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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA ANITA PEDROSA FONTES OS ESTÁGIOS NAS ESCOLAS PROFISSIONAIS DO ESTADO DO CEARÁ: A RELAÇÃO TRABALHO-EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL FORTALEZA 2016 ANITA PEDROSA FONTES OS ESTÁGIOS NAS ESCOLAS PROFISSIONAIS DO ESTADO DO CEARÁ: A RELAÇÃO TRABALHO-EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação Brasileira. Área de concentração: Educação. Orientadora: Prof. Dra. Antônia Rozimar Machado e Rocha FORTALEZA 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca Universitária Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a) F764e Fontes, Anita Pedrosa. Os estágios nas Escolas Profissionais do Estado do Ceará : a relação trabalho-educação no contexto da acumulação flexível / Anita Pedrosa Fontes. – 2016. 134 f. : il. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós- Graduação em Educação, Fortaleza, 2016. Orientação: Profa. Dra. Antônia Rozimar Machado e Rocha . 1. Educação Profissional . 2. Estágio. 3. Trabalho-Educação. 4. Acumulação Flexível . I. Título. CDD 370 ANITA PEDROSA FONTES OS ESTÁGIOS NAS ESCOLAS PROFISSIONAIS DO ESTADO DO CEARÁ: A RELAÇÃO TRABALHO-EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação Brasileira. Área de concentração: Educação. Orientadora: Prof. Dra. Antônia Rozimar Machado e Rocha Aprovada em: ___ / ___ / ___ BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Prof. Dra. Antônia Rozimar Machado e Rocha (Orientadora) Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________________________ Prof. Dr. José Deribaldo Gomes Dos Santos Universidade Estadual do Ceará (UECE) __________________________________________________________ Prof. Dr. Justino de Sousa Junior Universidade Federal do Ceará (UFC) Ao meu filho Antônio, e à sua geração; à classe trabalhadora, seus velhos e seus filhos; aos meus amigos e inimigos; à revolução e à emancipação. AGRADECIMENTOS A mim mesma que, por muitas vezes, tive de me destruir para que do fraco nascesse o novo, forte. Agradeço ao meu filho, Antônio, pela inspiração de vida e que, apessar da tenra idade, passou pelos momentos de distância e apredeu a esperar. Ao meu pai, João, pelo apoio silencioso e incondicional de sempre. À minha mãe, Angélica, e aos meus irmãos, Bruno e Virgínia. Agradeço à minha orientadora, professora Antônia Rozimar (Rose), pela orientação, pelo carinho e compreensão nesses dois anos em que aprendi a apreciá-la ainda mais nas suas condutas profissionais e pessoais. Ao professor Justino de Sousa, pelo olhar atento aos debates travados nas disciplinas ministradas, as quais tive a honra de participar, assim como pelas contribuições valiosas referentes ao exame de qualificação e por aceitar avaliar este trabalho final. Ao professor José Deribaldo, sempre solícito e compromissado com o belo e com a verdade, agradeço também por suas contribuições no exame de qualificação e pela participação na avaliação deste trabalho final. A todos que compõe o grupo de pesquisa Trabalho e Educação, campo fecundo de honestos combatentes, com especial atenção aos companheiros: Alisson, Nivânia, Kaline, Lêda Vasconcelos e Araújo. Agradeço ao pai do meu filho e amigo, Átila, e à sua mãe, Elisvalda, pela ajuda despendida. Agradeço muito à minha alcáteia, mesmo que dispersa: Jardélia (oráculo), Luana, Nívia, Rafaela, Iziane, Alê, Yvina, Jucier, Allison, Rafael, Sívio, pois em nosso meio, podemos uivar à vontade, sabendo que sempre seremos escutados com atenção. Por fim, à CAPES, pelo financiamento da pesquisa, e ao Programa de Pós- Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, por desenvolver a formação acadêmica. “sou tão louco quanto sempre fui eles não entendem que não parei de me pendurar pelos calcanhares da janela do 4° andar - eu ainda o faço agora mesmo aqui sentado ao escrever estas linhas estou pendurado pelos calcanhares vários andares acima: 68, 72, 101, a sensação é a mesma: implacável banal e necessária” (Bukowski) “Que tempos são esses, em que falar de árvores é quase um crime pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?” (Brecht, Aos que vão nascer) “A burguesia encara a sua prole enquanto herdeiros; os deserdados, porém, a encaram enquanto apoio, vingadores ou libertadores. Essa é uma diferença suficientemente drástica. Suas consequências pedagógicas são incalculáveis. […] A criança proletária nasce dentro de sua classe. […] Ela é, desde o início, um elemento dessa prole, e não há nenhuma meta educacional doutrinária que determina aquilo que essa criança deve torna-se, mais sim a situação de classe. ” (Bejamin, Uma pedagogia comunista). RESUMO A pesquisa tem como objetivo central investigar a relação trabalho-educação nos estágios das Escolas Estaduais de Educação Profissional - EEEP. O modelo de Educação Profissional para as escolas estaduais de ensino médio do Ceará teve efetividade em 2008, integrando o ensino médio à educação profissional. Sua política educacional se ajusta ao modelo político neoliberal e à pedagogia das competências, servindo às necessidades do atual padrão de acumulação flexível para formar força de trabalho qualificada, atendendo às tendências do mercado de trabalho. O primeiro capítulo busca tratar da caracterização do objeto, analisando a origem e os documentos que fundamentam a política educacional das EEEPs, confrontando- nos com os reformadores empresariais da educação, que fazem coro às políticas de orientação neoliberal, assim como a legislação que configura a “nova institucionalidade”. Nas questões relacionadas à política educacional e à educação profissional, recorremos aos estudos de Ferretti (2002), Kuenzer (2002), entre outros. O segundo capítulo compreende algumas dimensões da acumulação flexível na nova configuração do capitalismo contemporâneo, evidenciando seus imperativos no trabalho e na educação. Tentamos demonstrar conexões possíveis da acumulação flexível com a educação profissional, as EEEPs e o empresariamento da educação. Buscamos destacar que o excedente de força de trabalho, uma escolarização que prepara exclusivamente para o mercado de trabalho, "qualificando", por assim dizer, o Exército Industrial de Reserva, os estágios financiados pelo Governo do Estado alimentam, na verdade, um rebaixamento do padrão de uso da mercadoria força de trabalho. Sobre aspectos socioeconômicos, debruçamo-nos sobre as obras de Marx (2006, 2012), Harvey (2006; 2005), Carcanholo e Amaral (2009), Meneleu (1996) e Pochmann (2012). No terceiro capítulo, tratamos diretamente dos estágios nas EEEPs, fazendo uma análise da legislação vigente e precedente, conectando seus procedimentos pedagógicos com a política educacional das EEEPs e a realidade socioeconômica vigente. Partimos de uma abordagem qualitativa,na qual nos utilizamos da análise documental, bibliográfica e de entrevistas para a consecução dos objetivos elencados. Palavaras-Chave: Educação Profissional. Estágio. Trabalho-Educação. Acumulação Flexível. ABSTRACT The research was aimed to investigate the work-education relationship in stages from the State Schools of Professional Education - EEEP. The Professional Education model for state schools of Ceará School was effective in 2008, integrating the high school vocational education. His educational policy fits the neoliberal political model and pedagogy skills, serving the needs of the current standard of flexible accumulation to form skilled workforce, given the trends in the labor market. The first chapter seeks to address the characterization of the object by analyzing the origin and the documents that support the educational policy of EEEPs in confronting corporate education reformers who do chorus the neoliberal orientation policies and legislation that sets the "new institutionality". In matters related to educational policy and vocational education we use to study Ferretti (2002), Kuenzer (2002), among others. The second chapter contains some dimensions of flexible accumulation in the new configuration of contemporary capitalism demonstrating its imperatives at work and in education. We try to show possible connections of flexible accumulation with professional education, EEEPs and entrepreneurship education. We seek to highlight that both the labor surplus, a school that prepares exclusively for the labor market, "qualifying", so to speak, the Industrial Reserve Army, internships funded by the State Government feed actually a demotion the pattern of use of the commodity labor power. On socioeconomic aspects we look back on the works of Marx (2006, 2012), Harvey (2006; 2005), Carcanholo and Amaral (2009), Meneleu (1996) and Pochman (2012). In the third chapter dealt with directly in the stages EEEPs, making an analysis of existing legislation and precedent, connecting their educational procedures with the educational policy of EEEPs and the current economic reality. We start from a qualitative approach, in which the use of document analysis, literature and interviews to achieve the goals listed. Keywords: Professional education. Internship. Work - Education. Flexible accumulation LISTA DE TABELAS Tabela 1 Brasil – evolução das 45 ocupações profissionais que mais ganharam postos de trabalho nos anos 90, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações ............................................................................................................ 80 Tabela 2 Brasil – evolução das 45 ocupações profissionais que mais perdem postos de trabalho nos anos 90, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações. ....... 81 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 Catálogo dos Cursos Técnicos das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará. .......................................................................................... 29 Quadro 2 Ranking, por carga horária, dos componentes curriculares do curso técnico- profissionalizante em Eventos integrado ao Ensino Médio. .............................. 103 Quadro 3 - Histórico das Leis de estágio ............................................................................. 123 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BM Banco Mundial CEEST Célula de Estágios CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe CFE Conselho Federal de Educação CLT Consolidação das Leis do Trabalho CNE Conselho Nacional de Educação COEDP Coordenadoria de Educação Profissional CUT Central Única dos Trabalhadores DCNEP Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional EEEP Escola Estadual de Educação Profissional EIR Exército Industrial de Reserva ENEM Exame Nacional do Ensino Médio FECOP Fundo Estadual de Combate à Pobreza FIPE Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas FMI Fundo Monetário Internacional IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICE Instituto de Corresponsabilidade pela Educação LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação MEC Ministério da Educação MET Ministério do Trabalho e Emprego MST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra OMC Organização Mundial do Comércio ONG Organização Não Governamental OPEMA Operação Mauá OREALC Oficial Regional de Educação para a América Latina e Caribe OS Organização Social PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego SEDUC Secretaria da Educação STDS Secretaria de Trabalho e Ação Social TESE Tecnologia Empresarial Socioeducacional UNESCO Organização das Nações Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 2 AS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CEARÁ: O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO EM MARCHA CÉLERE ............................. 20 2.1 Política educacional nas particularidades das Escolas Estaduais de Educação Profissional .............................................................................................................................. 20 2.2 A concepção empresarial de ensino médio público: uma análise documental das experiências de Pernambuco e Ceará .................................................................................. 30 2.3 A escola e o dualismo educacional ........................................................................................ 37 2.4 A atualidade da proposta educativa de Marx ...................................................................... 40 3 CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E OS INFLUXOS SOBRE A EDUCAÇÃO PROFISSIONALIZANTE ..................................................................................................... 46 3.1 Para uma crítica radical da educação profissional ............................................................. 45 3.1.1 O Trabalho na forma social do capital e as Escolas Estaduais de Educação Profissional . 48 3.2 A Acumulação Flexível e seus imperativos no trabalho ..................................................... 52 3.2.1 A força de trabalho: o controle e o mercado .......................................................................... 64 4 O ESTÁGIO NAS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DO CEARÁ: ENTRE O MERCADO E O PEDAGÓGICO OU A PEDAGOGIA DO MERCADO? ........................................................................................................................... 71 4.1 Breve análise dos antecedentes da nova Lei do Estágio, n° 11.788/08 ............................... 72 4.2 Entre o estágio, a flexibilização e a superexploração .......................................................... 84 4.2.1 O estágio e a economia capitalista .......................................................................................... 95 4.3 Os Estágios nas Escolas Estaduais de Educação Profissional ............................................ 96 4.3.1 Ensino-aprendizagem, acompanhamento e avaliação nos estágios das EEEPs ................ 101 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 109 APÊNDICES......................................................................................................................... 118 ANEXOS ............................................................................................................................ ..121 12 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa procura desvendar algumas das determinações que envolvem os estágios realizados pelos estudantes das Escolas Estaduais de Educação Profissional – EEEPs do Estado do Ceará, focando a relação trabalho-educação no contexto da acumulação flexível. Estas escolas são pautadas no modelo de ensino médio integrado à educação profissional. A implementação das EEEPs atende ao dispositivo legal nº 11.741, instituído em 16 de julho de 2008, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei nº 9.394/96), propondo que a educação profissional se integre aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia. Deste modo, esta Lei expande consideravelmente a educação profissional nas políticas educacionais do país e permite que o ensino médio público se integre a ela. A política educacional das EEEPs, gerência e modelo, segue as determinações das políticas nacionais que contam como principais “reformuladores” a classe empresarial, organismos e agências multilaterais. Uma dessas determinações é a desresponsabilização do Estado para com suas políticas sociais, passando de um Estado provedor a um Estado que elabora estrategicamente suas ações nos moldes empresariais e avalia tais políticas (SHIROMA, 2007; LEHER, 1999). Outra forte recomendação é de que a educação prepare o indivíduo para o mercado de trabalho, servindo assim aos ditames do capital. Deste modo, o projeto das EEEPs tem na relação entre educação básica e profissional seu diferencial, que supostamente leva em conta as “vocações locais” na oferta dos cursos técnico-profissionalizantes, como maneira de fomentar a economia do Estado do Ceará. Ao nosso ver, essa proposta está estritamente ligada ao atual processo de transformações socioeconômicas pelo qual o Estado do Ceará vem passando. Dentre essas mudanças, destaca-se a criação de infraestruturas para a atração de grandes investimentos de capitais, a exemplo do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Também temos o setor turístico e o agronegócio, que vêm exigindo trabalhadores qualificados às suas demandas. O Governo do Estado do Ceará implantou este modelo educacional em 2008, quando as primeiras 25 escolas foram inauguradas. Hoje, os dados oficiais contabilizam 115 escolas distribuídas em mais de 82 municípios (CEARÁ, 2016). No estudo monográfico para a conclusão do curso de Pedagogia, que iniciou uma análise do supracitado modelo de Educação Profissionalizante do Governo do Estado do Ceará para as escolas de nível médio, foi constatada a ligação direta da referida política 13 educacional às exigências da reestruturação produtiva e da acumulação flexível (HARVEY, 2006), no constante apelo à adaptação da comunidade e da estrutura escolar para as requisições do “novo mundo do trabalho”1 (ANTUNES, 2011). Identificamos ainda que a proposta pedagógica que forma a matriz curricular das EEEPs – educação geral, profissional e para a vida (CEARÁ, 2015; MAGALHÃES, 2008) –, é pautada na dita pedagogia das competências (RAMOS, 2011), no neotecnicismo e no neoprodutivismo (SAVIANI, 2008), que têm por base: a polivalência; os conhecimentos tácitos suficientes ao ajuste do trabalhador às novas tecnologias e gerência do trabalho, tendo por formas metodológicas a experimentação e a comprovação das competências requeridas; assim como o empreendedorismo e a solicitude para com o trabalhador na sua contribuição pessoal no aumento da produtividade. A empregabilidade, juntamente com o empreendedorismo, formam também os pilares do projeto profissionalizante das escolas estaduais. O status de empregabilidade é assegurado à juventude em um momento de “crise dos empregos”, ou desemprego estrutural (MÉSZÁROS, 2003); o “saber fazer” e “saber ser” são essenciais para a flexibilidade exigida (SAVIANI, 2008). O empreendedorismo é um fôlego para o capitalismo em crise, fazendo girar todo tipo de capital (produtivo e financeiro) e utilizando-se da espoliação e de relações pretéritas ao capitalismo (HARVEY, 2005). Para o estudo documental do nosso objeto, na feitura do primeiro capítulo, consultamos o site da Secretaria de Educação do Estado do Ceará - SEDUC e dois documentos que fundamentam a política educacional das EEEPs: 1. A Tecnologia Empresarial Socioeducacional - TESE, foi produzida e é propriedade do Instituto de Co- responsabilidade pela Educação – ICE, entidade privada, ordenada pela classe empresarial, designada a reformular as escolas de ensino médio do estado de Pernambuco. A reformulação das escolas estaduais pernambucanas teve início em 2004 e está registrada em outro documento estudado:“A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova”, de autoria do executivo Marcos Magalhães (2008). Ambos os estados, Pernambuco e Ceará, contaram, como principais agentes da “mudança” e formuladores da política educacional, com a classe empresarial junto à inserção 1 O termo “mundo do trabalho“ ou “novo mundo do trabalho“ é bastante utilizado pelos documentos oficiais e oficiosos da política educacional para a educação básica e profissional da atualidade. De forma genêrica, designa as novas requisições de qualificação pelo mercado de trabalho, assim como as mudanças nos processos produtivos diante da competitividade econômica, etc. Atunes (2011), por sua vez, cria este conceito para abranger as diversas dimenções econômicas-sociais decorrentes da reestruturação produtiva. Parece que parte da literatura de esquerda sobre o tema critica a utilização deste conceito, pois este diluiria os conceitos de processo de produção e de relações de produção desenvolvidos por Marx. Não adentraremos neste debate; aqui, utilizaremos o termo nos referindo e repetindo o que consta nos documentos. 14 direta de empresas e organizações não governamentais - ONGs na política e planejamento educacional, ditando inclusive o modelo curricular e a relação de ensino-aprendizagem de forma a limitar a autonomia escolar e o trabalho pedagógico. O Programa de Educação Profissional do Estado do Ceará identifica-se com a chamada pedagogia das competências. Tendo emergência por volta dos anos 1980, esta configura uma convergência e divergência com o conceito de qualificação (RAMOS, 2011). A qualificação é um conceito histórico-concreto de mediação da relação trabalho- educação. Para Marx (2006b), qualificação faz parte da produção da mercadoria força de trabalho. O aprofundamento da divisão do trabalho no capitalismo, assim como a modernização tecnológica, fez emergir as teses sobre qualificação e desqualificação dos trabalhadores, em relação ao conteúdo do trabalho, e a tese sobre a polarização das qualificações, que estaria criando, de um lado, alguns trabalhadores qualificados e uma massa de trabalhadores desqualificados do outro (FREYSSENET apud ANTUNES, 2011; RAMOS, 2011; BRAVERMAN, 1981). Para Ramos (2011), o conceito de qualificação remonta ao processo de consolidação da sociedade industrial pautada no modelo fordista-taylorista. Segundo Harvey (2006), este modelo se encontra em crise, acompanhado também da crise do chamado “Estado de bem-estar social”, sobre as quais poderíamos resumidamente elencar alguns fatores, como: a crise do petróleo da década de 1970; a crise tecnológica, das mudanças na composição orgânica do capital (capital constante e capital variável); a crise da produção em série e em massa, ou seja, de uma crise de superacumulação do capital. Tudo isso ocasionou a necessidade de que omodo de produção capitalista busque novas estratégias para sua reprodução ampliada, das quais podemos citar os vários ataques às conquistas trabalhistas, a precarização do trabalho, a flexibilização da produção e das relações de trabalho, a incorporação da subjetividade do trabalhador ao seu processo de produção, novos modelos de gestão naquilo que Harvey (2006) denomina de acumulação flexível. Conforme as novas exigências da reestruturação produtiva (HARVEY, 2006) – caracterizada pela automação e pelo esgotamento do modelo produtivo de tipo taylorista- fordista, que enrijecia os postos e a regularização do mercado de trabalho, assim como a própria produção de mercadorias –, a pedagogia das competências compromete-se em formar as competências necessárias ao trabalhador de novo tipo: polivalente, comunicativo, engajado, flexível às diferentes situações (FERRETTI, 2002). 15 A pedagogia das competências tem base substancial na psicologia ao enfatizar o papel do sujeito, dos conhecimentos tácitos oriundos da experiência, a motivação e o comportamento individual, diferentemente da qualificação que tem por base a sociologia do trabalho, dando ênfase aos postos de trabalho e a formação de ordem coletiva (RAMOS, 2011). Sob o “rigor” do modelo de acumulação taylorista-fordista, o mercado de trabalho regia-se pela oferta. No modelo de acumulação flexível, a demanda econômica cada vez mais inconstante guia a formação da força de trabalho, exigindo sua constante adaptação (RAMOS, 2011). Daí, emergiria a necessidade da pedagogia do “apender a aprender” (SAVIANI, 2008; DUARTE, 2001). O Estado, como regulador do mercado de trabalho e da sua formação, assume papel importante na medida em que cede lugar aos “colaboradores sociais”, empresas e outras entidades. No que se configura como neoliberalismo, o mercado é o maior regulador social. Nossa pesquisa revela a forte presença da classe empresarial, que dita a política educacional estadual como forma de regular a formação profissional oferecida pelas escolas públicas. Ferretti (2002) assinalava nos anos 1990 a inserção deste segmento social na dinâmica da educação pública brasileira. A reestruturação do sistema educacional público brasileiro fica evidente nas recentes propostas de reformulações curriculares, que visam adaptar as grades dos currículos aos ditames atuais do “mundo do trabalho” implementadas pela crise estrutural do capital e de sua sociabilidade (MÉSZÁROS, 2000). Em escala nacional, evidenciamos a reformulação nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs e a Reforma do Ensino Médio (RAMOS, 2011; CARDOZO, 2009) como nítidas propostas de adequação ao mercado, com ênfase nas competências e na cidadania de caráter burguês. Vale ressaltar que estas mudanças, que começaram a vigorar nos anos 1990, tendo a LDB de 1996 (Lei nº 9394/96) como marco maior, vêm atender a política-econômica-educacional de órgãos internacionais, como o Banco Mundial, para os países periféricos (SEGUNDO, 2006). Dentro deste quadro nacional, encontra-se nosso objeto de pesquisa: a relação trabalho-educação nos estágios das escolas de Ensino Médio Profissionalizante do Estado do Ceará. Ao nosso entender, o conjunto destas propostas deixa de lado princípios universais de educação e de formação de um ser humano emancipado. Tonet (2006, p. 6) define formação humana “como acesso, por parte do indivíduo, aos bens, materiais e espirituais, necessários à sua autoconstrução como membro pleno do gênero humano, então formação integral implicaria emancipação humana”. 16 Marx (2012), ao propor um modelo educativo que integrasse trabalho produtivo, instrução intelectual e educação física, tinha em vista as contradições da sociedade capitalista e a emancipação humana sob novas bases socioeconômicas como horizonte. A possibilidade de todos usufruírem das riquezas socialmente construídas através de uma revolução social, que eliminaria a exploração do homem pelo homem, estaria pautada na politecnia (SAVIANI, 1987). Esta, de forma genérica, garantiria a rotatividade da produção a fim de que os indivíduos tivessem uma visão do conjunto do processo produtivo e, com o advento das máquinas, a jornada de trabalho seria mínima, garantindo assim o tempo livre aos seres humanos para desfrutar de todas as suas faculdades, podendo “fazer tal coisa hoje e tal amanhã, de caçar pela manhã, de pescar a tarde[...], de me dedicar à crítica após as refeições, segundo a minha vontade, sem jamais tornar-me caçador, pescador ou crítico” (MARX e ENGELS apud NOGUEIRA, 1993, p. 121), ou seja, uma vida plena de sentido. Com a nova reestruturação produtiva, do processo de acumulação flexível do capital (HARVEY, 2006) e com as crescentes atividades econômicas no Ceará, associam-se as também crescentes instituições educacionais que visam a qualificação do trabalhador. Deste modo, salta-nos aos olhos a importância deste estudo, pois o desenvolvimento das potencialidades humanas, hoje denominadas por alguns de competências (RAMOS, 2011), bastante frisadas pela Pedagogia, tende, dentre o antagonismo de classe, a atender às exigências do processo de valorização do capital. Ao invés de uma educação na contramão do capital, que de fato trabalhe a perspectiva de uma formação integral do gênero humano (e não somente uma educação de tempo integral), visando sua emancipação, o que podemos evidenciar é uma formação mecanizada e que reproduz a própria crise da sociedade na qual estamos inseridos (MÉSZÁROS, 2000). Vale ressaltar que uma verdadeira pedagogia de cunho emancipatório deve primeiramente entender as estruturas sociais na qual vivemos e a interligação que a educação e suas instituições mantêm com estas, para que, assim, havendo o real interesse de romper com as relações de exploração e opressão, os envolvidos no ato educacional utilizem a educação como um instrumento de libertação. Diante do quadro apresentado, encontra-se o objeto de estudo desta pesquisa: os estágios das EEEPs e a relação trabalho-educação que se estabelece neles. No contexto da pesquisa, trabalho e educação aparecem na forma empresa e escola, o que nos estimula a uma análise crítica a partir da perspectiva histórico-crítica marxista. 17 Durante o terceiro ano letivo, os estudantes das EEEPs são encaminhados ao estágio curricular obrigatório, que é remunerado pelo Governo do Estado. A SEDUC (CEARÁ, 2015) disponibiliza, para acompanhar essas escolas, uma Coordenadoria de Educação Profissional – COEDP – que, por sua vez, conta com uma Célula de Estágios – CEEST. Esta célula é responsável por gerenciar a integração entre as EEEPs e as empresas concedentes, cabendo à escola, dentro de sua flexibilidade, se ajustar às exigências de formação por parte do mercado. Os estágios são vistos como parte integrante fundamental da educação profissional, no qual o estudante tem um contato direto com o mercado de trabalho, apredendo na “prática” o que é repassado na escola. Atendendo à máxima da TESE: a “gestão de uma escola em pouco se difere da gestão de uma empresa” (ICE\TESE, s\d, p. 3), as EEEPs estão se configurando realmente como empresas, nas quais os professores são servidores, os alunos são os produtos e o real cliente não é a sociedade, e sim a iniciativa privada e o capital ávido por “trabalhador novo” e “qualificado”. Analisamos, pois, as controvérsias (ou falsas controvérsias) que permeiam o estágio que, incentivado pela política educacional de Estado, perpassa seu caráter de emprego lato senso da força de trabalho dos estudantes e seu caráter de ato educacional supervisado pela escola. A pesquisa tem como ponto de partida as seguintes questões norteadoras: como se estabelece a relação trabalho e educação nos estágios das escolas de ensino médio profissionalizante do Ceará? De que modo as escolas profissionais atendem as demandas da acumulaçãoflexível, especialmente através de seus estágios? Assim, o objetivo geral de nossa pesquisa é analisar a relação entre trabalho e educação inserida no contexto dos estágios desenvolvidos pelas EEEPs junto às empresas. De forma mais específica, pretendemos: investigar a parceria firmada entre escola e empresas; compreender as determinações da política educacional profissionalizante das EEEPs; examinar quais as pertinências desta política de estágios com as demandas da acumulação flexível. Interessa-nos analisar as categorias trabalho e educação como atividades geradoras de potencialidades humanas (LUKÁCS, 1978). Mas uma vez postas a serviço do capital, estas atividades humanas por excelência encontram-se alienadas (MARX, 2006a). Para a execução da pesquisa, levaremos em conta a divisão entre trabalho manual e intelectual, entre concepção e execução do trabalho. Para alguns autores (RAMOS, 2011; CORIAT apud ANTUNES, 2011), estas divisões, explícitas no modelo produtivo 18 fundamentado no taylorismo-fordismo, estariam sendo minimizadas ou mesmo erradicadas pelo novo modelo produtivo baseado no toyotismo, pois este requereria participação e subjetividade do trabalhador na concepção e execução do trabalho, traduzida em uma maior democracia, e enxergam nisto um fator positivo para o movimento dos trabalhadores. Contudo, concordamos com Antunes (2011) ao afirmar que estes mecanismos, postos a serviço do capital, tornam-se meios sofisticados de cooptação e manipulação dos trabalhadores. A qualificação profissional é tida, pelo discurso dominante, como o ponto decisivo da empregabilidade, transferindo para o sujeito, de forma isolada, a responsabilidade por sua sobrevivência, sucesso ou fracasso, neste sistema cada vez mais excludente e injusto do mercado de trabalho e do mercado de consumo, pois a destruição e a impossibilidade que o capitalismo impõe aos outros modos de produção e reprodução da vida encurrala o ser humano neste jogo desumano. Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa possui natureza qualitativa e quantitativa, pois se aplica ao estudo da história, das relações humanas, ao procurar desvelar processos sociais que, dado também às gradezas de ordem quantitativa, fazem par dialético com a qualidade. Adotamos para este trabalho três tipos de pesquisa: a bibliográfica, a documental e a de campo, que se permearam entre si na apuração do nosso olhar sobre o objeto estudado. No exame bibliográfico, para explorar as temáticas relacionadas aos aspectos socioeconômicos, debruçamo-nos sobre as obras de Marx (2006, 2012), Harvey (2005; 2006), Carcanholo e Amaral (2009), Meneleu (1996), Pochmann (2012). Às questões relacionadas à política educacional e à educação profissional, recorremos aos estudos de Ferretti (2002), Kuenzer (2002), entre outros. Na pesquisa documental, debruçamo-nos sobre o estudo das leis e decretos nacionais e estaduais que legislam sobre as EEEPs e seus estágio, assim como dois documentos que fundamentam sua política e funcionamento: a Tecnologia Empresarial Socioeducacional – TESE; e A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova de autoria do executivo Marcos Magalhães (2008). Na pesquisa de campo, limitamo-nos ao instrumento da entrevista semi- estruturada realizada com: um diretor de uma EEEP do interior do estado; um orientador de estágio do curso técnico-profissionalizante de transações imobiliárias e um ex-estudante que passou pelo processo de estágio das EEEPs no curso de edificações (ver apêndices). Nestas entrevistas, objetivamos evidenciar e compreender, através da vivência e da fala destes 19 sujeitos, os processos que compõem o estágio curricular supervisionado das EEEPs, uma vez que a leitura das leis e documentos que os aborda não foram suficientes na aproximação mais fidedigna das determinações da realidade. Através dessas entrevistas, foi possível evidenciar com mais propriedade as contradições do real que as leis/documentos tentam solucionar a nível formal. No primeiro capítulo, analisamos a origem e os documentos que fundamentam a política educacional das EEEPs, confrontando-nos com os reformadores empresariais da educação que fazem coro as políticas de orientação neoliberal, assim como a legislação que configura a “nova institucionalidade”. O segundo capítulo compreende algumas dimensões da acumulação flexível na nova configuração do capitalismo contemporâneo, evidenciando seus imperativos no trabalho e na educação. Tentamos demonstrar conexões possíveis da acumulação flexível com a educação profissional, as EEEPs e o empresariamento da educação. Acreditamos que existam várias conexões, mas buscamos destacar que tanto o excedente de força de trabalho, uma escolarização que prepara exclusivamente para o mercado de trabalho, "qualificando", por assim dizer, o Exército Industrial de Reserva, quanto os estágios financiados pelo Governo do Estado (e até os não financiados) alimentam, na verdade, um rebaixamento do padrão de uso da mercadoria força de trabalho. Já no terceiro e último capítulo, resgatamos os antecendes da nova Lei do estágio, n° 1778/08, que vai revelando seu destaque na política educacional nacional e, mais especificamente, bucamos analisar a forma dos estágios adotada pelas EEEPs para comprir seu compromisso com mercado de trabalho, tão necessitado de mão de obra barata, no atual modelo de acumulação flexível. A totalidade do trabalho é posta com os pontos da proposta política e educacional das EEEPs e seus estágios, formuladas a partir dos interesses da classe empresarial alinhada com o Estado brasileiro e o capital internacional, e os contrapontos de uma crítica marxista que não apenas revela as reais intenções de classe da educação burguesa, mas que também propõe a superação de sua lógica social exploratória e opressora. 20 2 AS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CEARÁ: O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO EM MARCHA CÉLERE [...] O economista vulgar se considera tanto mais claro, tanto mais natural, mais útil a sociedade e tanto mais distante de todo sofisticaria, quanto mais se limite, na realidade, a traduzir as noções comuns numa linguagem doutrinária {empresários no ramo da educação}. Por isso, quanto mais alienada a forma em que concebe as formações da produção capitalista, tanto mais se aproxima da base das noções comuns, tanto mais se acha no seu elemento (MARX apud TEIXEIRA, 2004, p.6). Este capítulo tem por objetivo esboçar a trama institucional das Escolas Estaduais de Educação Profissional – EEEPs, que se envolve, de uma forma genérica, com a política educacional nacional, juntamente com os padrões empresariais para a educação. Analisamos dois documentos basilares para a concepção empresarial de educação praticada pelas EEEPs e que fundamentaram a sua implementação e as das Escolas Centro de Pernambuco. O primeiro documento é intitulado “A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova”, de autoria do executivo Marcos Magalhães (2008), que relata a experiência piloto de reestruturação de algumas escolas estaduais de ensino médio de Pernambuco de acordo com as concepções empresariais. O segundo documento chama-se Tecnologia Empresarial Socioeducacional – TESE, um manual confeccionado por uma entidade privada, Instituto de Corresponsabilidade pela Educação – ICE, ordenada pela classe empresarial para reformular as supracitadas escolas pernambucanas. Este manual fundamenta em grande medida a criação e o funcionamento das EEEPs do Ceará. Por fim, iremos brevemente conceitualizar as bases materiais que amparam a divisão entre educação geral e profissional, já que as EEEPs buscam lidar com esses dois tipos de ensino e confrontar essa educação de tempo integral, de orientação da classe empresarial,com a integração entre trabalho e educação na acepção de Marx, concepção esta que parte dos interesses revolucionários da classe trabalhadora. 2.1 Política educacional nas particularidades das Escolas Estaduais de Educação Profissional. As Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs), criadas em 2008, surgem em meio a um contexto de políticas educacionais nacionais de orientação neoliberal, de política externa de agências e organizações multilaterais e de interesses da classe dominante 21 nacional, alinhada internacionalmente com os ditames do capital na defesa de uma educação pró-mercado. Buscaremos neste tópico analisar, a partir da apresentação de algumas particularidades da política educacional do Programa das EEEPs, as identidades com a política educacional nacional que, na história recente do país, vem sendo moldada por diretrizes internacionais para educação dos países periféricos, como as preconizadas pelo Banco Mundial, por exemplo. Conforme nos afirma Mendes Segundo (2006, p. 27), os organismos internacionais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional “foram pensados, inicialmente, como um fundo de estabilização destinado a manter as taxas de juros em equilíbrio no comércio internacional e propiciar a reconstituição e o desenvolvimento dos mercados dos países afetados pela Segunda Guerra”. Com a crise do petróleo em 1970, desencadeodora de uma crise econômica global que, segundo Mészáros (2000), vem se estendendo até hoje em forma de uma crise estrutural em todos os segmentos da sociedade, tais organismos internacionais ampliaram seus objetivos, passando a interferir diretamente na trajetória política e econômica dos ditos países em desenvolvimento. Sobre os diferentes modos de dominação econômica e cultural por parte do governo norte-americano ao resto do mundo, Mészáros (2003) situa os casos de órgãos de intercâmbio econômico, como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, que exerce sua influência no campo da educação; a alta tecnologia militar e civil, como exemplo o monopólio de hardwares e softwares; a produção de alimentos geneticamente modificados, impondo a venda ou mesmo disseminando de forma criminosa sementes não renováveis aos agricultores do mundo, ao mesmo tempo em que mantêm uma reserva gigantesca de sementes naturais; as patentes e os “direitos de propriedade intelectual”, como o caso de patentes de remédios vitais e a tomada para si de 25% dos recursos energéticos e de matérias-primas para não mais do que 4% da população mundial. O autor afirma que a contradição que mais marca o novo imperialismo é a tendência globalizante do capital e os Estados Nações tentando proteger suas economias locais e se sobressair aos demais. Sobre o novo imperialismo, Mészáros afirma, a partir de Harry Magdoff: O mesmo tipo de pensamento que aborda o conceito de imperialismo econômico, no sentido restrito de um demonstrativo de balanço, também confina o termo ao controle (direto ou indireto) de uma potência industrial sobre um país subdesenvolvido. Tal limitação ignora a característica essencial do novo 22 imperialismo que surge no final do século XIX: a luta competitiva entre as nações industriais para conquistar posições dominantes com relação ao mercado mundial e às fontes de matérias-primas. A diferença estrutural que distingue o novo imperialismo do antigo é a substituição de uma economia em que muitas empresas competem por outra em que um punhado de empresas gigantescas competem em cada setor industrial. Ademais, durante esse período, o avanço das tecnologias de transportes e comunicação e o desafio que as nações industriais mais novas (como a Alemanha) lança à Inglaterra trouxeram duas características adicionais ao palco imperialista: a intensificação da luta competitiva na arena mundial e a maturação de um sistema capitalista verdadeiramente internacional. Sob tais circunstâncias, a competição entre grupos de empresas gigantescas e seus governos ocorre em todo o globo: nos mercados das nações adiantadas, bem como nos de nações semi ou não- industrializadas (Magdoff apud Mészáros, p. 38, 2003). Contudo, Mészáros (2003) coloca que o discurso do “mundo policêntrico” e da “democracia multipartidária”, assim como o dos “direitos humanos”, tem um papel ideológico para camuflar a hegemonia estadunidense. E diz mais, que a tentativa frustrante na instituição de um “Governo Mundial”, a exemplo das Nações Unidas, demonstra a insuperável contradição, dentro dos limites do sistema capitalista, que existe entre os Estados Nações e a tendência expansionista do capital. Até a década de 1960, a educação era para o Banco Mundial uma questão secundária, cabendo à UNESCO, como agência das Nações Unidas, o papel de “Ministério mundial da educação”. A UNESCO perde suas atribuições e funções para o Banco Mundial quando os Estados Unidos deixam de financiá-la. A partir desse momento, a educação mundial passa a ser uma estratégia política e uma variante econômica (MENDES SEGUNDO, 2006). Para Leher (1999), a redefinição dos sistemas educacionais, situada no bojo das reformas estruturais encaminhadas pelo Banco Mundial, guarda íntima relação com o binômio pobreza-segurança. “O reconhecimento de que a educação poderia ser um instrumento importante na segurança data pelo menos do período da Guerra Fria, em especial na formulação da doutrina da contra-insurgência” (LEHER, p. 20, 1999). Com o processo de descolonização, o aumento das tensões sociais nos países periféricos, o desastre iminente no Vietnã e o crescente sentimento anti-Estados Unidos, persiste a “ameaça” comunista que paira sobre os valores sociais do ocidente. Na contenção desta ameaça, há a liderança imperialista dos Estados Unidos. Só que, ao “invés da tradicional concentração de forças e armamentos para avançar contra linhas inimigas identificadas” (Leher, p.20, 1999), investe-se em doutrinas, formas e métodos de intervenções político- econômicas associadas à intensa propaganda ideológica. Leher (1999) cita Berl, um dos colaboradores de Rockefeller que, por sua vez, foi um dos importantes conselheiros de Kennedy, onde diz que “na América Latina o campo de batalha é pelo controle da mente do 23 pequeno núcleo de intelectuais, dos educados e dos semieducados. A estratégia é conseguir a dominação através dos processos educacionais” (Idem, p. 26) e prossegue, afirmando que: Nos documentos mais recentes do Banco e nos pronunciamentos de seus dirigentes, é visível a recorrência da questão da pobreza e do temor quato à segurança: nos termos do presidente do Banco: “as pessoas pobres do Mundo devem ser ajudadas, senão elas ficarão zangadas”. Em suma, a pobreza pode garar um clima desfavorável para negócios. E a exclusão planetária não para de crescer. Estudos do PNUD (1998) atesta que cem países regrediram seriamente em sua situação econômica e social nos últimos trinta anos. Mantida a política de abertura comercial, os esforços para conter as tensões derivadas do desemprego terão de ser ampliados. Somente no Brasil, entre 1985 e 1998, o número de empregos na indústria caiu 43% enquanto a produção insustrial cresceu apenas 2,7%. Para as ideologias dominantes, o melhor antídoto para os males decorrentes do desemprego é a educação elementar e a formação profissional (p.26). O Banco Mundial mantém sua influência na política educacional dos países periféricos através, principalmente, de empréstimos que geram dependência e bons retornos financeiros (está aí também um dos motivos da política de controle, por parte deste órgão, dos gastos públicos dos países pobres: garantir o pagamento das dívidas por meio do “Estado mínimo” neoliberal) a projetos aplicados nestes países, junto a um amplo arsenal e monopólio de informações, dados e conhecimento que mantêm em monitoriamento constante os países aliados e os projetosdesenvolvidos dentro das diretrizes do Banco. Em seu trabalho, Shiroma (2007) apresenta as recomendações gerais para a definição de políticas educacionais, especialmente para a America Latina e Caribe, veiculadas em documentos elaborados por organismos multilaterais como Banco Mundial, UNESCO, CEPAL, OREALC, observando também documentos produzidos por instituições empresariais brasileiras e as reflexões de alguns intelectuais afinados com as propostas. A autora os denomina como “arautos da reforma, [...] os arquitetos do consenso que a ela daria sustentação” (p.10). Para ela, não resta dúvida na análise dos documentos de que As medidas que vêm sendo implementadas no país estão sinalizadas há anos, cuidadosamente planejadas. São evidentes as articulações entre as reformas implementadas nos anos 1990, pelos governos brasileiros do período, as recomendações dos organismos multilaterais. Recomendações, aliás, repetidas em uníssono e à exastão (SHIROMA, 2007, p.10) Uma das fortes recomendações de todos os documentos analisados por Shiroma (2007) é o destaque na educação elementar com viés no preparo ao trabalho. Diante da velocidade das mudanças, sejam elas sociais ou produtivas, as requalificações tornam-se imperativas na iminência de não acompanhar a competitividade do mercado mundial, que gera consigo sérios riscos a vida social. 24 A ênfase que o Banco Mundial dispende à educação básica vem a atender a necessidade de uma força de trabalho flexível; entende, pois, que este nível de ensino deve ser garantido pelo Estado. A ênfase também se dá na modalidade de educação profissional. A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico e social. Ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os países a reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo. Esta dupla estratégia requer a promoção do uso produtivo do trabalho (o principal bem do pobre) e proporcionar serviços básicos para o pobre” (LEHR apud BANCO MUNDIAL, p.25, 1999) O Brasil adota, então, estas recomendações. No que toca a estratégia do “uso produtivo do trabalho”, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n° 9.394/96) afirma que: “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (Art. 1°, §2) e que a educação tem por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2°). As várias políticas educacionais implementadas foram pensadas de modo a promover reformas de ensino de caráter nacional, de longo alcance, homogênias, coesas, ambiciosas em alicerçar projetos para uma “nação forte”. Tratava-se também, de preparar e formar a população para se integrar às relações sociais existentes, especificadamente às demandadas do mercado de trabalho, uma população a ser submetida aos interesses do capital que se consolidava no país. Nessa história, as reformas de ensino constituíram-se e foram apresentadas como importante instrumento de persuasão. (SHIROMA, 2007, p.13) Para Shiroma (op cit.), a política educacional tomou corpo a partir de um arcabouço legislativo e por ações de financiamento dos governos a programas específicos de segmentos escolares. A proposta das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará surge neste contexto, no intuito de atender ao dispositivo legal nº 11.741, instituído em 16 de julho de 2008, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei nº 9.394/96), propondo que a educação profissional se integre ao nível médio, às diferentes modalidades de educação e às dimensões do trabalho, das ciências e da tecnologia. A oferta da educação profissional conta com uma lei específica para seu funcionamento: Lei Estadual n° 14.273, de 19 de dezembro de 2008, que dispõe sobre a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional – EEEP no âmbito da Secretaria da Educação. O caráter diferencial destas escolas fica evidente nos seguintes artigos da Lei: Art. 2º As Escolas Estaduais de Educação Profissional terão estrutura organizacional definida em Decreto, fundamentada em parâmetros educacionais que venham a atender os desafios de uma oferta de ensino médio integrado à educação profissional com corpo docente especializado e jornada de trabalho integral. 25 Art. 3º A constituição das equipes docentes e o provimento dos cargos em comissão das Escolas Estaduais de Educação Profissional serão feitos mediante seleção pública, que, além de exames de conhecimentos e comprovação de experiência, constará de avaliações situacionais de competências específicas, sendo sua regulamentação estabelecida por Decreto, não estando sujeitas ao que estabelece a Lei nº 13.513, de 19 de julho de 2004, e o Decreto nº 29.451, de 24 de setembro de 2008. (grifo nosso) A referida Lei nº 13.513 e o Decreto nº 29.451 dispoem sobre o processo de escolha e indicação dos integrantes dos núcleos gestores das escolas da rede pública estadual de ensino, e dá outras providências, não estando, portanto, as EEEPs subordinadas a estas Leis. Já o Decreto Estadual 30.865/12 regula os dois artigos citados acima. Poderão concorrer para o cargo de professor da base comum do currículo professores efetivos e temporários, que deverão passar por processo seletivo interno da escola, o qual abrange “[…]exames de conhecimentos e comprovação de experiência, bem como avaliações situacionais de competências específicas”; sendo uma das fases da seleção, de caráter eliminatório e classificatório, um seminário presencial sobre o modelo de gestão e a proposta pedagógica das EEEP (Art. 4°). Já os professores da base técnica do currículo, definido no supracitado Decreto como “instrutores de ensino profissional”, são contratados do Estado, não precisam ser licenciados2 e também devem se submeter à seleção interna escolar. Os gestores, diretor e coordenadores, devem estar ainda mais alinhados à política pedagógica das EEEPs. Sendo esses cargos em comissão, poderão concorrer qualquer canditado que seja graduado em nível superior em qualquer área, ficando a cargo da SEDUC a realização da seleção (Atr. 3°, §2; At. 5°). Para que não reste dúvida sobre a natureza anti- democrática das gestões das EEEPs, o §3° do Artigo 3° diz (Decreto 30.865/12): §3°. A nomeação decorrente da seleção de [diretor e coordenador escolar] que trata o §2° deste artigo, não retira a natureza jurídica de livre exoneração dos respectivos cargos em comissão, podendo o Governador do Estado exonerar o ocupante do cargo, sempre que entender conveniente e oportuna a medida para a Administração. Todos estes mecanismos institucionais legais, que arranja a estrutura organizacional das EEEPs, têm como objetivo minimizar conflitos, forjar uma adesão para que todos os envolvidos cantem junto ao coro da política educacional. 2 Registramos aqui o fato de que o próprio poder público descumpre o dispositivo legal da atual LDB, já que esta assevera que, para o exercício do magistério no ensino médio, é obrigatória a licenciatura ou curso de formação pedagógica, estando, portanto, vedada a possibilidade de bacharéis exerceram a docência. Assim, a expressão “instrutores de ensino profissional” nada mais é do que uma forma de burlar a lei. Mas, para além do que determina a LDB, é necessário registrar também o fato de que a docência é tratada como algo que não carece de formação específica, de caráter pedagógico, o que se constitui um problema historicamente enfrentado e debatido pelos estudiosos da formação de professores. 26 A aderência dos professores e gestores passa também por mecanismos de recompensas aos que obtiverem melhores resultados entre os alunos, conforme os critérios e avaliações impostas pelo Estado e suas políticas.3 “O objetivo é convencer o professor a envolver-senas reformas do sistema, a ter confiança nas inovações e, sobretudo, nas vantagens em aderir às medidas que assegurem possíveis mecanismos de recompensa [...]” (SHIROMA, 2007, p. 59). Também para Leher (p. 29, 1999), a “avaliação centralizada garante o controle estatal da atividade docente”. Shiroma (2007), ao analisar o documento da CEPAL, Educacíon y conocimiento: eje de la transformación productiva con equidade, publicado em 1992, em que alarda uma urgência na implementação de uma reforma educacional marcada por estratégias reiteradas por outros organismos multilaterais ao longo da década, enfatiza que [...] a necessidade de reformas administrativas que operassem uma transmutação do Estado administrador e provedor para um Estado avaliador, incentivador e gerador de políticas. Para tanto, recomendava que se conjugassem esforços de descentralização e de integração, o que pode ser traduzido em desconcentração de tarefas e concentração de decisões estratégicas (p.55). A política educacional para a expansão da educação profissional conta com várias iniciativas do Estado brasileiro. O Plano Nacional de Educação (Lei n° 13.005/14) tem como meta n°11: “triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos cinquenta por cento da expansão no segmento publico”. Para o desenvolvimento dessa política, o Governo Estadual do Ceará conta com a parceria do Governo Federal através do Programa Brasil Profissionalizado, que tem sido, juntamente com os recursos do Tesouro Estadual, a principal fonte de financiamento das redes estaduais de ensino para a expansão da educação profissional do Ceará. (CEARÁ, 2015). O Programa Brasil Profissionalizado tem por objetivo fortalecer as redes estaduais de educação profissional e tecnológica. A iniciativa repassa recursos do Governo Federal para que os estados invistam em suas escolas técnicas. O programa possibilita a modernização e a expansão das redes públicas de ensino médio integradas à educação profissional, uma das metas do Plano de 3 Ver: Portaria n° 0815/2016 – onde o Secretário da Educação do Estado do Ceará dispõe sobre a Gratificação de Desempenho para os ocupantes de cargos comissionados e professores lotados nas escolas estaduais de educação profissional, que desempenharam suas atividades em regime integral no ano de 2014. Os critérios adotados para esta Gratificação de Desempenho são: I. Aprovação no mínimo de 85% dos alunos no ano letivo; II. Participação de no mínimo 85% dos alunos da EEEP no SPAEC do ano letivo. III. Média de proeficiência geral, aferida pelo SPAEC, superior a media do Estado (257,9); IV. Inserção de todos os alunos do 3° ano da EEEP em Estágio Curricular. Diário Oficial do Estado. Série 3, Ano VII, n° 132. Fortaleza, 14 de Julho de 2016. 27 Desenvolvimento da Educação. O objetivo é integrar o conhecimento do ensino médio à prática. (MEC, 2015) Criado por meio do Decreto nº 6.302/07, o Programa Brasil Profissionalizado antecede o PRONATEC – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, que foi criado também pelo Governo Federal, em 2011, por meio da Lei 11.513/11; contudo hoje o Programa Brasil Profissionalizado integra uma das iniciativas do PRONATEC. Para participar do programa, deve-se assinar o Compromisso Todos pela Educação - Decreto n° 6.094/97 (MEC, 2015). Bernardi, Rossi e Ucuak (2014), ao analisarem a política do Compromisso Todos pela Educação, constatam a indução de parcerias com entidades do setor privado desde o início com o Movimento Todos pela Educação4, que contou com a composição e participação de empresas e empresários, até a implementação da política pelo Estado. Os autores mapeam também os interlocutores privados e sua ligação com a oferta de produtos, tais como: materiais pedagógicos, descrição de diversas tecnologias e informações suplementares que foram pré-qualificados pelo MEC. A prática do TPE, compreendido como sujeito histórico, é uma iniciativa de classe que se constituiu independente do Estado, mas funciona articulando ‐se com o governo e com setores da educação no país e desse modo determinam o que vem a ser a qualidade da educação “traduzindo ‐a sob a form para o trabalho explorado requerido pelo capitalismo” (BERNARDI, ROSSI, UCZAK, 2014, p.5). Leher e Evangelista (2012, p.7) também analisam a inserção dos grupos empresariais e financeiros sob o TPE: O TPE foi convocado justo pelo setor bancário, liderado pelo Itaú, em articulação com o setor de commodities, no caso, siderúrgico, dirigido pelo organizador de outra iniciativa empresarial para intervir na educação, o movimento Brasil Competitivo, Jorge Gerdau Johannpeter (MARTINS, 2009). Este dirigente empresarial atualmente é um dos principais assessores da presidenta Dilma Rousseff para a continuidade da reforma do Estado iniciada nas gestões Bresser-Pereira e Claudia Costin. Para ampliar a convocatória, o Itaú Unibanco Holdings S.A. contou com a adesão de entidades e organizações representativas de outras frações do capital, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE) e Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. A convocatória da holding financeira partiu da constatação de que as corporações estavam atuando em centenas de grandes projetos educacionais com objetivos educacionais pertinentes, afins aos interesses corporativos que os patrocinam, mas que a dispersão dos esforços impedia uma intervenção “de classe” na educação pública, objetivo altamente estratégico, pois envolve a socialização de mais de 50 4 “Em 2006 realizou‐se a Conferência Ações de Responsabilidade Social em Educação: melhores práticas na América Latina, promovido pela Fundação Lemann, Fundação Jacobs e Grupo Gerdau, com apoio do Preal. Os representantes das empresas brasileiras reunidos elaboraram um documento sobre educação: ‘Compromisso Todos Pela Educação’” (BERNARDI, ROSSI E UCZAK, p. 4, 2014). 28 milhões de jovens, a base da força de trabalho dos próximos anos. Os setores dominantes, após a articulação política dos grupos econômicos em prol do movimento, passaram a atuar por meio de suas fundações privadas ou de suas Organizações Sociais, como Itaú-Social, Faça Parte, Ayrton Senna, Roberto Marinho, Gerdau, Victor Civita, Abril, Bunge, DPaschoal, Bradesco, Santander, Vale, PREAL, Lemann, entre outras. No início do Programa de Educação Profissional de Nível Médio, o Estado do Ceará contava com 25 escolas, distribuídas em 20 municípios, com a oferta de 4 cursos profissionalizantes: Informática, Enfermagem, Guia de Turismo e Segurança do Trabalho. Em quatro anos, houve uma ampliação expressiva. Hoje, os dados oficiais contabilizam 115 escolas distribuídas por mais de 82 municípios e 53 cursos (CEARÁ, 2015). A matriz curricular das EEEPs, durante todo o ensino médio, é composta por: formação geral (disciplinas da base comum), com carga horária de 2.620 horas; formação profissional (específicas dos cursos técnicos), com carga horária entre 1.600 - 1.020 horas, somando a parte teórica mais 200 horas de estágio (ver Quadro 1); área diversificada/atividades complementares (empreendedorismo, mundo do trabalho, formação cidadã, projeto de vida, projetos interdisciplinares, horário de estudo, estágio curricular complementar, língua estrangeira aplicada), com carga horária de 1.780 horas; totalizando em média 5.400 horas (Anexo A). Sobre área diversificada do currículo, a SEDUC afirma: A Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB) estabelece que na base nacional comum do currículo deve preponderar uma dimensão diversificada. Essa “parte diversificada” envolve as Atividades Complementares, escolhidas pelos sistemas de ensino e pelos estabelecimentosescolares, de acordo com as características regionais, culturais, sociais e econômicas […] Essas unidades curriculares favorecem a comunicação entre a formação geral e a formação profissional, na medida em que tratam de temáticas que são transversais ao currículo proposto, como também contribuem para desenvolver o protagonismo cooperativo e solidário (CEARÁ, 2016). Pelo que se pode perceber, a “área diversifica” ganha o maior destaque nos currículos das EEEPs, ficando atrás do eixo das disciplinas da base comum e à frente do eixo técnico-profissionalizante, como forma de flexibilizar o currículo para que os conteúdos empresariais, de carater ideológico, possam se sobressair (empreendedorismo, mundo do trabalho, projeto de vida etc.) e também para favorecer “a comunicação entre a formação geral e a formação profissional” como o elo da matriz curricular. Deste modo, observamos que a conjugação entre a base comum do currículo e a base profissionalizante não se estabelece pela unidade prática, teórica-científica do trabalho e das disciplinas científicas, mas através dos interesses de formação para o mercado de trabalho, confudidos como interesses comum e geral, que regem as características regionais, culturais, sociais e econômicas. 29 O Catálogo dos Cursos Técnicos das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará contém 53 cursos técnicos agrupados em 12 Eixos Tecnológicos. Quadro 1 - Catálogo dos Cursos Técnicos das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará. Eixos tecnológicos Cursos Carga Horária Teórica/Estágio Ambiente e Saúde • Biotecnologia • Enfermagem • Estética • Massoterapia • Meio Ambiente • Nutrição e Dietética • Saúde Bocal • 1.240 h./600 h. • 1.260 h./600 h. • 1.300 h./600 h. • 1.300 h./600 h. • 1.240 h./400 h. • 1.200 h./600 h. • 1.200 h./600 h. Controle e Processos Industriais • Automação Industrial • Eletromecânica • Eletrotécnica • Manutenção Automotiva • Mecânica • Química • 1.200 h./400 h. • 1.220 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 1.240 h./600 h. Desenvolvimento Educacional e Social • Instrução de Libras • Secretaria Escolar • Tradução e Interpretação de Libras • 1.200 h./400 h. • 1.220 h./400 h. • 1.200 h./400 h. Gestão e Negócios • Administração • Comércio • Contabilidade • Finanças • Logística • Secretariado • Transações Imobiliárias • 820 h./400 h. • 960 h./400 h. • 860 h./400 h. • 880 h./400 h. • 920 h./400 h. • 820 h./400 h. • 860 h./400 h. Informação e Comunicação • Informática • Redes de Computadores • 1.240 h./400 h. • 1.260 h./400 h. Infraestrutura • Agrimensura • Desenho de construção civil • Edificações • Móveis • Portos • 1.000 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 1.300 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 900 h./400 h. Produção Alimentícia • Agroindústria • 1.260 h./400 h. Produção Cultural e Design • Design de interiores • Gestão cultural • Modelagem de vestuário • Paisagismo • Produção de áudio e vídeo • Produção de moda • Regência • 900 h./400 h. • 940 h./400 h. • 860 h./400 h. • 860 h./400 h. • 840 h./400 h. • 1.020 h./400 h. • 1.000 h./ 400 h. Produção Industrial • Fabricação mecânica • Petróleo e Gás • Têxtil • Vestuário • 1.200 h./400 h. • 1.300 h./400 h. • 1.200 h./400 h. • 1.200 h./400 h. Recursos Naturais • Agricultura (floricultura) • Agronegócio • 1.260 h./400 h. • 1.260 h./400 h. 30 Fonte: Secretária de Educação do Estado do Ceará. Disponível em <http://www.educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br>. Adaptada pela autora, 2016. No exame das bases conceituais e metodológicas de implementação das EEEPs cearenses, priorizamos, na seção a seguir, a análise de seu documento norteador, o manual denominado Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE). A TESE foi produzida e é propriedade do Instituto de Coresponsabilidade pela Educação – ICE, entidade privada, ordenada pela classe empresarial, designada a reformular as escolas de ensino médio do Estado de Pernambuco. A reformulação destas escolas, que teve início em 2004, está registrada no documento “A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova”, de autoria do executivo Marcos Magalhães (2008). Debruçamo-nos também sobre a análise deste documento, já que ele é o fundamento basilar da TESE e das EEEPs do Ceará. 2.2 A concepção empresarial de ensino médio público: uma análise documental das experiências de Pernambuco e Ceará Para entendermos melhor o projeto que rege as Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará (EEEPs), debruçar-nos-emos sobre um documento da autoria de Marcos Magalhães5, presidente do ICE – Instituto de Co-responsabilidade pela Educação. Este instituto, por sua vez, elaborou a TESE, hoje aplicada nas EEEPs do Ceará. Um diretor destas escolas, em entrevista, nos relata um pouco da inserção da TESE na gestão escolar6: Após aprovação no processo seletivo os gestores passaram por um um seminário para apresentação da TESE, em 2009, divididos em dois grupos, gestores do ano de 2008 e futuros gestores de 2009. O seminário foi uma imersão de uma semana, mais de 40 horas com temáticas sobre liderança, trabalho em equipe, e sobre a caracterização geral da TESE (fundamentos, documentos orientadores, história, etc.) [...] No ano de 2009, estávamos sob a coordenação da professora Tereza Barreto, ex- gestora do ginásio pernambucano, que integrava o ICE (Instituto Co- Responsabilidade em Educação) que era responsável pela coordenação das atividades das EEEPs orientando a aplicação da TESE. Ela permaneceu exercendo 5 Marcos Magalhães é um executivo, ex-presidente da Philips Brasil. 6 A TESE já chegou a ser componente curricular das EEEPs (Anexo B), contudo o currículo foi reformado e a TESE foi diluida nos componentes da área diversificada. • Agropecuária • Aquicultura • Fruticultura • Mineração • 1.260 h./400 h. • 1.080 h./400 h. • 1.260 h./400 h. • 1.220 h./400 h. Segurança • Segurança do trabalho • 1.240 h./400 h. Turismo, Hospitalidade e Lazer • Eventos • Guia do turismo • Hospedagem • 820 h./400 h. • 960 h./400 h. • 840 h./400 h. 31 este trabalho até meados de 2010, onde por motivos que não sabemos ao certo deixou de exercer a consultoria. (Entrevista concedida por um Diretor das EEEPs, 2016). O documento intitulado “A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio: Pernambuco cria, experimenta e aprova”, publicado em 2008, relata a implantação, o funcionamento e os princípios das escolas de ensino médio integrado em Pernambuco. Estas escolas também oferecem educação profissional e geral, ambas com ênfase na formação de competências e empreendedorismo. O documento as denomina de Centro, e aqui empregaremos o mesmo significado. O documento expressa de forma clara os interesses empresariais e se alinha ao pensamento neoliberal de Friedman (1984) ao afirmar que a gestão pública é ineficaz e, por isso, é necessária a intervenção direta dos empresários para “ajudar” a gerir a educação, com base em suas experiências com a gerência: Não apenas fazemos reuniões e discussões. O que nós sabemos fazer como empresários é gestão, nós sabemos gerir processos. Sabemos o ciclo PDCA7. A gente faz isso todos os dias. No setor público, com as poucas exceções, de praxe, o planejamento é ruim, a execução é terrível, não se age em cima do valor medido para melhorar, não se tem plano de ação (MAGALHÃES, 2008, p. 20). O padrão empresarial deve perpassar toda a escola com o enfoque na gestão, no trabalho com base em metas, na gerência de informações, na avaliação, na competição, na premiação, na punição e sobretudo no controle. Magalhães (2008) escreve o que para ele seriam os empecilhos ao bom funcionamento da escola pública: A) a governança, pois adivisão das responsabilidades aos diferentes níveis de ensino entre o Governo Federal, Estadual e Municipal isenta a responsabilidade pelo “todo”; B) as secretarias de educação: para ele, o requisito para a eficiência de um secretário são as experiências gerenciais, que não necessariamente seja na área de educação; C) as faculdades de pedagogia: fraseando Eunice Durham, em uma entrevista concedida à revista Veja8, afirma ser o ideal fechar todas e começar do zero; D) sindicatos: alega que estes precisam ver a educação de forma suprapartidária e critica o que 7 O ciclo PDCA, Plan (planejar), Do (executar), Check (verificar), Act (agir), “[...]foi desenvolvido na década de 1930 pelo físico e engenheiro Walter A. Shewhard nos Estados Unidos e posteriormente propagado por Willian Edwards Deming, estatístico norte-americado, ambos conhecidos pela dedicação ao desenvolvimento de processos de controle estatístico da qualidade. Posteriormente passou a ser adotado como ferramenta de gestão de negócios” (ICE\TESE, s\d, p.12). Vale lembrar que a década de 1930 é marcada por uma severa crise econômica que, por sua vez, obrigou capitalistas a reconfigurarem modelos de produção e gestão, assim como o Estado precisou rever políticas públicas. 8 Para quem tiver a curiosidade de ler esta entrevista, irá se deparar com uma crítica aos cursos universitários de pedagogia que supostamente “[...] desprezam a prática da sala de aula e supervalorizam teorias” e propõe a adaptação às demandas do mercado. (VEJA, 26 de novembro de 2008). Eunice Durham foi secretária de Política Educacional do MEC entre os anos 1995 e 1997. 32 para ele é a essência dos acordos sindicais “trabalhar menos e ganhar mais”; E) os professores: para Magalhães estes são vítimas e vilões; vítimas da degradação da profissão, da infraestrutura precária das escolas, da falta de reconhecimento e incentivo; vilões porque “fazem o jogo político dos sindicatos, entregam muito pouco resultado de seu trabalho a sociedade e ainda se acham injustiçados” (MAGALHÃES, 2008, p. 7), ou seja, são vilões por não serem “produtivos” e não serem devidamente cobrados por seus resultados; F) a gestão escolar: o autor defende o modelo empresarial, autonomia administrativa, punição para os piores e premiação para os melhores, o gestor deve ser carreirista, tudo isto como meio de minimizar a influência política se detendo na eficiência; condena a indicação política e a eleição direta, afirmando que democracia não significa competência. O discurso escamoteado de que a eficiência é garantida perante a anulação da política, ou de um posicionamento político, tenta disfarçar os reais interesses de classe. Identificamos uma tendência tecnicista ou neotecnicista da educação na perspectiva do Programa. A técnica colocada acima dos sujeitos e da política ganha um caráter conservador na medida em que prolonga a manutenção das estruturas sociais de poder de quem as detêm. A subjetividade do sujeito é vista nesta perspectiva, seja na produção de riquezas materiais, seja no trabalho pedagógico, como um risco à eficiência e à objetividade (SAVIANI, 2007). Já o neotecnismo, como o termo mais adequado à realidade atual como uma releitura do tecnicismo, revê o papel do sujeito em uma perspectiva limitada e alienante, na medida em que este pode contribuir com sua subjetividade a favor da produtividade. Contudo, esta subjetividade precisa ser bem regulada (SAVIANI, 2007). Outro fator concedido por Magalhães (2008, p. 9) como um entrave à qualidade da educação pública é a corrupção, considerada um “vírus que está presente no organismo da sociedade brasileira [...]”. Assim, parece conceber a sociedade brasileira capitalista como um organismo sadio que é infectado pelo vírus da corrupção que, por sua vez, é colocada no mesmo patamar: a corrupção organizada dos governos e a “corrupção” isolada de indivíduos, em um apelo moralista. A ética é outro ponto amplamente ressaltado no documento de Pernambuco e mais ainda na TESE9, só que o termo é mal-empregado, pois o que se fomenta é um viés moralista conservador. Vásquez (2008), ao fazer um estudo sobre a ética, defende-a como ciência da moral, levando em consideração a concretude e a historicidade do homem real, e não uma 9 A TESE – Tecnologia Educacional Socioempresarial, como diremos a seguir, tem por base a Tecnologia Empresarial Odebrecht – TEO. O presidente desta holding, uma das maiores do país, com atividades em diversos ramos, Marcelo Odebrecht, foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão, na operação Lava Jato da Polícia Federal (2015), por organização criminosa, corrupção ativa e lavagem de dinheiro. 33 filosofia normativa que tem por finalidade classificar o que é bom e mal, que parte da concepção de um homem abstrato. Na sociedade capitalista, o trabalhador é visto como um ser econômico e não como um ser humano real, com seus sofrimentos e desgraças. Vigora-se a lei do maior lucro, o que gera uma moral pautada no egoísmo, na hipocrisia, no cinismo, no individualismo exacerbado, no culto ao dinheiro e às mercadorias e na utilização de pessoas para ganhar vantagem (VÁSQUEZ, 2008). Ainda segundo Vásquez (2008), a burguesia, classe dominante, propaga seus valores como valores universais, cabendo à classe proletária subjugada desenvolver os seus próprios valores. Inserida na proposta educacional do modelo pernambucano e das EEEPs, há a concepção igualmente empresarial do que venha a ser o aluno, o educador e a missão da escola. O aluno é visto como “protagonista do seu processo educacional” (MAGALHÃES, 2008, p. 47). Sobre a nova geração de alunos do ensino médio, há uma constatação de que estes vivem “um momento histórico de mudanças radicais no mundo do trabalho e nas exigências de formação” (MAGALHÃES, 2008, p.45). Nestas afirmações, podemos perceber o forte apelo à responsabilidade do indivíduo para com sua formação e, consequentemente, com sua situação econômica e social atual\futura. Como assegura Kuenzer (2002), as estratégias para excluir o trabalhador do mercado formal e incluí-los no mundo do trabalho em condições precárias, a chamada “exclusão includente”; assim como as estratégias de incluir o exército de reserva na escolarização básica e em cursos aligerados de formação profissional, que lhes confere o status de empregabilidade, como meio de justificar sua exclusão no mercado de trabalho pela “incompetência”- inclusão excludente -, passa também por processos de persuasão e coerção, no qual o trabalhador compreende sua própria alienação como resultante de sua prática pessoal. No ideal burguês, as recompensas sociais devem ser distribuídas de acordo com o rendimento dos indivíduos. Para tanto, estes devem partir de uma igualdade de oportunidades para que a concorrência seja uma competição regulada de forma tal que possa neutralizar as influências externas. O liberalismo econômico é a máxima deste ideal, porém o mercado logo se mostrou injusto na distribuição de oportunidades. “Por isso nas recentes versões da ideologia do rendimento o êxito no mercado é substituído pelo êxito profissional, representado pela educação formal” (HABERMAS apud ENGUITA, 1989, p.193). 34 Na visão empresarial, o “protagonismo estudantil” significaria, ainda, apropriar-se dos conhecimentos dos vários sistemas organizados, requerendo como pré-condição a apropriação dos instrumentos básicos da leitura, escrita, Matemática e raciocínio lógico, que “permitem desenvolver as competências de compreensão” (MAGALHÃES, p.49). A formação de subjetividades flexíveis, tanto do ponto de vista cognitivo quanto ético, se dá, predominantemente, pela mediação da educação geral; é por meio dela, disponibilizada de forma diferenciada por origem de classe, que os que vivem