Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas PROJETO DE HISTÓRIA DO PORTUGUÊS PAULISTA (PHPP - PROJETO CAIPIRA) – 2012-2017 Projeto Temático de Equipe / FAPESP / Processo 11/51787-5 Coordenadora Geral Profa. Dra. Clélia Cândida A. Spinardi Jubran (UNESP/São José do Rio Preto) Subcoordenador Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida (USP) Coordenadores de Grupos Subprojetos Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho (USP, UNICAMP) Dra. Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran (UNESP/S.J. Rio Preto) Dr. José da Silva Simões (USP) Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP) Profa. Dra. Maria Aparecida C. R. Torres Morais (USP) Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (USP) Dra. Maria Lúcia C. V. Oliveira Andrade (USP) Dra. Sanderléia Roberta Longhin (UNESP/S.J. Rio Preto) Dr. Sílvio de Almeida Toledo Neto (USP) Dra. Verena Kewitz (USP) Consultores Prof. Dr. Ian Roberts (Cambridge University-UK) Profa. Dra. Ana Maria Martins (Universidade de Lisboa) Profa. Dra. Esperança Cardeira (Universidade de Lisboa) Prof. Dr. Johannes Kabatek (Zürich Universität, Suiça) Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacelar (USP) Prof. Dr. Augusto Soares da Silva (Universidade Católica Portuguesa) Profa. Dra. Mary Kato (UNICAMP) Prof. Dr. Rodolfo Ilari (UNICAMP) Profa. Dra. Maria Luiza Braga (UFRJ) Prof. Dr. Alan Baxter (UFBA) Comissão Científica Alan Baxter (UFBA) Ana Maria Martins (Univ. de Lisboa) Augusto Soares da Silva (Univ. Católica Portuguesa) Áurea Zavam (UFCE) Carlos de Almeida P. Bacelar (USP) Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ) Dinah Callou (UFRJ) Edair Maria Görski (UFSC) Ediene Pena Ferreira (UFPA) Elias Alves de Andrade (UFMT) Erotilde Goreti Pezatti (UNESP) Esperança Cardeira (Univ. de Lisboa) Evani Viotti (USP) Fábio Montanheiro (UFOP) Hugo Mari (PUC-MG) Ian Roberts (Cambridge University-UK) Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC) Janderson Lemos de Souza (UNIFESP) Jânia Ramos (UFMG) Johannes Kabatek (Zürich Universität) Lílian Ferrari (UFRJ) Marco Antônio Martins (UFRN) Mariângela Rios de Oliveira (UFF) Maria Alice Tavares (UFRN) Maria Denilda Moura (UFAL) Maria Lucia Leitão de Almeida (UFRJ) Maria Luiza Braga (UFRJ) Mary Kato (UNICAMP) Rodolfo Ilari (UNICAMP) Roseane Nicolau (UFPB) Tânia Lobo (UFBA) Valéria Gomes (UFRP) Vanderci Aguilera (UEL) Viviane de Melo Resende (UnB) Viviane S.V. S. Ramalho UnB) Comissão de Publicação do PHPP II Sílvio de Almeida Toledo Neto (Presidente, USP) José da Silva Simões (USP) Sanderléia Roberta Longhin (UNESP) Patrícia de Jesus Carvalhinhos (USP) Revisão dos Abstracts Verena Kewitz (USP) Capa: Edifício Martinelli, Centro de São Paulo, primeiro arranha-céu da cidade. Foto da Capa: Flávio Morbach Portella (2010) Copyright © 2015 LABORATÓRIO EDITORIAL IBILCE Qualquer parte desta publicação pode se reproduzida, desde que citada a fonte. História do português paulista : série estudos / organizado por Sanderléia Roberta Longhin, Verena Kewitz. - São José do Rio Preto : UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto : Cultura Acadêmica Editora, 2015. 221 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-7983-639-8 1. Língua Portuguesa – Estudo e Ensino. 2. Língua Portuguesa – Gramática. 3. Língua Portuguesa – Lexicografia. 4. Língua Portuguesa – São Paulo (Estado). I. Longhin, Sanderléia Roberta. II. Kewitz, Verena. III. Título. CDU – 469.0(81) Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE Câmpus de São José do Rio Preto – UNESP LABORATÓRIO EDITORIAL IBILCE labeditorial@ibilce.unesp.br Apresentação Este volume traz uma coletânea de trabalhos recentemente desenvolvidos no âmbito do Projeto História do Português Paulista II (PHPP II), temático de equipe financiado pela Fapesp (11/51787-5), sob a coordenação geral da Profa. Dra. Clélia Jubran (UNESP/S.J. Rio Preto). O Projeto reúne pesquisadores das três universidades paulistas – USP, UNESP e UNICAMP – no propósito maior de investigar fenômenos relativos à história do português paulista, nas dimensões gramatical, semântica, lexical e textual-discursiva. À semelhança do PHPP I, coordenado pelo Prof. Dr. Ataliba Castilho, de 2006 a 2010, o PHPP II é constituído por dez subprojetos que se assentam na área de Linguística Histórica, centrados nos objetivos de (a) coletar, organizar e disponibilizar corpora diacrônicos do português paulista, de modo a apoiar pesquisas sobre essa variedade; (b) analisar tais corpora em três eixos: (i) estudo da variação e mudança gramatical, das perspectivas funcionalista, cognitivista e gerativista, com ênfase nas classes de palavras e nas construções sintáticas; (ii) estudo da formação da variedade culta paulista e da difusão da variedade popular na região do Médio Tietê, em paralelo ao traçado sócio-histórico do português paulista; (iii) estudo de gêneros discursivos e de processos de construção textual, sob as perspectivas crítico-discursiva e textual-interativa. Para organização deste volume, o quarto da Série Estudos, contamos com uma comissão científica que avaliou e indicou a publicação dos textos aqui reunidos. Cada um dos textos submetidos à publicação na Série Estudos foi avaliado por dois especialistas, que emitiram pareceres de mérito, seguindo as normas estabelecidas pela Comissão de Publicação, responsável pelo gerenciamento das publicações. O conjunto selecionado, um total de oito textos, contempla pesquisas que estão sendo desenvolvidas nos seguintes subprojetos: Tipologia e história das construções gramaticais em perspectiva funcional; Retrato sociolinguístico da variedade culta paulistana; História e variedade do português paulista às margens do Anhembi e Gêneros jornalísticos impressos: historicidade, constituição e mudança em uma perspectiva crítico-discursiva. No texto A rede de construções com o verbo ‘agarrar’ em português: emergência e relação de herança, Angélica Rodrigues e Carolina M. Coelho Marques investigam a relação de herança entre quatro construções formadas com o verbo agarrar, e defendem que a semântica básica de agarrar é mapeada metaforicamente na semântica das demais construções. As autoras argumentam que, embora a teoria da gramaticalização explique as mudanças experimentadas por agarrar, em que o verbo passa a integrar construções mais gramaticalizadas, não é possível dispô-las num cline unidirecional. Assim, para captar as relações entre as construções, propõem uma rede construcional. No texto A construção ‘quase (que)’ e a codificação sintática de intenções, Priscilla de Almeida Nogueira analisa, à luz de princípios funcionalistas, a construção quase (que), estabelecendo uma correlação entre etimologia, padrões de uso, expressão da (inter)subjetividade e codificação sintática. A autora mostra que os diferentes padrões de quase (que), fundados em graus de subjetividade, têm em comum a polaridade negativa e o traço irrealis, fundamentais para a mobilização dos mecanismos envolvidos na codificação de intenções. No texto Vocabulário do samba rural paulista: primeiros resultados, que aborda características lexicais do Samba Rural Paulista, num quadro teórico lexicológico e discursivo, os autores Mário Santin Frugiuele e Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida focalizam a produção de sentidos e os registros da memória coletiva provenientes da escolha de duas unidades lexicais, sambeiro e sambador, em oposição à forma sambista. Evidenciam uma distinção significativa entre a escolha lexical feita por participantes de modalidades específicas desamba, sendo possível estabelecer oposições entre o samba atualmente desenvolvido em todo Brasil à secular prática dos sambadores e sambeiros paulistas de outrora. O texto Precisa-se de “brancos” para trabalhar: um estudo crítico social dos anúncios de emprego de São Paulo do século XIX, de Kelly Cristina de Oliveira, prioriza os anúncios de emprego veiculados no jornal Correio Paulistano, no século XIX, com o objetivo de analisar as escolhas lexicais referentes aos requisitos para contratação dos trabalhadores. O estudo revela que os anunciantes utilizam-se de critérios subjetivos que denotam relações desiguais de poder entre patrões e operários, acentuando a desigualdade social entre brancos e negros. Na sequência, o texto Sistema de transitividade como mecanismo de representação de LGBT no discurso da ‘Folha de S. Paulo’, de Iran Ferreira de Melo e Maria Lúcia da C. V. de Oliveira Andrade, traz uma investigação, no quadro teórico da Linguística Sistêmico-funcional, sobre o modo como o público LGBT é representado nos textos do jornal Folha de S. Paulo. Para tanto, os autores descrevem os recursos léxico-gramaticais como fonte potencial para as representações sociais. Concluem que o jornal contribui para a produção de significados que alimentam o tratamento hostil e estigmatizante historicamente dirigido a esses atores sociais. Por outro lado, o texto A mobilização da voz do/a leitora/a na imprensa de bairro paulistana: uma abordagem introdutória, de Paulo Roberto Gonçalves Segundo, privilegia a imprensa de bairro paulistana. Assumindo uma perspectiva sistêmico-funcional, o autor enfoca a correlação entre a estrutura retórico- teleológica e os aspectos concernentes à negociação intersubjetiva entre a voz autoral, a comunidade leitora e o periódico. O estudo mostra que os textos instanciam, preferencialmente, julgamentos negativos de estima e sanção social, por meio de modelos textuais críticos e exortativos, como forma de enquadrar a exigência de ações práticas de instituições sociais no que tange à solução dos problemas comunitários. O texto Em busca das estratégias discursivas de expressão ideológica dos jornais Folha de S. Paulo e Diário de S. Paulo no contexto de movimentos sociais atuais, de Paula S. Gonçalves-Morasco, aborda o gênero notícia em dois jornais da cidade de São Paulo, com o propósito de examinar comparativamente diferenças nas estratégias discursivas, em particular quanto à informação ideologicamente marcada. Mediadas por um quadro teórico que alia discurso e ideologia, as conclusões apontam para a existência de ideologias preconceituosas em relação às minorias. Fecha o livro o texto Retórica e dominação: as eleições retratadas nos grandes jornais paulistas, de Fábio Fernando Lima, que analisa as estruturas responsáveis pelo estabelecimento das relações interpessoais e as intersecções destas com a persuasão, no noticiário de temática eleitoral de jornais paulistas, a partir de recorte longitudinal que abarca publicações dos séculos XIX ao XXI. O autor aborda, sobretudo, a manifestação de ideologias e a busca por consensos. Sanderléia Roberta Longhin Verena Kewitz Organizadoras SUMÁRIO Capítulo 1 Angélica Rodrigues; Carolina M. Coelho Marques. A rede de construções com o verbo agarrar em português: emergência e relação de herança ........................................................................... 09 Capítulo 2 Priscilla de Almeida Nogueira. A construção quase (que) e a codificação sintática de intenções.................................................... 33 Capítulo 3 Mário Santin Frugiuele; Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida. Vocabulário do samba rural paulista: primeiros resultados........... 64 Capítulo 4 Kelly Cristina de Oliveira. Precisa-se de “brancos” para trabalhar: um estudo crítico social dos anúncios de emprego de São Paulo do século XIX........................................................................... 92 Capítulo 5 Iran Ferreira de Melo; Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade. Sistema de transitividade como mecanismo de representação de LGBT no discurso da Folha de S. Paulo ......................................................................................................... 112 Capítulo 6 Paulo Roberto Gonçalves Segundo. A mobilização da voz do/a leitor/a na imprensa de bairro paulistana: uma abordagem introdutória ...................................................................................... 145 Capítulo 7 Paula de Souza Gonçalves-Morasco. Em busca das estratégias discursivas de expressão ideológica dos jornais Folha de S. Paulo e Diário de S. Paulo no contexto de movimentos sociais atuais ......................................................................................................... 176 Capítulo 8 Fábio Fernando Lima. Retórica e dominação: as eleições retratadas nos grandes jornais paulistas........................................... 192 9 A REDE DE CONSTRUÇÕES COM O VERBO AGARRAR EM PORTUGUÊS: EMERGÊNCIA E RELAÇÃO DE HERANÇA Angélica RODRIGUES 1 Carolina Medeiros Coelho MARQUES 2 ABSTRACT: This paper aims to discuss the inheritance relations among four different types of constructions formed by the verb agarrar (to grab) in contemporary Brazilian and European Portuguese: the Transitive Construction, the Paratactic Construction and the Inceptive Construction. We posit that the occurrence of the verb agarrar in these four constructions is due to the movement metaphor, as the basic semantics of agarrar in the Transitive Construction is mapped on the semantics of the other constructions. Although grammaticalization can explain the changes through which the verb agarrar has undergone in order to be used in more grammaticalized constructions, it is not sufficient to elucidate why these constructions interact, for we cannot link them to a unidirectional cline. We suggest that the semantics of the movement of bringing something closer, inherent to the verb agarrar, interacts with the constructions in different ways, which leads us to propose a constructional network in an attempt to capture the relationships among these constructions. KEYWORDS: Inheritance relations, constructions, grammaticalization, Portuguese. Introdução Neste capítulo, propomos uma análise de diferentes tipos de construções com o verbo agarrar, com o objetivo de compreender o tipo de relação que se estabelece entre elas. Partindo incialmente de duas propostas que oferecem, cada uma a seu modo, modelos explicativos para a relação inter-construcional, a saber, a gramaticalização (HOPPER; TRAUGOTT, 2003) e a relação de herança (GOLDBERG, 1995), concluímos, por um lado, que uma trajetória unidirecional de mudança, como preconizam os estudos em gramaticalização, não se aplica às construções em foco neste capítulo, embora, possamos observar mudança no estatuto categorial do verbo agarrar, e, por outro, que a semântica de todas as construções com agarrar converge para um sentido básico desse verbo, sendo assim motivadas e vinculadas por uma relação metafórica. Serão consideradas, neste capítulo, quatro construções, a saber, Construção Transitiva, Construção Transitiva Não-canônica, Construção Paratática e Construção Inceptiva, formadas a partir do verbo agarrar 3 em português brasileiro (PB) e europeu (PE). 1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Departamento de Linguística, Araraquara, São Paulo, angelica.rodrigues@fclar.unesp.br 2 Universidade Federal de Triângulo Mineiro, Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais (IELACHS), Uberaba, Minas Gerais, carolinamedeiros@terra.com.br 3 Alémde agarrar, os verbos pegar e catar também podem integrar essas construções. 10 Nosso objetivo principal é, por um lado, mostrar como os valores semânticos do verbo agarrar interagem com todas as construções em destaque e, por outro, propor uma rede construcional representativa das relações de herança entre essas construções. A identificação e classificação dessas construções foram feitas a partir de uma análise qualitativa dos dados coletados de três corpora, sendo eles o Corpus do Português, o corpus organizado por Leosmar A. Silva e a ferramenta de busca do Google. Ao trabalhar com esses três tipos de corpora, interessa-nos mostrar também a presença dessas construções nas duas variedades do português. Recuperamos, principalmente a partir de Goldberg (1995), as discussões sobre relações de herança entre construções e sobre a interação entre verbos e construções. Também retomamos as contribuições de Hopper e Traugott (2003 [1993]), Bybee (2010) e Traugott (2003) acerca da emergência de construções via gramaticalização. Mostraremos que, embora as diferentes construções com agarrar apresentem graus diferentes de gramaticalização, a relação entre elas não se explica apenas por esse processo de mudança unidirecional, podendo ser mais bem representada por uma estrutura radial. Em seguida, apresentamos a descrição dos quatro tipos de construções com agarrar, destacando suas propriedades estruturais e funcionais, bem como nossa proposta de rede construcional para as construções com agarrar. Finalmente tecemos nossas considerações finais acerca do estudo empreendido. Construções: emergência e relações de herança Seja numa perspectiva diacrônica e/ou sincrônica, os estudos de gramaticalização oferecem inúmeras evidências de construções que desenvolvem funções gramaticais ou, se já gramaticalizadas, se tornam ainda mais gramaticais. A definição clássica de gramaticalização oferecida por Hopper e Traugott (2003 [1993]) e pelos trabalhos mais recentes de Traugott (2009) pressupõe que novas construções (com nova função gramatical) na língua podem se desenvolver a partir de construções pré-existentes. É consenso entre os estudiosos dos processos de gramaticalização que essa relação entre construções menos e mais gramaticalizadas pode ser capturada por continuum ou cline, uma vez que se assume que a mudança em gramaticalização é unidirecional. Unidirecionalidade, para Hopper e Traugott (2003, p. 100), é a forte tendência, verificada translinguisticamente, de que formas gramaticalizadas emergem a partir de formas menos gramaticalizadas e não o contrário. Todavia, os autores salientam que nem todos os casos de gramaticalização envolvem mudança em um único cline. Craig (1991 apud HOPPER; TRAUGOTT, 2003, p. 114), por exemplo, propõe o termo 11 “poligramaticalização” para se referir ao processo pelo qual uma única forma desenvolve diferentes funções gramaticais em diferentes construções. A proposta de poligramaticalização é interessante, mas nunca foi profundamente explorada nos trabalhos sobre gramaticalização, que priorizam, na sua grande maioria, a elaboração de uma trajetória de gramaticalização que seja unidirecional. Ademais, embora vários autores ressaltem a necessidade de rever esse pressuposto, a proposição de que formas gramaticalizadas ou em gramaticalização sofrem “dessemanticização”, entendida como “perda” de substância semântica, pode favorecer a interpretação de que as mudanças em gramaticalização envolvem basicamente aspectos sintáticos. A esse respeito, Hopper e Traugott (2003, p. 94) declaram que, nos estágios iniciais de gramaticalização, mais do que “desbotamento” semântico, o que se observa é um enriquecimento pragmático associado às formas em gramaticalização. Essas questões acerca do desenvolvimento de construções são retomadas em nossa análise das construções com o verbo agarrar, já que reconhecemos evidências de um processo de gramaticalização, embora seu desenvolvimento não seja compatível com uma trajetória unicamente unidirecional. Compreendemos que a semântica do verbo agarrar contribui para a emergência de todas as construções, o que, portanto, reforça a hipótese de Hopper e Traugott (2003) acerca do princípio de dessemanticização. Nossa conclusão é a de que para entender a relação entre essas construções, é preciso considerar que a vinculação entre elas também se dá por aspectos semânticos, que envolvem uma motivação metafórica. Partindo de uma perspectiva totalmente desvinculada dos estudos sobre mudança linguística e, principalmente, sobre gramaticalização, Goldberg (1995, p. 67) assume, dentro do paradigma da Gramática das Construções, que construções estão ligadas por relações de herança, de modo que a construção A motiva a construção B sse B herda de A. Ou seja, nas relações de herança, propriedades particulares de uma dada construção podem ser motivadas por outra construção. Dentre os quatro tipos de ligação de herança propostos, a autora (GOLDBERG, 1995, p. 81) descreve que numa ligação de extensão metafórica (IM), duas construções são relacionadas metaforicamente via correspondência entre domínios semânticos, de forma que a semântica da construção dominante é “mapeada” na semântica da construção dominada via metáfora. Embora o modelo de Goldberg acerca das relações de herança não tenha sido proposto para tratar de fenômenos de mudança, baseamo-nos nas reflexões da autora na medida em que apresentam para nós uma possibilidade de análise das construções com agarrar e podem complementar nossa análise sobre a emergência 12 e desenvolvimento de construções mais gramaticalizadas a partir de construções menos gramaticalizadas. Sustenta nossa perspectiva de análise a percepção de que existe uma motivação, no sentido de Lakoff (1987), para a emergência de novas construções a partir da semântica básica do verbo agarrar em construções transitivas (menos gramaticalizadas). Segundo Lakoff (1987), incorporar a motivação à gramática significa dizer que os elementos do sistema influenciam-se mutuamente mesmo quando não estão literalmente interagindo. Ou seja, os falantes buscam regularidades e modelos e tendem a impor regularidades e modelos quando estes não estão prontamente disponíveis. As construções com agarrar Considerando o uso do verbo agarrar nas construções Transitiva, Transitiva Não-canônica, Paratática e Inceptiva em português brasileiro (PB) e europeu (PE) e as reflexões apresentadas em Coelho (2013), assumimos que essas construções estão interligadas numa rede construcional. As construções transitiva, paratática e inceptiva, nas quais foi identificada a ocorrência do verbo agarrar, apresentam, respectivamente, a seguinte estruturação sintática: [Vagarrar COMPL], [V1agarrar (econj) V2fin] e [V1agarrar (aprep) V2inf]. Todas são construções, tal como o termo é conceituado por Goldberg (1995), correspondem a um pareamento de forma e significado. Essas construções podem ser analisadas em termos de processos de gramaticalização, uma vez que o verbo agarrar é usado como verbo pleno na Construção Transitiva, mas tem seu estatuto categorical alterado quando usado na Construção Transitiva Não-canônica e principalmente nas construções Paratática e Inceptiva, em que observamos mudanças relacionadas a decategorização, compatíveis com gramaticalização. Apresentamos na Figura 1 a rede construcional das construções com agarrar: 13 Figura 1: Rede construcional do verbo agarrar Nossa proposta é de que em todas essas construções está preservado um significado de movimento que as conecta em termos de uma relação de herança de extensão metafórica. Antes de mostrar mais especificamente a configuração dessas relações de herança, exploraremos a semântica do verbo agarrar,para depois apresentar as propriedades individuais de cada construção. Etimologia do verbo agarrar O verbo agarrar tem origem, segundo os dicionários etimológicos de Bueno (1963) e Cunha (1982), no vocábulo garra, cujo significado é “unha aguçada e curva das feras e aves de rapina”, que, por extensão, assumiu o significado de “unhas, dedos, mãos” e, ainda, “ânimo forte, fibra”. A extensão de usos do vocábulo garra, da qual resultou sua mudança semântica de “unha aguçada e curva das feras e aves de rapina” para “unhas, dedos, mãos” e “ânimo forte, fibra”, parece ter influenciado a mudança semântica do verbo agarrar, que, a depender do contexto linguístico, pode apresentar o significado de prender com a garra, prender com as mãos ou prender com fibra. Desse modo, dentre os vários usos do agarrar atualmente, o mais antigo e mais básico é o de prender com a garra (unha aguçada e curva das feras e aves de rapina). Os demais significados, de prender com as unhas, dedos ou mãos e de prender com fibra, surgiram por meio de extensões do significado mais básico. E desses é que podem ter surgido aqueles significados ainda mais abstratos, que advêm de casos como: agarrar a ideia, agarrar o sonho e agarrar nojo, que indicam a metaforização do verbo. Esse entendimento pressupõe a aceitação da proposta de Heine et al. (1991) Construção Transitiva [V SN[+CONC]] Construção Transitiva Não-Canônica [V SN[+ABST]] Construção Inceptiva [V1 (PREP) V2] Construção Paratática [V1 (CONJ) V2] 14 que defendem que significados mais abstratos podem ser codificados por termos que apresentam significados mais concretos. A Construção Transitiva com agarrar Segundo Goldberg (1995) e Ferreira (2009), a semântica associada à Construção Transitiva é X causa mudança em Y, em que há dois papéis argumentais, o de agente (X) e o de paciente (Y), especificados sintaticamente, no discurso, pelos papéis participantes de sujeito e objeto, tal como é ilustrado no Quadro 1 a seguir. Semântica CAUSAR MUDANÇA < agente paciente > R: PRED < > Sintaxe v SUJEITO OBJETO Quadro 1: Representação da construção transitiva A análise de Ferreira (2009) do esquema da Construção Transitiva Agentiva é relevante também para a Construção Transitiva com agarrar: na primeira linha, estão “os papéis semânticos dos argumentos na configuração cognitiva evocada pela construção”, na segunda está “o lugar para o predicador linguístico que instanciará materialmente a construção em um uso comunicativo concreto”, “os espaços deixados vagos na terceira e quarta coluna serão preenchidos pelos participantes, que a especificação do predicado há de contribuir”, e a última linha “determina as funções gramaticais atribuídas à fusão de participantes e argumentos na expressão sintática”. Quando instanciada pelo verbo agarrar, a construção transitiva apresenta dois participantes. O primeiro acumula os papéis de agente e sujeito (quem agarra), enquanto o segundo assume, simultaneamente, os papéis de paciente e objeto (o que é agarrado), tal como mostra o Quadro 2 abaixo. 15 Semântica CAUSAR MUDANÇA < agente paciente > R: agarrar < quem agarra agarrado > Sintaxe v SUJEITO OBJETO Quadro 2: Representação da construção transitiva com o verbo agarrar De acordo com Martelotta e Areas (2003, p. 38), no que diz respeito ao sentido da Construção Transitiva, a transitividade parece estar relacionada “ao evento causal prototípico, que é definido como um evento em que um agente animado intencionalmente causa uma mudança física e perceptível de estado ou locação em um objeto”. Tratando-se, mais especificamente, da Construção Transitiva com o verbo agarrar, o sentido decorre de uma mudança de locação do objeto, que pode ser física ou metafórica, indicando o movimento a favor do centro dêitico, já que o ato de agarrar pressupõe o movimento de trazer para si. Tendo em vista os aspectos sintático e semântico da Construção Transitiva do português, aquelas atualizadas com o verbo agarrar, como as ilustradas em (1) e (2), mantêm, do ponto de vista sintático, a configuração Suj V Obj na maioria dos casos, e do ponto de vista semântico, projetam uma mudança de locação dos objetos peixe e ideia, ainda que de modos diferentes. Na ocorrência (1), retirada de um texto ficcional do PB, narra-se o fato de alguns homens estarem tentando agarrar um peixe que estava no rio, ao conseguirem fazê-lo, o peixe, que estava longe, sofre uma mudança de lugar, passando de distante para próximo dos homens que o agarraram. Em (2), ocorrência extraída de um texto ficcional, dessa vez do PE, o complemento verbal tem um valor semântico abstrato, desse modo, não pode ser fisicamente agarrado, porém, ainda assim, há uma mudança de locação, dessa vez metafórica, já que a ideia de casar-se, que estava distante do sujeito, passa a ser cogitada, tornando-se próxima, possível. (1) Talvez também que, indefeso e doente, o houvessem beliscado outros peixes. Quando o agarraram, ainda tentou fugir às mãos que o seguravam e que, rápidas, o tiraram fora d' água, ligando-o entre duas talas de madeira. (Título: Chamada Geral: Contos, de Francisco Inácio Peixoto. Texto ficcional: PB) (2) Havia uma grande lacuna na sua vida, e sentia-se apartado do resto do mundo, como se tivesse crescido a maré e ele ficasse no mar em cima de um rochedo sem ligação com a terra. Ele estava efectivamente na idade de juntar-se. Ia muito seguro no que pensava e bem atento, por 16 isso soube agarrar uma ideia feliz que lhe veio de repente: - A mulher! (Título: Nome de Guerra, de José de Almada Negreiros. Texto ficcional: PE) Dados como esses mostram que, independentemente da natureza semântica do objeto, seja ela abstrata ou concreta, a construção transitiva formada pelo agarrar codifica uma mudança de locação, que pode ser concretamente (1) ou mentalmente (2) realizada. Considerando essa diferença entre as ocorrências (1) e (2), propomos classificá-las de Construção Transitiva e Construção Transitiva Não-canônica, respectivamente. A extensão de usos do verbo agarrar, da qual resultam construções como (2) agarrar uma ideia, indicam a metaforização do verbo. O agarrar, que se originou do vocábulo garra, parece ter seguido um caminho progressivo de metaforização. A extensão de sentidos do vocábulo garra para “unhas, dedos, mãos” e “força, fibra” parece ter influenciado a emergência de outros usos do agarrar: prender com unhas, dedos e mãos (3) e prender com fibra, com força (4). (3) Há-de rir-se ao ver a sua mãe entrar no palco imenso, chamar-me, dar-me uma beijo na testa, tirar da carteira um elástico negro, agarrar com ambas as mãos o meu cabelo. (Título: O filho perdido de Catherine. Texto jornalístico: PE) (4) O Jonas agarrava-a vigorosamente, muito desvanecido com o elogio, e erguia-a sempre que uma curva mais ampla se proporcionava. (Título: Fatal Dilema, de Abel Botelho. Texto ficcional: PE) Desses casos, em que há um sujeito que “agarra” fisicamente algo ou alguém, surgem ocorrências como (5), (6) e (7), em que o verbo passa a selecionar complementos mais abstratos, o que indica sua própria metaforização. Por essa razão, surgem extensões de sentido, como os casos apresentados abaixo, nos quais a experiência física de agarrar é transferida a uma esfera conceptual, em que a ação de agarrar não pode ser entendida a não ser metaforicamente. (5) No momento em que Maria Cândida buscava o refúgio cômododa hostilidade desabrida para deixar de encarar de frente os argumentos para os quais não tinha resposta, a questionadora também se desmandava. Ocorria então que, mesmo furiosa, a mae espertamente agarrava a chance para dizer o que desejava. (Título: Ano de Romances. Texto jornalístico: PB) (6) Me vali de Nossa Senhora das Dores pra não morrer de parto. Não sei se você sabe, mas quase me matou. Eu me encolhi e ela insistiu: - No medo da morte, me agarrei com a santa e fui atendida. (Título: A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz. Texto ficcional: PB) (7) 0 Dr. Rodrigo, homem mais do espaço do que do tempo, agarrou a vida a unha com coragem e, certo ou errado (quem poderá dizer), fêz alguma coisa com ela. E aqui estás tu a simplificar o problema, a olhar apenas um de seus múltiplos aspectos. Pensa bem no que vou te 17 dizer. É um erro subordinar a existência à função. (Título: O Tempo e o Vento, de Eric Verissimo. Texto ficcional: PB) Tendo em vista as nuances semânticas entre as construções transitivas com agarrar, aquelas identificadas como Construção Transitiva apresentam um sujeito [+agente] e [+animado], que age intencionalmente de modo a agarrar um objeto [+concreto], trazendo-o para si, ou seja, causando sua mudança física de locação. Por outro lado, as Construções Transitivas Não-Canônicas são aquelas em que há um sujeito também [+agente] e [+animado], mas que age intencionalmente trazendo metaforicamente para si um objeto [+abstrato]. O complemento de agarrar na Construção Transitiva parece ser mais bem especificado, no nível construcional, como objeto afetado e não como paciente, já que, nessa construção, os complementos do verbo sofrem um afetamento direto pela ação denotada por ele, ou seja, são concretamente agarrados e, por isso, passam por uma mudança física de locação. Portanto, nos referimos ao papel argumental dos sintagmas nominais em posição de complemento, na Construção Transitiva com agarrar, como objetos afetados. O papel argumental dos sintagmas nominais em posição de complemento na Construção Transitiva Não-canônica, por outro lado, é denominado aqui de objeto afetado não-canônico, já que ele não é fisicamente afetado pela ação codificada pelo verbo agarrar. A Construção Transitiva Não-canônica com agarrar A Construção Transitiva Não-canônica mantém a mesma estrutura argumental da Construção Transitiva, selecionando agente e objeto afetado não- canônico, que correspondem aos papéis de sujeito e objeto no nível sintático. Algumas variações dessa estrutura foram identificadas, o que revela que a transitividade do verbo agarrar sofre alteração, já que o complemento tem uma natureza semântica mais abstrata. A Construção Transitiva Não-canônica apresenta três diferentes configurações sintáticas que estão descritas abaixo. As ocorrências (8)-(10) correspondem a cada uma dessas configurações, respectivamente: 1) [SUJ V OBJdireto] 2) [SUJ V OBL] 3) [SUJ V OBJdireto ADJUNTO] (8) Eu expliquei pra ele que tinha feito justamente pra usar daquele jeito e ele falou que não e tal e eu falei pra deixar que eu ia fazer de novo. E refiz as 11 páginas da história. Porque eu queria agarrar a chance. Ele gostou e eu peguei a história. (Título: Mike Deodato. Texto oral: PB) (9) O rápido sucesso alcançado leva-o a desenvolver um projecto ainda mais ambicioso: a 18 criação de um verdadeiro universo de lazer, a que não chega assistir porque desaparece. Mas o seu irmão Roy e a sua equipa agarram no sonho e abrem, em 1971, a Walt Disney World Resort na Florida, um conceito que, em 1992, é exportado para a Europa com o Disneyland Paris. (Título: Waltter Elias Disney. Texto acadêmico: PE) (10) Os homens não têm tempo para pensar. Embebeda-os a esperança de chegar à altura de António de Sousa e agarram-se ao sonho com febre e com força. Divididos não vêem o que para eles, no mundo, se cria. Não sabem que as casas onde moram são impossíveis à vida, não vêem que é preciso lutar para que o mundo possa cair--lhes nas mãos. (Título: O Aço Mudou de Têmpera, de Manuel do Nascimento. Texto ficcional: PE) Nos dados supracitados, a interpretação semântica de agarrar é distinta, já que chance e sonho não são objetos do mundo físico que podem ser agarrados. Casos como esses só podem ser interpretados se transferirmos a experiência física que temos da ação de agarrar a uma esfera conceptual, em que a construção agarrar no sonho, por exemplo, codifique a ação de que Roy e sua equipe tenham tomado a abertura da Walt Disney Word na Flórida como uma meta a ser cumprida. Dessa forma, ao trazer o sonho, que é comumente visto como algo distante, de difícil concretização, para próximo de si, codifica-se a possibilidade de efetivação do mesmo. A partir dos dados coletados, verificamos diferentes significados associados à Construção Transitiva Não-canônica, a saber: acreditar perseverantemente em algo, aproveitar a chance, socorrer-se, tomar atitude e adquirir hábito. 1. Acreditar perseverantemente em algo (11) Os rebeldes haviam dado uma " pausa " até domingo para Mobutu, esperando que ele, com seu Exército em debandada, renunciasse. Mas o presidente ainda parece agarrar-se à esperança de conseguir um possível acordo com os adversários, ou então apenas busca ganhar tempo.. (Título: Rebeldes zairenses iniciam avanço final. Texto jornalístico: PB) 2. Aproveitar a chance (12) Bons apontamentos de um futebol bem jogado, virilidade na procura da bola e a maior determinação na sorte do jogo, caracterizaram o desafio do Restelo em que o Belenenses acabou por justificar plenamente a sua permanência da segunda grande prova do futebol nacional e o árbitro Bento Marques também "agarrou" a oportunidade para mostrar a sua boa forma.. (Título: Taça de Portugal. Texto jornalístico: PE) 3. Socorrer-se, valer-se (13) Me vali de Nossa Senhora das Dores pra não morrer de parto. Não sei se você sabe, mas quase me matou. Eu me encolhi e ela insistiu: - No medo da morte, me agarrei com a santa e fui atendida. (Título: A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz. Texto ficcional: PB) 4. Tomar atitude (14) 0 Dr. Rodrigo, homem mais do espaço do que do tempo, agarrou a vida a unha com 19 coragem e, certo ou errado (quem poderá dizer), fêz alguma coisa com ela. E aqui estás tu a simplificar o problema, a olhar apenas um de seus múltiplos aspectos. Pensa bem no que vou te dizer. É um erro subordinar a existência à função. (Título: O Tempo e o Vento , de Eric Verissimo. Texto ficcional: PB) 5. Adquirir hábito 4 (15) A gente torce, a gente se empolga, e o time joga toscamente contra o Avaí quinta (sem contar a operação do juiz), além de não ter feito os gols, quando mais precisou contra os Bambis. Garrei nojo de blogs de futebol, garrei NOJO 5 ! (16) Já garrei birra dessa loira do filme 6 . (17) Mas em compensação garrei ódio já por 3 tipos! E quando garro ódio, menina, é difícil me fazer mudar de opinião 7 ! Vê-se, nesses dados, que os significados: acreditar perseverantemente em algo, aproveitar a chance, socorrer-se, tomar atitude e adquirir hábito não são acepções do verbo agarrar, mas sim o resultado da interação dos significados dos elementos lexicais com o significado da construção transitiva. Em acordo com o que Goldberg (1995, p. 29) propõe, assumimos que não é necessário estabelecer um novo significado ao verbo a cada nova construção em que ocorra, bastando considerar que o seu sentido básico se adéqua ao significado da construção. No caso da Transitiva Não-canônica com agarrar, propomos que é a partir da interação do sentido básico de agarrar de prender com a garra, habilitado na Construção Transitiva, codificadora de um evento causal prototípico, que surgiram os significados de acreditar perseverantemente em algo, aproveitar a chance, socorrer-se, tomar atitude e adquirir hábito.Cumpre ressaltar que nas ocorrências (11) a (14), o complemento de agarrar é dotado de uma carga semântica positiva, assim, agarrar a esperança, a oportunidade, a santa, a vida implica trazê-los para si, passando de um estado ruim para outro melhor. Em (15) a (17), no entanto, ocorre o contrário, já que agarrar nojo, birra e ódio, implica trazer para si sentimentos de carga negativa, que não são de interesse do sujeito. Salientamos que, nesses últimos sentidos, o sujeito da Construção Transitiva Não-canônica é experienciador e não agente, pois não tem total controle sobre a ação. Verificamos, na Construção Transitiva Não-canônica, uma maior coesão entre o verbo e seus complementos, principalmente nos casos cujo significado é 4 Os dados de (16) a (18) foram coletados por meio do mecanismo de busca do Google. 5 Retirado de http://espacosrtaindependente1001.wordpress.com/category/geral-sobre-mim/. 6 Retirado de http://twitter.com/AVENAoficial/statuses/197141233230032896. 7 Retirado de http://bigviciobbb.blogspot.com.br/2011/01/garrei-odio.html. 20 adquirir hábito. As construções agarrar nojo, agarrar birra, agarrar ódio parecem ter, em todos os contextos, o mesmo significado, o que favorece sua classificação como construções idiomáticas (CROFT, 2001, p. 15). É preciso acrescentar que nas construções do tipo agarrou nojo e agarrou birra, por exemplo, o verbo agarrar sofre alteração categorial, sinalizando um processo de gramaticalização. Nessas construções, agarrar não é mais usado como um verbo pleno, mas apresenta propriedades de verbo-suporte. Segundo Neves (2000, p.54), os verbos-suporte apresentam as seguintes propriedades: i. forma “com seu complemento (objeto direto), um significado global, geralmente correspondente ao que tem um outro verbo na língua”; ii. funciona “como instrumento morfológico e sintático na construção do predicado”; iii. “funciona, em outros contextos, como verbo pleno”; iv. “reduz a valência de um predicado, já que é mais fácil deixar de se exprimir o complemento de um nome do que o complemento de um verbo”; v. “o uso da construção sintática verbo-suporte + objeto permite obter-se maior adequação comunicativa”; vi. pode “configurar um aspecto verbal particular”. Essas propriedades são compatíveis com o verbo agarrar em construções como (15)-(17), principalmente por, nesse contexto, formar, com o objeto, um “significado global”. É interessante, ainda, retratar uma propriedade, em especial, listada por Neves (2000), a de que o verbo-suporte pode “configurar um aspecto verbal particular”. De fato, observamos que a Construção Transitiva Não-canônica cujo significado é adquirir hábito, apresenta uma função aspectual, indicando o início de uma ação. Apesar de as construções agarrar nojo, agarrar birra e agarrar ódio seguirem a estrutura formal das construções transitivas, [V COMPL], apresentam uma função aspectual inceptiva, indicando o início das ações de enojar, embirrar e odiar. Tendo isso em vista, essas ocorrências parecem estar, de alguma forma, relacionadas às Construções Inceptivas, que, como veremos adiante, são responsáveis pela marcação de aspecto inceptivo. A Construção Paratática com agarrar As construções paratáticas são construções que apresentam a configuração sintática do tipo [V1fin (econj) V2fin], representada em (18): (18) A gente aqui não usava isso, de pedra. Era um comedouro, tinha uma divisão ao meio, uma tábua: desta parte aqui era a água e daqui era o comer. E despois eles já começavam (..) a roer aquilo e a coisa, a gente agarrava, fazia em cimento, para eles beberem a água. (Título: Cordial: ALC30. Texto oral: PE) 21 Segundo Rodrigues (2006), construções desse tipo são recorrentes em várias línguas e os verbos que ocupam a posição V1 são sempre os verbos ir, vir, chegar e pegar (e seus cognatos). Encontramos, em Bechara (2006), Travaglia (2003) e nos dicionários Aulete (1980), Aurélio (2010) e Houaiss (2004), referências ao verbo agarrar em construções paratáticas, embora elas não sejam assim denominadas pelos autores. Bechara (2006) e Travaglia (2003) defendem posições diferentes acerca da classificação do verbo em casos como (19), apresentado por Bechara (2006) e (20), apresentado por Travaglia (2003). Apesar de não afirmá-lo categoricamente, para o primeiro, trata-se de um verbo auxiliar, já para o segundo, trata-se de um verbo serial. (19) agarro e escrevo (20) Aí ele (a)garrou e começou me xingar sem razão Nos dicionários Aulete (1980), Aurélio (2010) e Houaiss (2004), apresenta- se, em comum, a informação de que o agarrar indica uma tomada de decisão súbita, assunção, portanto, que parece ir de acordo com a concepção de que o V1 seja um verbo auxiliar de aspecto inceptivo, tal como Bechara (2006) propõe. Contudo, de acordo com Rodrigues (2006), as construções paratáticas apresentam “propriedades sintáticas que extrapolam os limites da auxiliarização” e, além disso, não são responsáveis pela marcação de informação aspectual. Por isso, em outra direção, assumimos, com Longhin-Thomazi e Rodrigues (2011), que a Construção Paratática possui uma função pragmática, sendo responsável pela marcação de foco. Em (21), um senhor conta que, quando criança, sua mãe havia feito uma calça de linho para que ele pudesse sair em companhia da vizinha, porém, diz que esse tecido incomodava-o demais e, por isso, voltou para casa. Vê-se que a Construção Paratática introduz uma informação, expressa semanticamente em V2, que contrasta com a informação e a pressuposição instauradas previamente no discurso. (21) INF2 E havia outra, que está lá em baixo agora a mãe - até coitada não está muito bem -, chamam-lhe Ana. E aquela (..) mandava-me assim duma certa maneira; e eu começava logo a mandar vir com ela e não ia. Mas um dia fui então. E a minha mãe falecida preparou-me as tais calças. Mas o raio das calças, aquilo picava-me como tudo! INF1 (..) INF2 E eu agarrei e vim de lá.. E que é que eu fiz? Dei-lhe umas facadas às calças; e atirei com elas trás do arcaz, como se dizia naquele tempo. Agora é uma caixa, mas era o arcaz. 22 (Cordial: CTL06. Texto oral: PE) A função dessa construção é, portanto, introduzir uma informação que, por um lado, é contrastiva, se consideramos o discurso precedente, e, por outro, é mais saliente, se consideramos que a Construção Paratática veicula uma informação nova, que cancela as pressuposições habilitadas anteriormente no contexto discursivo. Desse modo, entendemos que a Construção Paratática possui uma função pragmática. Segundo Longhin-Thomazi e Rodrigues (2011, p. 126), as Construções Paratáticas “são parcialmente motivadas, uma vez que refletem a separação de pressuposição (Suj + V1) e foco (V2) em uma estrutura bi-clausal, aparentemente de coordenação” e “alocam a expressão do foco, e nenhum outro elemento, na segunda parte da construção [...], colocando o foco, pois, na sua posição sintática canônica para informação nova ou contrastiva”. Nesse sentido, V1 e V2 constituem uma unidade semântica, pois, apesar de estarem morfologicamente separados, codificam um único evento, que é sempre descrito pelo segundo verbo. Assim, V1, no contexto da Construção Paratática, não exerce a função de verbo lexical pleno, perdendo sua autonomia sintático- semântica e passando a constituir, com V2, uma unidade de forma e sentido utilizada em situações discursivo-pragmáticas específicas. Como parte integrante da Construção Paratática, o verbo agarrar sofre alterações de suas propriedades semânticas e sintáticas. No que tange à primeira, agarrar não é mais usado no seu sentido básico de trazer para si, desenvolvendo, no contexto da construção, uma função pragmática de introduzir uma informação nova ou contrastiva. Todavia,argumentaremos mais adiante que o valor semântico de agarrar não é irrelevante para a Construção Paratática. Agarrar também sofre decategorização, que, conforme proposto por Hopper (1991), consiste na perda ou neutralização das marcas morfológicas ou dos privilégios sintáticos da forma fonte. Portanto, na Construção Paratática, agarrar perde transitividade, já que deixa de subcategorizar complemento, e oferece restrições quanto à negação, pois a negação, nessa construção, é sempre adjacente a V2, como se vê em (22). (22) O madeirense emigrava para o novo mundo (América, Africa, Austrália) e fazia o raciocínio: " eu vou para um lugar onde um dia possa ser patrão e não para continuar a ser empregado dos outros ". Isto fez com que muita gente se agarrasse e não tivese uma filosofia de regresso. (Título: Alberto Joao Jardim. Texto oral: PE) A Construção Paratática com agarrar mostrara-se mais frequente na variedade europeia do português se comparado com a variedade brasileira, 23 contudo, parecem ocorrer em menor número em contraste com as construções com os verbos ir e pegar. Coelho (2010) mostra que, no PE, enquanto as paratáticas formadas pelo verbo ir representam 65,3% das ocorrências, os casos com agarrar constituem 6,9% das ocorrências. Em PB foi identificado um único caso de Construção Paratática com agarrar, ilustrado em (23). (23) Inf. Aí eu fui lá e embarguei a… a cerca… qu/eu já tinha feita a metade p/esse tii meu fazê a outra… Doc. Sei Inf. Qui ( ) aí ele:::… ele num feis… ele vendeu… quem comprô dele ia fazê né… época de ano tinha passado da metade… tomano metade do meu terreno Doc. Nossa… Inf. Aí eu num dexei… ( ) falei qui:::… i vortô lá… não tem que/cê reto… falei então cê sorta um pedaço do qu/é seu… memo tanto… i pra podê… Doc. Compensá né? Inf. Pudê pegá o mesmo tanto do meu… aonde dé… a linha… mais… aí… aí o mió era retificá que tinha os mapa tudo certim né… registrado? Doc. É Inf. É… mais aí num… na lei aí… não achei froxo qu/ele não… que todo lugar qu/ele ia… qu/eu ia tava conversado… qu/ele era rico né… e eu era pobre aí eu garrei vendi lá… vendi lá e mudei pra/qui… eu já tinha casado… já tava… já tinha meus fii… já foi em sessen… sessenta e treis qu/eu vendi…aí comprei outro terreno lá no cavalo quemado… mais naquele tempo era custoso dimais meu sogro mudô pra lá era difici da gente::: transitá NE? (Inquérito nº 12) A marcação de informação focal ou remática está, geralmente, vinculada à ideia de novidade informativa, assim, a informação considerada nova tende a ser focalizada ou por estruturas gramaticais específicas, como a Construção Clivada e a Paratática, ou por contornos prosódicos. No dado (23), por exemplo, o enunciado eu garrei vendi lá introduz uma informação que contraria a expectativa gerada pelo discurso anterior de que mesmo com os problemas para estabelecer os limites das suas terras com as do vizinho, o senhor não iria deixá-lo tomar parte de seu terreno, desse modo, sua intenção parecia ser a de manter suas terras, não a de vendê-las. A Paratática garrei vendi, portanto, introduz uma informação nova (venda das terras), que é focalizada pelo falante por contrastar com o discurso anterior. Apesar de o foco ser frequentemente vinculado à novidade informativa, alguns autores, como Lambrecht (1996) e Ilari (1992), propõem que uma informação dada/velha também pode ser focal. Para Lambrecht (1996), a estrutura informacional de uma sentença revela como o conteúdo das proposições é articulado pelo falante, que organiza a informação tendo em vista as hipóteses por ele criadas sobre o conhecimento do seu ouvinte. Segundo o autor estão em jogo, no momento da enunciação, dois tipos de proposições: a pressuposição e a asserção, que correspondem à proposição que o falante considera que seu ouvinte 24 já conhece e à proposição que o ouvinte passa a conhecer, respectivamente. Para Lambrecht (1996, p 207), foco é “a porção da proposição que não pode ser tomada como certa no momento da fala”, isto é, “o elemento imprevisível ou pragmaticamente não recuperável na sentença”. A partir do conceito de Lambrecht (1996), portanto, o foco só pode ser apreendido no discurso, pois só no contexto discursivo é possível verificar quais informações são pressupostas e quais são novas/contrastivas. Para Ilari (1992), mesmo que uma informação tenha sido introduzida por meio de uma expressão remática, não quer dizer que ela se manterá ativa indefinidamente. Desse modo, uma informação dada pode ser reintroduzida no discurso como remática. Dentre os dados de construções paratáticas com agarrar, (24), abaixo, funciona como uma evidência da possibilidade levantada por Lambrecht (1996) e por Ilari (1992). Nessa ocorrência, o falante conta que, em pagamento à ajuda que recebeu de uma mulher, entregou-lhe sete contos de réis e disse que voltaria mais tarde para dar-lhe mais dinheiro. Ele reintroduz, por meio da construção paratática agarrei e digo, a informação de ter dito que voltaria para dar mais dinheiro, dessa vez para o jantar. Sua intenção, ao retomar essa informação, parece ser destacar sua atitude generosa de ter dado uma quantia alta de dinheiro à mulher e que ainda voltaria com mais, para pagar-lhe o jantar. (24) Fiquei só com um conto de réis, agarrei em sete contos e dei-lhos. Ela não queria pegar mas eu meti-lho na mão e disse: "Olhe, isto é para o almoço. Para o jantar ainda cá estou. Isto é só para o almoço". Naquele tempo, era muito dinheiro! INQ1 Pois. INQ2 Pois. INF Agarrei e digo assim: "Olhe, isto é para o almoço, que para o jantar ainda eu cá estou". (Título: Cordial: COV12. Texto oral: PE) No que diz respeito às propriedades formais, as construções paratáticas com o verbo agarrar são formadas por, no mínimo, dois verbos, V1 e V2, que partilham o mesmo sujeito, cujos traços são [+ animado] e [+ agente]; e as mesmas flexões modo-temporais e número-pessoais. Contudo, o dado (24), em que V1 e V2 estão flexionados em tempos diferentes, evidencia uma propriedade específica das construções paratáticas do PE, já que em PB casos como esse não foram identificados. Nesse dado, os verbos agarrar e dizer compartilham as flexões de modo (indicativo), número (singular) e pessoa (1ª), mas não a de tempo, o V1 está no pretérito perfeito e o V2 no presente. 25 A Construção Inceptiva com agarrar A Construção Inceptiva apresenta a seguinte configuração sintática: [V1fin (aprep) V2inf]. Essa construção também apresenta, assim como as paratáticas, dois verbos, V1 e V2, contudo, nesse caso, o primeiro verbo, na forma finita, é um verbo auxiliar e o segundo, no infinitivo, é o verbo principal, que podem estar ligados pela preposição a (tipo não encontrado em nosso corpus, mas registrado na literatura) ou justapostos, conforme (25). Trata-se, portanto, de uma construção que envolve um processo de auxiliarização que veicula valores aspectuais, sendo, desse modo, responsável pela marcação do aspecto inceptivo, como já descrito por Castilho (1967), Travaglia (2003) e Sigiliano (2008, 2013). (25) Todo mundo ficô apavorado né… qu/eu fiquei muito ruim chorei demais… num sabia que/tinha contecido… as meninada tudo garrô gritá:::… minha ficô pavoradinha… que… machuquei né? Nossa Senhora dor mais triste que tem… ai::: credo… (Inquérito nº 3. Góias, PB) A presença/ausência da preposição a parece não interferir no significado aspectual da construção, uma vez que ambas codificam o início da ação expressa pelo V2. Casos como (26), inclusive, em que há a ocorrência da preposição de ao invés da preposição a, também mantêm o aspecto inceptivo. Sigiliano (2013) afirma que o uso da preposição de associada a um V1 em construções inceptivas corresponde a um uso mais arcaico,já que não é observado atualmente. (26) Este G. é um rapazola de que já falei, e não tem nada de louco. Simplesmente sujeito a ataques. A Esse tempo, agarrou de aborrecer-me muito, tenho feito muitos obséquios. Este pequeno tem de sair daqui, por força; é muito moço e não tem cura; mas terá um mau destino. (Título: O cemitério dos vivos, de Lima Barreto. Texto ficcional: PB) Algumas gramáticas do português, como Said Ali (1964) e Cunha e Cintra (1988), destacam como auxiliares os verbos ter, haver, ser e estar, apenas em Castilho (2010) encontramos referência a outros verbos, dentre os quais destacamos o agarrar. Merlan (1999), no que se refere ao PE, trata de casos como os ilustrados em (27) e (28), chamados por ela de perífrases hipotáticas com valor ingressivo 8 , e, sobre eles, diz que sua estrutura corresponde a um verbo auxiliar de aspecto + preposição + verbo básico no infinitivo. A autora exemplifica esses casos com os seguintes dados: (27) Não vou lá, que eu pego-me a rir. 9 8 Usaremos neste capítulo os rótulos “inceptivo” e “ingressivo” como sinônimos. 9 Merlan (1999) informa que os exemplos apresentados em seu texto foram “construídos – espontaneamente ou a solicitação – por falantes nativos do português, de várias idades, nível social e cultural”, enquanto outros “foram recolhidos de duas colectâneas de contos populares portugueses”. 26 (28) Eles entraram no meu quarto e pegaram a conversar. Embora Merlan (1999) proponha que somente o verbo pegar pode funcionar como auxiliar de aspecto ingressivo em PE, a ocorrência (25) mostra que, no PB, o verbo agarrar pode instanciar construções auxiliares de valor aspectual. O aspecto verbal, para Castilho (2010, p. 417), é “uma propriedade da predicação que consiste em representar os graus do desenvolvimento do estado de coisas aí codificado, ou seja, as fases que ele pode compreender.” Dentre as fases que o aspecto verbal pode codificar, encontra-se o que Castilho denomina imperfectivo inceptivo, que, segundo o autor, “expressa uma duração de que se destacam os momentos iniciais.” (CASTILHO, 2010, p. 421). O autor exemplifica esses casos a partir dos verbos começar e principiar: (29) Começou a falar mal de mim. (30) Principiou a falar mal de mim. Nesses exemplos, contudo, a significação inceptiva decorre não só da estrutura sintática da construção, mas também do significado dos verbos auxiliares começar e principiar, cujos significados já codificam o início de uma ação. Por outro lado, em casos com os verbos pegar e agarrar, também lembrados pelo autor, não se verifica o mesmo. Em (31), (32) e (33), segundo Castilho (2010), o significado inceptivo já não advém do significado lexical dos verbos que preenchem a posição V1, uma vez que os verbos pegar e agarrar não indicam, em seus significados básicos de segurar e prender com a garra, o início de uma ação, desse modo, o autor defende que a significação inceptiva, nesses casos, decorre da associação de pegar e agarrar a verbos no infinitivo. (31) Pegou a falar. (32) Garrou a criar uma coisa assim, parecia uma verruga. (33) Garrou a atacar. Contudo, acreditamos que a associação de um verbo finito (V1) a outro na forma nominal infinitivo (V2) não é a responsável pela emergência do significado inceptivo, pois, se assim fosse, qualquer verbo, teoricamente, poderia figurar na construção inceptiva. Seguindo Goldberg (1995), para quem os verbos não são utilizados em construções aleatoriamente, compreendemos que a restrição de verbos que podem instanciar essa construção tem a ver com o seu significado perfilado. Por isso, só podem instanciá-la verbos cujo significado se adéque ao significado inceptivo da 27 construção. Nesse sentido, defendemos que a ocorrência do agarrar na Construção Inceptiva é licenciada por meio da noção de movimento que o verbo codifica, que é compatível com o significado inceptivo, que também codifica um movimento, do qual resulta o início de uma ação. Nesse contexto linguístico, agarrar tem alterados os traços semânticos e sintáticos característicos de seu uso como verbo pleno e passa a integrar uma construção gramatical que exerce uma função gramatical de marcador de aspecto inceptivo. O desenvolvimento de um verbo pleno [+ lexical] para um verbo auxiliar [+ gramatical], como é o caso do agarrar, envolve, primeiramente, segundo Heine (1993), o mecanismo da extensão, por meio do qual o verbo passa a ser usado em um novo contexto. Além desse, são próprios da gramaticalização os mecanismos de dessemantização e decategorização. A alteração de traços semânticos (dessemantização) e a perda das propriedades morfossintáticas do item em gramaticalização (decategorização) são os mecanismos que licenciam a possibilidade do verbo agarrar ocorrer em contextos como o da Construção Inceptiva. Apesar de sofrer alterações semânticas como resultado da sua gramaticalização, na Construção Inceptiva com agarrar, a noção de movimento, inerente ao significado do verbo, se mantém. Esse fato indica, por um lado, a atuação do princípio da persistência (HOPPER, 1991, p. 28) que prevê que, quando uma forma lexical sofre gramaticalização, a forma gramaticalizada preserva alguns dos valores da forma original, o que pode explicar certas restrições semânticas ou sintáticas. Por outro lado, todavia, a correlação semântica entre a Construção Transitiva Não-canônica e a Construção Inceptiva indica que o significado de uma construção pode ser mapeado em outra, revelando uma transferência metafórica entre o domínio das duas construções. Relação entre as construções A partir da análise das construções transitiva, transitiva não-canônica, paratática e inceptiva, concluímos que a metáfora do movimento habilita o uso do verbo agarrar nessas construções, embora o movimento seja codificado de modo diferente em cada uma delas. Na Construção Transitiva, há o movimento prototípico, do qual decorre a mudança física e perceptível de locação de um objeto. Na Construção Transitiva Não-canônica, o movimento de trazer para si é metafórico e implica outra mudança, a do papel semântico, que passa de agente a experienciador. 28 No que diz respeito à Construção Paratática, vemos que, ao contrário da Construção Transitiva, na qual o sujeito age intencionalmente agarrando um objeto de modo a trazê-lo para próximo de si, o sujeito não agarra um objeto, pois o V1, nessa construção, não codifica uma ação separada da expressa pelo V2. Portanto, a leitura de movimento, da qual resulta a mudança de locação (física ou metafórica) de um objeto é bloqueada. Nossa interpretação é que, na Construção Paratática, o movimento é de deslocamento da atenção, ou seja, V1 orienta a atenção do interlocutor, levando-o a considerar V2 como a informação mais relevante/contrastiva. O que licencia, portanto, o uso do verbo agarrar nas construções paratáticas é o movimento inerente a ele, que, nessa construção, interage com o deslocamento da atenção próprio de sua estrutura. Na Construção Inceptiva, por sua vez, a noção de movimento também é codificada, porém de modo diferente do que se vê nas construções transitiva e paratática. Nessa construção, o movimento que subjaz ao verbo não implica a ação de trazer um objeto para próximo de si. O movimento, inerente a agarrar, interage com o significado inceptivo da construção, que codifica o início da ação expressa no V2. Na Construção Inceptiva, ainda, verifica-se que o movimento de iniciar uma ação implica outro, o de mudança de estado do sujeito, que passa de um estado de [- ação] para outro de [+ ação], que pode envolver processos dinâmicos ou mentais 10 . Essa mudança de estado do sujeito também é vista na Construção Transitiva Não-canônica do tipo agarrou a ideia, agarrou a santa, agarrou birrae agarrou ódio, o que parece habilitar uma relação entre a semântica das duas construções, já que ambas codificam o início de uma ação. Rede de herança entre as construções com agarrar Na análise dos quatro tipos de construções formadas pelo verbo agarrar em foco neste capítulo, apontamos que é possível estabelecer uma vinculação semântica entre elas. Não nos parece viável propor, a partir de uma abordagem de gramaticalização como fenômeno unidirecional (HOPPER; TRAUGOTT, 2003 [1993]), um cline que seja suficientemente fiel ao tipo de relação que estamos lidando neste capítulo. Embora compreendamos que essas construções distinguem- se quanto ao grau de gramaticalização, suas configurações estruturais dificultam sua alocação numa trajetória unidirecional. Estamos entendendo que a Construção 10 Por processos dinâmicos e mentais entendemos construções como “agarrei a correr” e “agarrei a pensar”, respectivamente. 29 Transitiva representa o tipo de construção menos gramaticalizado, sendo todas as outras instâncias mais gramaticalizadas de construções, já que observamos, por um lado, alteração das propriedades categoriais e semânticas de agarrar, e, por outro, um aumento da dependência do contexto sintático. Hopper e Traugott (2003, p. 176) propõem, seguindo Givón (1979) que os processos de combinação de cláusulas integram o domínio da gramaticalização e que relações sintáticas mais frouxas são indicativas de menor grau de gramaticalização e relação sintáticas mais fortes refletem um maior grau de gramaticalização. Uma vez que as construções com agarrar exibem diferentes configurações sintáticas, que pressupõem uma gradiência de integração sintática, é possível pensar que as construções com agarrar poderiam ser dispostas em um continuum tendo em vista os graus de integração de cláusulas. Nesse sentido, a Construção Inceptiva apresenta um grau de integração mais forte e seria, portanto, a mais gramaticalizada. A Construção Paratática, que apresenta uma configuração sintática próxima à coordenação, apresenta um grau mais fraco de integração e, desse modo, um grau mais baixo de gramaticalização. Construção Transitiva > Construção Paratática > Construção Inceptiva Apesar de ser possível propor um continuum para as construções com o verbo agarrar em português, percebemos que com ele podemos captar apenas um aspecto das construções em análise, isto é, o aspecto sintático, basicamente. Esse continuum é insuficiente para dar conta da complexa relação de motivação e herança que essas construções parecem estabelecer entre si. Por isso, dispô-las em uma estrutura radial parece-nos ser mais adequado, uma vez que vemos que essas construções inter-relacionam-se de diferentes modos, mas em todas elas depreendemos uma semântica residual do verbo agarrar. Essa relação é licenciada por meio da metáfora do movimento. O movimento, inerente ao verbo agarrar, interage com as construções e é codificado de modos diferentes em cada uma delas, como mostramos no tópico anterior. Todavia, verificamos que a relação de herança entre a Construção Transitiva e a Construção Paratática, e a relação entre a Construção Transitiva e a Construção Inceptiva são de naturezas diferentes. Por isso, representá-las numa estrutura radial parece ser mais coerente do que dispô-las linearmente. A relação entre a Construção Transitiva e a Construção Paratática fundamenta-se, basicamente, na metáfora do movimento. Assim, o movimento 30 subjacente ao verbo agarrar, que na Transitiva corresponde à mudança física de um objeto, corresponde, na Paratática, ao movimento metafórico de direcionamento da atenção do interlocutor. Já entre a Construção Transitiva e a Construção Inceptiva, a relação não se constitui apenas devido à noção de movimento codificada em ambas, mas também porque há, entre elas, uma motivação sintática e semântica. Do ponto de vista sintático, a natureza do complemento do verbo agarrar é diversa. Na Construção Transitiva, o complemento de agarrar é um SN. Já na Construção Inceptiva, o complemento de agarrar é um SV. Em relação à semântica das construções, a Construção Transitiva Não-canônica aproxima-se da Construção Inceptiva, pois em ambas há uma mudança de estado do sujeito, que passa de um estado de [- ação] para outro de [+ ação]. Além disso, a Construção Transitiva Não-canônica cujo significado é adquirir hábito, mais especificamente, e a Construção Inceptiva apresentam mais uma aproximação, já que ambas codificam o início de uma ação, que, nas duas construções, demanda certa duração temporal. A rede construcional apresentada no início deste capítulo e repetida aqui representa uma tentativa de capturar as relações entre os quatro tipos de construção analisadas. Figura 2: Rede construcional do verbo agarrar As construções Paratática e Inceptiva ligam-se às transitivas por meio de uma herança metafórica, já que a metáfora do movimento parece licenciar o uso do agarrar em todas elas. Construção Transitiva [V SN[+CONC]] Construção Transitiva Não-Canônica [V SN[+ABST]] Construção Inceptiva [V1 (PREP) V2] Construção Paratática [V1 (CONJ) V2] 31 Considerações finais Tendo em vista a relação existente entre as construções Transitiva, Transitiva Não-canônica, Paratática e Inceptiva com o verbo agarrar, mostramos como a semântica da Construção Transitiva foi mapeada em termos das construções Paratática e Inceptivas. Mostramos que apesar de ser possível estabelecer um continuum de gramaticalização das construções, tendo em vista a abordagem de Hopper e Traugott (2003), uma estrutura radial parece ser mais adequada para capturar a relação entre elas. RESUMO: Neste trabalho, nosso objetivo é discutir a relação de herança entre quatro diferentes tipos de construções formadas com o verbo agarrar em dados sincrônicos do português brasileiro e europeu, as construções transitiva, paratática e inceptiva. Mostramos que a ocorrência do verbo agarrar nessas quatro construções deve-se à metáfora do movimento, já que a semântica básica de agarrar na Construção Transitiva é mapeada na semântica das demais construções. Embora a gramaticalização explique as mudanças sofridas por agarrar de modo que esse verbo passe a integrar construções mais gramaticalizadas, não é suficiente para compreender o modo como essas construções interagem, uma vez que não é possível dispô-las num cline unidirecional. Consideramos que o significado de movimento de trazer para si, inerente ao verbo agarrar, interage com as construções de formas diferentes, o que nos leva a propor uma rede construcional na tentativa de captar as relações entre essas construções. PALAVRAS-CHAVE: Relações de herança, construções, gramaticalização, Português. Referências bibliográficas AULETE, C. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caudas Aulete. Rio de Janeiro: Delta, 1980. BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. BUENO, F. da S. Grande dicionário etimológico-prosódico da Língua Portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1963. BYBEE, J. Language, usage, and cognition. Cambridge, UK: CUP, 2010. CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. CASTILHO, A. T. de. Introdução ao Estudo do Aspecto Verbal na Língua Portuguesa. Marília: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1968. COELHO, C. M. Construções com o verbo agarrar em Português Brasileiro e Europeu. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2013. COELHO, C. M. Estudo de construções do Português Europeu. Relatório de pesquisa, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010. CRAIG, C. Ways to go in Rama: a case studyin polygrammaticalization. In: TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. (Eds.) Approaches to grammaticalization. v. 2. Amsterdam: John Benjamins, 1991 p. 455- 492. CROFT, W. Radical Construction Grammar. Syntactic Theory in Typological Perspective. New York: Oxford University Press, 2001. CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. CUNHA, C; CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: João Sá da 32 Costa, 1988. DAVIES, M.; FERREIRA, M. Corpus do Português: 45 million words, 1300s-1900s, 2006. Disponível online em <http://www.corpusdoportugues.org>. FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2010. FERREIRA, M. A construção de ação rotineira no português do Brasil. In: MIRANDA, N. S.; SALOMÃO, M. M. M. (Orgs) Construções do Português do Brasil. Da gramática ao discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. GIVÓN, T. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979. GOLDBERG, A. Constructions: A Construction Grammar Approach to Argument Structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995. HEINE, B. Auxiliaries. Cognitive Forces and Grammaticalization. New York: Oxford University Press, 1993. HEINE, B.; CLAUDI, U.; HÜNNEMEYER, F. Grammaticalization: A Conceptual Framework. Chicago: University of Chicago Press, 1991. HOPPER, P. J.; TRAUGOTT, E. C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. HOPPER, P. J. On Some Principles of Grammaticalization. In: TRAUGOTT E.; HEINE, B. Approaches to Grammaticalization. v. 1, 1991, p. 17-35. HOUAISS, A; SALLES, M. de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. ILARI, R. Perspectiva Funcional da Frase Portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987. LAMBRECHT, K. Information structure and sentence form: topic, focus, and the mental representations of discourse referents. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. LONGHIN-THOMAZI, S. R.; RODRIGUES, A. Coordenação em foco: relações pragmáticas de foco em construções complexas. Lusorama (Frankfurt am Main), v. 85-86, 2011, p. 107-136. MARTELOTTA, M. E.; AREAS, E. K. A visão funcionalista da linguagem no século XX. In: CUNHA, M; OLIVEIRA, M; MARTELOTTA, M. (Orgs). Linguística Funcional teoria e prática. RJ: DP&A, 2003, p. 29-56. MERLAN, A. Sobre as chamadas “perífrases verbais paratácticas” do tipo <pegar e + V2> nas línguas românicas. Revista da Faculdade de Letras Línguas e Literaturas. Porto, 1999, p 159-205. NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora Unesp, 2000. RODRIGUES, A. “Eu fui e fiz esta tese”: as construções do tipo foi fez no Português do Brasil. Tese de doutorado, Campinas, IEL/Unicamp, 2006. SAID ALI, M. Gramática secundária e Gramática Histórica da língua portuguesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1964. SIGILIANO, N. S. A construção aspectual inceptiva no Português com verbos não canônicos. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. SIGILIANO, N. S. O telefone tocô eu peguei e::quem ta falano - A Polissemia do Verbo Pegar. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008. SILVA, L. A. Os usos do“até” na língua falada na cidade de Goiás: funcionalidade e gramaticalização. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2005. TRAUGOTT, E. C. Constructions in Grammaticalization. In: BRIAN, J. D., JANDA, R. D. (Eds). The Handbook of Historical Linguistics. Blackwell Publishing, 2003. TRAUGOTT, E. Grammaticalization and construction grammar. In: CASTILHO, A. T. (Org.) História do português paulista. Série Estudos. Vol.1. Campinas: IEL/Publicações, FAPESP, 2009, p.91-101. TRAVAGLIA, L. C. Verbos gramaticais – Verbos em processo de gramaticalização. In: FIGUEIREDO, C. A.; MARTINS, E. S., TRAVAGLIA, L. C. e MORAES FILHO, W. B. (orgs.). Lingua(gem): reflexões e perspectivas. Uberlândia: EDUFU, 2003, p. 97-157. http://www.corpusdoportugues.org/ 33 A CONSTRUÇÃO QUASE (QUE) E A CODIFICAÇÃO SINTÁTICA DE INTENÇÕES Priscilla de Almeida NOGUEIRA 1 ABSTRACT: The present chapter makes reference to a research that aims at investigating the “quase que” construction in the Brazilian Portuguese Language. In order to do that, the following steps were accomplished: (i) investigation of the etymology of the construction and analysis of its negative polarity together with its irrealis trace; (ii) tracking of data within which the construction can be found; (iii) analysis of the different roles this construction may take on and the recognition of the manifestation of subjectivity and intersubjectivity in them; (iv) description of the data based on functionalist principles, including that of iconicity (GIVÓN, 1990). In this chapter I analyze the roles taken on by the “quase que” construction. I focused on its particularities and on how its etymology influences specific performed roles, as well as the intentions syntactically encoded in it. KEYWORDS: grammaticalization, (inter)subjectivity, syntactic encoding of intentions. Introdução Este capítulo vincula-se à pesquisa de mestrado a qual estuda a construção quase (que) à luz de princípios funcionalistas, procurando identificar os mecanismos deflagradores de seu possível processo de gramaticalização. Dado o interesse da pesquisa pela incorporação de usos inovadores na escrita formal, selecionamos como corpus as dissertações mais bem pontuadas 2 e as de pior pontuação redigidas por candidatos ao vestibular da Fuvest (Fundação para o Vestibular da USP), referente aos anos de 2003 a 2011, no caso das primeiras, e aos anos de 2004 a 2011, no caso das segundas. Por não termos conseguido um maior acesso às redações de pior pontuação, que incluísse o ano de 2003, trabalhamos com as redações melhor pontuadas de um ano a mais. Entretanto, mantivemos um número aproximado entre os dois conjuntos: 381 bem pontuadas e 377 mal pontuadas. A situação de produção desses textos (concursos vestibulares) somada aos objetivos do escrevente (adesão ao padrão culto e aprovação no vestibular) seria suficiente para que usos inovadores ou vinculados à escrita informal fossem elididos dos textos. Contudo, se considerarmos que, quanto maior a complexidade do pensamento, maior a complexidade da codificação linguística, ou, de outro 1 Universidade de São Paulo, Departamento de Filologia e Língua Portuguesa, São Paulo, SP, priscillanogueira27@gmail.com. Bolsista Fapesp. 2 As notas são derivadas de critérios atribuídos pela banca examinadora da Fuvest. É necessário ressaltar que, muitas vezes, uma nota pior pode significar fuga ao tema e não necessariamente mau uso gramatical ou da norma culta. mailto:priscillanogueira27@gmail.com 34 modo, quanto maior a quantidade de informações, maior a quantidade de forma linguística, então a diferença entre o item aproximativo quase e a construção quase que poderá advir justamente de uma informação mais complexa e mais abstrata que o escrevente pretende codificar. Esta é nossa hipótese: uma nova função orientada pelo princípio de iconicidade, principalmente em seu subprincípio de quantidade, deve ter guiado a mudança gramatical do item quase em sua nova configuração quase que. O subprincípio da quantidade, segundo o qual, quanto maior, mais relevante – o que, muitas vezes, está relacionado à previsibilidade – for a quantidade de informação a ser transmitida ao interlocutor, maior será a quantidade de forma a ser utilizada em sua codificação morfossintática favorece lidar com forças de orientação da atenção de interlocutores. Desse