente investida do progressismo cultural, decidimos
desenvolver e publicar este livro. Num primeiro momento, nossa
ambição era elaborar um ensaio que desmascarasse todas e cada
uma das faces dessa esquerda enganosamente “amável e
moderna”; contudo, percebemos que pela complexidade do assunto
seria impossível abordá-lo em um só volume. Decidimos, portanto,
primeiro abordar a máscara que influi na Argentina e na Europa: nos
referimos à ideologia de gênero, uma das principais bandeiras do
neo-marxismo hoje em voga. É nossa intensão, porém, abordar as
demais bandeiras da nova esquerda em publicações futuras.
O que é? Quando nasce? Em que consiste? Como nos afeta?
Quem a financia? Quais são suas vertentes e quem promove a
ideologia de gênero? São só algumas das inúmeras interrogações
que tentamos responder ao largo desse trabalho, que se divide em
duas partes bem diferentes, ainda que estejam ligadas entre si, e
que trabalham como ramos do mesmo tronco da ideologia de
gênero: o feminismo radical e o homossexualismo ideológico.
A respeito do primeiro, isto é, do feminismo, está dedicada a
primeira metade do livro e decidimos que a pena de Agustín Laje,
com seu tom pausado e didático, explique e desarme de maneira
exaustiva essa deletéria corrente político-cultural. Já quanto à
segunda metade do presente ensaio, referente ao lobby
homossexualista, é Nicolás Márquez o encarregado de traçar uma
provocativa radiografia de todo o movimento sodomítico com seu
característico modo polêmico, enérgico e muitas vezes sarcástico.
Essa distribuição de tarefas à hora de escrever o presente
ensaio foi assim planejada para que cada um dos autores exponha
o seu trabalho com sua marca, sua formação e sua narrativa
pessoal da maneira mais autêntica possível, a fim de dar ao leitor
uma obra pioneira na Argentina. Ambos os escritores não
economizaram estudo e consultaram um volume assombroso de
fontes bibliográficas proporcionando o trabalho mais sério e
intelectualmente honesto que poderíamos trazer a lume. De fato,
não é sem orgulho que constatamos que talvez esse seja o primeiro
livro publicado nestas plagas que ataca em cheio essas correntes
ideológicas.
Por acaso somos discriminadores? Machistas? Homofóbicos?
Pró-feminicidas? Macartistas? Pré-diluvianos? Provavelmente essa
será a preconceituosa e inexata caracterização que tanto
socialistas, com deliberada intenção, como bem-pensantes de
centro, com analfabetismo funcional, fixarão sobre nós, sem
conhecer quase nada do que vamos expor ao longo deste trabalho
que, apesar de ser mediano em sua extensão, nos custou
incontáveis horas de estudo, investigação, leitura, consultas,
debates, reflexões e análises.
Finalmente, folgamos em dizer que decidimos publicar
conscientes da quantidade de ataques que receberemos posto que,
parafraseando José Ingenieros, “nunca pretendemos apresentar-nos
como imparciais ante leitores que não o são” e, ademais, não
empenhamos tamanha energia e esforço para agradar aos
monopolizadores da correção e da bondade, mas, precisamente
para questioná-los.
 
 
PARTE I: Pós-marxismo e feminismo radical por Agustín Laje
Capítulo 1: Do Marxismo ao pós-marxismo
As mudanças que a esquerda, nos termos de sua prática
política, foi registrando ao longo da história foram acompanhadas
por transformações produzidas nas teorias que ela própria
modificava ao traçar suas estratégias revolucionárias. É a eterna
dialética entre teoria e práxis. De modo que perguntar o que veio
primeiro, a teoria ou a práxis, é uma forma incorreta ou, ao menos,
reducionista de se encarar a questão. O certo é que os fatos dão ao
intelectual a matéria-prima para que trace as suas teorias, do
mesmo modo que o intelectual freqüentemente – e com especial
importância nos grupos marxistas – confere ao homem de ação ou
ao militante a base sobre a qual pode entender “melhor” o ambiente
que o rodeia e, por conseguinte, conduzir suas ações de modo a
obter melhores resultados.
Neste capítulo pretendemos fazer um breve percurso teóricoque mostre o caminho que tomou a teoria marxista até desembocar
no que hoje se chama “pós-marxismo”, e que é precisamente o
marco teórico do qual se alimenta a nova esquerda ou “neo-
maxismo”. Daremos ênfase à questão da chamada “hegemonia”,
conceito que faz a ponte entre o marxismo e o pós-marxismo, tendo
permitido a passagem de uma “luta de classes” para uma “guerra
cultural”.
Marx e Engels
Temos que começar pela origem da teoria marxista. Em Karl
Marx e Friedrich Engels encontramos a gênese. Homens alemães
do século XIX, ambos têm o mérito intelectual de terem assentado
as bases de um pretenso “socialismo científico”, diante dos diversos
socialismo utópicos e anarquismos que naquele tempo
predominavam na esquerda.
Até Marx e Engels, tudo o que havia sido escrito para a causa
socialista, segundo a perspectiva deles mesmos, estava impregnado
de uma estreiteza que terminava sendo, involuntariamente,
favorável aos setores que desejavam frear a revolução do
proletariado. Todo o terceiro capítulo de nada menos que O
manifesto comunista – obra chave na propaganda marxista – está
dedicado a refutar as teorias socialistas precedentes: Saint-Simon,
Fourier, Owen e outros socialistas anteriores, que não teriam
conseguido dar ao socialismo um caminho científico para realizar a
revolução.
O projeto marxista era, ou pretendia ser, muito distinto daquele
de seus antecessores socialistas. Marx e Engels introduziriam as
qualidades da ciência no estudo das sociedades, fazendo frente às
“fantasias” utópicas dos colegas que queriam suplantar. Não seria
preciso mencionar que os fatos, no entanto, acabaram
desmanchando tais pretensões: as leis marxistas da história, que se
diziam capazes predizer a evolução dos acontecimentos, jamais se
comprovaram, muito pelo contrário: a Revolução Russa, como
veremos, foi a grande e paradoxal exceção; e a visão de um mundo
comunista, sem classes e sem Estado, foi tão utópica quanto as
mesmas utopias que Marx e Engels renegavam. As disputas
ideológicas entre os socialistas não deixavam de ser, portanto, uma
delirante briga entre utopistas.
A desmesurada pretensão “científica” do marxismo precisava
de um método não menos monumental para estudar o “curso da
história” e tentar predizer as transformações sociais e, mais
importante ainda, as condições para as mudanças revolucionárias.
É nesse sentido que Marx e Engels são “hegelianos”, isto é, que
tomam do filósofo alemão Georg Hegel seu célebre método: a
dialética. O que é a dialética?[15] Nos termos mais simples
possíveis, trata-se de um método que supõe o surgimento na
história de forças opostas que, em contradição, geram uma nova
etapa histórica na qual emerge uma terceira força, gerada pelas
forças antagônicas anteriores. Essa, por sua vez, entrará em
choque com uma nova força antagônica, e assim sucessivamente,
dando continuidade ao processo histórico. Em termos filosóficos
diríamos que a toda tese corresponde uma antítese, e ambas ficam,
após o entrechoque, superadas numa síntese. A história avançaria,
portanto, por meio das contradições geradas em seu seio. O método
da dialética foi utilizado por Hegel para descobrir o movimento das
idéias no mundo; para ele as idéias humanas são centrais para
explicarmos as mudanças históricas. No marxismo acontece o
oposto: a dialética é aplicada para o desvendamento do mundo
material; a isso o jargão marxista chama materialismo dialético.
Passemos a limpo. O motor da história é encontrado pelo
marxismo no mundo material, mais concretamente, na dimensão
das forças produtivas. E o que são as forças produtivas? Para dizê-
lo de forma sintética, são as distintas tecnologias e modos de
produção sobre as quais se apóia a produção propriamente dita.
Suas modificações perpassam e explicam as mudanças profundas
na história. Assim, o ateliê corporativo ficou superado pela
manufatura e sua divisão de trabalho; e esa, por sua vez, foi
substituída em pouco tempo pela indústria moderna de grandes
proporções, filha da máquina a vapor. Tal é o sentido material da
revolução produtiva que sepulta a sociedade feudal e abre caminho
para a sociedade moderna e industrial; utilizando-nos da
terminologia marxista, a “sociedade burguesa”. A idéia central desse
raciocínio é que as forças produtivas se encontram em permanente
avanço, e geram em si “relações de produção”, tais como entre
empregador e empregado, que se traduzem juridicamente em
relações de propriedade, geradoras de classes sociais específicas,
que por sua vez se definem por sua relação com os meios de
produção em disputa. O problema sobrevém quando a evolução das
forças produtivas – quer dizer, o desenvolvimento das novas
tecnologias e maneiras de se produzir – chega a um ponto no qual
as formas de propriedade privada fream a produtividade; nessa
etapa as sociedades se convulsionam e surgem as condições
materiais para uma revolução. Foi daí que se pensou que o
capitalismo conduziria a si mesmo a uma crise, pois chegaria o dia
em que a propriedade privada seria um estorvo para o próprio
sistema. A revolução comunista, em virtude disso tudo, seria
inexorável, supunham os seus partidários.
Por outro lado, o que no jargão marxista se conhece como
“materialismo histórico” foi resumido por Engels no prefácio à edição
alemã de 1883 do Manifesto Comunista que ele redigiu após a
morte do seu sócio e colega Karl Marx: “toda a história [...] foi uma
história da luta de classes, de luta entre classes exploradoras e
exploradas, dominantes e dominadas, nas diferentes fases do
desenvolvimento social; e agora essa luta chegou a uma fase que a
classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode já emancipar-
se da classe que a explora e a oprime (a burguesia), sem
emancipar, ao mesmo tempo e para sempre, a sociedade inteira da
exploração, da opressão e da luta de classes”.[16]
Temos que destacar que o dito materialismo histórico oferece
uma sucessão de etapas necessárias no desenvolvimento da
história, que culminaria na revolução do proletariado, mas que
passa, antes de chegar ao cume, pelas revoluções burguesas, como
a que o mundo viu na França de 1789, apenas vinte nove anos
antes do nascimento do próprio Marx. O mesmíssimo Manifesto
Comunista afirma que “a burguesia desempenhou na história um
papel altamente revolucionário”.[17] A burguesia, com efeito, teria
tido uma tarefa histórica concreta: desmantelar as formas feudais de
organização. O “capitalismo burguês” seria necessário para a
história, pois, ao mesmo tempo em que acelera de maneira
impressionante as forças produtivas,[18] simplifica as contradições
existentes na sociedade, reduzindo-as a apenas uma: a contradição
entre dois grupos antagônicos fáceis de identificar: a burguesia e o
proletariado.[19]
A chamada “burguesia” foi, sem sombras de dúvidas, uma
classe revolucionária para Marx e Engels, ainda que hoje isso nos
soe estranho. Em qual sentido ela é revolucionária? No sentido em
que é a classe que destruiu o mundo feudal, rompendo assim com
os estreitos limites nacionais da antiga indústria, gerando um
mercado mundial, revolucionando as comunicações e introduzindo o
cosmopolitismo. Em outras palavras, a burguesia seria funcional
durante uma etapa da história para trabalhar como ante-sala do que
logo seria a vaticinada revolução proletária.
Segundo fantasiavam os marxistas, a burguesia desenvolveria
forças produtivas impressionantes que terminariam por liquidar a
própria “sociedade burguesa”. Por qual razão? Porque supunham
que o progresso dessas forças produtivas seria freado pelo regime
de propriedade privada, o que terminaria por gerar as condições
para o fim do capitalismo. A mesma rebelião que acabou com a
sociedade feudal deveria agora, em função da mesma “necessidade
dialética”, destruir a burguesia, em proveito do proletariado. É
precisamente isso o que Marx e Engels acreditavam estar vendo
quando escreviam suas profecias com pretensões científicas: “ante
nossos olhos se está produzindo um movimento análogo [ao da
destruição do feudalismo]. As relações burguesas de produçãoe de
troca, as relações burguesas de propriedade, toda essa sociedade
burguesa moderna, que fez surgir, como que por encanto, tão
potentes meios de produção e troca, se assemelha ao mago que já
não é capaz de dominar os poderes infernais que desencadeou com
os seus conjuros. Desde algumas décadas, a história da indústria e
do comércio não é mais que a história da rebelião das forças
produtivas modernas contra as atuais relações de produção, contra
as relações de propriedade que condicionaram a existência da
burguesia e sua dominação”.[20] Tudo estava dito para Marx e
Engels; eles estavam seguros de ter descoberto o movimento
necessário da história; e, por conseguinte, achavam-se capazes de
predizer o futuro político e social: “As armas de que se serviu a
burguesia para derrubar o feudalismo se voltam agora contra a
própria burguesia. Porém a burguesia não forjou somente as armas
que devem matá-la, mas produziu também os homens que
empunham essas armas: os trabalhadores modernos, os
proletários”.[21]
Os proletários são então a classe social que tem em suas mãos
a mais importante missão histórica: impulsionar uma revolução que,
ao destruir a propriedade privada que fundamenta a divisão de
classes, destruirá também as classes sociais como tais. Sua
libertação será a libertação de toda a humanidade.[22] Se toda a
história foi a história da luta de classes, o marxismo anuncia uma
última revolução na história: a revolução do proletariado, que abrirá
as portas de um paraíso chamado “comunismo”, que se realizará
após um período indeterminado de “ditadura do proletariado”. Após
essa revolução, a classe trabalhadora deverá dispor do poder
político para acabar com as relações de produção existentes,
socializando os meios de produção (quer dizer, abolindo a
propriedade privada).[23]
É aqui que a dialética produziria o seu último movimento: assim
como a burguesia, no papel de “classe dominante”, teria concebido
o proletariado como “classe dominada”; quando este se transformar
em classe dominante, dará luz à síntese que coroará o movimento
dialético, estabelecendo o fim da história, o advento do paraíso
comunista, a sociedade sem classes, sem política, sem Estado e
sem religião. Eis o que, em poucas palavras, Marx previa, de acordo
com “leis históricas” baseadas na “ciência”.
Para concluir, extraímos o seguinte: o marxismo analisa a
sociedade de maneira topográfica, metaforicamente falando, na
forma de um “edifício”. Na base ou “infraestrutura” da sociedade,
dispõe as forças produtivas e suas relações – quer dizer, as
tecnologias e as relações de propriedade. Na “superestrutura”, que
se levanta a partir desta base de caráter econômico, os marxistas
colocam o Estado, a ideologia, a religião, a cultura, etc. Seguindo a
metáfora, a maneira mais fácil de demolir um edifício consiste em
arrebentar os pilares sobre os quais ele se apóia, e o marxismo
tradicional se baseou precisamente nisso: as verdadeiras
revoluções se fazem ao nível das relações econômicas, pois tudo o
mais – ideologia, Estado, cultura, etc. – é apenas um reflexo
daquelas. O que se há de fazer é transformar o sistema econômico,
e as demais transformações se darão por acréscimo. O que isto
quer dizer? Quer dizer que não existe revolução propriamente dita
se não se acabar com o existente regime de propriedade privada de
maneira categórica. O combate no nível da “superestrutura”, o nível
ideológico ou jurídico, seria, para o marxismo clássico, o equivalente
a lutar contra uma sombra.
No prefácio de sua obra Uma contribuição à crítica da
economia política, Marx assevera: “Sempre é necessário distinguir
entre a revolução material nas condições econômicas de produção,
que caem dentro do raio da determinação científica exata; e a
jurídica, política, religiosa, estética ou filosófica, quer dizer, em uma
palavra, as formas ideológicas da aparência”. É interessante a
análise que Karl Popper, filósofo austríaco detrator do marxismo, faz
desta passagem para entendermos as modificações estratégicas e
teóricas que sofreu o marxismo clássico através do tempo: “Na
opinião de Marx, é vã a esperança de conseguir alguma mudança
importante mediante tão-somente o uso de recursos jurídicos ou
políticos; uma revolução política só pode desembocar na
transmissão do comando de um grupo de governantes para outro
grupo [...]. Somente a evolução da essência subjacente, a realidade
econômica, pode produzir transformações essenciais ou reais, isto
é, uma revolução social.[24]
Porém, o castelo de areia teórico do marxismo clássico
começou a ruir mais cedo do que se esperava, com a mesmíssima
revolução marxista por excelência, a Revolução Russa.
A exceção russa e a hegemonia
Uma revolução na Rússia nos primórdios do século XX
introduzirá, por paradoxal que pareça, um grave problema teórico
para o marxismo tradicional e sua filosofia da história. O problema
pode resumir-se numa única pergunta: como podia haver uma
revolução proletária naquela Rússia que ainda não havia passado
por uma revolução democrático-burguesa? Vale dizer que a Rússia
czarista, apesar de ter experimentado lutas revolucionárias nos anos
de 1905 e 1917, ao contrário da França de 1789, não contava com
uma burguesia significativa se esforçando para substituir o sistema
monárquico-feudal vigente. Haviam czares, porém não havia uma
burguesia que pudesse afetá-los. Segundo o raciocínio marxista
seria preciso que a burguesia primeiro fizesse a sua revolução,
removendo o czar, antes de ser, ela própria, suplantada pelo
proletariado. Portanto, as previsões marxistas entraram em cheque
quando a revolução comunista ocorreu “saltando etapas”, pulando
de uma situação feudal diretamente para o socialismo, sem passar
pela “revolução burguesa”. Um salto do térreo ao segundo andar,
antes da construção do primeiro, para seguirmos nas metáforas de
construção.
Marx e Engels tinham estabelecido uma ordem progressiva no
processo revolucionário; tinham, em uma palavra, uma concepção
“etapista” da história (um desenvolvimento por etapas), na qual as
distintas classes sociais executavam tarefas que lhes eram
“conaturais”. Para eles, as primeiras revoluções do proletariado
deveriam acontecer nos países capitalistas mais avançados, em
virtude da própria dinâmica das forças materiais que já vimos. A
revolução que se deu na Rússia de 1905[25] representava para os
espectadores, pois, um desajuste portentoso: o desajuste das
etapas da história já preditas por Marx, e o desajuste das tarefas
históricas que cada classe devia assumir conforme as leis
sociológicas inventadas pelo próprio marxismo. Diante desse
problema, dentro da social-democracia russa houve quem afirmasse
que o proletariado não deveria participar como força dirigente do
processo revolucionário (os “mencheviques”);[26] porém, também
sugiram vozes mais radicais que revindicaram a possibilidade de
constituir a classe trabalhadora russa como cabeça de uma
revolução (os “bolcheviques”).[27]
Anos depois, Antonio Gramsci, célebre filósofo italiano marxista
da primeira metade do século XX, fazendo cambalear a rigidez
ideológica do marxismo tradicional, escreverá um texto intitulado A
revolução contra ‘O Capital’, em que ironiza: “O Capital, de Marx,
era na Rússia o livro dos burgueses mais que dos proletários. Era a
demonstração crítica da fatal necessidade de que na Rússia se
formará uma burguesia, começará uma era capitalista, irá se
instaurar uma civilização de tipo ocidental, antes de que o
proletariado sequer pudesse pensar em sua ofensiva, em suas
reivindicações de classe, em sua revolução. [...] Os fatos
provocaram a explosão dos esquemas críticos em cujo limite a
história da Rússia teria que desenvolver-se, segundo os cânones do
materialismo histórico”.[28]
Como vemos, na opinião de Gramsci, nada menos que os fatos
russos – eis o paradoxo – fizeram voar em pedaços os esquemas
“etapistas” do materialismo histórico do marxismo puro. Porém não
devemos adiantar-nos tanto; a teorização de Gramsci é um tanto
posterior à revolução – de modo que ele fazia análisesbaseado em
fatos já consumados –, e já chegaremos a ela. A pergunta que
devemos fazer-nos agora é: como fizeram então os teóricos que
estavam observando estes desajustes para explicar o salto de
etapas que se deu na Rússia e, mais ainda, justificar a práxis
revolucionária da classe trabalhadora no momento em que a
revolução devia ser burguesa?
Do seio da Segunda Internacional Socialista[29] — a qual
funcionou entre 1889 e 1923 – se recorrerá a um conceito que virá a
suturar a teoria marxista: esse conceito foi o de hegemonia.
A que se referia a hegemonia no início? Como já vimos, as
classes sociais têm “tarefas históricas” bem precisas: a burguesia
deve acabar com a sociedade feudal, e o proletariado deve acabar,
por sua vez, com a sociedade burguesa (capitalista). A hegemonia
será o conceito utilizado pelo teórico Gueorgui Plejanov – um dos
fundadores da Segunda Internacional – para descrever e justificar o
fato de que na Rússia a classe proletária assumiu a tarefa burguesa
de sepultar a sociedade feudal. Com efeito, o estado de
desenvolvimento econômico russo estava tão pouco maduro que
uma débil burguesia não podia cumprir com suas obrigações
históricas – fazer a revolução contra o feudalismo czarista – e, por
isso, a classe trabalhadora deveria hegemonizar, quer dizer, assumir
tarefas que não eram próprias de sua natureza de classe – que
consiste em fazer a revolução contra o capitalismo burguês.
Este é o marco do surgimento do conceito de hegemonia que,
em sua origem, não pôde despojar-se do determinismo econômico
do marxismo tradicional. Por quê? Porque continuava-se
concebendo as classes sociais como grupos com tarefas históricas
bem definidas, “naturais”, e hegemonia é apenas o nome dado ao
fato excepcional da assunção por parte de uma classe social de
uma tarefa que em teoria não lhe seria própria. No caso russo, a
tarefa de fazer uma revolução proletária contra um regime feudal.
Algumas mudanças rápidas na idéia de “hegemonia” vieram
com Vladimir Ilich Lenin, o teórico bolchevique por antonomásia e
fundador da Terceira Internacional Socialista. Sua luta teórica se
enquadra em sua controvérsia contra a ala dos mencheviques, os
quais, seguindo o esquema “etapista” argumentavam que na
Rússia, “por ser um país atrasado com regime feudal, a revolução
seria realizada em duas etapas. Uma primeira, na qual o
proletariado, o campesinato e a intelectualidade se uniriam com a
burguesia liberal para derrotar a monarquia e instaurar um regime
democrático burguês, onde o proletariado ganharia espaço para
lutar pelo socialismo. [...] essa luta pelo socialismo abriria a segunda
etapa da revolução”.[30] Lenin, ao contrário, sublinhava desde o
início o caráter “reacionário” da burguesia russa e considerava que a
revolução deveria desde suas origens pôr-se em luta contra ela,
numa aliança da classe trabalhadora com o campesinato, sem
esperar etapa prévia alguma.
Neste ponto surge, pois, o conceito de “hegemonia” leninista
como “liderança política dentro de uma aliança de classes”.[31] A
classe proletária russa, apesar de seu pequeno número em relação
ao conjunto da população, se erige em classe dirigente das demais
classes subalternas – fundamentalmente o campesinato – e
estabelece com elas uma aliança política para fazer a revolução.
Esta aliança, contudo, não modifica a identidade das classes
aliadas: “Atacar juntos, marchar separados” é uma das máximas
mais eloqüentes de Lenin, que resume precisamente seu conceito
de hegemonia.
A revolução teórica de Antonio Gramsci
O grande salto qualitativo no que se refere ao conceito de
“hegemonia” será dado não um russo, mas por um italiano: Antonio
Gramsci (1891-1937), que já citamos anteriormente e que
seguiremos mencionando neste trabalho. A primeira vez que ele
falou em “hegemonia” foi no seu escrito Alguns temas da questão
meridional, e sua dívida teórica com Lenin é admitida em várias
passagens de seus Cadernos do cárcere, compilação de anotações
que o italiano fez enquanto se encontrava encarcerado pelo regime
de Benito Mussolini. No texto supracitado, Gramsci aborda o
problema da divisão existente na Itália industrial do Norte e a Itália
agrária do Sul, e o papel hegemônico que deve assumir a classe
trabalhadora diante do campesinato que, em termos leninistas,
significa o problema de gerar uma aliança de classes entre os
trabalhadores e o campesinato, na qual os primeiros tenham a
liderança. Gramsci descreve a hegemonia nestes termos: “O
proletariado pode converter-se em classe dirigente e dominante na
medida em que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o
Estado burguês a maior parte da população trabalhadora, [...] na
medida em que consiga obter o consenso da maior parte da massa
campesina. [...] Conquistar a maior parte da massa campesina
significa [...] compreender as exigências da classe que representam,
incorporar essas exigências ao seu programa revolucionário de
transição, pôr essas exigências entre suas reivindicações de luta”.
[32]
Até aqui a hegemonia continua sendo uma “aliança de classes”
como apregoava Lenin, ainda que comece a pôr-se em relevo a
necessidade de “absorver” “incorporar” “abarcar” – estas são as
palavras de Gramsci – as exigências dos grupos campesinos, que
parece ir mais além de uma simples aliança passageira. As
considerações do pensador italiano não se assemelham em nenhum
sentido ao “atacar juntos, marchar separados” de seu camarada
Lenin. O que Gramsci começa a enfocar é a necessidade de gerar
um vínculo muito mais forte com a classe campesina no quadro de
uma luta comum contra o capitalismo.
No mesmo texto, porém um pouco mais adiante, Gramsci dá
um novo salto quando adverte que a hegemonia sobre os
campesinos do Sul sustenta a “classe burguesa” graças a influência
dos seus intelectuais sobre essa região. O campesinato está
fortemente dominado em termos culturais e em sua “visão de
mundo” pela burguesia, e é com isto que Gramsci quer acabar. Ele
menciona, em particular, o filósofo liberal-conservador Benedetto
Croce como um dos responsáveis por esta hegemonia burguesa
sobre o campesinato, para exemplificar de que forma a mobilização
intelectual é vital: “Benedetto Croce cumpriu uma altíssima função
‘nacional’: separou os intelectuais radicais do Sul das massas
campesinas, permitindo-lhes participar da cultura nacional e
européia, e através desta cultura permitiu que fossem absorvidos
pela burguesia nacional”.[33] Aqui se produz uma mudança de
paradigmas: enquanto, para o marxismo clássico, lutar no plano
cultural, político ou jurídico era mais ou menos como lutar “contra
uma sombra”, para Gramsci, esta era a luta que realmente importa.
Existe um vínculo muito claro entre hegemonia e cultura para o
pensamento gramsciano. A dominação cultural é o caminho através
do qual a burguesia italiana logra hegemonizar o campesinato do
Sul. E é por isso que Gramsci conclui que é vital que proliferem os
intelectuais comunistas, afinal, quem melhor do que intelectuais
para conseguir mudanças culturais?: “Também é importante que na
massa dos intelectuais se produza [...] uma tendência de esquerda
no sentido moderno da palavra, ou seja, orientada para o
proletariado revolucionário. A aliança do proletariado com as
massas campesinas exige esta formação, ainda mais o exige a
aliança do proletariado com as massas campesinas do Sul”.[34]
A idéia de “hegemonia”, em Gramsci, superou a maior porção
de economicismo que continha até então. Por quê? Porque agora a
hegemonia passará a exigir um mobilização cultural que Gramsci
chamará “intelectual-moral”: a hegemonia se realiza gerando
mudanças no nível cultural, e não é uma simples aliança
econômico-política como apregoava Lenin, nem é a assunção de
tarefas externas à própria classe como concebia Plejanov. A
hegemonia em Gramsci se dá em um terreno de grande
transcendência: o dos valores, crenças, identidades e, em definitivo,
no terreno da cultura: “Toda revolução – anota Gramsci – foi
precedida por um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural,
de permeação deidéias através de agremiações humanas no
princípio refratários e aplicados somente em resolver o dia-a-dia, um
hora por vez, e para eles mesmos, seu problema econômico e
político, sem vínculos de solidariedade com os demais que se
encontravam nas mesmas condições”.[35]
Dito de outro modo: a hegemonia já não se dá na transação de
interesses materiais, mas por meio da injeção de uma “concepção
de mundo” que aperte os laços de solidariedade orgânicos
(hegemônicos) entre os grupos que pertencem a distintas classes
sociais – trabalhadores por um lado, camponês por outro. É o
vínculo ideológico e não tanto o econômico o que dá sentido a
formação política hegemônica em Gramsci. O êxito do processo
hegemônico (quer dizer, da fusão da consciência revolucionária de
grupos distintos), depende da confecção de uma ideologia de
sentido contrário ao dominante, que questione seu “senso comum”,
sua forma de ver o mundo, sua forma de organizar a sociedade, a
economia, a política, a cultura.
Porém, em Gramsci, a classe trabalhadora continua sendo uma
classe privilegiada em algum sentido. Com efeito, é a classe que
tem a possibilidade de levar adiante processos hegemônicos que
estendam os limites de sua vontade a outros grupos sociais também
subalternos. A hegemonia parece ser uma iniciativa exclusiva do
proletariado em sua estratégia. Tanto é assim que, em seus
apontamentos obre O Príncipe de Maquiavel, Gramsci designa o
partido da classe trabalhadora como “Novo Príncipe”. E nestes
termos estabelece sua missão: “Uma parte importante do Príncipe
moderno deverá estar dedicada à questão de uma reforma
intelectual e moral, quer dizer, à questão religiosa ou de uma
concepção de mundo. [...] O Príncipe moderno deve ser, e não pode
deixar de ser, o porta-estandarte e o organizador de uma reforma
intelectual e moral, o que significa criar o terreno para um
desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional popular”.[36]
A importância da batalha cultural é a esta altura coisa evidente
em Gramsci, uma vez que a revolução pode e deve acontecer num
nível cultural. Recordemos que para Lenin a revolução devia ser
violenta e nisto implicava tomar à força o Estado, impor a “ditadura
do proletariado”, abolir a propriedade privada, destruir o Exército e a
burocracia, fazendo desaparecer, posteriormente, o Estado mesmo.
[37] E o que propõe Gramsci? Propõe que o Estado pode ser tomado
desde a sociedade civil, e sua destruição como “organismo a serviço
da classe dominante” não se esgota na destruição do Exército e da
burocracia, como Lenin propusera; mas, fundamentalmente, na
destruição da “concepção de mundo” que produz e reproduz o
Estado. Gramsci está propondo, em uma palavra, fazer uma luta
cultural que corroa a hegemonia ideológica da “classe dominante”
preparada pelo Estado.[38] Essa luta deve ser encabeçada pela
classe trabalhadora, que deve antes hegemonizar os demais grupos
subalternos, resultando daí uma “vontade coletiva nacional-popular”.
A questão da revolução violenta, tão distintiva do pensamento
marxista-leninista, fica relegada. Gramsci chega inclusive a falar em
“revolução passiva” na qual as “classes dominantes” se vêem
obrigadas a absorver os pontos de vista das vontades coletivas
nacional-populares.[39]
O pós-marxismo de Ernesto Lacleu e Chantal Mouffe
Contemporâneos a nós, o argentino Ernesto Laclau e sua
mulher Chantal Mouffe geraram outro salto importantíssimo na
teoria marxista. Este salto foi tão importante que o mundo
acadêmico lhes reputa um papel indiscutível como referências do
chamado “pós-marxismo”,[40] uma corrente teórica muito recente
cuja característica fundamental é a proposta de revisar o marxismo
de modo a adequá-lo, teórica e estrategicamente, ao novo mundo
que nasceu do fracasso do “socialismo real” da União Soviética.
No entanto, Ernesto Laclau não ascendeu somente no mundo
acadêmico, mas sua imagem também chegou ao mundo da política,
que reconheceu nele um papel filosófico importante no projeto do
“socialismo do século XXI” em geral, e no caso do regime
kirchnerista em particular. Praticamente não existia meio de
comunicação nacional e internacional que, ao mencioná-lo, não
tenha mencionado o papel do “filósofo do kirchnerismo”.[41] Com sua
morte em abril de 2014, Cristina Kircher pronunciou um discurso no
qual disse: “Laclau era um filósofo muito controvertido, um pensador
com três virtudes. A primeira, pensar, algo não muito habitual nos
tempos que correm. A segunda, fazê-lo com inteligência; e a
terceira, fazê-lo em aberta contradição com as usinas culturais dos
grandes centros de poder”. Como se a nova esquerda não fosse um
deles...
Concentremo-nos, porém, em seu aporte teórico, que é o que
pretendemos destrinchar neste capítulo. E comecemos dizendo que
o mundo no qual Laclau vive é muito distinto do mundo de Marx e
mesmo do mundo de Gramsci. O que Laclau vê quando escreve
com Chantal Mouffe sua obra Hegemonia e Estratégia Socialista,
publicada em 1985, é um mundo onde o capitalismo expandiu-se
formidavelmente e, longe de agravar os seus conflitos de classe,
obteve cada vez melhores condições de existência para o
proletariado,[42] em contraste com a uma iminente queda do bloco
comunista; um mundo onde a democracia pluralista também
expandiu-se desmesuradamente e fez aflorar novos pontos de
conflito político que não têm sua raiz em fundamentos econômicos;
e onde o Estado de bem-estar se encontra em uma brutal crise e,
em seu lugar, vêem surgir com todas as suas forças o projeto do
“liberalismo neo-conservador”.
O trabalho de Laclau e Mouffe revisa e “descontrói”
(desmantela e substitui) as teorias do marxismo tradicional,
buscando desmontar o economicismo[43] para propor uma nova
teoria e uma nova estratégia para a esquerda, baseadas na idéia de
hegemonia. Nisto se resume, precisamente, os esforços de
Hegemonia e estratégia socialista, um das obras mais importantes
de nossa esquerda renascida.
O pós-marxismo de Laclau e Mouffe tem como centro a
supressão do conceito de “classe social” como elemento teórico
relevante para a esquerda. Este é o passo crucial que ambos os
pensadores dão em comparação a Gramsci, em quem, ademais,
baseiam a maior parte de sua teoria. O proletariado já não é o
sujeito revolucionário privilegiado em nenhum sentido possível; a
classe trabalhadora em Laclau não tem sequer privilégios em uma
estratégia hegemônica como na teoria gramsciana. Porém, para
além disso, tampouco há sentido procurar outro sujeito privilegiado,
como aconteceu na década de 60 na qual se discutiu, a partir
especialmente dos teóricos da Escola de Frankfurt, se o privilégio da
história passava pelos jovens, pelas mulheres, etc.[44] Contra a
intenção desesperada de descobrir novos sujeitos para a revolução
anticapitalista, Laclau e Mouffe acentuam a construção discursiva
dos sujeitos. O que significa isso? Significa, pois, que os discursos
ideológicos podem dar origem a novos agentes da revolução (o
discurso tem caráter performativo, dirá o filósofo da linguagem John
Austin). Simplificando um pouco: é preciso fabricar e difundir relatos
que gerem conflitos úteis para a causa da esquerda.
O problema neste ponto passa a ser de como explicar a
construção destas novas identidades. E a resposta será dada, uma
vez mais, pelo conceito de “hegemonia”. Porém, o que Laclau e
Mouffe chamam de “hegemonia”? Para pôr nos termos mais claros
possíveis — algo nem sempre fácil pelo obscurantismo desses
autores —, “hegemonia” é o nome de um processo sob o qual forças
sociais diferentes entre si começam a se articular e, posteriormente,
acabam modificando cada uma a sua identidade particular. Dá-se
entre elas um intercâmbio recíproco que as transforma. O conceito
de “articulação” é chave aqui, pois fica definido pelos autores como
“toda prática que estabelece uma relação tal entre os elementos que
as suas identidades ficam modificadas como resultado dessa
prática”.[45] Em termos mais fáceis: existe articulação política
quando duas frentes políticas firmam uma aliança que termina por
modificara identidade de cada uma.
No entanto, uma articulação, para ser hegemônica, deve surgir
no quadro de um antagonismo social, isto é, num espaço dividido
pelo conflito. A hegemonia é um processo através do qual distintas
forças sociais começam a se unir para se potencializarem no
contexto dos conflitos.
Ponhamos um exemplo para aclarar a idéia: um grupo de
trabalhadores tem demandas particulares como, por exemplo, a
necessidade de um aumento salarial; grupos de mulheres, por outro
lado, pedem proteção para o sexo feminino diante dos casos de
violência contra a mulher; grupos de indígenas, por sua vez,
reclamam proporções de terras baseando-se em supostas
possessões de seus antepassados remotos. Estas demandas,
separadamente, carecem de força hegemônica. A esquerda,
contudo, tem a missão de instituir um discurso que, sobre um
terreno de conflito maior, articule estas forças em um processo
hegemônico que as faça equivalentes diante de um inimigo comum:
o capitalismo liberal. Quer dizer, a esquerda deve criar uma
ideologia na qual estas forças possam identificar-se e unir-se em
uma causa comum; a nova esquerda deve ser a cola que unifique,
invente e potencialize todos os pequenos conflitos sociais, ainda
que estes não tenham natureza econômica. A hegemonia se
conquista quando uma força política determina a rede de
significados e palavras – e por acréscimo molda a forma de pensar
– pelos quais conduzir-se-ão todos os que se encontram sob seu
controle. Como Humpty Dumpty assevera em seu diálogo com Alice
na célebre história de Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carroll: — Quando eu uso uma palavra – insistiu Humpty Dumpty
com um tom de voz mais desdenhoso – ela quer dizer o que eu
quero que diga... nem mais e nem menos.
— A questão – insistiu Alice – é saber se é possível fazer com
que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes.
—A questão – encerrou Humpty Dumpty – é saber quem
manda... Isso é tudo.
A hegemonia, segundo a teoria de Laclau e Mouffe, tem sentido
a partir de um momento histórico bem concreto: a revolução
democrática. Com efeito, a dita revolução – concretamente a
francesa[46] — teria instaurado um discurso igualitário que substituiu
a doutrina teológico-política pela declaração de que o poder emana
do povo, deslegitimando uma série de subordinações,
transformando-as em opressões, ampliando em seu constante
desenvolvimento o espaço dos antagonismos sociais. A revolução
democrática seria o terreno de uma constante e ininterrupta
emergência de antagonismos que em tempos recentes estavam
contidos por outro tipo de discurso social.
Naturalmente, a estratégia que esses autores propõem ao
socialismo, longe de ter por objetivo imediato a destruição da
“democracia burguesa” – ao modo do marxismo clássico —, tem seu
eixo no fato de entender a democracia como o terreno sobre o qual
o projeto socialista pode e deve se desenvolver, aproveitando e
estimulando a multiplicidade de pontos de antagonismos possíveis
de se fazer emergir. Trata-se de tomar a democracia liberal e
fomentar o seu componente igualitário a tal ponto que ela termine
dizimada desde seu próprio seio; varrida por sua própria lógica;
trata-se de destruir a democracia por dentro, e não por fora. Esse
objetivo termina por ficar evidente no livro subseqüente de Laclau: A
Razão Populista.[47]
Sigamos, porém, com Hegemonia e Estratégia Socialista. Seus
autores não somente deixam explícitas as intenções já ditas, mas
inclusive as destacam com recursos tipográficos (os itálicos
pertencem aos próprios autores): “...é evidente que não se trata de
romper com a ideologia liberal democrática, mas sim o contrário, de
aprofundar o momento democrático ao ponto de fazer estourar no
liberalismo sua articulação com o individualismo possessivo. A
tarefa da esquerda não pode portanto consistir em renegar a
ideologia liberal democrática, mas, pelo contrário, consiste em
aprofundá-la e expandi-la na direção de uma democracia
radicalizada e plural. [...] Não é no abandono do terreno democrático
mas, pelo contrário, ao longo do campo das lutas democráticas no
conjunto da sociedade civil e do Estado onde reside a possibilidade
de uma estratégia hegemônica de esquerda”.[48]
Digamos duas coisas a respeito. Em primeiro lugar, surge da
própria pena de Laclau e Mouffe que a radicalização da democracia
não é um fim em si mesmo, mas um meio para alcançar outro fim: a
destruição do “individualismo possessivo” tipicamente liberal, quer
dizer, a destruição da noção dos direitos individuais e da
propriedade privada. Em segundo lugar, assim como as ditaduras
socialistas do século passado alegavam estar levando adiante uma
“democracia substancial” diante da “democracia burguesa” do
mundo capitalista, em Laclau e Mouffe esta distinção se mantém
vigente ainda que com um novo nome: democracia radical vs.
democracia liberal. Porém, a suposta “democracia radical” não é
muito mais que o nome dado a um socialismo que incluiu em seu
discurso uma série de demandas que excedem o tradicional terreno
das classes. E tanto é assim que os próprios autores concluem seu
livro desta forma: “Todo projeto de democracia radicalizada inclui
necessariamente, segundo dizemos, a dimensão socialista – quer
dizer, a abolição das relações capitalistas de produção – [...]. Por
conseguinte, o descentramento dos antagonismos e a construção
de uma pluralidade de espaços dentro dos quais podem afirmar-se e
desenvolver-se são as condições sine qua non de possibilidade de
que os distintos componentes do ideal clássico do socialismo [...]
possam ser alcançados”.[49]
Não é exagerado dizer que o objetivo de toda a teoria de
Laclau e Mouffe é a construção de um socialismo[50] adaptado às
condições do novo milênio que se inicia, ao qual puseram o apelido
simpático de “democracia radical” para incluir demandas que
anteriormente não tinham lugar nas teorias socialistas. “A
denominação pouco satisfatória de ‘novos movimentos sociais’ –
escrevem os autores – amalgama uma série de lutas muito diversa:
urbanas, ecológicas, antiautoritárias, anti-institucionais, feministas,
anti-racistas, de minorias étnicas, regionais ou sexuais. [...] O que
nos interessa destes novos movimentos sociais não é [...] seu
agrupamento arbitrário numa categoria que os oporia aos
movimentos de classe, mas a sua própria novidade, na medida em
que através deles se articula essa rápida difusão da confrontação
social a relações mais e mais numerosas, o que é, hoje em dia, uma
característica das sociedades industriais avançadas”.[51] É aqui
onde vamos nos concentrar neste livro: em desmantelar os
discursos destas novas máscaras da esquerda que seus teóricos
hegemonizaram.
A relevância e a autonomia da política e da ideologia aparecem
com toda sua força no traçar a estratégia hegemônica que estamos
descrevendo.[52] E sob esse guarda-chuvas teórico a esquerda
acabou por trazer, enfim, ao primeiro plano a relevância de um luta
ideológica que determinou a morte da luta de classes e o
conseguinte nascimento da batalha cultural.
Os pensadores do “socialismo do século XXI”
O “socialismo do século XXI” é a expressão latino-americana
da esquerda renascida. Como projeto, com nome e sobrenome, tal
socialismo nasceu formalmente em 27 de fevereiro de 2005, na
Venezuela, oportunidade na qual Hugo Chávez convocou os
intelectuais orgânicos ao seu sofrível programa televisivo “Alô,
Presidente” para “inventar o socialismo do século XXI”. O socialismo
não estava morto com a implosão soviética; devia “reinventar-se”
com os ajustes necessários de acordo com as condições do novo
século e dos novos postulados teóricos que os revisionistas do
marxismo tinham apresentado. De tudo isto se falou com especial
ênfase nos Foros Internacionais de Filosofia da Venezuela, que
começaram precisamente naquele ano, e que começaram a tirar o
pó de idéias que se acreditavam condenadas ao museu de
antigüidades de uma vez por todas.
O projeto do socialismo do Século XXI, neste mesmo momento
em que estas linhas são escritas, está sendo pensado e repensadopor intelectuais orgânicos dedicados a cumprir as ordens do falecido
ditador venezuelano e expandi-las para toda a região. Aqui daremos
uma passada de vistas nas idéias de alguns deles que, se bem que
em muitas coisas apresentem um pensamento mais ou menos
heterogêneo, estão todos de pés juntos em algo que não é nenhum
pormenor para a tese de nosso trabalho: o caráter cultural da
revolução esquerdista do nosso século. Eles são devedores, sem
sombras de dúvidas, do pensamento pós-marxista que passou seu
olhar da agitação da classe trabalhadora para a construção de
novos antagonismos sociais, culturais, étnicos, etários, sexuais, etc.
O uruguaio Sirio López Velasco é um caso interessante. Ele
baseou sua proposta intelectual de socialismo do século XXI em
discussões éticas que têm seu fundamento no famoso postulado de
Marx que diz: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual,
segundo suas necessidades”. Porém admite, logo em seguida, que
a classe trabalhadora que Marx supôs ver não é a de hoje e isto o
obriga a contemplar mudanças importantes: “Em momentos em que
a classe trabalhadora diminuiu quantitativamente e modificou-se
qualitativamente, com centrais sindicais que de fato aceitam os
limites do capitalismo , já soa a museu a invocação de qualquer
‘partido trabalhador de vanguarda’; a tarefa crítico-utópica e
comunitarista hoje é colocada nas mãos de um bloco social
heterogêneo, com forma de movimento que agrupa os assalariados,
os excluídos da economia capitalista formal, as chamadas ‘minorias’
( que às vezes são maiorias, como as mulheres, e algumas
comunidades étnicas em alguns países), as minorias ativas
(sobretudo os movimentos, partidos, sindicatos e organizações não
governamentais, e em especial muitas de caráter ambientalista), os
povos indígenas que, sem assumir uma postura identitária a-
histórica essencialista, querem permanecer e transformar-se sem
aceitar o dogma dos ‘valores’ capitalistas da ganância do
individualismo, e os movimentos de libertação nacional que
combatem o recrudescido imperialismo ianque-europeu”.[53]
O argentino Atilio Borón segue a mesma linha, ainda que dê
ênfase na necessidade de “construir” – quer dizer, estimular o
conflito – no lugar de “encontrar” o sujeito da nova revolução
socialista, com claras reminiscências de Laclau: “Não existe um
único sujeito socialista. Se no capitalismo do século XIX e começo
do XX podia postular-se a centralidade exclusiva do proletariado
industrial, os dados do capitalismo contemporâneo [...] demonstram
o crescente protagonismo adquirido por massas populares que no
passado eram tidas como incapazes de colaborar – quando não
tidas como claramente opostas – na instauração de um projeto
socialista. Camponeses, indígenas, setores urbanos marginais
eram, no melhor dos casos, acompanhantes de um discreto
segundo plano da presença estrelar da classe trabalhadora”.[54]
Assim, pois, o que o novo socialismo deve fazer é recorrer,
impulsionar e agitar “as reivindicações das periferias, das mulheres,
dos jovens, dos ecologistas, dos pacifistas e dos defensores dos
direitos humanos”,[55] através da estratégia hegemônica, quer dizer,
mediante a união de todos estes micro conflitos que analisamos
anteriormente. “Em conclusão – anota Borón —, a construção do
‘sujeito’ do socialismo do século XXI requer reconhecer, antes de
tudo, que não existe somente um, mas inúmeros sujeitos. Que se
trata de uma construção social e política que deve criar uma
unidade onde existe uma ampla diversidade e heterogeneidade”.[56]
Posto nos termos da teoria pós-marxista que já vimos: trata-se de
conquistar uma hegemonia socialista que aglutine todos os
elementos de conflito social possíveis.
Dissemos antes que a hegemonia só tinha sentido em um
quadro social onde o conflito entre os distintos grupos fosse a regra.
O marxismo tradicional encontrou um único conflito fundamental que
abarca todos: o conflito entre as classes sociais – isto é, o conflito
econômico. Porém, como o novo socialismo teve que minimizar – e
praticamente abandonar – a visão estritamente classista, foi preciso
fazer irromper novos conflitos, de distintos tipos, que podem
encontrar seu fio condutor na oposição à ordem capitalista e aos
valores ocidentais sobre os quais ele se sustenta. Esta geração
permanente do conflito é recomendada pelo sociólogo venezuelano
Rigoberto Lanz quando anota que o socialismo do século XXI só
pode ter êxito “apostando seriamente na impulsão de práticas
subversivas que propaguem o efeito das rupturas, dos conflitos, das
contradições”.[57]
As coincidências entre os autores chamam a atenção e devem
ser evitadas sob risco de cairmos na redundância, pois neste padrão
repetitivo já não há uma “proposta”, mas uma clara estratégia em
marcha. Com efeito, o teórico alemão Heinz Dieterich, ex-assessor
de 
Chávez e célebre acadêmico do “socialismo do século XXI”,
argumenta algo muito parecido com o que argumenta seus colegas
quando escreve que não se trata da busca de um mítico “sujeito da
libertação pré-determinado, mas sim do reconhecimento de que os
sujeitos de libertação serão multiclassistas, pluriétnicos e de todos
os gêneros”[58] e que “a classe trabalhadora continuará tendo um
destaque fundamental [...] porém provavelmente não constituirá sua
força hegemônica”.[59] Por outro lado, o pensador neomarxista russo
Alexander Buzgalin[60] também declarou que uma premissa objetiva
“do socialismo do século XXI é a associação dos trabalhadores e
cidadãos em geral [...] que se somam aos sindicatos e aos diversos
movimentos sociais (mulheres, etnias discriminadas pelo racismo,
camponeses, ecologistas, etc.), às organizaçõeos não-
governamentais e às associações informais não permanentes e
flexíveis que agrupam as pessoas movidas pontualmente por
causas comuns”.[61] Porém, López Velasco se queixa de uma
importante omissão que o escritor russo faz em seu trabalho: “nos
chama a atenção que Buzgalin omita (a não ser que o tenhamos lido
mal) os movimentos homossexuais (gays e lésbicas) no rico arco-
íris dos movimentos associativos que germinam como sementes do
associativismo participativo-decisório requerido por/no socialismo do
século XXI”.[62]
O filósofo e ex-guerrilheiro[63] boliviano Álvaro García Linera,
vice-presidente de Evo Morales, dá especial ênfase na questão
indigenista concreta e explica esta translação de sujeito
revolucionário dada entre o histórico “trabalhador explorado” para o
atual “indígena colonizado” através do fio condutor do marxismo:
“Iniciamos assim uma releitura, ou melhor, uma ampliação de nosso
olhar desde o trabalhador muito central em Marx, ao menos nas
obras clássicas de Marx e Lenin, passando pela temática nacional,
do campesino, até a temática do que se chamam as identidades
difusas. Aí nasce uma etapa – a partir do ano de 1986 – que se
mantém até hoje, de preocupação em torno da temática indígena...
consegui incorporar a temática indígena num esforço por torná-la
compreensível a partir das categorias que eu detinha; minha
autoformação era basicamente marxista. [...] começa uma
obsessão, com distintas variações, com o intuito de encontrar o fio
condutor dessa temática indígena a partir do marxismo”.[64] E a
seguir realça o projeto hegemônico do novo socialismo com base
nesses novos sujeitos: “Toda revolução implica um tipo de alianças,
será mais exitosa a guerra de classes se ela consegue isolar,
desmoralizar e debilitar o adversário, ou transformá-los em
potenciais aliados; essa é a idéia de uma hegemonia”.[65]
Extraímos como conclusão algo que a esta altura já é evidente:
se existe algum acordo estratégico no campo da reconstrução de
uma nova esquerda para o século XXI, ele precisa apoiar-se
firmemente em novos movimentos que são mencionados e
repetidos até a náusea por todos os teóricos que listamos aqui,
incluídos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, os quais, como vimos no
subcapítulo anterior, puseram as bases teóricas para o pós-
marxismo superar de vez o economicismo que via a luta socialista
somente como um confronto de classessociais. Esses novos
movimentos que o socialismo do século XXI deve hegemonizar são
fundamentalmente os indigenistas, ecologistas, direito-humanistas,
e os que no primeiro tomo dessa obra dedicaremos especial
atenção: as feministas e os homossexualistas (destes últimos se
encarregará Nicolás Márquez na segunda parte da presente obra),
representados pelo que ficou conhecido como a “ideologia de
gênero”.
 
Capítulo 2: Feminismo e ideologia de gênero
A primeira onda do feminismo
Dado que o feminismo não pode ser abordado como uma
ideologia unívoca, suas diversas expressões devem ser
diferenciadas através de “ondas” que se vão sucedendo uma atrás
da outra através da história, e que levam consigo importantes
mudanças político-teóricas em relação a suas predecessoras. De tal
sorte que, para fugir dos discursos reducionistas que nos levariam a
generalizações perigosas, torna-se necessário repassar
rapidamente as principais características destas distintas
manifestações do feminismo. Com efeito, o feminismo radical, sobre
o qual nós concentraremos nossas críticas aqui, nada tem a ver com
outros feminismos que a história registrou e que nós, longe de
criticá-los, cremos que representaram progressos sociais
necessários.
As origens do que podemos chamar a “primeira onda” feminista
encontram-se no Renascimento (séculos XV e XVI), o período de
transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Mulheres de
grande inteligência começam a reclamar o direito de receber
educação de maneira equitativa a recebida pelos homens, começam
a perceber e a fazer percebido o papel socialmente relegado que a
mulher de então possuía. Novos ares intelectuais fazem-se sentir,
especialmente na Europa; os clássicos são relidos sem as lentes
arquetípicas do mundo medieval. E aí, neste momento da história,
são produzidas obras como A cidade das damas de Christine de
Pizan, escrita em 1405, e A igualdade dos sexos do sacerdote
Poulain de la Barre, publicada em 1671. Entre essas duas obras,
Cornelius Agrippa publica a célebre obra Da nobreza e excelência
do sexo feminino em 1529. O padre Du Boscq escreve a favor da
educação aberta ao público feminino em A mulher honesta. Ao
término do século XVII, o filósofo Fontenelle publica suas
Conversações sobre a pluralidade dos mundos. À lista se pode
acrescentar A noiva perfeita de Antoine Héroët, O discurso douto e
sutil de Margarita de Valois, entre outros exemplos destes novos
ares intelectuais concentrados no flamejante brado da mulher e pela
mulher.
Porém, a primeira onda feminista só se expressará com pleno
vigor com as novas condições sociais, políticas e econômicas
advindas das revoluções de inspiração liberal do século XVIII. Não é
de se estranhar que tenha sido assim, considerando o quadro
ideológico no qual as revoluções originaram-se e desenvolveram-se,
fundado na igualdade natural entre os homens e na liberdade
individual. E isto sem deixar de considerar, é claro, a importância do
fator econômico: estas revoluções que consigo trouxeram ao mundo
o capitalismo liberal criaram novas condições de vida para as
mulheres, que passaram a ver diante de si todo um novo universo
cheio de possibilidades na vida fora de lar.
Este primeiro feminismo surgido das entranhas das revoluções
liberais lutara, em termos gerais, pelo acesso à cidadania por parte
da mulher: o direito à participação política e o direito de acesso à
educação que, até então, estivera reservado aos homens; estas são
as demandas que estruturam o discurso do nascente feminismo de
caráter liberal. As idéias filosóficas difundidas então são essenciais
para este discurso. Voltaire postula a igualdade de mulheres e
homens, e chama às primeiras de “o belo sexo”. Diderot disse às
mulheres “compadeço-me de vós” e denuncia que ao largo da
história “foram tratadas como imbecis”. Montesquieu determina que
a mulher tem tudo o que é necessário para poder tomar parte na
vida política. Condorcet publica em 1790 o texto Sobre a admissão
das mulheres ao direito de cidadania, no qual conclui que os
princípios democráticos que foram inaugurados cabem a todos por
igual independentemente do sexo. “Por que alguns seres expostos a
gravidez e a indisposições passageiras não poderiam exercer
direitos que nunca se pensou privar àqueles que têm gota todos os
invernos ou que se resfriam facilmente?”, ironiza.
É neste contexto que nasceram estas novas demandas, ao
compasso das novas idéias, em especial no epicentro das
revoluções de inspiração liberal: Inglaterra, França e EUA.
Costuma-se tomar como obra fundamental da primeira onda
feminista o livro Reivindicação dos direitos da mulher, da inglesa
Mary Wollstonecraft, centrado na igualdade de inteligência entre
homens e mulheres e em uma reivindicação da educação feminina.
Nascida em 1759 e falecida em 1797, Wollstonecraft se destaca
como uma das importantes escritoras de seu tempo, apesar de não
ter recebido uma educação maior do que a de qualquer criado. Sua
carreira como escritora nasce quando é encarregada de escrever
Pensamentos acerca da educação das meninas, onde já começa a
formar suas idéias em defesa de uma educação que incluísse o
sexo feminino, e chega ao auge com o citado Reivindicação dos
direitos da mulher, redigido em apenas seis semanas de 1792, no
qual advoga pela participação política da mulher, o acesso a
cidadania, a independência econômica e a inclusão no sistema
educativo.
Quem reconhecerá o legado de Wollstonecraft durante boa
parte do século XIX na Inglaterra não será, no entanto, uma mulher,
mas um homem: John Stuart Mill. Seu livro A sujeição das mulheres,
publicado em 1869, é sua obra mais importante nesta matéria,
editada não somente em seu país de origem, mas também nos
EUA, Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Áustria, Suécia, Itália,
Polônia, Rússia, Dinamarca, entre outros países.
Neste livro, Mill dá uma forte ênfase na desigualdade perante a
lei entre homens e mulheres, criticando especialmente o regime
marital de sua época, o qual concedia direitos legais sobre os filhos
somente ao pai (nem com a morte do marido a mãe gozava de
custódia legal dos filhos), alienava qualquer propriedade que por
acaso a esposa tivesse em favor de seu marido, e fazia dela
praticamente uma propriedade dele: “A mulher não pode adquirir
bens senão para ele; desde o instante em que obtém alguma
propriedade, ainda que seja por herança, é para ele ipso facto”[66]
escreve John Stuart Mill. Não obstante – é justo sublinhá-lo – o seu
trabalho não foi meramente intelectual. Também levou, como
deputado da Câmara dos Comuns, estas demandas ao debate
político. Assim, propôs (sem êxito) que, no quadro de uma reforma
eleitoral que se trabalhava naqueles dias, trocassem a a palavra
“homem” por “pessoa”, de modo que pudesse habilitar o voto
feminino.
Neste cenário, em 1869, a Inglaterra vê nascer a Sociedade
Nacional do Sufrágio Feminino, e, em 1903, a União Social e
Política Feminina,[67] cujo lema “Voto para as mulheres” – nome
também de seu jornal semanal – pressiona o Parlamento para que
inclua politicamente as mulheres. O objetivo seria alcançado em
1918, depois de vários anos de muita tensão política e social.
Por sua vez, em França, a primeira onda feminista tem sua
origem na polêmica revolução de 1789, época em que surge uma
manifestação do feminismo da qual pouco se conhece, quando um
grupo de mulheres entende que ficaram excluídas da Assembléia
Geral criada após a Revolução, e então fazem ouvir suas vozes no
chamado “Caderno de Queixas”.
Com o avançar da Revolução, a exclusão das mulheres se
acentua: em 1793 os revolucionários dissolvem os clubes femininos
e estabelecem um norma segundo a qual, por exemplo, não podem
reunir-se na rua mais do que cinco mulheres. Em 1795 se proíbe
expressamente às mulheres assistirem assembléias políticas. Nas
chamadas “codificações napoleônicas” se consagra, entre outras
coisas, a perpétua menoridade das mulheres. O sistema
educacional estatal nascente exclui a mulher do nível médio e
superior, mesmo que sua educação primária se declare desejável.Um dado dá cor a toda a época: um dos grupos mais radicais da
Revolução Francesa, “Os Iguais”, traz a lume um panfleto intitulado
Projeto de lei que proíba às mulheres de aprenderem a ler. O
mesmíssimo Jean-Jacques Rousseau, cujo pensamento influenciou
de maneira determinante a Revolução Francesa, escreve contra a
inclusão educacional e política da mulher no Emílio (é precisamente
a este livro que Wollstonecraft responde em seu Reivindicação...).
Muitas mulheres acabam sendo guilhotinadas pelos
revolucionários, como Olympe de Gouges, autora da Declaração
dos Direitos da Mulher e da Cidadã, texto publicado em 1791, que
buscava equiparar mulheres e homens juridicamente. Como um
corolário da sua obra, de Gouges escreveu: “A mulher nasce livre e
permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais
somente podem estar fundadas na utilidade comum”; e segue: “As
leis devem ser a expressão da vontade geral; todas as cidadãs e
cidadãos devem participar da sua elaboração pessoalmente ou por
meio de seus representantes”. É toda uma reivindicação de direitos
civis e políticos para seu sexo. Anos mais tarde quem tomará a
bandeira da mulher, como na Inglaterra fizera Mill, será um homem:
León Richier, fundador do jornal Os direitos da mulher, em 1869, e
organizador do Congresso Internacional dos Diretos da Mulher, em
1878. Em 1909 se fundará a União Francesa para o Sufrágio
Feminista, porém o direito de votar será conquistado somente em
1945.
Nos EUA, o ano que se costuma tomar como referência do
surgimento da primeira onda de feminismo é 1848, ano em que se
redige a Declaração de Seneca Falls, o texto fundacional do
sufrágio americano. Este é o resultado de uma reunião que
Elizabeth Cady Stanton, uma ativista do abolicionismo da
escravidão, convoca em uma capela metodista de Nova York, com a
finalidade de “estudar as condições e direitos sociais, civis e
religiosos da mulher”, tal como pregavam os anúncios que foram
distribuídos.
Assim como Olympe de Gouges baseou sua Declaração dos
Direitos da Mulher na Declaração dos Direitos dos Homens, a
Declaração de Seneca Falls se baseia na Declaração de
Independência dos EUA. A filósofa Amelia Valcarcel explica que o
documento surgiu sob “postulados jusnaturalistas e lockeanos,
acompanhados da idéia de que os seres humanos nascem livres e
iguais”.[68] Entre outras coisas, nota-se ali que “todos os homens e
mulheres são criados iguais; que estão dotados pelo criador de
certos direitos inalienáveis, entre os quais figura a vida, a liberdade
e a busca da felicidade”. Há especial ênfase na reivindicação dos
direitos de participação política para a mulher e contra as restrições
de caráter econômico imperantes na época, tais como a proibição
de possuir propriedades e dedicar-se a uma atividade comercial.
Importantes políticos e pensadores americanos como Abraham
Lincoln e Ralph Emerson apóiam a causa das mulheres. Em 1866, o
Partido Republicano apresenta a décima-quarta Emenda à
Constituição, na qual se concede o voto aos escravos, porém a
mulher continua excluída. Dois anos mais tarde, em 1868, os EUA
vêem nascer a Associação Nacional para o Sufrágio Feminino, e no
ano seguinte a Associação Americana para o Sufrágio Feminino.
Nesse mesmo ano de 1869 o primeiro estado americano concede o
voto para as mulheres: Wyoming. Porém, apenas em 1918, graças a
um Congresso Republicano, seria aprovada a décima-nona
Emenda, que tornou possível voto feminino, setenta anos depois da
Declaração de Seneca Falls.
Vimos, da forma mais sintética que nos foi possível expor, que
em seus princípios as revoluções liberais trouxeram igualdade e
liberdade; porém, somente para os homens. A lei continuava sendo
díspare, e as mulheres permaneciam um conjunto humano pré-
cívico, à margem do sistema educativo. Contudo, o novo quadro
filosófico e as novas realidades econômicas que as revoluções
liberais trouxeram a tona, começaram a transformar a moral da
época, fazendo com que a preocupação pela situação da mulher
surgisse com grande força. A primeira onda do feminismo, de
caráter liberal, também conhecida como “sufragismo”, caracterizou-
se fundamentalmente pelo acento na igualdade perante a lei,
reivindicando direitos cívicos e políticos para o sexo feminino, fato
que, longe de representar um mal social, foi um grande feito em
favor da justiça.
O fim desta história é bem conhecido. Em muitos países
industrializados as mulheres conquistaram os direitos políticos antes
do fim da Segunda Guerra Mundial. No pós-Guerra, o voto feminino
era universalmente reconhecido em todos os países de regime
democrático.
No entanto, o feminismo não tinha, de maneira alguma,
esgotado a sua razão de ser, mas, pelo contrário, estava chamado a
reinventar-se. Não outro senão Ludwig von Mises, um dos
referenciais máximos da Escola Austríaca de Economia, advertiu,
em 1922, que o feminismo começava a se desviar, e prenunciou por
quais caminhos seguiria o seu desenvolvimento; deixou tal aviso
plasmado num parágrafo que vale a pena reproduzir, uma
interessante leitura para muitos libertários de hoje, os quais,
culturalmente, mais parecem funcionários do neo-marxismo e, por
isso, deveriam ter em consideração essas palavras: “Enquanto o
movimento feminista se limite a buscar igualar os direitos jurídicos
de mulheres e homens, dar segurança quanto às possibilidades
legais e econômicas de desenvolver suas faculdades e de
manifestá-las mediante atos que correspondam a seus gostos, a
seus desejos e a sua situação financeira, serão somente um ramo
do grande movimento liberal que encarna a idéia de uma evolução
livre e tranqüila. Se, ao ir além destas reivindicações, o movimento
feminista crê que deve combater instituições da vida social com a
esperança de remover, por este meio, certas limitações que a
natureza impôs ao destino humano, então já é um filho espiritual do
socialismo. Porque é característica própria do socialismo buscar nas
instituições sociais as raízes das condições dadas pela natureza, e,
portanto, independentes da ação do homem, e pretender, ao
reformá-las, reformar a natureza humana mesma”.[69]
Não se equivocava Mises; e foi exatamente assim que as
subseqüentes ondas do feminismo não somente se despojaram do
discurso liberal, mas, sobretudo, postaram-se numa outra frente de
batalha.
A segunda onda do feminismo
Se a primeira onda do feminismo pode ser entendida como a
preocupação pelo lugar que a mulher ocupa numa sociedade
iluminada pelo quadro conceptual do liberalismo, a segunda onda
feminista manifesta a mesma preocupação, porém, vista com as
lentes da ideologia marxista e do socialismo.
Aqui devemos fazer um esclarecimento importante: muitos
estudiosos do feminismo costumam dar um salto da onda sufragista,
que acabamos de ver, diretamente para a “onda contemporânea”
(chamadas por eles de “segunda onda”) que tem seu ponto de
partida em 1968, ano do “Maio Francês”. Ignoramos a razão disto,
pois, neste esquema, o feminismo de viés marxista acaba
marginalizado na história do feminismo. De tal modo que decidimos
recuperá-lo, pondo-o em lugar de destaque, e designando-o como a
“segunda onda” do feminismo, pela razão de que seu ataque à
propriedade privada e ao capitalismo são elementos que
perpassarão as diversas ondas até chegar ao feminismo de nossos
tempos, constituindo a parte central do seu discurso.
As raízes mais profundas do feminismo marxista encontram-se
nos socialistas utópicos como Saint-Simon e Fournier. Com efeito,
em seu projeto utópico contrário ao capitalismo eles pensaram com
afinco na emancipação da mulher através da emancipação total da
sociedade, através do “amor fraterno” e da inclusão feminina na vida
econômica-produtiva. As utopias socialistas, além de se voltarem
contra a propriedade privada, projetaram também o
desaparecimento do matrimônio como instituição social.
No entanto, o verdadeiro ponto de partida do feminismo
marxista será dado, descartando-se o método utópico, por Friedrich
Engels. Depois que Karl Marx, seu sócio intelectual, estava morto,
ele aprofundou

Continue navegando