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1 CARTOGRAFIA DO VAMPIRO – PECULIARIDADES DE UM MODO DE EXISTÊNCIAR Fernanda Cristina BENTO Luiz Bosco Sardinha MACHADO JR.∗ Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP RESUMO: Neste trabalho, esboça-se um estudo de um modo de existência muito peculiar na contemporaneidade: o das pessoas que acreditam ser vampiros. Buscamos contato com suas opiniões e hábitos, procurando superar estereótipos e proporcionar uma visão de sua singularidade. A busca dos dados foi realizada através de sites na Internet e de entrevistas informais com vampiros. Diferencia-se os adeptos de role play games, estética e literatura ligados à temática do vampiro daqueles que de fato acreditam ser vampiros, sem considerar-se tal como fetiche ou doença. Diante dos dados levantados, percebe-se a multiplicidade desse modo de existência. Os discursos sobre suas características são múltiplos e até mesmo antagônicos em alguns momentos. Define-se como vampiro basicamente alguém que necessita alimentar-se da energia vital presente nos seres vivos e no cosmos; porém, suas opiniões sobre por que e como o fazem são as mais diversas: remetem desde crenças religiosas a preceitos científicos. Não se identificam com o conceito clássico de vampiro, sugador de sangue e com horror a cruzes, alho, estacas etc. Existem diversos tipos de vampiros, nomeados conforme sua maneira de alimentar-se: através de contato metal, de contato com os elementos da natureza, de sexo ou de ingestão do sangue humano. Torna-se vampiro através de contato com o sangue de um, de treino ou por características hereditárias. Em relação aos seus hábitos, afirmam ter uma vida quase comum, com família, emprego etc. Podem reunir-se, formando clãs, famílias, templos etc., mas a maioria prefere uma existência solitária e caracterizada pela invisibilidade. Defendem a necessidade de ocultar suas características peculiares aos não iniciados. Podem possuir características físicas extraordinárias, como longevidade, capacidade elevada de cura, extraordinário poder de persuasão e dons paranormais, mas em sua maioria afirmam ser humanos quase comuns. Para problematizar os dados levantados, empregamos basicamente o referencial da Esquizoanálise, principalmente o conceito de devir-animal em DELEUZE e GUATTARI: não se trata aqui de um vampiro molar, mas de uma singularidade ligada ao vampiro. Tal pode ser compreendida como máquina de guerra, uma linha de fuga do modo de subjetivação individualizante do capitalismo contemporâneo. Palavras-chave subjetividade – devir-animal – devir-vampiro – contemporaneidade ∗ luizboscojr@yahoo.com.br 2 CARTOGRAFIA DO VAMPIRO – PECULIARIDADES DE UM MODO DE EXISTÊNCIA Fernanda Cristina BENTO Luiz Bosco Sardinha MACHADO JR. Neste trabalho, esboça-se um estudo de um modo de existência muito peculiar na contemporaneidade: o das pessoas que acreditam ser vampiros. Buscamos contato com suas opiniões e hábitos, procurando superar estereótipos e proporcionar uma visão de sua singularidade. A busca dos dados foi realizada através da Internet e de seis entrevistas informais com vampiros. Para problematizar os dados levantados, será empregado basicamente o referencial da Esquizoanálise, principalmente o conceito de devir-animal em DELEUZE e GUATTARI. 1. Role Play Games e o vampyre lifestyle: a imitação do vampiro Dentre as pessoas ligadas à figura do vampiro, existem os adeptos de role play games 1 (RPG) que se utilizam do tema - particularmente “Vampiro: a Máscara”, e pessoas ligadas ao vampyre lifestyle, adotando uma “estética vampiresca”; são pessoas que vão a clubes e festas voltadas para a estética dark, às vezes fantasiadas como vampiros dito “clássicos” (Nosferatu, Drácula etc.) (NECRONOMI, s/d). Podem ainda ser aficionadas à leitura voltada ao tema. Costumam identificar-se em chats e sites ligados ao tema com apelidos que remetem ao seu clã (grupo de personagens de características semelhantes) ou ao seu personagem (SPHYNXCATVP, s/d). O devir-animal não é simbólico nem arquetípico. Não está no nível da representação, “o devir nunca é imitação”: 1 Role Play Games, “jogos de papéis”, onde jogadores atuam conforme as características de seu personagem. Costumam não ter um encerramento, tornando-se passatempo habitual dos jogadores. 3 “... a imitação destrói a si própria, à medida que aquele que imita entra sem saber num devir que se conjuga como o devir daquilo que ele imita, sem que ele o saiba. Só se imita, portanto, caso se fracasse, quando se fracassa” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.107). Os exemplos que citamos até agora contemplam pessoas que não acreditam ser vampiros, atuam como tais (SPHYNXCATVP, s/d) – o que não deixa de ser uma manifestação do devir. Contudo, o jogo, a festa, a literatura, são territórios bem delimitados para sua atuação, para a imitação de um vampiro. Para os vampiros reais (real vampyres), aqueles são wannabees ou posers, isto é, falsos vampiros (idem). 2. Os Vampiros Reais Buscamos os vampiros reais. A quem nos referimos com essa expressão? Não se trata de portadores de quaisquer distúrbios psíquicos, como a hematomania, fetiche por sangue. Nem somáticos, como a porfíria, doença que, dentre vários sintomas, leva a pessoa a desenvolver hipersensibilidade à luz solar. São pessoas que crêem ser vampiros, têm seus modos de subjetivação atravessados por esse vir-a-ser vampiro. Não importa se são ou não vampiros reais, no sentido molar da expressão. Importa que pessoas estão emitindo partículas de um devir-vampiro, que há um vampiro real molecular. “Os devires animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna ‘realmente’ animal, como tampouco o animal se torna ‘realmente’ outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O 4 que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna” (DELEUZE & GUATTARI,1997, p. 18). Os vampiros que habitam entre nós possuem múltiplas características, sem um elemento unificador qualquer. Não há consenso sobre o que realmente seja um vampiro. O devir é múltiplo, assume várias formas. O vampiro afasta-se daquela figura que tem horror a cruzes, alho e estacas. “Não se contenta em passar pela semelhança, para o qual a semelhança, ao contrário, seria um obstáculo ou uma parada” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 12). Coloca-se em jogo “termos inteiramente heterogêneos”. É bastante difundida a idéia de que o que caracteriza um vampiro é a necessidade de energia (seja ela intitulada de orgone, prana, chi etc., é a energia básica presente nos seres vivos e no cosmos), seja por um déficit energético, seja por vício ou ambição (HOUSE OF QUINOTAUR, s/d). Embora esta energia se encontre de maneira particularmente concentrada no sangue humano, alimentar-se dele não é unanimidade: pode se alimentar de energia através de contato mental com outros seres humanos – são os psyvamps; através de contato com elementos da natureza – os elementhals; através do sexo – sexualvamps; etc. Aqueles que se alimentam de sangue são chamados bloodievamps ou sanguinarians (idem; cf. também SPHYNXCATVP, s/d; etc.). Enquanto SANGUINARIUS (s/d) afirma que “Vampirism (...) is reserved to those who are born to the blood (…)”, o código de conduta da VAMPIRE TEMPLE (id., s/d) não admite que seus membros bebam sangue. Não há nenhuma afirmação no sentido de que seja possível alimentar-se exclusivamente de energia ou sangue. Vampiros não atacam para alimentar-se (parece que tal afirmação aplica-se muito mais aos sanguinarians queaos psyvamps); eles possuem a cooperação de um donor, uma pessoa que voluntariamente, às vezes com propósitos obscuros, doa sua energia ou seu sangue (HOUSE OF QUINOTAUR, s/d; cf. também AZHARN, s/d). 5 Os vampiros tentam explicar sua própria origem e o funcionamento de seu organismo através de um rizoma das mais diversas crenças, criando cada qual seu próprio território – podem unir o karma budista, os chackras e a projeção astral yogue, à demonologia cristã, alquimia, magia, gnosticismo, ao contato com entidades das mais diversas crenças. O rizoma se espalha – há quem afirme ser adepto do “iluminismo científico” (FRATER... ABI...I... HAYATI..., s/d), e agregam idéias dos mais diversos ramos e teorias científicos: a teoria da Orgone de Wilhelm Reich, a genética, a fisiologia, o neodarwinismo etc. (HOUSE OF QUINOTAUR, s/d). Muitos afirmam que qualquer um pode tornar-se vampiro, seja por buscar isso, através de treino e experiência com a energia vital, seja por contágio, bebendo ou injetando o sangue de um vampiro2. Outros afirmam que se deve nascer vampiro, descobrindo então tal condição na puberdade (idem; cf. também AZHARN, s/d; etc.). Em comum, relata-se a existência do fenômeno do despertar, ou awake, que é o momento em que o vampiro apropria-se de sua condição. Os relatos trazem que sempre antes ou durante o despertar têm-se sonhos estranhos, hábitos noturnos e solitários, gosto por assuntos mórbidos. Geralmente dá-se na adolescência, e alguns recomendam a assistência de um mestre (HOUSE OF QUINOTAUR, s/d). Vampiros podem adotar o vampyre lifestyle, mas a maioria pensa que isso os confundiria com os wannabees ou posers. “Não freqüento casas góticas nem círculos de rpg” afirma um vampiro. É corrente a afirmação de que vampiros devem manter segredo sobre sua condição (SANGUINARIUS, s/d; VAMPYRE TEMPLE, s/d; etc.): de fato todas as famílias vampíricas são unânimes em afirmar que seus membros não podem ficar exibindo suas características peculiares a não-iniciados. Fruto dessa 2 Para esses, o vampirismo é causado por vírus presente no sangue, podendo ser transmitido à semelhança de outras doenças hematocontagiosas, como a AIDS ou a hepatite 6 posição é o fato de não termos conseguido realizar entrevistas a não ser informais, via Internet e sob exigência de anonimato e aceitação de não exigirmos dados pessoais. Vampiros têm em sua maioria vidas comuns, com empregos, família etc. Alguns podem adotar um emprego noturno. De qualquer maneira, ser vampiro não afeta diretamente seu modo de vida com aqueles que não fazem parte de sua realidade de vampiro. “(...) Since many of us have families to take care of, and jobs to do, privacy is a very important issue. (...) Most real vampyres are pretty boring and live (outside of the obvious) normal, day-to-day ‘Joe Average’ lives. We pay bills, we grocery shop, we buy clothing, cars and so on just like anyone else would” (SPHYNXCATVP, s/d). Podem pertencer a uma família, clã, templo ou círculo, conforme suas crenças e convicções. Porém muitos parecem preferir uma atitude outsider, partilhando seu modo de existência solitário com um grupo restrito de pessoas, afirmando-se como vampiros únicos, inidentificáveis com quaisquer outros. São o anômalo, “a ponta da desterritorialização” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 26; grifos do autor). Vampiros podem desenvolver características peculiares: hipersensibilidade ao sol, caninos grandes, capacidade de cura acima do normal, longevidade, capacidades paranormais. Tudo depende de desenvolver suas habilidades em manipular a energia de que se alimentam (AZHARN, s/d). Contudo, esses traços não caracterizam o vampiro; a maioria admite que, quanto a esses dons, são como qualquer ser humano. 3. Conclusões Diante dessa cartografia esboçada, é inevitável pensarmos que estamos diante de uma máquina de guerra. Seu caráter de invisibilidade, suas infinitas formas de configuração mostram um modo de existência que foge à individuação capitalista, com 7 seu exibicionismo-de-si, com sua imposição da diferença, com seu movimento de territorialização-desterritorialização vertiginoso. É claro que nenhum fluxo molecular escapa de uma formação molar sem que elementos molares o acompanhem (DELEUZE & GUATTARI, 1997, 105), mas um vampiro nunca é idêntico ao outro e nada nem ninguém impõe ou faz publicidade do ser vampiro. Alguém devém vampiro por puro contágio, conjugando partículas as mais heterogêneas para constituir o bloco de devir. Segundo GIL (2000, p. 177), o vampiro, o monstro, atrai por estar numa zona de indiscernibilidade entre o devir-outro e o caos – entendido como um “foco atractor de saúde”, um “ponto de fuga” contra o poder do “Império” que fixa a cultura, esgotando a capacidade de mutação e devir. O monstro vampiro “é sinal da grande dúvida que assaltou o homem contemporâneo quanto à sua própria humanidade”. Que possamos cada vez mais nos aprofundar nos caminhos do vampiro e ouvir suas indagações sobre nossa “humanidade”. Esperamos com esse trabalho abrir portas para o contato com modos de existência os mais singulares que possam atrair energia para promover a multiplicidade e a singularização. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZHRARN. (s/d) Bela Lugosi’s Dead. [On-line] Página da Internet: http://www.netvampyric.com/vampyre.html Visitada em 26/01/2006 DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (1997) Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo, Editora 34. FRATER... ABI...I... HAYATI... (s/d) Vampirismo Real. [On-line] Página da Internet: http://www.vampirismoreal.cjb.net Visitada em 18/10/2004 8 GIL, J. (2000) Metafenomenologia da Monstruosidade: o devir-monstro. In: SILVA, T.T. (org.) Pedagogia dos Monstros. Belo Horizonte, Autêntica. HOUSE OF QUINOTAUR. (s/d) House of Quinotaur. [On-line] Página da Internet: http://www.quinotaur.org Visitada em 17/10/2004 NECRONOMI. (s/d) Necronomi. [On-line] Página da Internet: http://www.necronomi.com Visitada em 28/01/2006 SPHYNXCATVP. (s/d) Nocturna. [On-line] Página da Internet: http://www.sphynxcatvp.nocturna.org Visitada em 28/01/2006 SANGUINARIUS. (s/d) Sanguinarius. [On-line] Página da Internet: http://www.sanguinarius.org Visitada em 23/12/2004 VAMPIRE TEMPLE. (s/d) Membership. [On-line] Página da Internet http://www.vampiretemple.com/membership.html Visitada em 04/01/2005.
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