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Um buraco
Dos grandes mistérios da vida, o meu mistério particular sempre se resumiu a um buraco. 
Eu gostaria que meu buraco fosse mais profundo, algo digno de um texto elaborado que fizesse 
com que as pessoas percebessem como sou brilhante por mostrar o quão fundo podemos ir 
falando de um buraco. Não é impressionante como sempre caímos nisso? 
Eu gostaria muito que meu mistério fosse uma cova, e então poderia escrever sobre os 
enigmas da vida e da morte. Mas, não, o que tenho a dizer é algo mais raso.
Pensando bem, se cavarmos mais fundo talvez seja digno de alguma reflexão. Meu buraco 
está, de alguma forma, ligado também à vida. Meu buraco está em você e está em mim. 
Novamente: eu gostaria que fosse algo poético, como nossos provedores de sentidos, que nos 
permitem experienciar o mundo pelos sons, cheiros ou sabores – enfim, para além dos enganos na 
visão. Não, meu buraco é bem mais abaixo.
Não tanto. Isso é pra quem sabe mais do que eu e eu quero que fique claro: meu mistério 
não é para grandes pensadores.
Ultimamente não tenho parado de pensar que, de todas as coisas que temos que abrir mão 
na vida, a primeira é uma parte de nós mesmos. Talvez tenha algo bonito nisso. Durante meses, 
somos uma fusão. Não somos ainda. Para sermos de fato, temos que tirar a parte que nos faz não 
ser ainda. E do rompimento dessa fusão sobra um buraco, o buraco que é meu mistério.
Eu não quero me prolongar demais, mesmo que já tenha me prolongado muito. Se eu falar 
demais, significa que terei muitas frases, parágrafos e páginas. E, quanto mais palavras, mais 
parecerá que quero dizer muito. Talvez pareça que direi algo belo, mas não. 
O que tenho a dizer é feio, terrível.
Eu vou direto ao ponto. 
Porque raios um umbigo?!
Qual é o grande mistério que se esconde no buraco da minha barriga? O que se esconde 
lá? Eu já não apreciava a limpeza desse vazio, mas agora tenho um motivo para isso! Não há 
nada em um corpo que se compare com os horrores desse pequeno “o”. Ouso dizer que é um 
portal para um mundo de angústias e aflições. Um mero toque nessa aberração é capaz de me 
transportar para o inferno.
Eu nunca gostei de limpá-lo e só limpava por exigência quando criança. Diziam-me que 
os ducas roubam os umbigos das crianças mal limpas porque sujeira de umbigo é a moeda mais 
valiosa deles. Um pedaço de ouro não chega nem perto de uma pelotinha de poeira umbilical. Eu 
fui um estúpido não só por acreditar nisso, mas também por não deixar que levassem essa 
maldição. 
Quando saí de casa, já adulto, deixei essas bobagens de lado. Existência ou não dos ducas, 
eu agora já era um homem feito e só crianças perdem seus umbigos – infelizmente.
A verdade é que eu nunca gostei de olhar para o nó profundo no meio de mim. Imagine 
tocar naquela imensidão! Uma tortura! Por que nos é tirado um elo para nos deixar com uma poça 
de nada? Minha única objeção é esta: por que um buraco? O que fez uma criança para merecer ter 
um pouco de nada em si? E esse nada que leva para linhas estranhas, tortas, feias, e que terminam 
em um grande ponto misterioso?
Para quê um nó dentro da barriga, meu Deus?
Mas, que seja. Assim que me fiz homem, tratei de nunca mais pensar no umbigo.
Isto até o dia em que me encontrei com alguns amigos. Conhecemo-nos quando pequenos 
e agora falávamos de nossos próprios pequenos. Finalmente um dia para nos lembrarmos das 
brincadeiras antigas e reclamarmos das novas. Tudo arruinado quando alguém disse, rindo, que a 
filha tinha medo dos ducas. E, então, ladeira abaixo. Este comentário foi o suficiente para 
despertar uma coceirinha insuportável na minha barriga, tão chata que, mesmo evitando, eu me 
pegava arrastando as unhas para perto do meu buraco maldito inconscientemente. 
Já de volta em casa, continuei coçando o maldito umbigo. Coçava mais do que nunca. 
Confesso, embaraçado, que cheguei a pensar com seriedade e preocupação nas histórias de 
infância. É assim que se perde um umbigo? Mas, como poderia ser? Não, isso era ridículo. Até 
porque, perder o umbigo seria uma bênção.
É claro que não precisava coçar tanto.
Naquela noite, depois do meu último banho, a coceira atacou. Pensei comigo que aquilo já 
estava ficando difícil e que, em algum momento, eu teria que lidar com a situação diretamente. 
Tomei coragem e dei uma olhada para baixo. 
Em um primeiro momento, nada mal. O umbigo ainda estava lá. Os ducas não me 
concederam sua graça, mas pelo menos tudo estava dentro dos conformes.
Respirei fundo e puxei a barriga para cima, para que conseguisse olhar lá dentro.
Que horror!
Uma imundice! Envergonhado comigo mesmo, passei a unha nas pelotinhas de sujeira 
acumuladas no buraco dentro de mim. Não foi uma tarefa fácil. É preciso coragem para 
visitarmos os lugares que sabemos serem fonte de certas infelicidades. Mas, nisso, escutei uma 
vozinha aguda.
“Ui!”, ela falou.
Parei por alguns momentos, perguntando-me se seria mesmo possível que um duca 
estivesse roubando meu umbigo.
“Quem é?”, perguntei.
Sem resposta. Me senti meio bobo. Continuei a limpeza, agora um pouco enfraquecido e 
acovardado.
“Ui! Ui ui ui!” – escutei novamente.
Um pouco alarmado, achei que talvez seria oportuno deixar claro que aquele buraco não 
era de meu interesse e que, se fosse do interesse do invasor, seria um favor que ele ficasse com 
meu umbigo.
“Leve o que você quiser!”
O silêncio dos minutos seguintes me convenceu que era apenas uma alucinação. Minha 
mente estava rejeitando a experiência e queria que eu me afastasse o quanto antes daquele lugar 
de dores e repulsas. Retornei àquela atividade tenebrosa.
“Uuuiiiihihihihi!!!!”
Desta vez, enfureci-me.
“Olhe aqui, espertinho, eu estou te escutando. Quem é você e o que você está fazendo no 
meu umbigo?”.
E a vozinha, trêmula e chorosa:
“Desculpe-me, senhor, eu apenas me assustei. Não irei mais incomodá-lo.”
“Quem é você?”, perguntei novamente, olhando lá dentro. Não conseguia ver nada, 
apenas pequenas bolinhas marrons.
“Ninguém…”
“Como assim ‘ninguém’? O que você está fazendo aí?”
“Eu não sei… eu só vim parar aqui”
“Bom, então se retire! Você está no meu umbigo!”
A vozinha chorou.
“Ah, por favor! Eu não tenho amigos e nem família! Não tenho para onde ir!”
“O mundo é muito grande! Existem muitos lugares, pessoas e umbigos por aí. Você não 
pode ficar no meu.”
“Mas por quê?”
“Você está atrapalhando a minha saúde mental e as minhas relações sociais!”
“Mas eu nunca fiz nada! Me deixe ficar, por favor! Este lugar é tudo o que eu tenho. Eu 
não vou te atrapalhar.”
“Olhe, eu não estou gostando dessa conversa… você vai ter que sair.”
“Depois de todo esse tempo?”
“Que tempo? Aliás, quem é você? O que é você?”
“Eu não sei… Eu não sei de nada… Eu só me lembro de viver aqui e é o lugar mais feliz 
do mundo, tão quentinho e escuro... Eu estou com medo...” 
Eu fiquei comovido. O que quer que fosse, parecia ser pequeno e inocente. Só isso já é o 
suficiente para fazer qualquer pessoa se apiedar.
“Tudo bem, você pode ficar mais esta noite. Só não se esqueça que você vai precisar sair! 
Amanhã, conversamos.”
“Iupiiii! Muito obrigado!”
Meu coração se encheu de alegria por esta boa ação feita a uma criaturinha tão miudinha. 
Bom, pelo menos é o que eu acho. Não há nada tão grande dentro de um umbigo, não é? Pelo 
menos, nada que seja maior do que eu mesmo…
No dia seguinte, encontrei problemas.
“Bom dia! Agora, você precisa sair”, falei.
“Ah! Eu poderia ficar por mais algumas horas? Não consegui pensar no que fazer.”
“Veja, você não me enrole…”
“Não estou enrolando! Só preciso de mais algum tempo para me arrumar.”
E as horas se passaram. Quando quis tirar a criaturinha de lá novamente, mais uma 
desculpa surgiu.
“Ah, eu realmente não sei o que fazer…”
“Você precisa ir embora”. Desta vez, fui firme. “É inconcebível que você more no meu 
umbigo para sempre.”
“Mas é mesmo?”
“Claro que é!”
“É que eu nunca te incomodei até hoje… aliás, o que foi que eu te fiz? Quedano eu te 
causei?”
“Até ontem, nenhum. Mas, então, eu comecei a sentir uma coceira aí embaixo.”
“Ah, eu estava aprendendo a dançar. Não faço mais, eu juro.”
Aquilo podia dançar? Será que tinha pernas? O que estava acontecendo? De qualquer 
maneira, não podia continuar.
“Eu sei que a sua situação é delicada, só que você não pode mesmo ficar aí.” 
Eu escutei um barulho de choro de repente. Aquilo podia, além de falar e dançar, chorar 
também?
“O senhor é uma pessoa horrível! Nunca se incomodou comigo até hoje! Eu tive que me 
virar sozinho em tudo. E aí, quando eu tirei um dia para ser feliz e aprender a dançar, o senhor 
quer me botar pra fora. Por que o senhor quer me ver infeliz? Que diferença faz eu estar aqui ou 
não? O senhor nunca olhou para baixo, nunca olhou para mim, nunca se incomodou comigo. A 
única coisa que eu peço é que me deixe ficar quieto e em paz. Eu prometo, prometo mesmo, que 
não vou mais atrapalhar!”
Eu não queria lidar com esse sujeitinho difícil e acho que, no fundo, ele estava certo. Se 
ele estava no meu umbigo há tanto tempo a ponto de ter aprendido a falar e dançar, a culpa era 
mesmo minha. Para desencargo de consciência, concordamos então: sem dança e sem coceira da 
parte dele, sem expulsão da minha. E tudo ficou bem. Nos primeiros dias, foi mesmo um pouco 
estranho pensar na criaturinha morando no meu umbigo. Mas, pensando bem, eu sou mesmo uma 
pessoa solitária e saber que algo estava preenchendo o espaço vazio dentro de mim me consolou. 
Tem algo bonito nisso. Do lugar que me fazia não ser eu, desse lugar que fez de mim uma fusão 
um dia, agora permitia a existência de outra. O que me trouxe à vida agora me permitia expandir 
a vida. Este pensamento me emocionou. Em algum tempo, esqueci-me de tudo. Andava tudo 
bem. 
Até que, andando um dia na cidade, a coceira voltou.
“Ei! Que confusão é essa aí embaixo? Você não tinha parado com a dançaria?”, perguntei 
assim que consegui encontrar um banheiro para ter um pouco de privacidade.
“Eu parei!”, escutei a vozinha responder, o que até me comoveu um pouco. Senti sua falta 
nesse tempo.
“Então o que está acontecendo?”
“São… é… então, são as crianças…”
Eu fiquei apavorado.
“Crianças?”
“É, então… é que… bom, pra começar, eu queria te apresentar a minha companheira. Ela 
é um pouco tímida.”
“Oi… muito prazer.”
Essa vozinha era diferente.
“O que está acontecendo?”
E a vozinha que já me era conhecida:
“Ela apareceu há um tempo e aqui é tão solitário e…”
“E como foi que as crianças surgiram? Um dia você olhou para os lados e elas estavam 
aí? Eu sabia que deveria ter te tirado daí há muito tempo!”
“O senhor não tente jogar isso pra mim! Eu não pedi para brotar no seu umbigo!”
“Não, mas você pediu para ficar.”
“Pedi, sim, porque o senhor nunca fez questão de mim e me dar um umbigo era o 
mínimo! E o senhor continuou não se importando. Eu não quis ficar sozinho aqui para sempre. 
Mas, de novo, quando eu encontro alguma felicidade, o senhor quer acabar com ela!” 
“Já chega. Você já tem a sua família. Já está muito crescidinho. Você não pode esperar 
que eu cuide de você e de todos eles para sempre. Está na hora de criar responsabilidade.”
“Ah, agora o senhor quer falar de responsabilidade.”
“Você não comece. Eu deveria ter te tirado daí há muito. Já me decidi. Você e a sua 
família vão sair daí até amanhã, ou, então, eu tiro vocês na marra!” 
Eu não sabia mais o que fazer. Eu estava disposto a aceitar o milagre da vida no vazio do 
meu universo até um certo limite. Na covardia de repelir um inquilino, de repente me vi 
sustentando toda uma família. Isto já era demais. 
Quando o momento chegou, olhei para baixo e já não tinha mais nada. Eles optaram pela 
melhor maneira para todos nós. Seria muito doloroso para mim acabar com tudo aquilo. Sozinho 
neste momento, sinto-me mais leve… e mais sozinho. Pergunto-me se cortar os laços desta 
maneira foi mesmo a melhor opção. Mas o que mais eu poderia fazer? Ninguém nunca me 
preparou para isso!

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