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O COTIDIANO SOB AS LENTES DA CÂMERA E DOS OLHOS DAS CRIANÇAS: A PRODUÇÃO DE UM TELEJORNAL Pamela Aparecida Cassão Mestranda em Educação UNESP – Univ. Estadual Paulista (campus de Rio Claro) cassaopa@gmail.com RESUMO Neste trabalho contextualizo o processo de criação e execução do “Jornal do Projeto”, um telejornal produzido com alunos de um projeto educativo vinculado à prefeitura municipal de Cordeirópolis-SP no segundo semestre de 2011. Tal projeto tinha por objetivo proporcionar aos alunos atividades didático-pedagógicas e de lazer no contra turno escolar. Eu atuava neste projeto como docente de uma classe multisseriada constituída por vinte e um alunos que tinham entre sete e nove anos. A proposta do telejornal partiu das crianças e tinha o intuito de registrar algumas vivências cotidianas do projeto, da escola e do bairro. Os alunos participaram de todo o processo de criação e execução do telejornal, organizaram-se em equipes de editoração, redação, reportagem e apresentação. Todas as equipes estiveram sob a minha orientação: a equipe de editoração, composta por dez alunos, ficou responsável pela criação dos textos dos apresentadores, a seleção dos entrevistados e os temas a serem abordados; a equipe de reportagem, formada por sete alunos, ficou responsável pelos convites aos entrevistados, o agendamento dos locais de gravação e das entrevistas; a equipe de apresentação, composta por quatro alunos, responsabilizou-se pelo estudo dos textos de abertura e de encerramento do telejornal. Neste texto problematizo a importância do olhar destes alunos para o seu cotidiano, para suas experiências e, ainda, para compreender qual a relação com o outro. Dialogo com autores que me ajudam a refletir sobre os sentidos dessa experiência, dentre eles Freire (1996) que considera que leitura de mundo precede a da leitura da palavra, Larrosa (2002) que fala do saber da experiência e Bakhtin (1997) que traz o conceito de alteridade. Como material de análise utilizo meu diário de bordo e as gravações do Jornal do Projeto. PALAVRAS-CHAVE: telejornal; experiência; autoria; cotidiano. mailto:cassaopa@gmail.com Introdução O presente trabalho é parte da pesquisa de mestrado, em andamento, que objetiva identificar quais as dimensões formativas presentes na constituição do professor no início de sua carreira. Para o seu desenvolvimento constituí um Grupo de Trocas de Experiências Docentes (GTED), composto por nove professores iniciantes e por mim que atuei no grupo como coordenadora-pesquisadora e também como professora iniciante. Esta pesquisa é qualitativa, de orientação sócio-histórica (FREITAS, 2002) e como estratégia metodológica, optei pelas entrevistas coletivas (KRAMER; SOUZA, 2003), pois esta possibilita identificar os pontos de vista dos entrevistados, estimular as pessoas a tomarem consciência de sua situação e a pensarem criticamente sobre elas. Nesta escrita pretendo explicitar uma experiência minha como professora iniciante em uma classe multisseriada constituída por vinte e um alunos que tinham entre sete e nove anos. A vivência que pretendo compartilhar surge da criação e execução do “Jornal do Projeto”, um telejornal produzido com meus alunos. Em 2011 atuei como professora em um projeto educativo vinculado à prefeitura municipal de Cordeirópolis-SP. Tal projeto tinha por objetivo proporcionar aos alunos atividades didático-pedagógicas e de lazer no contra turno escolar. Um pouco do dia a dia do projeto O projeto funcionava em dois períodos: manhã e tarde. No período da manhã, havia trinta e uma crianças divididas em duas salas: uma com dez alunos, com idades entre cinco e seis anos, que cursavam o primeiro ano da escola regular; a outra turma era composta por vinte e um alunos com idades entre sete e nove anos e estavam entre o primeiro e o terceiro ano da escola regular. A primeira turma (de dez alunos) era coordenada por uma estagiária, aluna regular da Faculdade Municipal da cidade. A outra turma (de vinte e um alunos) ficava sob a minha coordenação. A orientação e a supervisão do trabalho da estagiária também eram de minha responsabilidade. Neste projeto as crianças recebiam também atendimento assistencial, psicológico e fonoaudiólogo, de acordo com a necessidade de cada aluno. A sondagem era feita pela professora da sala regular, e após uma triagem, o aluno que apresentasse a urgência em receber um acompanhamento profissional especializado era encaminhado para os atendimentos semanais. Dos vinte e um alunos da minha turma, cerca de oitenta por cento recebia acompanhamento assistencial e trinta por cento acompanhamentos fonoaudiólogo e psicológico. Eu via o oferecimento destes atendimentos como um ponto fundamental para a melhoria da aprendizagem dos alunos no tocante aos conteúdos do ensino regular. O trabalho da equipe de especialistas junto à professora de sala de aula era dialógico e trazia bons resultados. Muitas vezes, as especialistas dialogavam comigo (mesmo eu não sendo a professora de sala de aula) a fim de saber sobre meu ponto de vista com relação a determinado aluno. Me agradava esse movimento, de interação entre profissionais especializados e professores. Eu percebia que tal articulação refletia na melhoria da aprendizagem dos alunos. As turmas do período da manhã, da qual eu era a docente responsável, tomavam café da manhã, banho e almoçavam no projeto antes de seguirem para a escola regular. O horário de entrada no projeto era às 06h50h e permaneciam até às 11h55h. Quem trazia esses alunos para o projeto eram os pais, ou as peruas escolares (ofertada gratuitamente pela Prefeitura Municipal). Eu e minha estagiária éramos responsáveis por levá-los para à escola regular ao final do período da manhã. A escola localizava-se a duas quadras do projeto, e íamos todos a pé, geralmente organizados em fila indiana. Quanto à estrutura arquitetônica do projeto, ele funcionava em uma casa adaptada, subsidiada pela Prefeitura Municipal. Na parte da frente localizavam-se três salas de aula: uma para os alunos que ficavam sob a orientação da estagiária (turma menor), outra para os alunos que ficavam comigo (turma maior) e uma terceira sala para as aulas de reforço escolar. O reforço escolar também se mostrava um forte aliado na melhoria da aprendizagem dos alunos. Mais de cinquenta por cento dos meus alunos frequentavam o reforço escolar, que era sempre ministrado durante a permanência dos alunos no projeto por uma professora com vasta experiência em alfabetização. Aos fundos tínhamos duas salas para a realização dos atendimentos especializados (assistência social, fonoaudiologia e psicologia), e uma pequena cozinha. Com relação à alimentação dos alunos, a comida chegava pronta, vinda da escola. Tínhamos a ajuda de duas auxiliares de serviços gerais, que esquentavam a comida e organizavam os pratos e os talheres para o almoço dos alunos. A comida era servida por mim e pela estagiária, enquanto as auxiliares faziam a limpeza das salas de aula para os alunos do período da tarde. A proposta curricular do projeto incluía aulas de Educação Física, Artes e Informática, além das atividades diversificadas que cabiam a mim, enquanto docente da turma, desenvolver. As demais aulas eram ministradas por professores especialistas na área, e a indicação para eles era a mesma: de direcionar as aulas para a formação do cidadão e não para os conteúdos escolares. As aulas aconteciam durante a permanência das crianças no projeto. As aulas de Educação Físicas eram realizadas no Centro de Lazer que se localizava próximo ao projeto. As aulas de Informática aconteciam no laboratório de computadores da escola, e as aulas de Artes eram dadas no próprio projeto. Diante da proposta curricular tínhamos (eu e minha estagiária) que desenvolver atividades dinâmicas voltadaspara os conteúdos extracurriculares, direcionadas para a formação cidadã do aluno. Encontrávamos certas dificuldades para a realização destas atividades, mas ao final elas acabavam acontecendo e deixando marcas nos alunos, em mim e na estagiária também. Minha relação com a estagiária era de parceria: pedíamos sempre a ajuda uma da outra, trocávamos atividades. Embora a hierarquia estivesse estabelecida, nós construímos uma relação de amizade e essa dimensão de afeto e respeito mútuo foi fundamental para encararmos os contratempos da profissão docente. Foi difícil ser professora de projeto. O caráter não formal do que ensinamos, dentro da hierarquia valorativa dos conteúdos, acaba por induzir uma desvalorização do nosso fazer docente nessas instâncias educativas. Isso me marcou muito nos primeiros meses que atuei no projeto. Não me sentia professora deles, mas sim uma “cuidadora” de crianças. Aos poucos, fui refletindo sobre a minha prática cotidiana, e amparada por algumas leituras, fui enxergando a responsabilidade que tinha ao ensinar “outras lições” para aqueles meninos e meninas. Área (2007) ao relatar sua experiência de trabalho docente pautada na afetividade, afirma que: Esta experiência serve muito para mostrar o quanto é importante o professor conhecer a relação que existe entre afetividade e cognição. A afetividade presente em nossas aulas é importante, pois através dela podemos recuperar os alunos desacreditados e sofridos pela rejeição, que sofrem preconceito. Com Léo aprendi muito, superei ideias e comportamentos ultrapassados, tradicionais. Abri novos horizontes para mim, para ele e para todos os outros alunos que vieram e virão. Passei a saber que é na relação com o outro, nas trocas e interações que se estabelecem entre os sujeitos, que ocorre a formação do eu tanto do aluno quanto de nós, professores (ÁREA, 2007, p. 26). Na relação cotidiana com meus alunos, eu fui descobrindo a importância dos conhecimentos que eu construía com eles. E passei a não mais ver estes saberes como desvalorizados, menores. Ao contrário, eu percebi que estava tendo uma oportunidade privilegiada de trabalhar sem amarras, sem direcionamentos padronizados, sem pressões e prazos. Quando me percebi importante para aquelas crianças, aprendi a valorizar o meu trabalho. Comecei a propor atividades de construção coletiva do saber, pedir a sugestão deles, permitir que eles me avaliassem e também se autoavaliassem durante o processo de aprendizado. Dentre tantas atividades interessantes que fizemos ao longo do ano, gostaria de destacar: a fanfarra de carnaval, feita com material reciclado; a dentadura feita de massinha caseira; o relógio analógico, também feito de massinha caseira; o concurso de paródias e o “Jornal do Projeto” (J.P.). Neste texto, como já dito anteriormente, destaco a criação e execução de um telejornal, feito por mim e por meus alunos. A ideia deste telejornal surgiu a partir da vontade das crianças de trabalharem com a câmera e também de algumas leituras minhas sobre as diferentes formas de ensinar e aprender, como as experiências de Freinet (1975), em especial a construção do Jornal Escolar. Ghidotti (2006) ao narrar sua experiência com as técnicas freinetianas, nos conta um pouco da dimensão formativa da construção de um jornal com as crianças. Em uma produção de um jornal, por exemplo, cada criança ou cada grupo de crianças, assume uma função diferente. Enquanto um grupo realiza a coleta de textos, outro pode encarregar-se de produzir textos, enquanto outros se preocupam com a digitação e outros ainda fazem as ilustrações. As crianças não têm a obrigatoriedade de passarem por todos os ateliês, mas é importante o desenvolvimento do autoconhecimento para que suas escolhas apontem realmente para o desenvolvimento de suas potencialidades e para a superação de suas dificuldades. A construção de um jornal sempre se constitui em uma dinâmica muito gostosa. O objetivo passa a ser coletiva, a produção única será construída pelo grupo todo, e por isso a colaboração de cada um se faz essencial e fundamental para que o sucesso coletivo aconteça (GHIDOTTI, 2006, p. 12- 13). Inspirada pela possibilidade de trabalhar com meus alunos algo diferente de tudo que havíamos trabalhado ao longo do ano, eu levei para eles a ideia de trabalharmos com notícias. Foram eles que sugeriram que fizéssemos um telejornal. A partir de então começamos a trilhar o caminho para a elaboração do nosso “Jornal do Projeto”. Esta experiência deixou marcas que levo comigo até hoje e, de alguma forma, eles também saíram marcados dessa vivência. A transformação que se deu durante todo o processo de criação e execução do telejornal faz jus a um registro, uma escrita-divulgação. Por isso compartilho aqui esta experiência que foi muito significativa para mim e para a minha formação enquanto professora iniciante. O primeiro passo: como se faz um telejornal? Larrosa (2002), quando traz o conceito de experiência, diz que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (p. 21). Desse modo, olho para o “Jornal do Projeto” como uma experiência no sentido que o autor traz: um acontecimento que permanece na memória, algo que fica, que deixa sua marca... indelével, inesquecível. Assim, quando surgiu a ideia de fazer um telejornal com meus alunos, eu não tinha a dimensão das marcas que esse acontecimento poderia nos deixar. Eu tinha comigo a vontade de fazer algo diferente, algo que mostrasse o nosso trabalho, o espírito de coletividade que nos unia e fazia com que cada atividade se tornasse única e especial. O primeiro passo para a elaboração do telejornal foi levar uma proposta fundamentada para os alunos, a partir do que eles haviam pensado e do que eu tinha em mente naquele momento. Eu trouxe algumas perguntas a fim de compreender a concepção deles sobre o que seria constituir um “jornal televisivo”. Desse modo reservei uma semana para trabalharmos juntos de que forma é feito um telejornal dentro das emissoras de televisão e como se constituiria o nosso jornal, dentro das nossas vontades e possibilidades. Durante a apresentação da proposta, muitos já se manifestavam, dando opiniões, sugestões. Outros de pronto já me disseram não querer participar, pois não gostariam de aparecer diante da câmera. Aproveitei a oportunidade para explicitar a eles que um jornal não é feito somente pelos apresentadores e repórteres, e sim por uma grande equipe de profissionais. Cada um tem a sua função no jornal, que vai desde a elaboração dos temas até a sua gravação, edição e exibição. Essa primeira etapa teve a duração de uma semana. Ao final, já tínhamos a estrutura “operacional” do nosso “J.P.” e quais seriam as equipes e suas respectivas funções. Abaixo um trecho do meu caderno de registros com as divisões estruturais realizadas coletivamente. Caderno de registros – setembro de 2011. Divisão do “Jornal do Projeto”: Equipe de editoração: Darah, Luana, Renato, Natália, Cauã, Leandro, Maria, Isadora, Carlos e Júlia. Tarefas: escolher os temas que serão abordados no J.P, quais as entrevistas e lugares para a realização das filmagens. Equipe de redação: Isadora, Darah, Luana, Natália, Leandro, Nathan e Cauã. Tarefas: criar as perguntas a serem feitas aos entrevistados e também os textos de abertura das entrevistas e da apresentação do telejornal. Equipe de reportagem: Maria, Isadora, Carlos, Renato, Natália, Darah, Luana. Tarefas: conversar com as pessoas escolhidas para entrevista, falando sobre o jornal e agendando um dia e horário para a realização da entrevista. Equipe de apresentação: Darah, Maria, Luana e Natália. Tarefas: apresentar os temas do telejornal. Edição e supervisão: Profa. Pamela. Tarefas: coordenar todas as etapas do telejornal,realizar sua edição e prepará-lo para exibição. Hoje com um olhar exotópico (BAKHTIN, 1997) sobre meu próprio trabalho consigo compreender com mais ênfase o quão privilegiado era o espaço de trabalho que eu tinha. O tempo/espaço do projeto era diferente do tempo/espaço da escola, e como já dito, a proposta era diferente, as lições que deviam ser ensinadas no projeto não estavam relacionadas ao conteúdo da escola regular. Assim, eu tinha a possibilidade de trabalhar com liberdade, sem as amarras existentes dentro dos conteúdos de classe regular. Garcia (1999) ao escrever sobre a questão do tempo em sala de aula diz que: Essa questão é central quando se volta a atenção para as formas usuais de organização do trabalho escolar que, por exemplo, privilegiam o cumprimento sincronizado de tarefas idênticas definem padrões de aprendizagem ao final de dados períodos - meses, bimestres, semestres - e submetem os tempos individuais à temporalidade das tarefas em curso, e ignorando, de certa forma, a existência das experiências relacionadas a essa dimensão subjetiva da temporalidade (GARCIA, 1999, p. 115). Garcia (1999) também traz duas dimensões do tempo: Chronos e Kairós, no qual, segundo ela, o primeiro representa “o tempo dos relógios, mecanicamente mensurável” (p. 122) e o segundo “tempo estratégico, momento oportuno” (p. 120). Percebo-me enquanto professora do projeto atuando na dimensão Kairós do tempo, pois ali estávamos – eu e meus alunos – envolvidos em um projeto no qual não existia prazos para seu cumprimento, nem exigia que todos fizessem a mesma coisa, ao mesmo tempo, do mesmo jeito. Do meu lugar de autora-pesquisadora deste texto percebo o quanto trabalhar com uma dimensão “Kairós” do tempo foi fundamental para que os alunos se colocassem dentro da produção do jornal, cada um a seu tempo e a sua maneira. Embora tivéssemos uma configuração de tempo diferente do tempo escolar isso não fazia do nosso telejornal algo distanciado dos conteúdos escolares. Nesse movimento de construção do “J.P.” foi possível trabalhar com a escrita, evidenciando a língua portuguesa e até a matemática, dividindo-se dentro das equipes, trabalhando com as horas, o tempo estimado de cada entrevista. Eles trabalharam noção espacial também, analisando em quais lugares eram mais viáveis a realização das entrevistas. Sem contar a questão do debate entre eles com relação à escolha dos temas, eles aprenderam a ouvir mais o outro e a aceitar uma decisão coletiva, lições para além dos conteúdos previstos em sala de aula, lições para a vida. Freire (1996) nos alerta para a riqueza dos saberes da prática que se (re) constituem dentro do espaço escolar, e que são desvalorizados em nome de métodos pedagógicos impostos por planos governamentais por vezes equivocados, que negligenciam a autonomia do professor e o colocam apenas como um executor de saberes prontos, enrijecidos. Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. [...] Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (FREIRE, 1996, p. 19). Considero essa experiência no sentido informal de que nos fala Freire (1996), pois aconteceu em um lugar onde as enlaças do sistema não estavam presentes, permitindo-nos enriquecer nossa vivência com conhecimento construído e socializado coletivamente. O sentido da autoria: da criação dos temas à exibição do telejornal Perceber a forte presença dos alunos no “Jornal do Projeto” e a maneira como eles se colocaram como protagonistas daquela atividade me fez refletir sobre a autoria. Segundo Kramer, “ser autor significa dizer a própria palavra, cunhar nela sua marca pessoal e marcar- se a si e aos outros pela palavra dita, gritada, sonhada, grafada [...] Ser autor significa produzir com e para o outro“ (KRAMER, 2003, p. 83). No “J.P.” as crianças deixaram “suas marcas” nos textos criados coletivamente. Como afirma Kramer (2003), eles produziram com os outros e para os outros, pessoas que viram e que até hoje veem o vídeo e se encantam com o nosso telejornalzinho. Depois de termos definido coletivamente a estrutura do nosso telejornal, ou seja, as equipes que constituíam cada etapa da realização da atividade, a equipe de editoração se reuniu para definir os temas. Tentei deixá-los à vontade para escolherem quais os assuntos que seriam trabalhados no jornal. Por vezes eu os orientei quanto às questões de viabilidade de algumas ideias, mas a definição, o consenso e a finalização dos temas ficaram sob- responsabilidade deles. Deste modo os temas escolhidos foram: Caderno de registros – outubro de 2011. Temas a serem abordados no “Jornal do Projeto”: Equipe de editoração: Projeto da escola Amália que atende as crianças em período oposto da aula; A importância da merenda escolar na alimentação das crianças; A direção escolar e a sua função na escola; Os direitos da criança em nossa sociedade; Psicologia escolar no auxílio do desenvolvimento da criança; O reforço escolar e sua importância na aprendizagem dos alunos; A revitalização da praça da igreja traz beleza e conscientização para os moradores. O excerto acima evidencia uma escrita minha mais elaborada, com termos específicos. Entretanto a essência da proposta é autoria dos alunos. A partir da escrita deles, eu organizava um texto rebuscado, como eles mesmos costumavam dizer “agora a professora reescreve usando palavras bonitas”. Mas eles reliam as propostas depois que eu as reescrevia e algumas vezes me apontavam o que fugia do que havia sido decidido dentro da equipe de editoração. Abaixo segue outro trecho do meu caderno de registros que apresenta os temas e seus entrevistados. Caderno de registros – outubro de 2011. Organização das entrevistas “Jornal do Projeto”: Equipe de editoração: TEMA ENTREVISTADO Projeto da escola Amália que atende as crianças em período oposto da aula; Profa. Bianca; alunas: Maria Lucivânia e Amanda. A importância da merenda escolar na alimentação das crianças; Merendeira Zuleide. A direção escolar e a sua função na escola; Diretora Roberta Castellar. Os direitos da criança em nossa sociedade; Assistente Social Ariena Geniselli. Psicologia escolar no auxílio do desenvolvimento da criança; Psicóloga Gislaine Licatta. O reforço escolar e sua importância na aprendizagem dos alunos; Profas.: Rose Peruchi e Daniela Vite. A revitalização da praça da igreja traz beleza e conscientização para os moradores. Moradores que estiverem passando pela praça na hora da entrevista. É possível perceber a sinergia entre o tema escolhido e a pessoa a ser entrevistada. Sinto que de certa forma eles queriam mostrar a vida deles dentro do projeto e a importância dos outros atores presentes nesse cotidiano. Eles desejavam divulgar de uma forma toda especial o carinho e a admiração que eles tinham por estas pessoas. Os entrevistados eram profissionais que se dedicavam a melhorar a vida escolar e familiar de cada um. Pessoas com as quais eles estabeleciam uma relação de afeto e gratidão. Hoje ao revisitar estes registros percebo um sentido de agradecimento na escolha desses sujeitos para as entrevistas. Talvez essa tenha sido a forma que eles encontraram para dizer “obrigado por tudo”. Novamente gostaria de trazer a questão da autoria, agora dialogando a partir de outra perspectiva. Larrosa (1996) considera que a partir das nossas narrativas mostramos quem somos: El sentido de lo que somos o, mejor aún, el sentidode quién somos, depende de las historias que contamos y que nos contamos y, en particular, de aquellas construcciones narrativas en las que cada uno de nosotros es, a la vez, el autor, el narrador y el carácter principal, es decir, de las autonarraciones o historias personales (LARROSA, 1996, p. 462). Vemos que estas crianças contaram o que são e como veem o mundo através de suas falas, de seus textos deixando “suas marcas”, sua autoria. Falavam de seu dia-a-dia, dos espaços que os acolhiam diariamente, dos adultos com que eles se relacionavam. Foi importante percebê-los como autores de suas próprias histórias, e o mais surpreendente, como eles conseguiram transpor para o telejornal, ao mesmo tempo, a narrativa de todos dentro da história de cada profissional que eles escolheram entrevistar. Eles atribuíram ao “J.P.” um sentido de pertencimento e fizeram dele instrumento para contar suas histórias. Coube a equipe de redação elaborar as perguntas a serem feitas aos entrevistados, bem como os textos de apresentação do “J.P.” e também os textos de introdução de cada entrevista. A equipe de reportagem ficou responsável pelos convites aos entrevistados, a apresentação prévia do telejornal para cada pessoa convidada, o agendamento dos locais de gravação e a realização das conversas e reportagens externas. Ao final de trinta dias letivos, tínhamos gravado todas as entrevistas e a apresentação do nosso telejornal. Toda a parte de edição ficou sob minha responsabilidade, devido à inexistência de softwares específicos no laboratório de informática da escola e também horários disponíveis para a utilização do mesmo. A edição demorou cerca de doze horas (que dividi em um final de semana). Quando o “Jornal do Projeto” ficou pronto: produzido, editado e gravado, confeccionamos convites personalizados e convidamos todos os entrevistados, a equipe de gestão da escola e a Secretaria Municipal de Educação para uma exibição “formal” do nosso telejornal, com direito a pipoca e refrigerante. Todos que estavam presentes na exibição se encantaram com a qualidade do trabalho realizado pelos alunos. Os entrevistados ficaram perplexos com a forma que as crianças encontraram de narrar o trabalho desenvolvido por eles no projeto e na escola. Entre olhos brilhantes e sorrisos espontâneos, em mim permanecia a sensação de dever cumprido. E não falo do sucesso do telejornal. Falo da realização de algo que vinha construindo com meus alunos desde o início do ano letivo: a autoestima e a confiança na capacidade deles enquanto sujeitos autores e protagonistas na construção de um conhecimento coletivo. Um olhar exotópico: no diálogo com autores O exercício ao qual me propus na escrita deste texto foi de buscar em meus registros, no vídeo do “J.P.” e em minha memória, indícios (GINZBURG, 1989) que me permitissem olhar para o que foi a experiência de construir um telejornal com meus alunos. Buscar elementos que hoje, com um olhar exotópico talvez eu consiga perceber. Exotopia, palavra que se analisada em seu sentido etimológico tem-se o prefixo “ex” que significa fora e “topos” que expressa lugar, ou seja, é um olhar externo, de fora do seu lugar. Baseio-me também no conceito de exotopia apresentado por Bakhtin (1997), que entende exotopia como o olhar do outro sobre mim, um olhar que eu jamais terei de mim mesmo, estando no lugar que estou (o eu). Propus-me nesta escrita fazer esse movimento exotópico de olhar com outros olhos a experiência de produzir um telejornal com meus alunos, trazendo uma narrativa e buscando evidenciar as principais dimensões dessa vivência. Agora, do lugar de autora-pesquisadora, proponho-me a elencar pontos que percebo como importantes para a reflexão e para o diálogo com alguns autores. O primeiro é com relação à leitura que os alunos fizeram de seu cotidiano, de seus lugares, de suas vidas. Freire (1996) nos fala da importância de poder ler o mundo dos educandos. Essa leitura deve preceder a leitura da palavra, não com a finalidade de abandonar a especificidade da educação, mas sim com o intuito de se constituir uma ponte entre a realidade dos alunos e os conteúdos aprendidos em sala de aula. Desse modo, o que o aluno aprende encontra sentido com o que ele vive. Não é um sentido utilitário, pragmático, mas sim dialógico e significativo. Como educador preciso de ir "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo "leitura do mundo" que precede sempre a "leitura da palavra" (FREIRE, 1996, p. 32). Encontro nas palavras de Freire (1996) o sentido da experiência na produção do “J.P.”. Os alunos encontraram significado naquilo que eles estavam constituindo. Trouxemos o dia-a- dia deles e colocamos em uma linguagem diferente, no gênero jornalístico. Ao mesmo tempo em que aprenderam a escrever com a finalidade de informar a um telespectador, souberam como passar adiante essa mensagem, deixando evidente o movimento de releitura do mundo em que eles viviam. Lembro-me daqueles meninos e meninas, e consigo sentir as marcas do movimento de nos encontrarmos na relação com o outro e voltarmos a nós, transformados. Foi o que nos aconteceu (LARROSA, 2002) nas conversas com os entrevistados, nas reuniões das equipes de produção do telejornal, nos erros de gravação. E essas marcas, o que aqui chamo de “marcas da alteridade 1 ” (CASSÃO; CHALUH, 2012) se multiplicam em cada sujeito-outro que nos assiste, e percebe a potência de transformação existente em nosso trabalho. Desse modo, eu do meu lugar de autora-pesquisadora, evidencio a dimensão formativa das “outras leituras” dentro da profissão docente. Ler o mundo dos alunos, os olhos das crianças, as expressões, os conflitos. Ler e reler a sua prática enquanto educador. Sair do lugar rígido que muitas vezes nos colocamos e nele criamos raízes. A leitura é um campo vasto, repleto de significados. Mas o que percebo, é que professores cada dia mais leem somente a palavra, esta contida no texto do conteúdo. Não há tempo/espaço para a “outras leituras”. Professores são induzidos ao engessamento das práticas por um engendramento sistemático que atende a interesses políticos. Faz-se assim o sucateamento da profissão docente. Mas é possível abrir-se a novas formas de interpretação dos acontecimentos. As “outras leituras” nos trazem novos horizontes. E essa dimensão formativa constitui-se como uma “marca de alteridade” (CASSÃO; CHALUH, 2012) uma vez que as outras leituras estão com os outros, sujeitos com quem nos relacionamos e que nos transformam. E são tantas as “outras leituras” possíveis na escola. Reconheço também, nesse movimento ao registrar esta experiência vivida no lugar de professora iniciante, outra dimensão formativa presente na minha constituição como 1 A ideia de “marcas de alteridade” surgiu entre as autoras em conversa mantida em encontro de orientação (agosto 2012). professora: as vozes. Saber ouvir o que outro diz e se permitir compreender o enunciado. Das muitas as vozes dentro do contexto escolar, algumas “gritam”, outras falam tão baixo que é quase impossível percebê-las. Vozes não apenas no sentido sonoro, mas também no sentido da linguagem. Vozes podem ser uníssonas ou desarmônicas, estridentes ou graves, podem ser até silenciosas. As vozes do silêncio muitas vezes nos dizem mais do que as que ouvimos com clareza diariamente. Dentro do ambiente escolar, saber identificar,diferenciar e dialogar com estas vozes é fundamental para transformarmos a nossa prática. Para o professor iniciante tais vozes aparecem como lições a serem aprendidas. Mas é preciso estar atento ao que se ouve. Dentro da cultura escolar existem vozes imperativas, que fazem calar o professor. Mas existem também as vozes emancipatórias, que nos impulsionam e nos transformam. Ao professor iniciante cabe educar os ouvidos à percepção de que vozes são essas que falam, sobre o que falam e como falam. De uma forma ou de outra, esse movimento de escutar e dialogar com as vozes presentes na escola aparece como uma dimensão formativa, que pode formar este professor para a emancipação ou para o embrutecimento (RANCIÈRE, 2002). Evidencio que a princípio dei ouvidos às vozes imperativas e desqualifiquei meu trabalho como professora de projeto. Entretanto, quando me permiti ouvir as vozes de meus alunos, descobri o quanto eu era importante para eles naquele contexto e a partir de então busquei mostrar o meu valor, o valor daquilo que eu ensinava para os meninos e meninas do projeto e sua importância para a formação deles. Ambas as vozes foram importantes em minha constituição como docente: as vozes imperativas no sentido de me mostrar a complexidade da profissão, sua hierarquia e seus valores e as vozes emancipatórias que me deram coragem para sustentar a minha prática e a minha busca na construção de um conhecimento coletivo com meus alunos. REFERÊNCIAS ÁREA, C. J. Afetividade nas relações de ensino-aprendizagem. 2007. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2007. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. [tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl] (Coleção Ensino Superior). FREINET, C. As técnicas Freinet da Escola Moderna. Portugal: Lisboa Editorial Estampa, 1975. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção leitura). FREITAS, M. T. A. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa.. Cadernos de Pesquisa, (Fundação Carlos Chagas), São Paulo, v. 1, n. 116, p. 21-40, 2002. GINZBURG, C. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário. In: ______ Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179. GARCIA, T. M. F. B. A riqueza do tempo perdido. Educ. Pesqui.[online]. 1999, vol.25, n.2, pp. 109-125. ISSN 1517-9702. GHIDOTTI, V. Dinâmica de uma sala de aula Freinet: vivências com as crianças e o uso dos instrumentos. Campinas: [s/n.], 2006 KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. 3.ed. (3ª impressão). São Paulo: Editora Ática, 2003. KRAMER, S. ; SOUZA, S. J. E. Entrevistas coletivas: uma alternativa para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa em ciências humanas. In: KRAMER, S. (ORG.) Ciências Humanas e Pesquisa Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, v. 107, 2003. p. 57-76. LARROSA, J. 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