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CORAÇÃO SELVAGEM II

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Pégasus Lançamentos
Juan Del Diablo II
Mônica
Caridad Bravo Adams
Disponibilização e Tradução: Jo Slavic 
Revisão:Vânia Gusmão 
Formatação: Evânia Amorim
1
Pégasus Lançamentos
 
 Capitulo 1
— Ana. Ana! — Chama Aimée com impaciência: — Ana. 
— Aqui estou senhora Aimée, já chego. Chegou correndo.
— Correndo? Faz três horas que te enviei. Se te parecer podias ter demorado
mais.
 — Ai! Senhora Aimée, é que o senhor Renato mandou fazer uma coisa e tive 
que fazê-la.
 — Renato? A que te mandou Renato?
 __Que acompanhasse à senhorita Mônica a seu quarto e que dissesse à
senhora Catalina que a senhorita não se encontrava bem. O senhor me mandou que
fizesse isso e tive que fazê-lo.
— Naturalmente. Esquecendo por completo meus encargos, sabendo que
estou aqui morrendo de impaciência, esperando que chegue. Fala logo. Pôde ver o
Juan. Falou com ele?
— Não, senhora, o senhor Juan deixou ao notário com a palavra na boca,
agarrou um cavalo e se foi.
— Aonde?— Que rumo tomou? Não te fixou?
— Não senhora, com a boca aberta fiquei olhando o cavalo correr. Enquanto
vinha para cá contar a você, zás! O menino Renato que me chama e eu que tenho
que acompanhar à senhorita Mônica, que tampouco me deixou que entrasse em seu
quarto nem que lhe dissesse nada a dona Catalina. Entrou ela primeiro, fechou-me a
porta nos narizes e me deixou fora. Para mim que não estava doente, mas sim como
assustada. Seguro que a assustou o senhor Juan, que esteve brigando com ela.
— Brigando com ela? Quando?
— Quando a encontrou surrupiando ao negro esse que sempre vai com ele,
ao Colibri. Moço mais revoltoso e mais travesso, e mais atrevido também! Roubou
uma empanada da cozinha, e sabe o que respondeu à cozinheira?
2
http://pegasuslancamentos.blogspot.com/
Pégasus Lançamentos
— O que pode me importar? Responda-me ao que preciso saber. Antes de ir-
se Juan, com quem falou? O que disse? Foi imediatamente depois de discutir com a
Mônica?
— Não, senhora, logo esteve também com o notário briga que briga. Desde
aí se foi como um tiro a procurar um cavalo que já tinha mandado selar. Montou-se
de um salto, e depois não se via mais o que a poeirada.
— Me ouça, Ana — impacienta-se Aimée — é preciso, indispensável, que
eu veja o Juan antes que anoiteça que eu lhe fale. Tem que encontrá-lo, e lhe dar
esse recado de minha parte, mas sem que te sinta a terra, sem que ninguém suspeite
que fosse eu quem te mandei, entende?
— Entendo senhora. Mas, como vou fazer isso? Eu não sei nem aonde foi.
— Pergunte a alguém, a quem pode te dar razão. Espera, o moço foi com
ele?
— Não, ele se foi sozinho e feito uma fúria.
— Pois busca ao moço e me traga isso sem que ninguém te veja, sem que
ninguém se inteire de que sou eu quem vai falar com ele. Sirva-me bem. Ana me
sirva bem e terá o anel mais lindo do mundo. E dinheiro, todo o dinheiro que
queira. Anda. Vê, corre!
Com gesto de determinação e desesperada empurrou Aimeé à escura donzela
nativa, obrigando-a a acelerar o sempre pausado ritmo de seus movimentos. Logo
vai de um lado a outro pelo luxuoso quarto sem saber como acalmar-se, como
aplacar seus nervos, submetidos há várias horas a penosa tensão da espera. Nunca
pôde pensar que Juan do Diabo tomasse tão rapidamente uma determinação
semelhante. Seguir-lhe, fugir com ele, deixá-lo tudo, trocar sua posição e sua
riqueza pela sorte daquele aventureiro, por muito atrativo que fosse para ela, por
muito grande que fosse a sugestão que sobre seus sentidos exerce, é mais do que
humanamente está disposta a dar. Não, não irá com ele daquela maneira. Mas, como
aplacá-lo? Como evitar a feroz vingança de seus ciúmes? Pensando nele se
estremece de temor e desejo de uma vez. Deseja-o e o repudia, ama-o e o aborrece,
desespera-se ao não poder dominá-lo a seu desejo e lhe ama mais ao vê-lo como é:
duro e rebelde, feroz em seu domínio, implacável naquela amargura que agora
destilam suas carícias e seus beijos. 
Tem cansado de joelhos ao pé da janela, apertadas uma contra outra as mãos
engarfadas, dilatadas as pupilas que espiam inútil e ansiosamente. Uma férrea
determinação se levanta também em sua alma e prorrompe em voz alta:
— Não será como ele deseja muito! Será como eu queira! Terá que ser
como
eu queira!
— Ana. Ana. — exaspera-se Aimée. — Acabará de mover esses malditos
pés? Acabará de chegar?
— Já chego senhora Aimée. Mas é que faz um calor.
— E demônio carregue contigo! Onde está o menino?
3
Pégasus Lançamentos
— Pois não o encontrei, mas me disseram onde estava o senhor Juan. Foi ao
engenho. Aninha estava dizendo ao Batista que o senhor Juan. Juan do Diabo como
diz ela, havia mandado selar o cavalo branco do amo e havia tombado nele para o
engenho, e que terei que ver como mandava e como dispunha, como se o amo fora
ele. Se você quiser, eu posso ir para lá. Agora mesmo estão carregando no pátio vos
carrinhos de mão grandes com tudo o que vão mandar para o engenho. Eu posso ir
com um deles e digo ao senhor Juan o que você me mande que diga, minha ama.
Que venha, não?
— Sim. Que preciso lhe falar, vê-lo. Mas espera, espera. Não confio muito
de que chegue a tempo — Com angustia crescente foi para a janela. Já o sol está
muito baixo, logo que doura com seus últimos raios a cúpula altiva do Mont-Brigue,
e murmura como para si: — Ele me espera esta noite às doze.
— Daqui as doze há muito tempo.
— Ninguém perguntou por mim na casa?
— Ninguém saiu que seu quarto desde esta manhã. Nem a senhora Sofia,
nem a senhorita Mônica, nem a senhora Catalina. E o senhor Renato está com o
notário no escritório que foi do amo dom Francisco, é o único que pediram que
entrassem foi conhaque e café. Aninha mesma entrou e leva-lhe, disse que não
podia entrar outro a incomodá-los, porque estavam arrumando as contas.
— Menos mal. Bom, vais procurar, onde esteja o senhor Juan. Vais dizer-lhe
que estou doente, muito doente; que por piedade aguarde a manhã para me falar e
para ver-me. Diga-lhe que o pedido chorando. Diga-lhe.
— Por que não me escreve tudo isso em um papel, minha ama?
— Em um papel? Sim, tem razão. Mas... 
— Em um papel sem assiná-lo. Eu já lhe digo que é de você. De sua própria
mão e ponho. Só a ele o entrego. O juro, minha ama, só a ele. Não tenha medo.
— Vou confiar em ti, Ana, vou escrever esse papel, mas me responde com
sua vida de que só ao Juan o tem que entregar. Jura-me isso Ana, jura-me isso. 
— Por Deus e a Virgem do Céu! Só ao senhor Juan lhe darei o papel, e se
não for assim, que me caia morta!
A escura donzela jurou cruzando os dedos, e um instante Aimée parece
vacilar entre a necessidade peremptória de confiando-se a ela e a pensar a arma
terrível que fabrica contra si mesmo naquelas letras. Com ânsia febril vai até a
pequena escrivaninha e nervosamente rebusca até achar o que necessita.
— Ana, vais ter muito cuidado com isto. Se alguém quiser lhe tirar isso se te
vir em qualquer apuro.
— Como a carta antes que dar-lhe a outro! Juro, minha ama.
— Está bem, está bem. — Acata Aimée ficando a escrever, mas de repente
duvida e rompe o papel. — Não posso expor-me dessa maneira! Espera. Não sabe
você escrever. Ana?
— Eu escrever? O que vai! Sei tirar contas e pintar muito bonito. Aninha
sim sabe escrever e ler. Puseram-lhe professor como às meninas brancas. Das
4
Pégasus Lançamentos
faxineiras, é a única que sabe escrever. Mas você não vai confiar nela. Além disso,
se o senhor Juan não vir sua letra não vai acreditar que o papel é de você.
— Ele nunca viu minha letra. Mas espera. Espera. Posso escrever um papel
que não me comprometa muito. Sim, isso, ele compreenderá. O compreenderá que
não posso mandar outra coisa contigo. Ele entenderá.
Agora sim escreve, rápida e firmemente, uma carta ambígua, cerimoniosa,
que é, entretanto, um pedido dilacerador. Logo a dobra, guardando-a em um
envelope com seus dedos que tremem, e murmura:— Para o Juan. Para o Juan de Deus. Sim. É melhor assim.
— Juan de Deus? — se estranha a faxineira.
— Alguém lhe chama assim. O entenderá perfeitamente. Mas você lhe diga
que a carta é minha, que estou realmente doente, que a escrevi chorando e
desesperada. Anda. Vê, corre, não vás perder a oportunidade dessa carreta.
— O que vai, minha ama! Quem a leva é Esteban e esse sim é meu amigo
para tudo o que seja.
Aimée empurrou violentamente à faxineira e voltou à janela. O último
raspou de sol desapareceu e uma só estrela, enorme, resplandecente, brilha no céu
azul muito pálido, sobre o topo do Mont-Brigue.
 — Bom, Renato, em definitivo.
A voz se apagou em lábios do notário, dando-se conta de que Renato
D'Autremont não lhe escuta. Cruzados os braços, de pé em meio da ampla habitação
que fora o escritório de seu pai, os claros olhos inquisitivos percorrem as estantes
que chegam ao teto, como se interrogassem os velhos volumeis pretendendo lhes
arrancar o segredo que encerram.
— O que tanto miras aí, moço?
— Era neste painel. Sim. Atrás dos livros, não sei se mais acima ou mais
abaixo, mas por aqui se abria um oco. Era um esconderijo, uma espécie de caixa de
ferro na moda do século passado. Certamente aí papai guardaria valores, papeis
coisas importantes.
— Seu pai tinha contas correntes em todos os bancos do Saint-Pierre. Não
acredito que guardasse nada importante nos esconderijos do escritório.
— Pois algo guardava Noel, e mais de uma vez, sendo eu menino, vi o Pai
remexer nele. A última foi à noite que precedeu à madrugada em que nos trouxeram
ele moribundo depois de seu acidente. Esta casa é muito velha. Mandou-a fazer um
de meus avôs. Ampliaram e reformaram muitas partes, mas no escritório não foi
tocado por ninguém desde então.
— O escritório tem, efetivamente, uma porta secreta naquela esquina, e você
a conheceu de menino. Ao menos, isso me disse dona Sofia esta manhã.
— Mamãe? Mamãe falou esta manhã com você?
— Acabo de cometer uma indiscrição lhe dizendo isso, mas, enfim, já parece
e não é possível voltar atrás. Em efeito, filho, falamos. Entrou aqui quando menos o
esperava, precisamente por essa portinha, e me deu um grande susto.
5
Pégasus Lançamentos
— Por que entrou minha mãe dessa maneira? Por esquivar-se de Juan,
verdade? Por não querer vê- lo nem sequer de longe.
— Bom, filho, sim. É inútil que lhe negue isso. Sua mãe se aborrece. E algo
pior: tem-lhe medo. Às vezes parece tolo e supersticioso deixando-se levar dessas
coisas, mas quando o coração de uma mãe dá um aviso.
— Não diga tolices Noel. Você também tem medo do Juan do Diabo e não é
por intuições nem por pressentimentos. Há algo mais positivo, mais concreto. O que
teme? Que roube sua herança? Não, não se alarme Noel sente-se. Volte a sentar-se.
Já lhe disse, ao trazê-lo para este escritório, que tinha que me contar várias histórias
velhas, e a primeira delas a de meu pai. A de meu pai e a do Juan.
— Do Juan ninguém sabe nada, meu filho.
— Você sabe Noel, e minha mãe também sabe. E um pouco do Juan havia
naqueles papéis que eu vi esconder a meu pai. Depois disso ocorreu a única cena
realmente desagradável e vergonhosa que lembro minha infância. Prefiro não falar
disso, mas volto a lhe perguntar, Noel: O que temem do Juan minha mãe e você?
Diga-me a verdade. A verdade, por crua, por desagradável que pareça.
— Bom, filho, eu só temo a seu caráter, a seus arrebatamentos, a sua pouca
educação.
— Mas minha mãe lhe temeu sempre. Desde menino lhe inspirou ódio e
horror, e agora evita o vê-lo porque sua presença lhe faz mal. Quando se enfrentou
com ele, ficou tão pálida que temi vê-la cair sem sentido. E sabe por quê? Juan se
parece extraordinariamente a meu pai. Pode ser uma coincidência. Mas pode não sê-
lo. E são tantos os detalhes ao redor desse assunto, que eu.
— Renato, meu filho. Eu te peço — interrompe-lhe Noel profundamente
apurado.
— Eu sou quem lhe pede que se cale, Noel. Sou já um homem feito.
Conheço a vida e não vou assustar-me a estas alturas de que meu pai me tenha dado
um irmão fora da lei. Por que essa confusão? Por que esse susto, Noel?
— Não é susto, é preocupação e angústia. Como chegou a pensar todo isso?
E como tomará sua mãe que saiba?
— Logo é certo! Acalme-se, Acalme-se, Noel, não hei lhe forjado uma
armadilha. Tinha a convicção moral. Tenho-há a muito tempo. Acredito que desde
menino, embora em forma inconsciente. Até há pouco tempo não quis pensar nisso
porque também me incomodava, mas o tenho feito e não foi difícil. Ontem à noite
mesmo estive rondando por todos esses livros. Vê você? Em um destes tecidos, em
um destes três, estava o esconderijo.
— Para que procurar esconderijos? — observa Noel dando-se por vencido.
— É certo. Para que? Tenho a convicção e com ela deve me bastar, mas
também me interessam os detalhes. Como foram as coisas? Até que ponto teve
razão minha mãe para ser implacável? Até onde sabe Juan quem é?
— A sua mãe não a culpe, meu filho, sofreu muito e ainda segue sofrendo,
— Suponho que sua conversa secreta com você foi sobre isso.
— Pois bem, sim. Ela está agora disposta a ser generosa.
6
Pégasus Lançamentos
— Contanto que Juan se vá, naturalmente — apostila Renato com um
sotaque de amargura.
— Bom, filho, não terá que pedir muito a uma mulher que viu sua vida
amargurada e destroçada por causa desse caso que deram ao Juan a existência. Ela
quer apagar rastros que lhe ferem, esquecer um passado cuja lembrança lhe é
insuportável, verte feliz sem lastros nem taras em sua vida, e nada disso é criticável.
Eu sempre senti pelo Juan compaixão e afeto.
— Sei muito bem e por isso me surpreende sua atitude destes dias. Além de
nascer. Como nasceu, o que tem feito Juan para que você tenha trocado assim com
ele?
— Não é o que tem feito. 
— Já. É o que pode fazer. Mas, o que é isso? Há tramado? Ameaçou? Ou
acaso são temores de outro gênero?
Sua mão se apoiou premente, no ombro do notório. Depois de breve luta
com sua indecisão. Noel parece decidir-se:
— Olha, Renato, eu não sei mais que o que pressinto, e o que pressinto são
amarguras e desgostos que podem evitar-se sem dar às coisas tantas voltas. Juan
quer ir sim, quer voltar para mar. Deixe-lhe que se vá. Mais adiante, quando as
coisas troquem, procuraremos a fórmula de lhe compensar com uma boa quantidade
de dinheiro que em uma ou outra forma se faça chegar a ele. Mas, de momento.
— Não, Noel, não decidirei nada até falar com o Juan, até lhe mostrar meu
coração e lhe obrigar a que me mostre o seu. É meu irmão, dá-se você conta? Esta
verdade que para mim só existia pela metade, agora está clara e diáfana. Tenho um
irmão, um irmão no que a nobre figura de meu pai parece reviver. Você não pode
imaginá-lo que significa isto para mim, e acaso tampouco possa medir toda a
felicidade que me negaram de menino ao me negar esta verdade íntima e humana —
Renato falou com exaltado entusiasmo, e em um arranque de emoção, roga: —
Conte-me isso tudo. Noel me diga quanto saiba disso. É a história de meu próprio
sangue. NÃO me negue isso!
O velho notário começa a relatar a história, tão bem conhecida dele, desde
aquela noite tormentosa em que o pequeno Juan do Diabo fez o papel de
mensageiro da morte. Renato bebe sedento de saber, o relato pormenorizado, e, de
repente, indaga:
— E essa carta. Noel?
— Bom. Ficou em mãos de seu pai, certamente. Eu suponho que ele a
queimou ou a rompeu depois.
— Ou a guardou. Quem sabe!
— Talvez; embora não acredito. Seu pai, ao princípio, mostrou-se muito
desconfiado. Bertolozi era um homem vingativo, cruel e traiçoeiro. Algo podia
esperar-se dele: a maior mentira, a maior infâmia. Estou bem seguro que depois de
seu perdão aparente, atormentou a Gina até fazê-la morrer de desespero. E quanto
ao Juan.
7
Pégasus Lançamentos
— Posso muito bem adivinhar sua horrível infância. Que fácil é perdoar sua
rudeza e seus defeitos sabendotudo isto!
— Com quanta razão temia sua mãe que o saber tudo isto te desarmasse
mais frente a Juan, tirasse-te a pouca vontade de te defender que possa ter.
— O que pensa você que possa fazer Juan contra mim?
— Eu não penso, mas sua mãe teme e tem razão em temer. Não quero nem
pensar o que dirá quando souber tudo isto.
— Eu falarei com ela depois de ter falado com ele. E acaso dê a ela e a
surpresa de comprovar que se equivocaram. Às vezes, o coração sabe mais que a
cabeça. Juan não pode me odiar se eu for a ele como irmão, se o demonstro todo o
sinceramente que lhe quero se nobremente me adiantar a oferecer o que incluso não
pediu. 
— Não caia em uma loucura de generosidade, Renato! Pensa que a só
existência do Juan é, para sua mãe, uma ofensa viva, candente; que até o nome da
Gina Bertolozi a fere como uma faca envenenada.
— Não pode ser. Minha mãe tem que ser mais generosa. Gina Bertolozi já
está morta.
— Há ódios que não se aplacam nem com a morte. Há rancores. E ciúmes
dos que não tem uma ideia. Você não há sofrido nunca, Renato, não pode medir a
amargura, a dor, o desespero a que a alma descende em alguns momentos. Você não
pode ser juiz, porque a vida foi até hoje, para ti, um caminho de rosas.
— Talvez por isso compreenda e compadeço mais aos que sofrem, e ao Juan
o primeiro. Vou mandar buscá-lo. Noel, para lhe falar como irmão. Para lhe dizer.
— Certamente, ele sabe.
— Mas pensa que eu o ignoro. E se não o pensa, acredita algo pior: que sou
insensível, egoísta. Quero que saiba que estou disposto a reparar, a devolver. Que o
mundo não é tão mau como ele pensa.
— Nem tão bom como você imagina, Renato. Deixa-o que se vá. É o maior
desejo de sua mãe!
— Até agora minha mãe cumpriu nesta casa todos seus desejos, até os mais
injustos. Vou contraria-la por uma só vez e confio em que sua contrariedade não
dure muito.
Renato se levantou, foi para a parede e touca um timbre, ante o qual, sentido
saudades, Noel pergunta:
— O que faz filho?
— Chamo um servente para que vá em busca do Juan. Aguardei quinze anos
por este momento.
— E se Juan não merecesse sua generosidade, Renato? Se não fora nem
sequer capaz de compreendê-lo? Se respondesse a sua boa vontade com sarcasmos,
com desprezo, acaso com uma amarga ingratidão?
— Pensaria que a culpa não é dele, mas sim dos que o converteram em um
emparelha, dos que lhe desapropriaram de tudo. Meu bom Noel deixe de dúvidas e
vacilações. Não há mais que um caminho e é o que me assinala minha consciência.
8
Pégasus Lançamentos
— Uns golpes discretos, dados na porta, interrompem-lhe momentaneamente e,
elevando a voz, convida: — Adiante. Se, Luiz, eu fui quem te chamou. Procura o
senhor Juan por toda a fazenda e lhe diga que o espero em meu escritório, pois
preciso falar com ele imediatamente. Que se apresse que não se detenha por
nenhuma razão, e te apresse você também.
Capitulo 2 
— Que é isso, tio Batista?
— Isso. Luiz que passou ao galope, rumo ao engenho. Entrou nas quadras
pedindo o melhor cavalo que houvesse porque tinha que ir, por ordem do amo, em
busca do Juan do Diabo.
— De maneira que mandaram a procurar o Juan do Diabo.
— Sim, o amo tem muita urgência de falar com ele. Vamos ver que presente
lhe oferecem agora a esse mendigo que para nada serve.
Junto à larga arcada do portal que dá acesso às habitações da asa esquerda,
Batista dá rédea solta a sua cólera, a seu despeito. Acaba de sair das cavalariças, —
onde a última ordem da Sofia lhe confinasse. Enchente a barba, revolto o cabelo,
cobertas de lama as altas botas e o látego na mão, é algo bem diferente do outro
tempo onipotente capataz de Campo Real. Junto a ele, atenta sempre aos menores
ruídos, naquela espionagem que é sua vida inteira, fica Aninha alerta a todo ruído e
movimento, e comenta pensativa:
— Quão único querem Noel e dona Sofia é que Juan do Diabo se vá para
sempre; mas há alguém que não quer lhe deixar partir.
— A quem te refere?
— Já o verá. Já o verão todos. Disse-te que tivesse paciência. Acalme-te, tio.
— Não me dá a vontade de me acalmar. Nas veias me ferve o sangue de ver
o que vejo. Sou menos que um cão nesta casa, mas o primeiro servente que volte a
me responder mal vai, ou seja, quem sou, mesmo que me tenham tirado o mando
para dar-lhe a qualquer. 
— Cala. Esteja-te aquieto um momento. Vê?
— Não vejo a não ser à senhora Aimée que aparece à janela de seu quarto.
— Todo o dia esteve nele, mas Ana entrou e saiu mais de cem vezes. É sua
confidente. Sua criada de absoluta confiança. Certamente conta com ela até para os
9
Pégasus Lançamentos
encargos mais íntimos. OH, olha! Ana sai Outra vez.. Algo vai passar esta noite, e
apostaria a que sei o que é.
— Mas que loucura. 
— Baixa a voz. Ana se aproxima. Não, vai para o outro pátio. Vou atrás dela.
Algo vai passar esta noite.
Pôs-se a andar atrás da Ana. Batista, preocupado, segue-a. Muito perto está o
enorme carrinho de mão que deve sair rumo ao engenho. A ele enfia seus passos
Ana, enquanto o rosto de Batista se decompõe de cólera, ao protestar:
— Aonde vai essa imbecil? Esse é o carro que vai para o engenho;
— Naturalmente. Ana vai procurar ao Juan do Diabo, vai levar-lhe um
encargo ou um recado do Aimée do Molnar, estou segura disso.
— Não vai levar nada, porque não vai subir a esse carro. Está proibida que
as mulheres vão aos carros do engenho. Sou o chefe das cavalariças, dona Sofia me
nomeou ontem, e muitos vontades tenho que ajustar as contas a essa. — dirigiu-se
com passos rápidos ao encontro da Ana, e gritando enfurecido, ameaça-a: — Fora
desse carro. Abaixo. Fora! Sai ou lhe tiro arrastando, benjamima!
— Não sou benjamima. E não posso sair! Tenho que ir para o engenho.
— Que não vai sair. Descerá-te de cabeça
— Esteban vai levar-me. A senhora mandou que fora.
— Protestou Ana, lutando com Batista, e elevando a voz, grita angustiada:
— Esteban.. Esteban.. — Hei dito que não vão mulheres nos carros do engenho —
recalca Batista imperioso, enquanto sujeita à mestiça servente. — Esteban, maldito
pollino. Agarra as rédeas e te largue de uma vez. Que te largue, disse. Ou vais
arrepender-te! Comprido!
Batista açoitou aos cavalos que partem assustados, enquanto Esteban logo
que acerta a sujeitar as rédeas. Logo sacode como um farrapo à donzela do Aimée,
arrojando-a longe de um violento tranco, ao tempo que afirma furioso:
— Que aprendam que ainda mando nas garagens!
— Ana. Ana! Tio Batista! — grita Aninha, que chega a toda presa. — Olha-
a. Está como morta. Golpeou-se a cabeça ao cair!
— Oxalá arrebente! Mas não tem nada. Está-o fingindo! É uma cadela
maldita! Vou por não chutá-la, por não acabar com ela seriamente.
Batista voltou para as garagens. O carro se afasta pelo caminho em sombras.
Nervosamente, Aninha toca o rosto frio e cinzento da Ana, e a sacode chamando-a
insistente:
— Ana. Ana. Não tem nada. Não siga fingindo. Abre os olhos. Ai, Jesus!
Ana!
Tremendo pelo medo de ver aparecer ao Renato ou a qualquer capaz de lhe
informar, sem atrever-se a chamar, Aninha levanta a cabeça da Ana procura algo
com o que poder auxiliá-la. Ao fim desabotoa totalmente o sutiã, lhe despindo o
peito, procurando o batimento do coração do coração que logo que percebe
debilmente. Tropeçou com um sobre branco. A pouca luz do farol das garagens lê
em um instante a quem vai dirigido, e com rápido movimento o esconde entre suas
10
Pégasus Lançamentos
próprias roupas, ficando de pé ato seguido. A emoção é tão forte que lhe parece
afogar-se, mas um passo e uma voz conhecida se aproximam investigando:
— O que aconteceu? O que foram essas vozes? — Aninha se afasta
procurando as sombras retrocedeu de costas, fugindo da figura que aparece no
corredor iluminado, que cruza para as garagens ao não achar resposta, e que persiste
em seu chamado: — Quem está aí? O que é isto? Ana!
Surpreendida, a senhora D'Autremont se inclinou sobre o desacordado corpo
da Ana. Rápida e silenciosaAninha se afasta, enquanto a voz da Sofia se eleva
chamando insistentemente:
— Aninha. Aninha. Esteban. Esteban!
— Dona Sofia! — exclama Aimée aproximando-se assustada. E de repente,
com verdadeiro pânico ao reconhecer a figura inerte que se acha no chão,
prorrompe: — OH, Ana! O que aconteceu? O que aconteceu?
— É o que queria saber. Ouvi vozes, um carro. Chamei e não responderam;
saí a ver o que ocorria. Não sei o que é o que tem esta mulher.
— Parece desmaiada, mas.
Aimée olhou com ânsia o sutiã aberto; com febril angustia apalpa seu peito,
suas mãos, registra seus bolsos e volta o olhar espantado para a dama que se pôs de
pé, ao tempo que explica:
— Tinha jurado que havia alguém junto a ela. Quando sentiram me
aproximar, fugiram. E me surpreende muitíssima que ninguém apareça!
— OH! Tenho que ir ao engenho.. — murmura Ana entre gemidos, já
voltando pouco a pouco em se.
— O que diz?— quer saber Sofia. 
— Nada. Loucuras. Parece que delira.. — replica Aimeé extremamente
nervosa, — Ana, sou eu, e aqui está dona Sofia também! Entende? Aqui está dona
Sofia!
— Dona Sofia, sim.. — murmura Ana fazendo um esforço. — Ai, minha
cabeça! — queixa-se. E de repente, com espanto repentino, exclama: — A carta!
Tiraram-me isso!
— Que carta era essa? — Aviva-se a curiosidade da Sofía.
— Está delirando, Ana! — As unhas do Aimée se cravaram na mão da
mestiça.
Recuperando do todo o sentido. Ana olha o rosto furioso de Aimée, e logo
aquele outro rosto pálido, grave e atento, inclinado sobre ela, e aquela voz que é lei
em terras dos D'Autremont:
— O que te ocorreu. Ana?
— Ai, senhora! Não sei. Não sei. Não sei.. — rompe a chorar Ana com
visível angustia.
— Não chore e responde! — recrimina Sofia. — Diz que lhe tiraram a carta?
— Deve ter escorregado e caído — intervém Aimée, conciliadora, tratando
de desviar a investigação de sua sogra.
11
Pégasus Lançamentos
— Mas o seu lado havia alguém. Ana. Quem era? — insiste a senhora
D'Autremont.
— Não sei. Não sei! — trata de evitar a faxineira.
— Não sabe nada, dona Sofia — volta a intervir Aimée. — Já sabe você
como é ela. Tem pouca cabeça. Não se preocupe mais.. Levarei-a a cozinha e farei
que a atendam. Não se incomode.
— Sim, filha, vê com ela. Eu levei um susto atroz. Não sei onde se metem os
criados, que nunca aparecem quando mais lhes necessita — E elevando algo a voz,
chama de novo: — Aninha!
Pelo lado oposto, Aninha, impecável, correta, com o mesmo gesto de
perfeita solicitude com que se acerca sempre a sua senhora, e se oferece
humildemente:
— Aqui estou madrinha, chamava-me você?
— Chamei-te faz um momento. Ana se deu um golpe, sofreu um desmaio.
Não sei, em realidade. Não sabemos. Faz que a atendam, Aninha.
— Não, Por Deus. Eu a atenderei — adverte Aimée rapidamente. — Que
Aninha a acompanhe a você, dona Sofia. A senhora está assustada, Aninha. Acredito
que necessita uma xícara de chá imediatamente. Vamos, Ana!
— Que acidente mais estranho! — comenta Sofia.
— Tudo é agora estranho nesta casa, senhora. Mas o único lamentável é que
a tenham assustado a você. Vou até a cozinha para lhe fazer uma xícara de chá.. 
— Não, Aninha , deixa-o. Dê-me o braço e me acompanhe a meu quarto.
Temos que falar nós também.
— Quem te tirou a carta? Quem? — apressa Aimée em um deplorável estado
de nervosismo.
— Ai, senhora. Não sei. — choraminga Ana.
 — Maldita imbecil! Mas, o que te passou? O que pôde te acontecer?
— Já lhe contei. Esse Batista. Eu estava montada no carro, Esteban vinha já
e íamos sair para o engenho. Chegou o Batista feito um demônio e tirou-me a
puxões. Logo lhe gritou ao Esteban que se fora e ele mesmo lhe tocou os cavalos.
Eu quis sair correndo atrás do carro e o Batista me empurrou. Sim, empurrou-me e
me deu um chute também. Depois, já não me lembro. Dava-me contra uma pedra.
Já não sei nada mais, minha ama, já não sei.
 — Estava totalmente desacordada. Alguém te revistou, tirou-te a carta.
Quem foi? Quem pôde ser? Batista acaso? Quem mais estava aí?
— Ninguém. Eu não vi ninguém. Eu estava sozinha, o Esteban vinha. O
Batista chegou correndo. Seguro foi Batista, senhora!
— Se Batista tiver essa carta, não a entregará ao Renato, não se atreverá a
ficar frente a ele, me preferirá vender isso a um bom preço. Tenho que buscá-lo,
que falar com ele.. — Uma badalada do relógio de parede a interrompe, e com
sobressalto exclama: — OH.. . A hora que é. Tenho que pegar essa carta.
Aimeé olhou de novo pelas janelas. Não há ninguém nos portais nem nas
galerias, nem no largo trecho que separa o edifício central das garagens. Nenhum
12
Pégasus Lançamentos
ruído se percebeu tampouco do outro lado da casa. Tremendo de angústia volta até o
armário próximo, toma um espesso xale de seda, envolvendo-se nele a cabeça e os
ombros, enquanto Ana o olha surpreendido, os grossos lábios entreabertos, e
pergunta:
— Aonde vai, senhora Aimée?
— A procurar Batista. Certamente está escondido nas garagens. Bom
cuidado teve de não aparecer quando o chamou dona Sofia!
Rodeou mais o xale ao redor de seu corpo estatuário, o jogou mais à cara
cobrindo-a quase por completo, onde só brilham seus olhos acesos de febre. Com as
duas mãos no peito, onde o coração parece golpear espião um momento o deserto
corredor, e sai rápida e silenciosa como uma pantera.
— Quer abrir essa janela? Esta noite parece que faltasse o ar. Esta noite
tornei a sentir que me afogo, como nos primeiros anos em que cheguei a estas
terras.
Precisa silenciosa, com a rapidez e a perfeição que são características nela,
Aninha tem aberto a janela do amplo quarto de Sofia, mas em nada troca o ambiente
da luxuosa estadia, não há uma rajada de vento, não há uma nuvem no escuro céu
coberto de estrelas. É uma dessas noites sem lua em que se entretecem os luzeiros,
tão apertados como uma rede de prata, sobre o veludo do firmamento. Com suave
passo, a pálida soberana de Campo Real se aproxima da janela, e o corpo magro,
escuro e vibrante da Aninha , retrocede um passo lhe cedendo o sítio
respeitosamente.
— Durante muitos anos aborreci esta terra até no que tem de mais formoso:
seu campo, seu céu, seu sol de fogo, suas noites imóveis. Quantas noites como esta
acreditei me asfixiar e pus-se a andar desesperada por esses atalhos!
Sofia estendeu a mão para os escuros campos silenciosos, enquanto se sente
como invadida, como golpeada por uma marejada de lembranças. Ardentes
lembranças de seus primeiros meses de casada, amargas memórias dos largos anos
em que esperava cada noite ao Francisco D'Autremont, calculando com áspero
despeito em que braços esqueceria seu nome, em que lábios estaria bebendo o mel
de um amor que a ela só chegava já como um sorriso, como uma ternura diferente,
como um amável e frio respeito.
— Não vai você a deitar-se, madrinha? Precisa descansar.
— Esta noite não tenho sono. Temos que falar Aninha. Quer me escutar?
— Certamente, madrinha.
Aninha inclinou a cabeça com aquele gesto de frio respeito que está
acostumado a fazer como um autômato, mas as mãos tremulas se juntam,
apertando-se sobre o peito, e treme mais ao contato daquela carta. Ali tem a prova, a
arma terrível, a adaga com que pode de um golpe certeiro destronar a sua odiada
rival. Mas, rival no que? Ao baixar a cabeça se olhou a si mesma, contemplando a
seu pesar o traje típico com que se veste; a larga saia de tecido floreado, o avental
branquíssimo, e volta a olhar também, como outras vezes, suas magras mãos
morenas. São finas e belas, cuidadas com esmero. Mãos cor de cobre claro,
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Pégasus Lançamentos
forçadamente castas, que se crispam no anseio de todas as candas, que se fecham
como querendo apanhar um desejo impossível. Mãos de uma vez gentil e lúbricas,
generosas e perversas. Mãos que ao fim se sabem proprietárias do turvo destino do
Aimée.
— Está cansada? Sente-se, Aninha.
— Não, madrinha,não estou cansada — afirma Aninha refreando com muita
dificuldade sua impaciência. — Mas temo que você. Que você se fatigue mais da
conta.
— Sim. Meu coração parte devagar. Amou e sofreu muito. É natural. Mas
deixemos isso; quero falar do Renato. Por ele, e para ele, necessito que haja paz
absoluta nesta casa. Renato a necessita; é o único ambiente no que respira seu
coração tão sensível, tão tenro. E tão apaixonado também. Renato é como um
menino Aninha. E contra seus anos, contra sua força e contra seu orgulho de
homem, como um menino tenho que defendê-lo. Não sei se me compreende; mas
necessito que me compreenda para que não te pareça uma ingratidão o que vou
dizer-te. É preciso que Batista, e que você mesma, afastem-se desta casa.
— Como? O que? — surpreende-se dolorosamente Aninha. — Vai você nos
jogar, madrinha?
— Para que empregar essa frase tão feia, e que ao mesmo tempo não é certa?
Não, Aninha. Pensei que seu tio deve voltar para a França e que é justo que você lhe
acompanhe. Você não gosta da ideia de fazer uma viagem a Europa?
— Eu o único que quero é estar junto a você, madrinha.
— Esperava essa resposta. Agradeço-lhe isso, e certamente, é a justa no
primeiro momento. Mas a pouco que pense nele, tomará gosto à viagem. Sentirei-te
falta, é para mim um verdadeiro sacrifício.
— Mas pensa você que o senhor Renato não quer ver-me, verdade?
— Ao menos por algum tempo, mais vale lhe evitar a ocasião de ver Batista.
Você nada tem feito, já sei. Mas se o recorda. Pensa que ficou aqui Batista contra a
vontade de meu filho. Nestes dias espero que também Juan do Diablo se afaste. Pus
os meios, e se irá. Quero dar ao Renato uma verdadeira lua de mel, pois não a teve
pela intranquilidade destes dias, pelos contínuos problemas que lhe apresentam.
— Se o senhor Renato voltasse a pôr a meu tio em seu posto, não teria
problemas. Com ele não os havia. O senhor Renato está cego, não sabe onde estão
seus amigos e seus inimigos. Não sabe distinguir.
— Aninha, por que diz isso? — atalha-lhe Sofia com severidade.
— Você sabe igual a mim, madrinha.
— Talvez saiba, mas não ficam bem essas palavras em seus lábios. Além
disso, quero que me diga que razão tiveste para dizê-las. A quem te refere? Viu,
ouviste algo para? 
 Aninha levou as mãos ao peito, apalpou de novo o duro papel daquela carta,
mas seu rosto permanece impassível, nada delata nele a fogueira em que se abrasa.
Suave e cortesmente, diz sua mentira:
— Só sei o que lhe ouvi dizer a você, madrinha. Perdoe-me.
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Pégasus Lançamentos
— Não é nada. Compreendo o que sente. Tenho por ti gratidão e carinho,
filhinha, e não te abandonarei nunca. Compreende? Se não achar bom na Europa,
pode voltar seguir-me acompanhando, e quando aqui ou lá chegue o momento em
que queira te casar com um bom moço de sua classe, darei-te um dote com a que
tem que te sentir proprietária e senhora de seu lar..
— Obrigado, madrinha. Não esperava menos de você — observa Aninha em
forma fria, embora cortês.
— Sei que te tenho feito acontecer um gole amargo. Vete a descansar. Parece
nervosa e impaciente. Anda, vete a procurar a seu tio, lhe fale disto e lhe diga que,
não voltará para a França com as mãos esvazia, a não ser com dinheiro para viver
sem trabalhar ou para estabelecer por sua conta um pequeno negócio.
— Obrigado outra vez, madrinha.
 Aninha beijou a mão da Sofia com um gesto automático e se afastou depois.
Frente à porta fechada do despacho, detém-se, com as mãos no peito para sentir o
roce daquela carta. E sentindo também o tamborilar de seu coração desbocado,
sentindo em seus lábios, ardidos pelo fogo de uma paixão sem esperança, que o fel
do rancor é mais amarga que nunca, murmura com raiva:
— Me jogar desta casa, me afastar dele! Já veremos! Já veremos quem é a
que se afasta!
Até o fundo das garagens chegou Aimée, o passou rápido e nervoso, o olhar
escrutinador. Mas o antigo mordomo não se acha nas garagens, nem nos estábulos,
nem no departamento dos empregados, nem nos quartos destruídos onde se guarda a
lenha. Aimée esquiva o encontro com a sonolenta moço de guarda, cruza sob os
arcos e se detém com surpresa frente a uma figurinha fina e escura que, subida no
alto de um montão de feno, parece devorar algo às escondidas.
— Colibri, o que faz aqui?
— Eu. Eu, nada. Comer. Mas eu não roubei à empanada. Ana me disse.
— Te aproxime e não fale forte. Onde está Juan do Diabo? Por que não anda
com ele como sempre? Não sabe onde está? Responde!
— Pois não sei onde está, minha ama, seriamente que não sei. O se foi esta
manhã para o engenho.. — E em tom de mistério, adiciona: — Levou-se dois
cavalos. Um primeiro e outro depois, e me disse que não falasse com ninguém, que
não lhe dissesse nada a ninguém, que se me buscavam para me perguntar,
escondesse-me. E toda a tarde estive escondido, até que se foi esse velho mau que
lhe pega às pessoas. Batista, não?
— Batista? Que Batista se foi?
— Sim, minha ama, foi. Colocou roupa em um saco, e dois pães e um
queijo. Logo colocou o saco na alforja de uma mula negra que estava daquele lado,
ficou a jaqueta e o chapéu, agarrou a escopeta do sereno, montou-se na mula e se
foi.
— Batista se foi. Foi. — murmura Aimée consternada. — E seu amo.
Colibri? Diga-me tudo o que dele saiba. Diga-me isso 
15
Pégasus Lançamentos
— Você também sabe, porque é a ama nova, não? Isso me disse o amo. Que
íamos ter ama nova e que era você. Eu a, ninguém, a ninguém digo nada, mas você
se souber. Você sabe tudo.
— O que? O que é tudo?
— O navio está na praia pequena, ao lado do engenho, e esta noite as doze
estará o amo atrás da igreja, e você se vai com ele. Você e eu vamos com ele 
Aimée fechou os olhos sentindo que um vento gelado a recobre dos pés a
cabeça. É terror, é espanto. Tudo é certo, respiram verdade as ingênuas palavras do
menino que se aproximou de lhe falar em tom de mistério, brilhantes os negros
olhos sobre o rosto escuro, tremente e assustado ele também. Com angústia olha
Aimée a todas as partes até comprovar que ninguém escutou as palavras do
pequeno. Logo pensa naquela carta, queda sabe Deus em que mão. Mas que eleva
aquele papel, comparado com o apresso do momento? O Lúcifer escondido muito
perto, lhes aguardando, preparado para partir quem sabe para que rumos, para que
aventuras, para que portos. O Lúcifer, um barquinho ridículo onde a vontade do
Juan é onipotente, onde teria que submeter-se, como uma escrava, a seu domínio,
perdido tudo: fortuna, dignidade, posição, direitos. Até o nome. Juntou as mãos,
elevou os olhos ao céu. Se soubesse rezar, rezaria e neste instante; mas como um
relâmpago passa um nome por seu pensamento:
— Mônica! Mônica! Ela pode me salvar. Só ela. Como uma fera
perseguida, salvou Aimée o largo terreno que separa as cavalariças do luxuoso
edifício central, mas não torce pelo lado esquerdo. Vai diretamente para as
habitações dos hóspedes, sobe a escada de pedra, chega junto à porta do quarto da
Mônica e alta sem chamar o trinco, entrando de repente.
Lentamente, Mônica se levanta do genuflexório em que orava inclinada a
frente, e pouco a pouco vai dominando sua emoção, sua angústia, sua estranheza,
enquanto juntas as mãos, vivendo um minuto de verdadeira agonia, Aimée lhe
aguarda.
— O que te passa Aimée? O que tem? Para que vem a me buscar assim?
— Não sei nem para que venho nem sei como me arrisco ir a ti. Não mereço
sua ajuda nem seu apoio. Mereço que me volte às costas, que me jogue daqui sem
me ouvir sequer. 
— Fala que já te estou ouvindo. 
— Não, não me atrevo nem a te falar sequer. Perdoa-me. Estou perdida se
você não me salva, se você não me ajudar, se você não o detiver!
— Deter quem? — apressa Mônica francamente alarmada.
— Ao Juan do Diabo. — estala Aimée.
— Ah! — tranquiliza-se Mônica. — Pensei. 
— Renato não sabe nada. Acredita-me pura, poda,inocente, e não me
importa morrer cem vezes com tal de que siga acreditando. É por ele, Mônica,
juro-te que é por ele. É pelo Renato que não quero cometer essa infâmia! Como
posso destroçar o coração de um homem tão bom? Como possa amargar sua vida
para sempre? Como posso lhe cravar a adaga de uma desilusão assim? Se te pedir
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Pégasus Lançamentos
que me ajude, se te pedir que me salve, é por ele, Mônica. Você me compreende.
Irmã. Irmã. 
— Eis resolvido me apartar de seu caminho, Aimée. Eis resolvido deixar que
siga sua sorte. Minha luta foi inútil, e a abandono. Faz o que queira tudo o que
queira. 
Como desaba no tapete, aos pés da Mônica, está Aimée, que agora se
incorporou, tomando desesperadamente entre as suas as mãos geladas e brancas de
sua irmã. Como longínqua, como ausente, permaneceu Mônica sem dar amostras de
que aquela dor, verdadeiro ou fingido, ou comover-se. Fez o gesto de afastar-se, de
apartar-se, mas Aimée, se desesperada, fecha-lhe o passo:
— Não pode me abandonar agora!
— Cem vezes me pediu que me fora, que te deixasse em paz. 
— Cem vezes o pedi, e não o fez. Continuou aqui impedindo com sua
presença que eu resolvesse minhas coisas mau ou, me exasperando, me
enfurecendo. E agora. Precisamente agora. 
— Pretende jogar a mim a culpa? — atalha-lhe indignada Mônica.
— Não, irmã, não é isso. Ao contrário. Meço, vejo, apalpo que tem razão
em tudo, que seus broncas eram merecidas, que seus prognósticos eram certos.
Como uma louca segui a lei de meus instintos. Cega por uma paixão insalubre rodei
e rodei, e agora estou ao bordo do inferno. Mas não quero cair mais abaixo, não
quero seguir rodando, não quero me afundar na lama definitivamente, e afundar
comigo o nome de meu marido. 
— Agora pensa em seu marido! Não minta mais!
— Juro-lhe isso, irmã. Enlouquece-me a ideia de perdê-lo, de ser indigna aos
olhos dele. Estou desesperada, arrependida. Não quero mais que ao Renato,
não quero viver mais que para ele. Mas Juan não me deixa! Não o
compreende?
— Que não te deixa? Não siga mentindo! Você é quem o busca quem o
enlouquece, quem lhe juraste que a ama apesar de tudo, que está disposta a lhe
seguir a onde quer que ele leve. 
— Não. Não. Não irei com ele! Antes o direi tudo ao Renato. Se você não
me ajudar, se você não me salvar, procurarei a morte. Confessarei a verdade ao
Renato, e que me mate. Sim, que me mate, para acabar com tudo de uma vez. Que
venha o escândalo! Que venha a morte! Eu mesma lhe sairei ao encontro!
— Aimée! Aonde vai? — detém Mônica com um grito a sua irmã que
começa a afastar com passos rápidos. — Estas louca?
— Pouco me falta! Mas antes que Juan venha a me buscar a esta casa, antes
de pô-los a ele e ao Renato frente a frente, em uma luta em que Renato será
vencido. Porque Juan lhe matará; Juan é mais audaz, mais forte. Antes que Juan o
mate a ele, prefiro que Renato me mate. E agora mesmo. 
— Quieta Aimée! Onde está Juan? O que quer que faça?
— Vais ajudar-me? Mônica de minha alma! Já sei que não o faz por mim. A
mim queria ver morta. 
17
Pégasus Lançamentos
— Não, Aimée. É minha irmã, meu sangue. Não poderia te abandonar a sua
sorte, mas não posso Fazê-lo. Não é só pelo Renato; é por ti também. Se houver
algo que eu possa fazer. 
— Juan te escutará. A ti tem que te escutar. É a única que pode detê-lo,
embora seja de momento. Um prazo, uma prorrogação, umas horas de tempo para
fazer algo, algo com o que me liberar desse maldito Juan. 
— Agora lhe amaldiçoa. 
— Amaldiçoo-lhe e lhe aborreço! Quero ao Renato e viverei para ele! Juro-
lhe isso! Se me salvar desta, serei a mulher melhor, mais total, mais honesta, mais
dedicada ao amor de meu marido. 
— Mas como te salvar, Aimée?
— Juan quer me levar esta noite. As doze espera com dois cavalos atrás da
igreja. Se não for, se não chegar, se faltar a esse encontro, virá a me buscar,
arrastará-me com ele jurou que me levará, embora seja diante do Renato. 
— Mas é um selvagem, um demente! — exclama Mônica com o espanto
refletido em seu branco rosto.
— É. Quem é. Já sabe. Procura só que não dê o escândalo esta noite. Diga-
lhe que estou doente, lhe prometa em meu nome que irei com ele. Mas não esta
noite, não neste momento, — E, visivelmente alarmada, assinala: — Porque já são
as doze! Certamente que neste instante chega. Esperara só uns minutos se eu não
me apresentar, se você não chegar a detê-lo. Não lhe importará matar nem destroçar
ao Renato. Odeia-o, odiou-o sempre! Corre, Mônica, corre, vê e lhe fale. Eu ficarei
aqui rezando porque Deus tenha piedade de nós, e porque aceite meu
arrependimento. 
Tem cansado aos pés do crucifixo que preside a quarto da Mônica, e chora.
Chora de espanto, de angústia, de medo. Mônica o olha um instante, coberta de
suor as têmporas, e vencendo seu horror, oferecendo-se inteira ao momento terrível,
sai arrastando o corpo gelado a alma ardente. 
Capitulo 3
Nervoso, inquieto, com uma impaciência que é alegria febril, vai Renato de
um lado a outro do escritório, seguido pelos cansados passados do velho Noel. Um
instante, os olhos do jovem D'Autremont olham compassivos ao velho notário, para
em seguida lhe propor:
— Está você cansado. Vá-se descansar se quiser. 
— Pensa que poderia descansar sem saber no que acaba tudo isto? Vamos
fazer um trato, filho: você te vais descansar, e eu o espero.
18
Pégasus Lançamentos
— Que ocorrência! Você sim que se vê que não pode mais. Vá, Noel, vá
repousar. 
— Vou, mas só a dar uma volta. Muito me temo que dona Sofia não se
deitou esperando que eu passe a falar com ela. Se me permite usar esta porta
secreta. Dá diretamente frente à quarto de sua mãe, conforme me disse ela. Abre-se
oprimindo a moldura, acredito que neste lado. Aqui. Sim. Se afunda a moldura,
mas não se abre a porta.
— OH! O esconderijo que procurávamos! Não lhe disse ficava neste painel?
Abriu-se ao apertar você à moldura. 
Foram as duas para a prateleira, onde efetivamente se encontra o oco de uma
portinha. Mas na escura cavidade só há um papel enrugado. Um papel do que os
dedos do Renato se apoderam rapidamente e, emocionado exclama:
— Aqui está! Isto era! Diante de mim, meu pai enrugou esta carta e a
arrojou aqui dentro.
— Era essa a carta que?
— Sim. Acredito que se. Você, naturalmente, saberá o que diz. 
— Não, filho, nunca cheguei a lê-a. Bertolozi a enviou com o próprio Juan,
como já te contei, e seu pai a leu frente ao cadáver de que tinha sido seu implacável
inimigo. 
Fixa a vista naquelas linhas que lhe queimam, Renato permanece silencioso
e imóvel muito tempo, e ao fim começa a ler em voz alta o que já leu com o olhar.
Começa a ler com a mesma angústia, com o mesmo invencível respeito de maneira
que leu seu pai frente ao cadáver do Andrés Bertolozi.
Com minhas últimas forças te escrevo Francisco D'Autremont, e te peço que
venha a meu lado. Veem sem medo. É tarde para que eu me cobre em sangue todo
o mal que me tem feito. Não tenho que te repetir quanto te odeio. Você sabe. Se
matasse com o pensamento, te teria aniquilado, mas só eu mesmo me consumei
inutilmente na fogueira deste rancor que me apodrece a alma. Mata-me o ódio mais
que o álcool. Por ódio calei durante anos inteiros. Hoje quero te dizer algo que
acaso te interesse. Esta carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e
ninguém se ocupou jamais de batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da
costa lhe dizem algo mais. Juan do Diabo. É uma fera, um selvagem, acreditai-o no
ódio. Tem seu coração malvado, e eu lhe dei, além disso, rédea solta a todos seus
instintos, destilei sobre seu coração rancor e veneno. Sabe por quê? É seu filho!"
A velha carta do Bertolozi tremeu nas mãos do Renato, como tremeu
primeiro nas do Francisco D'Autremont. Seus olhos, aumentados de angústia,
elevam-se para percorrer a estância, sem vê-la, e a figura desolada dovelho notário,
imóvel, mudo junto a ele. Um instante respira com dificuldade, afogado pela
emoção daquela tragédia, não por longínqua menos cruel; mas de novo os artigos
desiguais lhe atraem como se ardessem. Outra vez volta para eles, e outra vez bebe
naquelas letras todo o veneno que Andrés Bertolozi pusesse nelas:
— “Sim seu filho estiver frente a ti, olha-o à cara. Às vezes é seu vivo
retrato, outras se parece com ela, ela, a maldita rameira que me traiu, a que me
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Pégasus Lançamentos
arrancou, a que foi tua, como é teu esse filho, vergonha de minha vida. Toma-o,
leve-o. Tem o coração podre e a alma danificada de rancor. Não sabe mais que odiar
que aborrecer. Se o levar contigo, será seu inimigo, envenenará seu lar e turvará
seus sonhos. Se o abandonar, rodará ao mais baixo, será um assassino, um pirata,
um bandido que acabará na forca. E é seu filho. Seu filho. Tem seu mesmo sangue.
Essa é minha vingança!"
Com dor intensa, pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um
instante depois, Renato D'Autremont espreme aquela carta, última mensagem do
rival vencido, do inimigo triunfador na morte. E como Francisco, naquela
madrugada fatal, sente o desejo de cuspir sobre o rosto morto, sobre a tumba do
Bertolozi. 
— Pode um homem ser tão vil. Noel? Pode alguém vingar-se deste modo na
carne indefesa de uma criatura inocente? Sabia você tudo isto?
— Pressentia-o, até sem ter conhecido até agora esta carta horrenda. 
— E Juan? O pobre Juan. 
— Minha compaixão por ele tinha como vê, toda a razão do mundo. Era
bem justa, como justo era o empenho de seu pai em protegê-lo. Mas todo ficou
contra ele. 
— Foi minha mãe a que ficou contra ele. Recordo àquelas horas, como se as
vivesse de novo. Lembrança aquela noite em que meu pai saiu a cavalo por última
vez, e a lembrança é como uma queimadura. Porque eu também me voltei contra
ele!
— Renato, filho, o que diz?
— Foi defender a minha mãe, e suas últimas palavras foram para liberar do
peso a minha consciência. Sim, Noel. Em Seu leito de morte, meu pai me disse
duas coisas: que tinha feito bem defendendo a minha mãe, até contra ele, e que
ajudasse ao Juan, que lhe tendesse minha mão de amigo, de irmão. De irmão, sim,
essa foi à palavra que usou a lembro perfeitamente. E essa palavra se cravou para
sempre em meu coração de menino, e lhe jurei cumprir seu desejo. E contra o
mundo inteiro o cumprirei, Noel!
Deixou cair à carta sobre a mesa, Enxugou-se as têmporas, úmidas de um
suor de angústia. Logo, com rápido movimento, toma o velho papel espremido e o
acende na chama amarela do abajur, comentando:
— Agora queimo esta infâmia, este papel odioso, este grito de rancor e
baixeza, que é a herança do Juan. Eu lhe darei outra, darei-lhe ao que meu pai quis
que lhe desse: minha confiança meu afeto, meu carinho de irmão. E a metade
destas terras que por seu sangue lhe pertencem. 
— Filho, Por Deus. Tenha prudência. 
— Prefiro ter justiça, Noel. Que ao fim haja justiça sobre a terra dos
D'Autremont. Justiça, compreensão, amor e piedade para os que vivem, e perdão
para os pecados dos que morreram. 
20
Pégasus Lançamentos
Deixou cair sobre o largo cinzeiro de porcelana a carta que é já só um
punhado de cinza negra; logo, com rápido gesto, vai para a porta, e o velho notário
pergunta:
— Aonde vai, Renato? Não espera ao Juan?
— Não posso esperá-lo, Noel. Agora vou a seu encontro! No largo portal
quase em penumbras, Renato retrocede um passo contemplando a Aninha. Esteve a
ponto de tropeçar com ela ao sair do escritório. Pela primeira vez, os olhos claros e
doces do filho da Sofia se fixam nela com suavidade. Tem o coração cheio de
ternura, de compreensão humana, de amor e compaixão para todos os seres da terra.
Sente-se imensamente generoso, disposto à bondade e à indulgência, e domina até
ele movimento instintivo de antipatia que lhe produz a magra e escura mestiça, e
pergunta afetuoso: 
— O que acontece, Aninha, por que me olha dessa maneira?
— Parece você contente senhor. 
— Sim, Aninha , estou contente. 
— Entretanto, é preciso que saiba a verdade, que não lhe enganem mais, que
não se burlem mais de você. Que saiba quem lhe mente, quem lhe desonra. 
— Aninha! O que está dizendo? — exalta-se Renato, endurecendo o gesto
de sua expressão, faz um momento todo doçura.
— Você leia esta carta, senhor Renato! Leia-a! As palavras da mestiça foram
uma sacudida brutal, um descender violento do exaltado e luminoso clima de
ternura, de amor e de nobreza no que sua alma vivia. É um halo que lhe derruba, um
mundo de ilusões que se despenha, uma espantosa sensação de cair no vazio. De
um momento arrebatou a carta das mãos da Aninha sem olhar sequer a quem vai
dirigido. Logo lê de repente, como se tragasse de um só sorvo um copo de veneno, e
ameaça à mestiça:
— O que significa isto? Quem te deu esta carta? Para quem é?
— Para o Juan do Diabo!
— Para o Juan de Deus. — retifica Renato, lendo. — Quem escreveu esta
carta?
— Não o está vendo? Não sabe? Não conhece a letra ?
Outra vez tornou Renato a olhar aquelas linhas, aquelas letras que parecem
dançar ante seus olhos, arder em chamas de brincadeira e de ignomínia. Aquelas
palavras cujo significado horrível não quer compreender, e que, entretanto, vai lhe
penetrando mais e mais, até cravar-se em sua fibra mais sensível. Com olhos de
louco olha a Aninha, que retrocede como pretendendo a fugir, quando lhe fecha o
passo:
— Perguntei-te quem te deu esta carta!
— Não deram isso a mim. Roubei-a, recolhi-a quando a deixou cair à
estúpida com quem a enviaram. Esta é a carta que a senhora Aimée mandou ao Juan
do Diabo com sua Ana criada de confiança. Mandou entregá-la ao Juan do Diabo!
— Ao Juan do Diabo! Ao Juan do Diabo! O que diz é mentira! 
— É verdade! Juro-o! A senhora Aimée. 
21
Pégasus Lançamentos
— Não a nomes para manchá-la, porque vai nisso a vida! Fale. Fale!
— Não minto! A senhora Aimée quer ao Juan do Diabo! Veem-se a sós, têm
encontros. 
— Cala! Cala!
Rudemente, a mão do Renato tomou a garganta da mestiça e apura
enlouquecida, enquanto, sem defender-se, lança Aninha seu último jorro de veneno:
— É a verdade, é a verdade! Me mate se quiser, por dizer-lhe, mas mate-a
também a ela por lhe ser traidora!
— OH, basta! Basta!
Soltou-a fazendo-a cair; um instante a olha como fora de si, logo volta às
costas e corre para seu quarto. 
Aimée se pôs que pé apoiando-se no genuflexório, onde permaneceu imóvel,
de joelhos, juntas as mãos, sem chorar nem rezar, doloridos pela tensão o corpo e a
alma. Agora sacode a escura cabeça, ante a chegada de sua mãe, que a interroga:
— Filha, o que passou? Onde está sua irmã? Foi a meu recado. Pedi-lhe que
me fizesse um favor, e está Fazendo-me. Isso é tudo. Ia esperá-la aqui. 
Aimée se dirigiu para a janela, tratou que perceber todos os ruídos, mas
nenhum chega até ela no longo silêncio da noite. Tudo está em sombras, tudo
parece totalmente tranquilo, só um passo que chega muito depressa faz gelá-la
sangue em suas veias. Quer retroceder, esconder-se, fugir, mas já é tarde, pois
Renato irrompe na habitação e ordena autoritário:
— Aimée! Veem!
Arrastou-a quase, levando-lhe consigo, os dedos como ganchos de ferro de
aço cravados no braço dela, obrigando-a a afastar-se daquela quarto onde fica
sozinha a assustada Catalina, que não teve tempo sequer de pronunciar palavra
alguma. . Empurrou-a, colocando-a pela força sob o farol de luz amarela, e fica
olhando-a muito de perto de marco em marco, com expressão? Fera e terrível,
enquanto ela treme e em vão tenta retroceder. Não tem onde dar um passo atrás, e
ele está ali. Em seus olhos lhes dar há uma labareda de cólera infinita, de rancor
sem nome, um fogo que Aimée nunca viu naquelas pupilas, mas que bem conhece
em outrosolhos, e suplica assustada:
— Renato! Está louco?
— Louco e cego tudo que ter sido! Hipócrita! Perdida!
— Por que falas desse modo? Por que me olha assim? — E com afogado
espanto tenta defender-se: — Renato perdeste o julgamento?
— Recorda esta carta? Diga-me!
— Eu. Eu. Eu. — balbucia Aimée sem encontrar saída.
—É tua. Não o negue, não pode negá-lo. É tua sim, você a escreveu!
Enganava-me!
— Não, Renato, não. 
— Nesta carta geme, suplica, pede-lhe compaixão a outro homem, e é para
mim a quem devia pedi-la. Mas não o faça, porque será inútil. Será inútil!
22
Pégasus Lançamentos
Aimée tratou que fugir, mas as mãos do Renato a atendem oprimindo-a
sobem a sua garganta, arrudas e decidida. Com a suprema audácia do terror, Aimée
obtém forças para fugir para destilar o veneno de uma acusação:
— Não sou eu a culpada. Juro-lhe isso! É ela. Ela. Peço compaixão, mas
não para mim. Peço piedade, mas é para ela. Humilho-me e suplico, mas é para
salvá-la a ela. A Mônica!
— O que é o que diz?
— Mônica é a amante do Juan do Diabo!
— Não! Impossível!
— Jurei calar a custa de tudo. Jurei não dizê-lo. Por minha mãe. Renato,
por nossa pobre mãe, quis salvar a minha irmã. Quis salvá-la a custa de mim
mesma. Tenha piedade dela, Renato! Tenha piedade dela, e tenha piedade por mim!
Como se um golpe brusco despertasse, como se ascendesse do fundo de um
abismo, como se em suas trevas se fizesse a luz de repente, como se em meio de seu
desespero sem limites um raio de esperança chegasse lhe deslumbrando, Renato
retrocedeu procurando a verdade nos olhos do Aimée, que agora choram de espanto,
em suas mãos estendidas que pedem compaixão e piedade, é aquela voz que o terror
há quebrado em soluços, enquanto torpe e desesperadamente resmunga sua mentira:
— É Mônica. É Mônica. Minha pobre irmã que está louca, já lhe disse isso.
Escrevi a essa fera do Juan para detê-lo. Não era possível abandoná-la em mãos
dessa besta sem coração. Dá-la ao Juan é igual a entregá-la indefesa nas garras de
um tigre. Não me entende, Renato? Mônica é a amante do Juan! Entregou-se a ele
em um momento de loucura, sem saber o que fazia, e ele a converteu em sua
escrava, em sua vítima. Não compreende?
— E como posso compreender?
— Lhe quis, perdeu a razão um momento, e agora ele é o amo. Manda,
ordena, arrasta-a como a um farrapo, e ameaça com o escândalo. E ela morre de
medo, e sofre, e chora e... É um canalha, Renato, um canalha, um bandido! Mas
não lhe provoque, não ponha frente a ele. Deixa que eu seja quem lhe fale quem lhe
diga. 
— Não minta mais! — estala com fúria Renato.
— Não acredita o que te digo? Juro-te que é pela Mônica que escrevi esta
carta! Ela estava enlouquecida de espanto e me pediu auxílio. Tem-na encurralada,
aterrada, e agora mesmo. 
— Agora mesmo, o que?
— Estão discutindo ali, depois da igreja! Ela luta por convencê-lo de que se
afaste, de que a deixe voltar para seu convento. É o único que lhe pede o único que
lhe implora. 
— Atrás da igreja disse?
— Renato querido, tenha pena da Mônica. E perdoa-me. Perdoe-me por
não lhe haver isso dito. Ela não me perdoaria jamais se soubesse que você sabe. Ela
está arrependida. Quer matar-se, morrer. 
23
Pégasus Lançamentos
— Pelo Juan do Diabo? — Prorrompe Renato com desbordado sarcasmo e
amargura.
— Não por ele, mas sim por seu pecado, por sua vergonha. Eu quero ajudá-
la a que ele se afaste. O prometi. Comprar marcha e seu silêncio. Talvez um pouco
de dinheiro bastaria
— Você acredita que basta com um pouco de dinheiros salta Renato com ira
concentrada. — Acredita que Juan é o mais vil, o mais canalha, o mais prostituído
dos homens?
— Sim, Renato, sim. É todo isso. Por isso Mônica está enlouquecida. Sabe
que mamãe morreria se ela desse um escândalo assim. Prometi-lhe falar com essa
fera, lhe deter, lhe pedir. Interrompe-se de repente e ao observar o movimento de
Renato, pergunta espantada: — Aonde vai? 
— Vou ali, e você vem comigo!
Arrastou ao Aimée, levando-a consigo. Em vão ela luta, em vão resiste. O
vai como louco, como cego, sem acertar sequer a distinguir em que caos de
sentimentos, em que torvelinho de loucura vão envoltas sua razão e sua vida. E
lutando, Aimée suplica:
— Não, Renato, não! Por favor, espera. Ouça-me!
— Frente a eles dirá o que tenha que dizer!
— Não. Não! Está louco? Não me leve assim! — E em seu desespero grita
Aimée: — Por favor. 
— Renato. Aimée. Filha. Filha. — Em vão clamou a voz espantada da
Catalina, pois tomo uma tromba cruza Renato salga e jardins, arrastando ao Aimée
consigo, enquanto a voz da Catalina do Molnar persiste em um grito: — Renato.
Aimée. 
A anciã intui a tragédia, pressente, e adivinha. Quer correr, mas lhe falta o ar,
lhe nubla a vista, e cai fim de joelhos. Viu cruzar uma pequena sombra e chama. .
É Colibri, mas este não se detém a voz desesperada que clama em um soluço:
— Moço. Moço! Logo. Socorro. 
— O que acontece? Quem chama? — É a voz do velho notário que
espantado ante os gritos de auxílio se aproxima e, assombrado, exclama: — Dona
Catalina. 
— OH, Noel, meu amigo! Logo! Terá que impedi-lo! Chame dona Sofia!
Terá que impedi-lo!
— Mas, impedir o que?
— Vai matar a minha filha! Ai. 
Ficou imóvel, sem sentido. Noel, trêmulo, olha a todas as partes. Sombra e
silêncio caem sobre campos e jardins. Um trovão próximo parece agitar o espaço e
uma rajada de vento assobia entre a folhagem e a espessura. Também ele presente,
intui, adivinha, treme ante o terror do que vê, e levanta em vão os olhos ao céu
enquanto a tormenta se mora. Tão inútil como o desejo de deter a tormenta, tão,
impossível como sujeitar o raio, é impedi- lo. E ante sua impotência, exclama como
em uma reza:
24
Pégasus Lançamentos
— Meu deus! Meu deus. 
Capitulo 4
— Mente! Você veio a atravessar-se em meu caminho porque averiguou que
íamos fugir, porque vive a espiã. 
— Eu vim porque Aimée me pediu que viesse! Vim em seu nome para fazer
compreender a você sua loucura e sua baixeza! Vim para lhe pedir. 
— É inútil me pedir!
Ferozmente, Juan enfrentou Mônica, acesas de cólera as soberbas pupilas.
Foi a ela como se queria destroçá-la, golpeá-la com seus punhos poderosos, mas a
pálida figura gelada e triste que se eleva ante ele, detém-lhe, inspirando um respeito
invencível, enquanto um relâmpago vermelho, o que é já de ódio, brilha em seus
olhos magníficos. 
— Advirto-lhe que se Aimée não aparecer dentro de cinco minutos, vou
procurá-la onde esteja, sem que nada nem ninguém me detenha. Nem sequer seu
marido!
— Pretende levar-lhe pela força? É que não entende que ela não quer ir? —
protesto Mônica em um arrebatamento de ira. — Lhe roga!
— Pois bem, sem pedidos! Exaspera-se Mônica. — Não quer ir com você;
não quer lhe seguir. Volte em si dessa estúpida vaidade pela que pretende ser para
ela mais que nada no mundo. Aimée está arrependida de sua loucura. Chorando me
pediu que lhe detenha; rezou, acaso pela primeira vez em sua vida, lhe pedindo a
Deus que a salve de você, de sua violência, de sua barbárie, da brutal paixão que
você significa. 
— Quem disse isso?
— Ela mesma! Já sabe Juan: ela não quer lhe seguir. Ela só pede que a deixe
tranquila!
— Burlando-se por mim?
— Não há brincadeira. Há arrependimento, dor de sua consciência, desejo de
refazer sua vida, de ser fiel e leal ao homem honrado de quem é esposa.
— Mentira! Mentira! Que ela venha! Que cara a cara me diga isso, que me
jure todo isso, que me diga que não quer voltar para ver-me, que ela peça, ela
mesma, que ouvi seu nome, e então. 
— Juan! — atalha-lhe Mônica com gesto imperioso. — Alguém vem.
Alguém vem, sim. Vá-se, esconda-se. — De pronto, como se o mundo lhe viesse
em cima, lança um grito: — Renato! — E até mais espantada: — Aimeé
25
Pégasus Lançamentos
 — Eu, sim. — confirma Renato, chegando junto a eles. — No melhor
momento, Mônica. Já sei que pretendia que o ignorasse tudo. Já sei que reprovará a
suairmã por haver dito, mas ela não podia calar, não era possível que seguira
calando, porque, queira ou não, eu sou o amo desta casa e o chefe desta família. 
— Renato. — murmura Mônica completamente desconcertada.
— Importa-me pouco o que pense, nem o que Juan possa dizer. Estão em
minha casa, e em minha casa se vai pelo caminho reto, joga-se limpo, procede-se
com dignidade e decoro. E se o esqueceste, Juan, aqui estou para lhe recordar isso e
para exigir-te conta muito estreitas da forma em que procedeste com a Mônica.
— O que? — se estranha Juan, sem compreender o alcance das palavras do
Renato.
— Entende de uma vez, Juan, que neste assunto é comigo, e não com as
mulheres, com quem vais medir-te.
— Não sabe quanto celebro que seja contigo! — aceita Juan em tom
insolente. — Desejando estava te encontrar cara a cara!
— Pois aqui me tem! — oferece-se Renato violentamente. — Entender-te-á
comigo, e só comigo!
— Quando quiser! — desafia Juan dando um passo adiante e jogando mão a
sua cintura.
— Não! Não! Essa faca. — Adverte Mônica em um grito de espanto.
— Eu não tenho armas! — Indica Renato com gesto nobre e feroz.
— Melhor é assim! — Aceita Juan arrojando a faca ao chão. — Cara a cara.
De homem a homem! Com os punhos, com os dentes, com as unhas. Como quer!
Vim a levá-la, e a levarei por cima de ti!
— Não lhe levará isso sem fazê-la sua esposa!
— O que? — desconcerta-se Juan. — Fazê-la minha esposa?
— Mônica é para mim uma irmã. Se lhe dever a honra, terá que cumprir!
— Mônica. — gagueja Juan estupefato.
— Mônica. Sim. Sim! — intervém Aimée com decisão. — não o negue,
Juan do Diabo, não tente mentir. Você arrastou a minha pobre irmã aos piores
extremos, Você a tem assustada, encurralada e submetida pelo terror. Você. Você. 
— Aimée. — reprova Mônica com acento dilacerador.
— É a verdade! É a verdade! Perdoe-me que o aja dito ao Renato, mas eu
não podia me calar isto. Não podia! Perdoe-me, Mônica, me perdoe! Tive que lhe
dizer. Foi necessário. Ouve-me? Entende-me? Era horrível o que Renato
acreditava. Tive que lhe dizer a verdade. Que foi você. Você. Você!
Foi a ela, espremendo seu braço, mas Mônica a rechaça de um brusco
empurrão, erguendo-se fria, tensa, sacudida por um tremor nervoso. Juan retrocedeu
afogada de assombro à voz em sua garganta, mas Renato deu um passo sujeitando
ao Aimée com suas mãos como garras, cravadas as pupilas no rosto da Mônica
como se aparecesse ao fundo de um abismo: 
— Mônica, Aimée me há dito que Juan é seu amante. É verdade, ou é
mentira?
26
Pégasus Lançamentos
— É verdade, Renato. — murmura Mônica em voz rouca. E cobrando forças
e valor, prossegue com seu engano: — É o homem a quem quero o homem a quem
lhe dava meu amor e minha vida, e não te dou direito a intervir. Não te dou direito. 
O olhar do Renato foi para o Juan como um relâmpago. Vê o rosto viril
endurecido, apertadas as mandíbulas, ardentes os olhos com uma chama indefinível
e lhe espeta:
— Isto se arruma de homem a homem, Juan: sua vida contra a minha!
— Por quê? Por quem? Por essa. — Salta Juan em um estalo de ira e de
asco.
— Pela mulher que é uma irmã para mim! — Sentencia Renato em tom
terminante e ameaçador. — Cumprirá com ela! Levará-te como um homem, ou te
matarei como a um cão!
— Não. Não, Renato! — intervém Mônica com a angustia refletida em seu
pálido rosto. — Este assunto é meu, só meu. Não posso consentir. 
— Cala! — interrompe-a Renato imperioso. E dirigindo ao Juan, exclama:
— Só a mim tem que me dar contas, Juan!
— Lhe darei cumpridas isso. Me aceita por marido, Mônica do Molnar?
— Não. Não! — Rechaça Mônica com o desespero enroscada em sua
garganta.
— Que não, há dito? Pois eu digo que sim! Casará-te com o Juan do Diabo,
ou não sairá ele vivo daqui!
É um instante, um desses instantes largos como séculos em que as almas
tremem. Desesperadamente, Renato ordena, pede, exige. Não acreditou mais que
pela metade as palavras de Aimeé, logo que pôde dar crédito a seus olhos ao achar
juntos a Mônica e ao Juan e se aumenta em seu peito a resolução terrível, o anseia
selvagem de matar, até agora desconhecida para ele. Quer achar a verdade. A
verdade que ao mesmo tempo lhe espanta, e treme também ele ao ver tremer a
Mônica, que vacila como se um momento considerasse a e daquele abismo
repentinamente aberto a seus pés. 
— Já viu que não quer casar-se comigo — Expõe Juan com o mais amargo
sarcasmo. — Sou muito pouca coisa. Para uma Molnar. Como marido, não sirvo.
Sirvo como brinquedo, como diversão, coma amante de um dia, como boneco com
o qual divertir-se durante os meses de espera para umas bodas de sua fila. Para isso
é para quão único sirvo. 
Sorriu. Sorriu como Satanás pudesse sorrir. E não olha a Mônica, a não ser a
Aimée que se mantém tensa e rígida, sentindo apertar-se um pouco mais as mãos de
Renato, lhe devolvendo aquele olhar com a sua fixa como se contemplasse a moeda
que salta no ar para cair, jogando a cara ou cruz a morte ou a vida. E é Mônica quem
rompe o silêncio espectador:
— Aceito!
—Eu acredito Renato. — Começa a dizer Aimée; mas Renato a atalha
imperativo:
27
Pégasus Lançamentos
— Você, cala! Aceita, sim? Naturalmente que aceita, Mônica. E você,
naturalmente que cumpre Juan. — E com indefinível amargura, comenta: — Que
razão pode haver para que essas bodas não se realize? Qual é o impedimento legal?
Por que citar-se atrás da igreja, Juan, quando pode levá-la depois de receber a
bênção de Deus no altar, com a alegria de todos e o aplauso da sociedade? Por que
não casá-los, Aimée? Não é isso encher a medida de seu desejo, cumprir como Deus
manda, como uma boa irmã? Por que não ser nós padrinhos dessas bodas? Por que
proceder como criminosos quando não estão fazendo nada, absolutamente nada para
o que não tenham direito legal? Aceita. Naturalmente que aceita, Mônica! Casa-te.
Naturalmente que te casa Juan!
Há um rumor de passos e vozes que se aproximam, e uns e, outros se olham
surpreendidos, até que Renato comenta:
— Acredito que vem minha mãe. Certamente Catalina correu a lhe dar
aviso. Bem vindos todos para escutar a boa nova e elevando a voz, chama: — Mãe.
Noel. Aqui estamos. Já verão como vão alegrar se todos. 
— Renato. Renato. — Suplica Aimée presa de angustia. — Não lhes fale.
Não lhes diga. 
— Aimée. Filha. — prorrompe Catalina chegando junto ao grupo. E
surpreendendo-se, exclama: — OH, Mônica. 
— Mônica, sim — confirma Renato. — Mônica e Juan de Deus. Não é esse
o nome que Mônica gosta de lhe dar? Juan de Deus. Aproxime-te, mãe. Sim, Juan
está aqui, mas não há nada pelo que tenham que alarmar-se. 
Sofia D'Autremont chegou junto ao Renato, pálida, temerosa, como se visse
chegar por fim a desgraça tantas vezes pressentida para seu filho; mas Renato sorri.
Sorri com um sorriso novo nele: desafiante, amarga, quase agressivo, quando
explica:
— Tenho que dar a todos uma grande noticia: Mônica e Juan decidiram
casar-se, e o farão em seguida. Em seguida!
— Renato, suplico-te. 
— Nenhuma palavra mais por esta noite, querida — corta Renato com ira o
pedido do Aimée. — Precisa descansar e dormir. Amanhã te aguarda um dia
terrível. Amanhã mesmo será as bodas. Tenho também o maior empenho em que
amanhã mesmo estejam longe daqui.
— Mas. 
— Sem pesar. Eles não protestam, não replicam, aceitam sua cruz, aceitam a
lógica consequência do pecado que hão cometido. Ou não acredita que é um
pecado? Pensa que devo aplaudir sua falta de respeito à casa de minha mãe?
Desculpe-me. Já sei que se trata de sua irmã e que deve te sentir, quase como se o
tivesse feito você mesma. Sente-se assim, verdade, querida? Pois despreza essa
ideia e não pense mais no assunto. Eu faço em todos os quem absoluto responsável
por seus atos, desligando o de responsabilidades co-sanguíneas. Ninguém é culpado,
mas sim deseus próprios atos, e pobre daquele cujos atos possam voltar-se contra
ele algum dia!
28
Pégasus Lançamentos
Quase arrastada por Renato, agora detida por ele frente à porta daquele
departamento preparado para o amor e a sorte, Aimée procura em vão gestos e
palavras. Há algumas horas acredita viver em um pesadelo. Renato é agora, de
repente, outro homem para ela: longínquo, gelado, amargurado, e ao mesmo tempo
imperioso, desconfiado, agressivo, como se cada instante temesse ser apunhalado
pelas costas, como se alguém tivesse derramado em suas veias um sutil veneno que
corre envenenando-o. A olha. A olha muito de perto, com fera olhar interrogadora,
e logo sorri. Sorri com um sorriso frio e breve, que é pior que todas as
recriminações, que todos os insultos, que todos os gritos. 
— Renato. — suplica Aimée com mortal angustia.
— Entra, e me deixe. Tenho muito que fazer ainda — ordena Renato com
aspereza e lhe dando um leve empurrão, depois do qual fecha com chave a porta.
— Renato. Renato. O que faz? — assusta-se Aimée. — Renato. Renato. 
— Filho, fechaste com chave essa porta? — pergunta Sofia aproximando-se
preocupada e vacilante — Com a Aimeé atrás dela?
— Justamente, mãe, com a Aimeé atrás dela. E agora, se me der sua
permissão. 
— Não, aguarda um instante. Quero saber o que há passado. Reclamo-o,
exijo-o. Por que decidiste essas bodas, que não te concerne, em uma forma assim?
Por que trata Aimée deste modo? Por que procede como se tivesse enlouquecido?
— Talvez porque quero chegar ao fim. Não me perguntes muito, mãe.
— O que lhe têm feito Renato? — angustia-se Sofia. — Estava segura,
estava bem segura. O golpe que mais possa ferir-te tem que chegar dele. 
— De meu irmão Juan? — revolve-se Renato desafiante.
— Renato! — alarma-se vivamente Sofia.
— De meu irmão Juan, mãe. Diga-o de uma vez, acaba de dizê-lo. E me
diga mais, me diga tudo o que sente tudo o que pensa tudo o que calaste e cala
ainda, contendo anos e anos o desejo de me gritar isso me diga que me odeia que
sabe que me odeia justamente por isso, porque é meu irmão e bastou uma fórmula
legal, bastaram uns papeis e umas assinaturas para que a mim todo fosse outorgado
enquanto a ele lhe negava tudo. Diga-o, mãe, diga-o. 
— Não foram uns papéis, não foram umas assinaturas. Foi à diferença de
toda uma vida: a minha, reta, honorável, limpa; a dessa mulher que deu à casa
D'Autremont um bastardo. O que digo um bastardo, um filho maldito, fruto do
adultério e a vergonha, a dessa prostituta baixa e vil, como baixo e vil tem que ser o
coração desse homem que hoje te feriu. 
— Não me feriu, mãe.
— Que não te feriu? Então, por que te revolve assim? O que pode te
importar que Mônica. Renato, filho, diga-me a verdade, toda a verdade!
 — A verdade é a que ouviste, é essa e não pode ser outra. O que pensaste
mãe, o que acreditaste? Pensa que se houvesse sido ela como suspeitas, estaria ela
viva atrás dessa porta? Nem ele nem ela teriam escapado com vida, mãe. Mas essas
bodas é minha garantia. Por isso quero casá-los eu mesmo, em seguida, quanto
29
Pégasus Lançamentos
antes. Ver no rosto de minha esposa o sorriso feliz de quem leva uma irmã ao altar.
Já sabe tudo, mãe, e sabe também aonde vou. Vou acautelar aos que cuidam os
lindemos, a pôr guardas em todos os caminhos do vale, com ordem de deter os que
entrem ou saiam. Juan do Diabo não escapará daqui sem haver-se unido para
sempre a Mônica do Molnar, sem atar suas vidas ante os juízes e o sacerdote, sem
fazer boa a palavra empenhada, sem me provar a mim que é ela, e só ela, a que pôde
prostituir-se até ser a rameira do porto que aguarda os marinhos. 
— Renato. Filho!
Sofia D'Autremont deu uns passos atrás do Renato como se pretendesse até
lhe reter, mas ele não se detém sua voz nem a seu gesto, afasta-se rápido e decidido.
Sofia vacila, olha à porta daquela quarto em que Renato encerrasse ao Aimée. Por
um longo momento parece lutar consigo mesma e, antes de afasta-se, ameaça como
sacudida pela violência de um sentimento invencível:
— Pobre de ti! Pobre de ti se tiver chegado a manchar o nome de meu filho!
Aimée se deixou cair rendida no pequeno divã de raso colocado aos pés da
cama. Em vão sacudiu a fechada porta, em vão tratou que escutar aproximando de
suas frestas o ouvido. Só percebeu os passos que se afastam as vozes apagadas
daquela conversação entre a mãe. E o filho, e agora lhe assalta a lembrança
daquelas horas que foram como a ameaça de uma adaga sobre seu peito. Como o
vértice de um torvelinho, volta a sentir-se arrastada pelo Renato até aquela cena de
pesadelo em que saltam como visões de horror os rostos conhecidos: Mônica,
Renato, Juan. Juan, sobre tudo. Aquele Juan amado e aborrecido, temido e
desejado, a cuja evocação o sangue de suas veias parece ferver. 
— Não é possível. Não é possível. Todos hão enlouquecido. Todos! Ele
disse que sim. Ela disse que sim. 
— Senhora Aimée. 
— Ana! — surpreende-se Aimée. — Como entraste? Por onde?
— Não entrei senhora, estava aqui. Esperando-a como me ordenou.
Quando senti que vinha com você o senhor Renato, escondi-me. Como você me
disse que não falasse com ninguém a não ser o que me mandasse lhe dizer. Já não
se lembra senhora?
— Não tenho nada que te dizer! Vete daqui!
— E por onde, senhora? O senhor fechou com chave a porta.
— Quer me dizer para que me encerra como a uma fera?
— O senhor anda desconfiado, senhora Aimée, bem desconfiado. Não há
mais que ver como a olha. Se eu fosse você, andaria com muito cuidado, porque ao
senhor Renato lhe deveram dizer. 
— Algo mais que dizer, Ana. A carta que mandei contigo, essa maldita carta
que lhe arrebataram essa carta que seguramente roubou Batista, está em suas mãos.
Deveu entregar-lhe ele, para comprar seu perdão com esse serviço. E tinha que ser
você a que deixou cair minha carta. Você, maldita estúpida! Negra imbecil!
 — E você para que o fez? Se for uma negra imbecil, para que se confia em
mim,
30
Pégasus Lançamentos
— Porque às vezes Sou tão estúpida como você mesma. E porque estou
desesperada, encurralada e perseguida pela má intenção de todos. Ana, Ana, tem
que voltar a me servir!
— Eu. , Ai, não, minha ama! Se o Batista deu a carta para que o perdoasse,
se o amo Renato souber. Ai, minha ama! Eu não quero me colocar em mais
confusões. O Batista tem a mão muito larga, e se ele voltar a mandar aqui. 
— Eu serei a que te esbofeteie se não me serve! — assegura Aimée,
impaciente pelos reparos da faxineira. E mudando de tom, oferece: — Darei-te
quanto me peça, mas agora mesmo sai daqui. 
— Por onde. 
— Pela janela do quarto penteadeira. Cairá no pátio pequeno, onde não há
ninguém nunca, e ali te espera miras bem e buscas ao Juan, que não pode estar
longe. 
— E se me vê o amo Renato,
— Se te vir, não importa. Ele não sabe que estava aqui. A mim é a quem
não pode ver. Procura o Juan e lhe diz que se aproxime justamente pela janela
pequena por onde você vais sair. Diga-lhe que lhe estou esperando, que venha em
seguida e que não me leve ao desespero, que não me faça enlouquecer porque vai
pagar muito caro. Acaso com a vida! Procura o Juan e diga-lhe, Diga-lhe.
 Com oblíquo olhar depreciativo, Juan percorreu que trecho de piso os
quatro ângulos do desmantelado galpão onde Mônica e ele se encontram neste
instante. É um quarto anexo às cavalariças, onde se amontoam os sacos de
forragem, os fardos de feno, os velhos arnês, as gavetas e os barris vazios, sobre um
dos quais, que funge de mesa, está à garrafa de aguardente e alguns copos de áspero
vidro, em um dos quais Juan volta a servir o ardente licor para beber o de um só
gole. 
— Não beba mais, Juan. O suplico! 
— Segue com sua mania de suplicar em vão. Incluso não se convenceu que
não atendo pedidos nem súplicas? De que é inútil. 
Calou olhando-a devagar,

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