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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DOUTORADO EM ARTES Fernando Cidade Broggiato A pintura olha para os lados SÃO PAULO 2020 Fernando Cidade Broggiato A pintura olha para os lados Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista, área de concentração em Artes Visuais, na linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Artes, sob orientação do Prof. Dr. José Paiani Spaniol. SÃO PAULO 2020 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp B866p Broggiato, Fernando Cidade, 1972- A pintura olha para os lados / Fernando Cidade Broggiato. - São Paulo, 2020. 2016 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. José Paiani Spaniol Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Pintura - Apreciação. 2. Pintura brasileira. 3. Pastel (Pintura). 4. Desenho - Estudo e ensino. I. Spaniol, José Paiani. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 759 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) TERMO DE APROVAÇÃO Fernando Cidade Broggiato A pintura olha para os lados ______________________________________________ Prof. Dr. José Paiani Spaniol ________________________________________________ Profa. Dra. Ana Cândida Franceschini de Avelar Fernandes ________________________________________________ Prof. Dr. Marco Garaude Giannotti ________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo ________________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento Data da aprovação ______________________________ Para Milena Ana minha mãe e minha avó, com quem um dia fui ao cinema Agradeço a Luciano Zanette Monica Tinoco Bruno Marcelino Stefan Schmeling Daniela Vicentini Cleverson Oliveira Gabriele Gomes Jamila Maia André Resende Paulo D’Alessandro Agnaldo Farias José Spaniol Sergio Romagnolo José Leonardo do Nascimento Fabiana Mie Marco Silveira Mello Izabel Pinheiro Pollyana Quintella Ana Avelar Ewa Rams Magdalena Ziolkowska Resumo A pintura, desde o início do século XX, se distancia da metáfora de uma janela, através da qual se vislumbra o mundo, como se concebia desde a Renascença, e passa a se apresentar como um objeto na parede, assemelhando-se, em alguns aspectos, à escultura. A tese propõe uma reflexão sobre o que persiste de metafórico no espaço da pintura, e em seus entrecruzamentos com a escultura, desenho e instalação, levando em conta e apresentando a produção artística de seu autor, de 2015 a 2020. Palavras-chave: Pintura. Desenho. Arte brasileira. Pintura contemporânea. Pastel. Abstract Painting, since the begining of the twentieth century, has distanced itself from the metaphor of a window through which one glimpses the world, as it was conceived since the Renaissance, and now presents itself as an object on the wall, resembling sculpture. The thesis proposes a reflection on what remains metaphorical in the space of painting, and its intersections with sculpture, drawing and installation art, taking into account and presenting the artistic production of its author, from 2015 to 2020. Keywords: Painting. Drawing. Brazilian art. Contemporary painting. Pastel. Sumário Introdução 09 1. Espelho no espelho 13 2. O quadro olha para os lados 34 3. O pássaro azul ou A pintura fora do quadro 90 4. De pinturas de desenhos a desenhos de pinturas 139 Palavras finais 207 Referências 212 9 Introdução Imagine: alguém aponta para um lugar na íris de um olho pintado à maneira de Rembrandt e diz: “As paredes do meu quarto devem ser pintadas nesta cor.”1 Anos atrás, fui ao cinema com minha avó, assistir a um filme iraniano. Nos primeiros instantes, intrigada diante dos créditos em caracteres árabes, ela observou que aquela escrita “era feita de riscos”. Nossa escrita, portanto, seria feita de outra coisa? Uma vez que somos capazes de ler, jamais poderemos ver de outra forma, e o nome escrito de um ator, não importa que fonte tenha sido usada, nos remeterá à sua imagem, muito mais que o desenho de sua grafia. Se não o conhecermos, ou mesmo o que estiver escrito for incompreensível, imaginaremos imediatamente os fonemas da palavra ou frase. Riscos, mesmo, só vemos em línguas estranhas. Na fundação da pintura está a ilusão. A sua construção como arte está vinculada à ideia de que olhamos manchas e cores e vemos outras coisas – ou outras coisas mais. Para o pensador espanhol José Ortega y Gasset, num quadro há as formas dos objetos representados e as formas às quais esses objetos são submetidos pelo pintor, e nessa dicotomia estaria a “estrutura derradeira de um quadro.”2 Mesmo quando, no século vinte, a pintura se mostra abstrata – e não poderíamos mais ver nas formas do quadro uma variante daquilo que elas representam –, as manchas e cores que vemos não são como o nome de um ator escrito em árabe é para minha avó; lemos aquelas manchas e cores – elas não são totalmente coincidentes com elas próprias. O quadrado negro de Malievitch não é a mesma coisa que um retângulo de cartolina negro, esquecido em cima de um papel branco, em nossa escrivaninha.3 1 WITTGENSTEIN, 2011, p. 45. 2 In: ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 80. 3 Referência à pintura mais conhecida do russo Kasimir Malievich (1879-1935), cuja primeira versão data de 1915. 10 A crueza, a literalidade, no entanto, estão muito presentes na arte, sobretudo desde o fim do século dezenove, quando a pincelada impressionista nos mostra um barco ou uma ponte, mas, ao mesmo tempo, sua franqueza e debilidade como pincelada. Somos convidados a ver o lá e o cá simultaneamente, ou a irmos e virmos o tempo todo: a luz das estrelas de Van Gogh é diáfana e ao mesmo tempo pesada (e viscosa), e algo semelhante podemos dizer de elementos de um quadro de Kiefer ou de uma escultura de Anish Kapoor.4 É fascinante uma obra provocar um certo enlevo e, ainda assim, mostrar seu caráter vulgar, revelar que é feita da mesma matéria que os outros objetos que nos circundam no dia a dia. Algumas obras, aliás, parecem se localizar naquele ponto vertiginoso onde quase não se tornam arte, onde por pouco não se mostram um punhado de riscos, como os nomes dos atores e atrizes do filme iraniano, para minha avó. Mal lemos o nome, mas os riscos se impõem defronte denossos olhos. Nunca um objeto de arte se pareceu tanto com um objeto comum quanto no século vinte, principalmente quando as legendas, os catálogos e os aparelhos de ar condicionado dos hipertrofiados museus não estavam tão presentes. Jamais a pintura, a própria pintura – a talvez mais artesã entre as chamadas belas artes – se pareceu tanto com qualquer outra coisa: ela virou quase um objeto na parede, como a fotografia de Itabira.5 Quase – advérbio fundamental para a arte: uma pintura pode se parecer muito com um adesivo grudado na parede, mas sua artisticidade a torna uma outra coisa, a transporta (e nos transporta) para outro lugar. Ela pode até ser um adesivo grudado na parede e, todavia, ela é quase isso. Uma vez que existe uma língua e somos capazes de ler, uma letra ou uma palavra não pode mais ser um risco. Não há caminho de volta: uma vez alfabetizados, não conseguimos frear a leitura. A ignorância, em alguns casos, é delicada e frágil – uma fruta exótica, nos diz uma personagem de Wilde. Uma vez que a tocamos, seu frescor acaba.6 4 Anselm Kiefer (1945- ) e Anish Kapoor (1954- ), alemão e britânico (de origem indiana), respectivamente. 5 Referência ao poema “Confidência do itabirano”, de Carlos Drummond de Andrade. Apesar do verso: “Itabira é apenas uma fotografia na parede”, sabemos que ela está longe de se restringir a isso – e a comprovação vem pelo verso final, em seguida: “Mas como dói!” (In: ANDRADE, 1989, p.46-47). 6 A frase está na peça The importance of being earnest (A importância de ser prudente, ou A importância de ser severo): “Ignorance is like a delicate exotic fruit; touch it and the bloom is gone.” (In: WILDE, 1995, p. 325) 11 A pintura, portanto, vai se tornando próxima do objeto. Cresce na sala, olha para os lados: avança em nossa direção, para teto e para o piso, mas só pode fazer isso porque está inscrita num outro registro: sua natureza não é a do carpete, mesmo que seja feita de carpete. Será olhada por outros tipos de olhar (daqueles que se destinam ao carpete), terá um julgamento de outra ordem. Tem foro privilegiado. Esta pesquisa se dará por meio de pinturas, desenhos e palavras, que versam e refletem também sobre palavras, desenhos e pinturas. Meu desafio foi fazer com que as coisas possam andar juntas, tentar não deixar o texto ganhar tons diferentes quando trata de minha pintura e de quando se refere a um pensamento sobre Arte ou sua História. A teoria não explica a arte, assim como a arte não ilustra a teoria. As palavras não são de material cristalino e os objetos de arte não são de todo opacos. Apresento quatro capítulos. Passar de um para o outro não corresponde a um afunilamento ou mergulho mais fundo nas questões apresentadas; os capítulos são mais como caminhos paralelos, tangenciando problemas que enfrento em minha produção como artista e, a meu ver, problemas da arte de nosso tempo – ou mesmo de outros tempos. Eles se relacionam, como se verá, sem exatamente continuarem um no outro. O primeiro capítulo, “Espelho no espelho”, tem como fio condutor a ideia da arte ser um espelho do mundo, mas lembrando que não vemos o mundo como ideal e o espelho uma cópia: amamos o espelho seus desdobramentos, e é a partir dele – do espelho, e não do que ele reflete – que desenvolvemos uma noção de realidade. Dois contos brasileiros, um de Machado de Assis e outro de Guimarães Rosa, ambos intitulados “O espelho” são o coração desse capítulo. O segundo capítulo é voltado à minha produção de pinturas, onde a tinta, frequentemente, extrapola os limites do suporte, enfatizando o caráter de objeto do quadro. Não procura ser apenas um relatório de meus processos de trabalho: a ideia é que o capítulo tenha um pouco da sujeira do ateliê, com digressões e ideias que atravessam o processo criativo. O terceiro capítulo também versa sobre pintura, mas sobre aquela que se desenvolve em outros suportes: que alguns poderiam chamar de instalação, mas que, no caso das obras apresentadas, mantém seu vínculo com a pintura e ao quadro. São, como chamo, pinturas fora do quadro, e comento alguns de seus 12 precedentes históricos, em destaque Mondrian e Hélio Oiticica. No quarto e último capítulo, trato de um aspecto recente em minha produção: desenhos que representam pinturas. Ou seja, pinturas que aparecem, ou que existem, apenas como parte de desenhos. São pinturas na forma de desenho, ou são desenhos tendo pinturas como personagens?7 7 O artista russo El Lissizky (1890-1941), ao conceber salas de exposição em Dresden (Sala para arte construtiva, 1926) e em Hanover (Gabinete abstrato, 1927-28), afirma que o espaço expositivo deve ser como um palco, onde os quadros surgiriam como atores. (In: PERLOFF; REED, 2003, p. 77) 13 1. Espelho no espelho 1.1 Um gramado, um monte de feno ou uma blusa não têm uma cor. A cor não pertence a um ou a outro, é antes uma condição momentânea, dada a uma iluminação específica, a um ponto de vista particular: uma impressão. É assim que a pintura impressionista nos ensinou a ver, embora a gente ainda fale que uma blusa seja azul, que um gramado seja verde. A pintura impressionista nos descreve a impossibilidade de se representar (e de se ver) um objeto em si: mesmo se insistirmos em chamar uma blusa de azul, por exemplo, entendemos que o azul talvez não esteja nela, mas no modo como a vemos, na impressão que temos dela. Observada sob outra luz, ela poderia assumir outra cor, e nenhuma delas seria a sua cor. Se tudo o que vemos se trata de um fenômeno óptico, não há contornos, não há linhas, e o torneado dos objetos, dependendo das circunstâncias, se mostrará, também, incerto. A pintura impressionista também nos indica que a própria forma pode se mostrar fugidia, vaporosa. Não se deixa de pintar a forma definitiva das coisas por capricho; isso acontece porque passamos a duvidar se a forma definitiva das coisas, de fato, existe. Figura 1. Claude Monet, A ponte em Argenteuil, 1873. Óleo sobre tela, 60 x 80 cm. Musée d'Orsay, Paris. 14 Desde o final do século dezenove vai rareando a solidez dos objetos; olhamos para o mundo e encontramos uma superfície rugosa. Essa, no entanto, não é a matéria das coisas, mas a textura das tintas, da trama da tela, ou mesmo de nossa retina. Figura 2. Paul Cézanne, Casa e fazenda em Jas de Bouffan, 1885/87. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm. Národní Galerie, Praga. 1 Paul Cézanne (1839-1906), pintor francês. 2 Poderíamos dizer que os objetos representados por Cézanne – maçãs, jarros, monta- nhas – nos parecem sólidos devido à solidez do quadro. Este empresta àqueles sua soli- dez. “A lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo livre ou desencarna- do da luz e da cor (impressões) que está a Sensação”, escreve Deleuze (e é dele o uso do S maiúsculo), “mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maçã. A cor está no corpo, a sensação está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentando determinada sensação (...). DELEUZE, 2007, p. 42-43 3 NIETZSCHE, 1992, p. 83. 1.2 A pintura é sólida porque nosso olhar é sólido: Cézanne1 talvez nos aponte, entre muitas coisas, que o esforço para se pintar, para se construir uma imagem tem, nele mesmo, alguma substância; é, em si, uma coisa. A solidez de suas pinturas não é a solidez das coisas representadas, mas do quadro.2 Desenha-se o desenho, mais do que o objeto, mais do que o mundo. Mas não estaria no desenhar, e não naquilo que é observado, o mundo? Não amaríamos o próprio desejo, em vez do desejado?3 15 4 Pablo Picasso (1881-1973) e Henri Matisse (1869-1954), Este francês e aquele espanhol, são frequentemente tidos como os maiores pintores do modernismo europeu. 5 Podemos pensar no impressionismocomo um interlúdio numa longa tradição de pinturas de história. Figura 3. Pablo Picasso, Guernica, 1937. Óleo sobre tela, 349,3 x 776,6 cm. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madri. 1.3 Picasso, Matisse4, nos lembram que talvez a pintura, em sua história, pouco tenha a ver com olhar algum objeto e o representar. Picasso está menos distante da pintura neoclássica ou da decoração de um vaso grego antigo do que da pintura impressionista. Não se pinta (apenas) o esforço de se traduzir num quadro um objeto que se vê (um violão, por exemplo). Não há problema em se pintar as coisas, afirmar que o contorno deste vaso é assim, ou que esta blusa é azul, afinal o que pintamos nunca são as coisas, mas a própria pintura, uma ficção.5 O fato de lobos não falarem não torna impossível ou ilógica a história de Chapeuzinho Vermelho. 1.4 Há um olhar para um quadro que é anterior a um quadro, a este quadro pintado. Na experiência de se ver um quadro, há inúmeros outros que o pintor e o espectador trazem consigo. Quando Picasso, em 1937, exibe Guernica, não representa exatamente um bombardeio de uma cidade, mas a tradição da pintura de história, e nos pergunta se sua solenidade, sua representação grandiosa do horror poderia ser possível em nosso tempo. Se seria possível verter um acontecimento terrível, como tantos que vemos nos jornais ou nas ruas em uma imagem mítica. 16 Figura 4. Pablo Picasso, Homem com chapéu de palha e casquinha de sorvete, 1938. Óleo sobre tela, 61 x 46 cm. Musée Picasso, Paris 6 SYLVESTER, 1998, p. 182. 7 Ibidem, p. 81. 8 Para o filósofo francês Jacques Rancière (1940- ), a dificuldade de se levar adiante a pintura de história, e seu caráter pouco convincente, no decorrer da modernidade, e a ascensão da pintura de gênero – quadros que representam cenas cotidianas, encabeçadas por personagens anônimas – se deve a uma mudança no modo como se vê a história, que deixa de ser “a coletânea dos exemplos” (RANCIÈRE, 2018, p. 59). O “fracasso do pintor de gênero para se elevar à pintura histórica é também o prenúncio do tempo em que a pintura de gênero, a representação da vida comum, será a manifestação exemplar da historicidade.” (Ibidem, p. 57) Figura 5. Pablo Picasso, Gato caçando um passarinho, 1939. Óleo sobre tela, 81 x 100 cm. Musée Picasso Paris No entanto, se nosso olhar se revelou baço, se a pintura como linguagem se nos coloca entre nossos olhos e as coisas, onde está a relação entre o que vemos numa tela e a realidade que vivemos? De um lado, temos a presença física do quadro, sua realidade, suas cicatrizes de tinta, pinceladas, traços, pentimenti – aquilo que o pintor Francis Bacon, referindo-se a Picasso, chama de “brutalidade do fato”.6 Para Bacon, “quando se fala de violência em pintura, ela nada tem a ver com a violência da guerra. Ela tem a ver é com a maneira como reproduzimos a violência da própria realidade”.7 O artista britânico, aqui, não se refere à descrição pictórica de um fato especialmente violento, mas a uma certa aspereza intrínseca à própria vida. Por isso, temos, diante de Guernica, sem dúvida, uma visão atroz, embora o horror, a presença crua da realidade esteja mais vívida na obra de Picasso nos anos seguintes, em um homem tomando sorvete, em um gato matando um passarinho.8 17 9 René Magritte (1898-1967), artista belga, ligado ao grupo surrealista. 10James Joyce (1882-1941), escritor irlandês. O personagem Stephen Dedalus, uma espécie de alter ego do autor, é protagonista do romance Retrato do artista quando jovem (1916) e coadjuvante no romance Ulisses (1922). JOYCE, Ulisses, 1992. p. 30 11 O pintor norte-americano Jasper Johns (1930- ), em 1953 descreveu a experiência de ver pessoalmente, pela primeira vez, uma obra de Picasso: “Eu não podia acreditar que era um Picasso, pensei que era a coisa mais feia que já tinha visto. Eu estava acostumado com a luz passando através de slides coloridos; eu não percebi que teria de rever minhas noções do que era pintura”. Minha tradução do inglês: “I could not believe it was a Picasso, I thought it was the ugliest thing I’d ever seen. I’d been used to the light coming through color slides; I didn’t realize I would have to revise my notions of what painting was.” (In: JOHNS, 1996, p.165) 12 Andy Warhol (1928-1987), artista norte-americano. 1.5 De outro lado, há o mito. Se numa pintura, nenhum objeto representado é real, se o que se pinta são ideias, pode se pintar o que se quiser, do modo como se quiser. O pintor será um criador de fábulas, e a realidade do quadro não será levada em conta, ou até deverá ser minimizada. Um dos exemplos mais extremos na primeira metade do século vinte talvez seja a pintura de Magritte,9 com seu alto poder evocativo e sua pobreza pictórica. Uma reprodução fotográfica de um de seus quadros pode ser tão boa ou até melhor quanto o original. Talvez Picasso, ao pintar Guernica, tentasse conciliar as duas coisas, a aspereza do mundo e o mito. Seria isso possível? Parece que nesse caso, o autor pende para a segunda alternativa. Se Stephen Dedalus, o artista de Joyce, vê a História como um pesadelo do qual tenta acordar,10 Picasso constrói sua obra gozando sempre estar semidesperto: entre a assombração da História (da arte) e a presença bruta, pura, oposta a qualquer símbolo, do real. Novamente, a espessura do olhar, da tinta, das coisas concretas que antecedem aquilo que olhamos se coloca à nossa frente. O passado da arte, presente em Picasso, não se parece com as luzes coloridas dos slides de Powerpoint das aulas de História da arte a que submetemos nossos alunos.11 1.6 Warhol12 nos diz que a imagem acaba por se tornar, ela mesma, uma coisa, com aquilo que elas, as coisas, têm de impenetrável. Ou que nossa vida concreta 18 se tornou tão rasa quanto uma imagem. Ou os dois. Seja como for, essa imagem/ coisa, num certo sentido, substitui ou supera o real. Se a jovem Norma Jeane Mortenson pouco tem a ver com o mito Marilyn Monroe,13 isso não torna o mito menos real, não lhe retira nada de sua força. Pelo contrário, percebemos que há alguma coisa de irreal na própria moça, na triste Norma Jean, e é somente com sua morte que o mito Marilyn, livre desse constrangimento, pode assumir uma dimensão maior, acima da realidade palpável, próprio das divindades. O mito nos parece mais sólido do que a vida. Lembro de um amigo de adolescência que, quando víamos uma garota muito bonita na rua, se referia a ela como uma “mulher de revistinha”. Nós, olhando as meninas na rua, entendíamos imediatamente o que ele queria dizer: que ela era tão atraente quanto as mulheres que víamos nuas nas páginas das revistas, que sua beleza tinha algo de extraterreno, de superior ao mundo em que vivíamos; ela tinha a aparência de fixidez, de certeza, ela tinha a autoridade daquilo que é impresso, daquilo que não é deste mundo, daquilo que é linguagem. Ela se parecia com aquilo que as pessoas deveriam ser (de acordo com as revistas ou a televisão), mas jamais seriam, pelo simples fato de serem gente, como nós. Olhar para uma mulher como aquela nos diminuía por nos fazer lembrar desse pecado original. A primeira Marilyn pintada (serigrafada) por Warhol é uma cabeça pairando num fundo pintado de ouro, feito uma figura bizantina. Como nas Virgens anteriores ao Renascimento, não se parece (e é importante que não se pareça) com sua mãe, nem com sua namorada, nem com a garota na esquina; ela pertence a outra espécie, habita outro lugar. É uma santa, ou uma mulher de revistinha, tanto faz.14 Uma serigrafia de Warhol é sobre a pessoa Marilyn, tanto quanto uma natureza-morta de Cézanne trata de maçãs. O artista aqui nos fala menos da estrela de cinema do que de arte, do que de linguagem. Diante de uma imagem diáfana ou irreal, vemos a matéria da arte, do dizer alguma coisa. Amamos, sim, odesejo – e o desejado se desvaneceu, virou purpurina. Se há algo de trágico em Warhol é a constatação de que a tragédia talvez não seja mais possível. 13 Marilyn Monroe (1926-1962), atriz estadunidense. Seu nome de batismo era Norma Jeane Mortenson. 14 Anthony Blunt cita uma carta de Rafael a Castiglione: “Para pintar uma beldade, preciso ver várias beldades, mas já que há uma escassez de mulheres belas, eu uso uma certa ideia que me vem à mente”. BLUNT, 2001, p 90. 19 Figura 6. Andy Warhol, Marilyn Monroe dourada, 1962. Tinta serigráfica sobre polímero sintético sobre tela, 211,4 x 144,7 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York. 1.7 Lembro de, com uns dez, doze anos, fazer um desenho olhando para minha tia. Quando ela o viu, disse que o desenho poderia ter qualidades, mas que seu rosto não era daquele jeito. Principalmente o nariz, que não parecia certo. Ela se levantou, abriu algumas gavetas, e trouxe uma fotografia dela, mostrando para mim como era seu nariz. Consegui reparar menos na imagem do que no fato de ela buscar uma fotografia para mostrar seu nariz, e não apontar, simplesmente, para o centro de sua face. Ali talvez estivesse um acidente; a fotografia é que lhe dizia o que ela era. 1.8 O homem tem duas almas, “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. A segunda, exterior, pode ser um objeto, um outro homem (ou muitos homens) ou “uma operação”. Como a primeira alma, ela “transmite a vida”, e perdê-la significa perder a metade da existência ou, em certos casos, a existência inteira. Quem afirma isso é o personagem João Jacobina, no 20 15 O conto tem o subtítulo Esboço de uma nova teoria da alma humana, e foi publicado pela primeira vez em 1882. In: ASSIS, 2007, p. 154-162. conto O espelho, de Machado de Assis.15 Ele nos conta que, jovem pobre, fora aos vinte e cinco anos nomeado alferes da guarda nacional, motivo de orgulho não só para sua família, mas para a vila onde morava. Uma tia viúva o chama para passar um tempo com ela, em seu “sítio escuso e solitário” – e pede para levar a farda. Adulado pela tia, que prefere chamá -lo de alferes, e não mais de Joãozinho, tem seu quarto decorado por um grande espelho, peça luxuosa, que destoa do resto da casa, “cuja mobília era modesta e simples”. Ao fim de três semanas, a tia é obrigada a ir embora, acudir a uma filha doente. Jacobina permanece no sítio, com a companhia dos escravos. Embora eles ainda o tratem com reverência, chamando-o de “nhô alferes”, deixam transparecer alguma motivação suspeita. Um dia, Jacobina desperta e percebe que o sítio está deserto: todos aproveitaram a ausência da dona da casa para fugir. Sozinho, sem mesmo os cachorros (levados pelos escravos), ouve, dias a fio, somente o pêndulo do velho relógio da sala. Come mal, dorme mal e não ousa se olhar no espelho. Quando arrisca, tomado de pavor, tem a impressão de encontrar do outro lado uma figura “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. O desespero de Jacobina cessa apenas quando lhe ocorre vestir a farda de alferes. Então, vê-se refletido, “nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso”, e assim, sempre observando a si próprio fardado, recupera-se. Durante dias, veste a farda e mantém-se duas ou três horas diante do espelho, “lendo, olhando, meditando”, e assim atravessa “mais seis dias de solidão, sem os sentir”. 1.9 O horror de Jacobina é a intuição de que, sem o mundo à sua volta, ele desapareça, torne-se um espectro, nem mesmo passível de ter um reflexo. Apenas no momento em que se lembra de sua farda é que consegue encontrar sua substância. Sua espessura não está na profundidade de sua mente (se isso existe), mas na superfície de sua farda, na superfície do espelho. 21 16 Podemos pensar também que a existência de Jacobina reside na superfície de sua farda, e não na profundidade daquilo que poderíamos chamar de seu interior (ou de sua primeira alma). Como, na pintura impressionista (e mesmo nas esculturas de Rodin, cujas superfícies revelam seu processo de elaboração e as marcas de mão do artista, ambos contemporâneos a Machado de Assis), a substância está na superfície das coisas – tanto das representadas quanto das obras em si. Essa superfície, a farda, também um invólucro, é exterior à superfície da pele: Jacobina precisa dela para existir, como a obra de Duchamp precisa de um museu em torno de si para assegurar sua existência como arte. Sobre a superfície das obras de Rodin, ver KRAUSS, 1998, p. 36. A comparação de sua escultura com a pintura impressionista é feita por alguns autores, como Giulio Carlo Argan, em ARGAN, 2010, p. 474. 17 O episódio é contado por Ernst Gombrich, em seu livro Arte e ilusão (GOMBRICH, 2002, p. 98). É possível e confortável pensarmos no conto de Machado como um exercício de ironia social. Jacobina, de origem pobre, supervaloriza seu sinal de ascendência social, a condição de alferes, algo tão frágil e superficial que ele precisa, para si mesmo, vestir sua farda. Também seria cômodo afirmar que o gesto de minha tia, buscando uma fotografia de seu rosto e me mostrando como é seu nariz só mostraria o quanto ela é desmiolada ou tola. Podemos, no entanto, pensar no conto menos sobre um documento da sociedade escravagista brasileira do mil e oitocentos e mais sobre nossa necessidade de consultar o smartphone. Podemos considerar a vertigem de Jacobina como a vertigem da arte moderna, do homem moderno, ou pós-moderno, ou contemporâneo (neste caso, tanto faz), cuja liberdade ou autonomia coincide com sua possibilidade de não ter lugar, de não existir. A farda de Jacobina, se quisermos, é o museu em torno do urinol de Duchamp.16 1.10 Nos textos sobre arte moderna, é comum lermos sobre uma suposta autonomia da linha e da cor. Cor seria puro estímulo visual, e não mais a coloração de um rosto, de um pôr do sol ou de uma blusa; o mesmo poderíamos falar da linha, apreciada por suas qualidades intrínsecas, por sua própria beleza, vigor ou fluidez, e não mais por sua capacidade de delinear, por exemplo, um corpo nu. É conhecida a anedota em que Matisse é interpelado, numa abertura de exposição, sobre como uma mulher era representada num de seus quadros, e ele teria respondido que aquilo não se tratava de uma mulher, mas de uma pintura.17 22 18 “Só os ‘idiotas da objetividade’, como dizia, genialmente, Nélson Rodrigues, imaginam que a literatura ‘reflita’ alguma realidade exterior a ela mesma”, escreve Paulo Leminski. “A arte do texto não é uma dependência do comércio de espelhos (…) A palavra é um gesto fundador. Não um reflexo.” (LEMINSKI, 1997, p. 74.) 19 WANKE, 1985, p. 44. 20 CAMPOS, 2004, p. 13. Livres do fardo da representação, esses elementos poderiam atingir seu esplendor, sem precisar prestar contas ao mundo externo. A pintura passaria a ser apreciada por qualidades próprias de sua linguagem (pincelada, organização espacial), e cada vez menos por sua relação com o que há fora dela, com o mundo.18 Essa proclamada autonomia permitiria que a pintura ou a escultura se tornassem livres em relação a tudo aquilo que não pertencesse aos seus respectivos universos. Mas seria essa liberdade um ganho? Quando brincávamos de pega-pega, aos oito, dez anos, permitíamos que algumas crianças mais novas entrassem no jogo, contanto que na condição do que chamávamos de café com leite: elas não podiam efetivamente pegar nem ser pegas por nenhuma outra criança. Elas, aparentemente não compreendiam totalmente as regras da brincadeira, mas eram incorporadas à sua dinâmica, correndo para lá e para cá, rindo e se divertindo, como todos, mas sem ter um papel decisivo. Embora muitas vezes aceitassem à contragosto a condição de café com leite, estas eram as crianças mais livres, justamente porque, efetivamente, não tinham protagonismo no jogo, corriam paralelamentea ele. “O artista é sempre um conquistador de mundos. Mas não apresenta ameaça a nenhum mundo, pois são mundos por ele inventados.”19 A frase de Eno Teodoro Wanke é tão engraçada quanto melancólica: seria essa a conquista da arte moderna, ser livre com o preço de se tornar inofensiva, decorativa – de ter se tornado café com leite em relação ao mundo? “escrever sobre escrever”, assim em minúsculas, afirma Haroldo de Campos, “é o futuro do escrever”.20 Faríamos arte para falar da condição da arte? Quem estuda arte estudaria, portanto, o discurso da arte sobre arte – como um espelho diante de outro espelho? O futuro de que nos fala o poeta, seria uma utopia ou uma condenação? 23 1.11 Em 1962, como parte do livro Primeiras estórias, Guimarães Rosa publica um conto intitulado O espelho.21 Nele, um narrador anônimo, que fala diretamente ao leitor, conta sua curiosa experiência com esse objeto e seu poder de refletir. Primeiro, ele nos fala de seu medo de espelhos, de como seus reflexos eram vistos pelos primitivos como a alma. Lança-nos, portanto, uma ideia semelhante à que encontramos no conto homônimo de Machado de Assis: olha-se no espelho e se encontra a alma. No entanto, não há aqui a teoria de Jacobina sobre as duas almas, a exterior e a interior. Todo o relato de Rosa é voltado a um mergulho para dentro de si, à busca do “eu por detrás de mim”. O protagonista faz uso de exercícios (cita a ioga e os exercícios espirituais dos jesuítas) para, encarando-se no espelho, tentar não enxergar aquilo que de animal teria em suas feições (no caso, seu “sósia inferior na escala” seria a onça), e depois, igualmente abstrair o que haveria de semelhante aos seus antepassados. Conseguindo não ver nem uma coisa nem outra em seu próprio rosto ele passa, gradualmente, a não há mais encontrar reflexo no espelho. Chega a se perguntar se não haveria nele “uma existência central, pessoal, autônoma”, se não seria ele um “des-almado”. Não é assim, entretanto, que o conto termina: o narrador, com o tempo, recupera seu reflexo. Depois de ter sua imagem negada, num determinado momento, em que ele amava e estava “aprendendo (...) a conformidade e a alegria”, ele encontra novamente sua face no espelho. Trata-se, porém, de um “ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo”. Era “não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só”. 1.12 Excluímos nossa animalidade, excluímos nossa história, e ainda assim, depois de cavar um bocado, encontramos alguma coisa lá no fundo, ainda que seja “menos que um menino”. Há um certo otimismo, ou humanismo, em Guimarães Rosa, impensável em Machado de Assis. Sua visão se parece com a de muitos artistas das primeiras décadas do século vinte, crentes na possibilidade de se 21 In: ROSA, 1988, p. 65-72. 24 libertar da influência do passado (acordar, como deseja Stephen Dedalus) e deixar emergir uma expressão primeva. Como Paul Klee, afirmando querer ser como “um recém-nascido, sem saber nada, absolutamente nada sobre a Europa; ignorar poetas e modas, ser quase primitivo.”22 Guimarães Rosa escreve seu conto no mesmo ano que Warhol cria sua primeira Marilyn, dourada, bizantina. Este quadro, no entanto, é um espelho mais próximo daquele concebido por Machado, vislumbrado por Jacobina: uma superfície que reflete uma superfície. Neste mundo, não há lugar para a busca de um eu íntimo, sob o risco de não se encontrar coisa alguma. 1.13 Há também o espelho da história de Branca de Neve23: ali, a rainha se olha, não para enxergar a si própria mas as outras: como é a sua beleza perante o resto das mulheres do mundo.24 Talvez só seja possível enxergar sua própria beleza — ou feiúra — em um espelho como esse, que não exibe sua imagem, mas evoca a de outras pessoas. O que buscamos ao olhar no espelho pode não ser nosso interior, mas a visão de nós como um outro, para nos vermos em meio aos outros – e daí a importância da farda de alferes. Como na história de Jacobina, o espelho é um instrumento de exterioridade. Ou, dito de outra forma: o escrutínio de si se dá apenas em relação ao que lhe é externo. O espelho (ou a arte) nos devolve a imagem embrulhada em linguagem, e é na superfície desse invólucro que a vida se torna possível. Olha-se para uma revista, e não para as ruas, para ver como é uma mulher, mostra-se a fotografia para indicar como é o nariz. Não se olha o intrínseco (nem que seja mal emergindo), talvez porque ele não exista. 22 In: GOLDWATER; TREVES, 1972, p. 442. Tradução minha do inglês. 23In: GRIMM, 2012, p. 247-256. 24 “O espelho mágico parece falar com a voz da filha e não da mãe”, observa Bruno Bettelheim. Segundo ele, “A menina pequena acha a mãe a mulher mais linda do mundo, e é assim que o espelho fala inicialmente com a rainha. Mas como a menina mais velha considera-se muito mais bonita do que a mãe, isso é o que o espelho diz mais adiante” (BETTELHEIM, 1997, p.60-61). 25 25 Odisseu, em grego. 26 Ulisses está vinte anos ausente de sua casa: dez anos ele passa na Guerra de Troia, e mais outros dez, em meio aos diversos infortúnios narrados na Odisseia. 27 Alcino chega a afirmar que gostaria de ter um homem semelhante como genro. In: HOMERO, 2011, p. 234, versos 311-316. 28 Ibidem, p. 238, versos 74. 1.14 No canto VI da Odisseia, Ulisses,25 herói da Guerra de Troia, náufrago, extenuado, tentando em vão há dez anos retornar para sua família,26 é encontrado na praia por Nausíca, que o conduz a seu pai, Alcino, rei dos feácios. O rei desconhece a identidade do estrangeiro e no entanto percebe sua grandeza.27 Oferece-lhe abrigo e uma nau com remadores, para que possa finalmente voltar a seu lar. No dia seguinte, antes da viagem, realiza-se um banquete, com oferendas aos deuses e jogos. A Ulisses, em cuja honra se dá o evento, é oferecido um trono para se sentar. Depois de se satisfazerem da comida e bebida (haviam sido sacrificados doze ovelhas, oito javalis e dois bois), todos param para ouvir Demódoco, o aedo cego – como o próprio Homero –, cujo dom de deleitar os homens com seu “doce canto” era notório. A canção que se escuta, “cuja fama chegara já ao vasto céu”,28 curiosamente, tem como assunto um incidente da Guerra de Troia, protagonizado pelo próprio Ulisses. Ainda anônimo, o herói se cobre com sua capa e chora copiosamente, “escondendo o belo rosto”, pois “sentia vergonha dos feácios”. Apenas Alcino, ouvindo-o suspirar, percebe o que acontece. O rei, então, decide mudar o rumo do festim e convoca as pessoas a saírem para apreciar “o pugilato, a luta, o salto e as corridas”. Terminados os jogos, tem lugar a dança, e para acompanhá-la, entregam novamente a lira para Demódoco. O rapsodo canta a história do amor adúltero de Afrodite por Ares. Ulisses exalta o espetáculo dos bailarinos. As festividades parecem estar chegando ao fim. Criadas preparam um banho quente para Ulisses, que, além de receber presentes, é vestido com uma capa e bela túnica. A atmosfera é de despedida, comida e bebida são novamente servidas. Então Ulisses corta uma fatia de carne de javali e oferece a Demódoco – e lhe pede que cante sobre o cavalo de Troia. 26 29 Ibidem, p. 254, versos 521-531. 30 Ibidem, p. 255, verso 537. 31 A rainha Areta, esposa de Alcino, havia lhe perguntado antes sobre sua identidade e Ulisses se esquivara (Ibidem, p. 232-234, versos 237-301). O herói, como é de se imaginar, cai em prantos novamente: (...) Ulisses derretia-se a chorar: das pálpebras as lágrimas umedeciam-lhe o rosto. Tal como chora a mulher que se atira sobre o marido que tombou à frente da cidade e do seu povo, no esforço de afastar da cidadela e dos filhos o dia impiedoso, e ao vê-lo morrer, arfante e com falta de ar, a ele se agarra, gritando em voz alta, enquanto atrás dela os inimigos lhe batem com as lanças nas costase nos ombros pata a arrastar para o cativeiro, onde terá trabalho e dores, e murchar-lhe-ão as faces com o pior dos sofrimentos – assim Ulisses deixava cair dos olhos um choro aflitivo.29 Novamente, apenas o rei se dá conta do que acontece e pede ao aedo que pare de tanger sua lira, pois “nem a todos tem este canto o condão de agradar.”30 E insiste para que aquele estrangeiro revele, enfim, sua identidade.31 Assim termina o canto VIII. O nono canto é narrado pelo herói, que então se apresenta como “Ulisses, filho de Laertes, conhecido de todos os homens pelos meus dolos”. Ele conta aos feácios (e a nós, leitores) sobre como cegou o ciclope Polifemo, filho de Posêidon, encontrou o deus Éolo, viajou ao Hades, passou incólume pelas sereias, viu todos seus soldados morrerem, tendo sido antes transformados em porcos pela feiticeira Circe, enfrentando outras aventuras, encabeçadas por deuses e criaturas fantásticas. A voz deixa de ser sua só no canto XIII, quando um narrador incorpóreo irá tratar, efetivamente, de seu retorno a Ítaca. 1.15 Por que chora Ulisses? Sobretudo, por que insiste em ouvir poemas que o celebram, se isso o comove a ponto de sentir vergonha? Em outras circunstâncias, as lágrimas não correm fáceis pelo seu rosto: ele não chora em conflitos com 27 32 Epítetos usados pelo narrador para se referir a Ulisses, em diversos momentos da Odisseia. 33 Dom Casmurro (1899) e Fogo Pálido (1962), romances, respectivamente do brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) e do russo, naturalizado norte-americano, Vladimir Nabokov (1899-1977), e O Gabinete do Doutor Caligari (1920), filme de Robert Wiene (1873-1938), são narrativas marcadas pelo caráter suspeito de quem conta a história. monstros, nem na presença de deuses, ou diante de sua mãe defunta, com quem conversa no reino dos mortos, mas apenas nas duas vezes em que ouve canções sobre si próprio. Por que, então, a comoção extrema naqueles dois momentos? Podemos pensar que Ulisses até então se encontrava náufrago, não só depois de deixar a ilha de Ogígia, onde era prisioneiro da ninfa Calipso, mas desde o fim da Guerra de Troia, há quase uma década. Nesse processo, ele tem sua identidade dissolvida. Talvez por isso se esquive em dizer seu nome a Nausíca, a Alcino e a Areta (esposa deste): ele não se esqueceu de seu nome, de sua história, mas dela está alheio – não se encontra desmemoriado, mas desprovido de substância, e é apenas com a experiência de ouvir a si próprio como personagem, na poesia/canção do aedo, que ele vê restaurada sua alma exterior, como Jacobina diante do espelho. Apenas quando se vê de fora – se vê narrado (e se comove com isso) – que Ulisses se torna dono de sua própria história. Naquele instante, Ulisses deixa de ser apenas um sujeito que está ali, para se tornar significado, para se tornar cultura. Nesse sentido, sua grandeza não é recobrada através da presença dos deuses (como Atena), nem com o contato com o fausto do trono ou do banquete, mas com o poder evocativo da arte da narração. Assim como Jacobina só pode recuperar seu protagonismo ao se ver alferes, Ulisses só pode contar sua história quando se vê “o sofredor e divino Ulisses”, “o homem de mil ardis”, “semelhante aos deuses”,32 um herói do passado ou congelado no tempo, pertencente a um tempo imemorial. Enxergado a si próprio como personagem (como reflexo), Ulisses pode contar sua história. 1.16 Nós, leitores modernos (ou pós-modernos), formados por Dom Casmurro e Fogo Pálido (passando pelo Gabinete do Doutor Caligari),33 somos tentados a conjecturar que aquilo que ocorre entre os cantos XIX e XII pode surgir da imaginação de Ulisses, talvez inspirado pela lira de Demódoco, pelo encantamento 28 da narração. Será ele, não por acaso conhecido como ardiloso – responsável por uma das mais conhecidas (e bem-sucedidas) trapaças, o Cavalo de Troia –, um narrador insuspeito? Seria boa parte da Odisseia, fruto da imaginação de Ulisses? Para tentar responder, teríamos de ter uma noção melhor do que perguntamos, do que chamamos de verdade, se acreditamos na substância de uma realidade passível de ser reproduzida pelo espelho cristalino da narração. Se a blusa é azul, se o azul pode ser um atributo da blusa ou se não é um fenômeno fisiológico, pertencente ao mecanismo de nossos olhos. No meio da história contada por Ulisses, Alcino afirma que não julga o narrador mentiroso ou “tecelão de falsidades”34, porque conta sua história “com a perícia de um aedo”. Sua verdade nada tem a ver com a correspondência dos fatos narrados com o mundo que está lá fora. Sua história é verdadeira porque se parece com arte, ou porque é arte. Ulisses sabe disso, pois há pouco se convencera de que ele próprio era real porque cabia em uma canção. Terá, então, a narrativa de Ulisses “autonomia”, como a cor ou a linha teriam na pintura moderna? 1.17 Com a década de 1960, começou a ser mais frequente a ideia de que a tal emancipação da arte em relação ao mundo seria alguma coisa negativa. Pinturas, esculturas, poesias e mesmo romances acabariam falando apenas de si, dos problemas de sua execução, dos limites de suas linguagens, e isso teria feito com que a arte acontecesse em algum lugar paralelo ao mundo, uma roda girando sobre si mesma, como a ventoinha de meu computador, a única peça que escuto trabalhar, mas que ignora o teor do que escrevo. Essa arte, ou essa visão de arte, passou a ser chamada, pejorativamente, de formalismo. E esse olhar crítico ao modernismo denotaria o próprio ocaso do movimento moderno, ou o início do pós- modernismo, ou contemporaneidade. Como consequência, nos anos 1980 e 1990 ganham mais espaço artistas cujos trabalhos fazem denúncias sociais e/ou estão vinculados a reinvindicações de direitos de grupos, como negros, mulheres, homossexuais. Assim, supostamente, a 34 No canto XI (página 309, versos 362-369). 29 35 Slavoj Žižek (1949- ), filósofo e psicanalista esloveno. 36 KAHNWEILER, 1989, p. 36-37. arte não estaria falando apenas de arte. Não falaria mais do Azul, mas de uma blusa azul. É quase como se os artistas tivessem dado ouvidos aos seus pais, tentando os dissuadir da escolha da carreira: por que você não faz alguma coisa que preste? 1.18 “O que acontece quando um triângulo encontra um círculo?” – essa é a premissa de uma piada, que começam a contar a Slavoj Žižek,35 na Universidade da Califórnia, “uma das capitais do politicamente correto”. Anedotas como essa, advertem, além de engraçadas, não seriam capazes de ferir, humilhar, nem “fariam troça de ninguém”. O pensador esloveno sequer escuta o resto, afirma que não tem interesse, pois a graça das piadas estaria “exatamente em magoar ou humilhar alguém...”. Daniel-Henry Kahnweiler (1884-1979), marchand e um dos primeiros defensores da pintura cubista, conta que em 1904, vira dois cocheiros de fiacre olhando pinturas de Monet, através da vitrine da galeria de Durant-Ruel, em Paris. Furiosos, com os punhos cerrados, eles gritavam que era preciso “quebrar a vitrine de uma loja que mostra sujeiras desse tipo”. “A pintura”, prossegue Kahnweiler, “nos faz ver o mundo exterior. Ela cria o mundo dos homens e, quando esta criação é nova, quando os signos inventados pelos pintores são novos, nasce este mal- estar, este conflito”, do qual a agressividade dos cocheiros seria um sintoma. A pintura atual (o marchand dá seu depoimento em 1961), “abstrata e tachista”, não teria esse poder de escândalo, pois seria “puramente hedonista”. 36 A opinião de Kahnweiler sobre arte abstrata, a princípio, parece próxima do julgamento de Žižek sobre as piadas da Universidade da Califórnia – é irônico que o início da piada desprezada pelo filósofo pareça uma referência à pintura suprematista. Žižek, entretanto, num segundo momento, duvida de sua opiniãoimediata: 30 37 ŽIŽEK, 2015, p. 48. 38 Vilém Flusser (1920-1991) 39 “Há espelhos sem aço que permitem espiar inocentemente o mundo – eis uma das mais belas metáforas da consciência”, escreve Baudrillard. “Não existe tela sem aço, porque nada há para ver do outro lado da tela, nada para ver sem ser visto.” (In: BAUDRILLARD, 2000, p. 21.) Entretanto, e se eu estivesse errado? E se eu tivesse perdido o aspecto formal, que é o que torna uma piada engraçada, muito mais do que o seu conteúdo, assim como ocorre com a sexualidade, que não é uma questão de conteúdo direto, mas do modo como esse conteúdo é formalmente tratado? Se a arte, como afirma Kahnweiler, “cria o mundo dos homens”, porque ela perderia seu caráter provocativo, ao se tornar abstrata? A descrição ou a referência direta à realidade seria sua essência ou um de seus ingredientes? “A questão”, pergunta Zizek, ainda refletindo sobre as piadas, “obviamente é esta: a forma funciona sozinha ou ela precisa ‘de um pouco de realidade’ ou seja, de algum conteúdo positivo contingente relacionado a temas ‘sujos’, como sexo e violência?”37 Seria possível a arte falar apenas de arte? Faz sentido imaginar que a obra de um pintor, boa e má, se trate apenas de manchas ou gotejamentos, ou áreas de cor, e nada mais, não significando absolutamente coisa alguma? Na arte, falando de si própria e de seus limites, não residiria, também, um discurso ou uma postura sobre outra coisa? Ou, colocando de outra forma: uma obra de arte que discorre sobre si própria (que gira sobre si própria, como a ventoinha) não traz em si uma postura política (e uma postura radical), num mundo em que tudo – incluindo a fruição de uma obra de arte – é, de antemão, rotulada e instrumentalizada? 1.19 O fascínio do homem contemporâneo pelos espelhos não reside mais em sua face reflexiva, afirma o tcheco-brasileiro Vilém Flusser,38 mas no seu verso, na superfície coberta pelo nitrato de prata. O interesse por espelhos invertidos seria típico da atualidade. Sem o nitrato de prata, o espelho não seria espelho: seria janela.39 Uma vez que se torna espelho, temos uma janela que não pode ser 31 40 Num texto chamado Do espelho, publicado originalmente no Jornal O Estado de S. Paulo, em 06/08/1966 e, mais tarde, reunido no livro Ficções filosóficas. (FLUSSER, 1998, p 67-71) 41 Talvez por isso que os espelhos convexos encantem artistas como Van Eyck, Holbein e Parmigianino. 42 Ibidem, p. 68. 43 Ibidem, p.69. 44 Ibidem, p.68. fechada, e que não mostra, de certa forma, o que ela é, pois reflete.40 No passado, prossegue Flusser, os espelhos curvos foram paulatinamente sendo abandonados em prol dos espelhos planos, porque estes não distorceriam o espelhado e, portanto, seriam “fiéis, isto é, verdadeiros”. Isso para quem acredita que há uma forma definitiva do espelhado – que uma blusa seja azul. Para atestarmos que um espelho reflete mais fielmente o que está diante dele, precisamos crer que há uma aparência definida, essencial, desse corpo, e que há uma maneira clara e equivalente para que ele possa ser espelhado.41 O compromisso “dos nossos antepassados em prol de espelhos planos e lisos”, conclui Flusser, seria “consequência de preconceitos cartesianos”.42 Colocamo-nos defronte do espelho plano e não olhamos o espelho. Olhamos o reflexo, jamais olhamos o refletir. “O espelho é um ser em oposição”, um “ser que nega”, e por isso, reflete. Como nós, de alguma maneira: O homem enquanto ser que reflete é um ser em oposição, em posição negativa. É isto que o distingue de todos os demais seres que nos cercam. É um ser que não permite que aquilo que sobre ele incide (as coisas que nos cercam) passe por ele. Formula sentenças que negam. Esta é a resposta que articula contra o mundo que o cerca. E pode fazê-lo graças ao nada que o fundamenta. O homem é um ser fundamentado pelo nada. O nada é o nitrato de prata que faz do homem o que ele é: espelho.43 Se o nitrato de prata é o nada, “extremamente chato” que vejo ao virar o espelho, por que me interesso por ele? “Porque”, segundo Flusser, “sei ser ele o responsável pelas reflexões que se dão na outra face”.44 Olhar para o verso do 32 45 O Dicionário básico de filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes define tautologia como: “1. Proposição na qual o predicado simplesmente repete aquilo que está contido no sujeito: ‘todo solteiro é não-casado’. Nesse sentido, todo juízo analítico é tautológico. 2. Em lógica, função sentencial que é sempre verdadeira, independente dos valores que atribuímos às suas variáveis. Verdade lógica”. (IN: JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 263) 46 John Cage (1912-1992), compositor estadunidense afirmava ser o silêncio o elemento fundamental da composição musical. Publicou alguns livros com coletâneas de textos, sendo o mais conhecido, intitulado, Silêncio, publicado pela primeira vez em 1961. Neste livro é que se encontra sua “palestra sobre nada”, publicada originalmente em 1959, onde se lê a frase citada parcialmente acima, traduzida livremente por mim do inglês: “I have nothing to say/and I am saying it/and that is poetry/as I need it.” (IN: CAGE, 1973, p. 109) 47 FLUSSER, 1998, p. 70. 48 Ibidem, p.70. 49 Ibidem, p.71. espelho é olhar não a reflexão (ou o pensamento), mas sua origem, a tautologia que está na estrutura do pensamento. O pensamento nasce de uma tautologia, uma frase que afirma a si própria, “uma sentença que não diz nada.”45 “Não tenho nada a dizer e estou dizendo, e isso é poesia”, escreveu o norte-americano John Cage.46 O pensamento viria do nada, e sua origem estaria vinculada à poesia. A poesia seria o pensamento em sua raiz, em sua materialidade, a consciência de seu nada fundante. A poesia, enfim, “é o nitrato de prata do pensamento.”47 Os poetas concretos, segundo Flusser, sabiam disso e aplicavam “metodicamente essa descoberta.” Ao virar o espelho, viramos “o espelho que somos.”48 Para Flusser, devemos procurar outros caminhos, além do pensamento cartesiano, e esse caminho é o do espelho virado. Esses caminhos existem, afirma: “A nova arte o prova.”49 1.20 Spiegel im spiegel, em português, Espelho no espelho, o título que escolhi para este capítulo, é o nome de uma peça para piano e violino escrita em 1978, pelo compositor estoniano Arvo Pärt. Seu título é compreensível quando ouvimos a música, hipnótica, sem muita diferença entre início, meio e fim. Não descreve um espelho diante de outro espelho, embora seu título possa se referir igualmente a sensação vertiginosa de uma imagem refletida infinitas vezes quanto ao processo 33 50 Para Leopold Brauneiss, o título da peça musical também descreveria o modo como o autor estoniano compõe, em seu estilo chamado (pelo próprio Pärt) de tintinnabuli: “Spiegel im spiegel é um excelente exemplo de espelhamento na voz melódica. É também uma imagem da estética arquetípica do estilo tintinnabuli em geral: se alguém segura dois espelhos um contra o outro, os reflexos nos dois sentidos mostram uma imagem cujas representações se encadeiam infinitamente, como um cone óptico rumo ao infinito, constituído por um arranjo racional, técnico. Neste sentido, pode-se chamar o estilo tintinnabuli de um cone acústico na direção do infinito (...). Minha tradução do inglês, do texto Musical archetypes: the basic elements of the tintinnabuli style. IN: SHENTON, 2012, p. 62. empregado pelo compositor ao criar a peça, a partir do espelhamento e repetição de sequências musicais.50 Não descreve nada, como a maioria das músicas, aliás. No entanto, não arriscamos dizer que ela não trata de coisa alguma, que seja sobre nada. 34 2. O quadro olha para os lados 1 Jacques Derrida (1930-2004), no livro A verdade na pintura, dedica um ensaio ao parergon. Para os gregos (criadores do termo), parergonsignificava aquilo que seria acessório à obra em si (ergon). O filósofo argelino desenvolve um conceito particular, referindo-se ao parergon como aquilo que tangencia a obra (como a moldura, a assinatura, o título), mas não é exatamente externo à ela, afinal ajudaria a constituir seu próprio significado: (…) “nem obra (ergon), nem fora da obra (hors d’oeuvre), nem dentro nem fora, nem acima nem abaixo, [o parergon] desmonta qualquer oposição mas não permanece indeterminado e dá origem à obra. Não está mais apenas em torno da obra (...)”. Traduzido por mim do inglês: “neither work (ergon) nor outside the work (hors d’oeuvre), neither inside nor outside, neither above nor below, it disconcerts any opposition but does not remain indeterminate and it gives rise to the work. It is no longer merely around the work”. (In: DERRIDA, 1987, p. 9). Para mais detalhes sobre as mudanças de significado do termo parergon na história, ver o artigo What is a parergon?, de Paul Duro (DURO, 2019). 2.1 Nem sempre pintura foi a mesma coisa que quadro. Mas a ideia de quadro é fundamental para o que consideramos pintura, ao menos nos últimos quinhentos anos. No século catorze, vemos desenvolver o quadro, um espaço circunscrito, cercado, protegido pela moldura. Era preciso enfatizar que aquilo não se tratava de um objeto, mas de uma abertura. De uma passagem. Olhamos para um quadro para ver outra coisa, para ver o outro lado – como hoje fazemos com a televisão ou com o telefone celular. Olhamos e, de repente, não estamos mais aqui. Esse espaço mental se construiu aos poucos, de fora para dentro. Bordas exigem especial cuidado: o que fazer se aparecerem as fibras da madeira nas laterais, ou os pregos que seguram e mantém esticado o tecido onde se pintou? Seria como se víssemos o fundo falso da cartola do mágico: um estrago irreparável para o espetáculo, ainda que todos saibamos, sem ver, que existe um fundo falso. A moldura dourada cumpre um de seus papéis em ocultar tudo isso, como a gravata cobre os botões da camisa. Ela não apenas ornamenta os limites do quadro, mas, naquele momento, contribui para o tornar possível.1 35 Durante muito tempo, pinturas pertenceram a lugares – salas, corredores, igrejas – não costumavam ser transportadas ou mudar de endereço (janelas portáteis demorarão para existir2). Cabe às molduras, nessa época, também fazer com que quadros numa mesma sala criem vínculos uns com os outros e com o ambiente, pois assemelham-se aos beirais de janelas e demais adereços. De maneira paradoxal, a moldura serve para indicar (e convencionar) uma distância: ela nos afirma que seu espaço não é o mesmo do que o da sala.3 Ela nos lembra que o que está dentro tem natureza distinta do que está fora. O quadro é um objeto que ocupa e, ao mesmo tempo, fura a sala. Para que isso seja possível, precisa manter seu disfarce de pertencente a este mundo, como um agente infiltrado. 2.2 Continuam as pinturas, hoje, a furar a sala? Ainda fazem uso de seu disfarce? O quadro contemporâneo não parece ser mais, a princípio, algo que se vê das molduras para dentro (hoje, aliás, raramente uma pintura se apresenta em moldura). É mais como um objeto no espaço. Mas, antes de nos perguntarmos sobre o objeto, talvez seja conveniente questionar o espaço. Que espaço é esse? Nas fotografias da mostra Live in your head: when attitudes became form, de 19694, rodapés, tomadas, pisos de tacos e azulejos convivem com obras que serpenteiam pelo chão das salas e sobem pelas paredes. Para o gosto atual, tudo está muito próximo, e em alguns momentos a arquitetura fala mais alto que as 2 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil que, colocada na parede, cria nela a profundidade do espaço.” (O’DOHERTY, 2002, p. 08) 3 Lorenzo Mammì, em um ensaio intitulado “As bordas”, aponta que as molduras, assim como os pedestais das esculturas, a partir do Renascimento, vão progressivamente deixando de ser “apenas elementos decorativos ou desdobramentos arquitetônicos” para assumirem “uma função autônoma.” Molduras e pedestais “tornam-se dispositivos mais ou menos complexos, que administram e graduam a transição da obra ao ambiente e vice- versa.” In: MAMMÌ, 2012, p. 56-57. 4 A exposição, montada originalmente na Kunsthalle (um edifício construído em 1918), em Berna, tinha a curadoria de Harald Szeemann, e contava com trabalhos de mais de setenta artistas, entre eles Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph Beuys, Alighiero Boetti, Mel Bochner, Walter de Maria, Jan Dibbets, Eva Hesse, Yves Klein, Joseph Kosuth, Jannis Kounellis, Sol LeWitt, Richard Long, Robert Morris, Bruce Nauman, Claes Oldenburg, Dennis Oppenheim, Michelangelo Pistoletto, Robert Ryman, Richard Serra, Robert Smithson, Richard Tuttle, Lawrence Weiner e Gilberto Zorio. 36 obras de arte. Esculturas de Richard Serra são colocadas sobre um piso xadrez. Uma obra de Alighiero Boetti5 e um aquecedor parecem brigar por território. Às vésperas do século vinte, um debilitado Oscar Wilde, morando num quarto de hotel em Paris, diz a uma amiga: “Meu papel de parede e eu travamos um duelo fatal. Um ou outro tem de partir.”6 Nos anos 1960, quando acontece a exposição When attitudes became form, é quando ultimatos como o de Wilde começam a ser feitos entre os trabalhos de arte e seus ambientes. Nos cem anos seguintes, os espaços expositivos vão se modificando, tornando-se cada vez mais neutros, menos semelhantes a outros tipos de ambiente, para que ali, somente as obras possam aparecer, soberanas. Salas são construídas para a exibição de arte. Edifícios se erguem para abrigar esculturas de Serra. Os trabalhos de arte, ao contrário de Wilde, vencem o duelo com a sala, forçada a abandonar seus papéis de parede e outros ornamentos e dar lugar a um interior anódino, que veio a ser apelidado de cubo branco.7 2.3 O quadro já estava, aparentemente, desde o fim do século dezenove, perdendo suas características de janela. Existindo em ambientes feitos para a arte, ele se vê cada vez menos obrigado a se parecer com arte: pode deixar de ser como uma abertura na parede e se comportar como uma coisa. A sala, de certa forma, já é o buraco na parede.8 Ele se permite até mostrar do que é feito: tinta, pincelada. Afinal, será um objeto localizado em um lugar que traz a janela dentro de si, faz a vez de moldura, enquadrando, acalantando, como que cobrindo os inoportunos grampos, pregos, fibras de madeira, esses estraga-prazeres, ruídos do mundo. O 5 Richard Serra (1938- ) e Alighiero Boetti (1940-1994), norte-americano e italiano, respectivamente. 6 Oscar Wilde (1854-1900), autor inglês de origem irlandesa; sua amiga, aqui, é a também escritora Claire de Pratz (1866-1934). A intuição de Wilde estava, infelizmente, certa: ele morreu no mês seguinte à frase. O incidente é narrado por seu biógrafo, Richard Ellmann (ELLMANN, 1988, p.499). 7 O espaço de exposições todo pintado de branco, sem ornamentos ou o que possa interferir na apreensão das obras de arte, apelidado de cubo branco, surge na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, coincidindo com o expressionismo abstrato e com o minimalismo norte-americanos. Ver O’DOHERTY, 2002. 8 “Quando nos encontramos no recinto da galeria, será que, numa inversão peculiar, nós não acabamos dentro do quadro, olhando para um plano opaco exterior que nos protege de um vazio? (Ibidem, p. 37.) 37 9 Leon Battista Alberti (1404-1472), em seu tratado intitulado Da pintura (publicado pela primeira vez, em latim, em 1435): “Inicialmente, onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o que aí será pintado (...).” In: ALBERTI, 1992, p. 88-89. 10 Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), pintor holandês. 11 A frase de Duchamp é citada pelo crítico Leo Steinberg. In: STEINBERG, 2008,p. 118. que está em volta contribui para determinar o que está dentro; muito do que faz o quadro ser o que ele é não está no quadro. Entretanto, mesmo que a pintura se pareça com um objeto qualquer e não tenha, por exemplo, perspectiva, ilusões ópticas ou mesmo figuras, ainda olhamos para ela e vemos um espaço projetado. Não um espaço que se estende como se a superfície da tela fosse uma vidraça – o espaço renascentista, descrito por Alberti9 –, mas, ainda, um espaço virtual. Numa sala de exposições, prosseguimos olhando para coisas e vendo além de coisas. Muitas obras de arte construídas a partir do século vinte são feitas de materiais comuns ou mesmo insignificantes. Isso não ocorre porque a arte se torna menos idealista, mas justamente o oposto: é possível fazer arte de pó de borracha ou mesmo de fezes porque esses elementos, organizados numa determinada circunstância, passam a ter um significado específico e a ser olhados com uma atenção (e sentido) próprios. A proposição de Marcel Duchamp, de usar uma pintura de Rembrandt10 como tábua de passar roupas,11 por ser tão absurda ou risível, enfatiza o quanto, em nosso modo de ver, uma pintura (uma grande pintura) sobre madeira se distancia de um simples painel feito do mesmo material. Hoje, esse espaço se estabeleceu e se introjetou no espectador. Os interruptores de luz, rodapés, aquecedores, podem até tornar a frequentar salas de exposição – como o fazem, em inúmeros museus e galerias cujas salas não são cubos brancos, em mostras em galpões não adaptados, ateliês, edifícios ocupados, por exemplo –, porque o espaço onde tudo é além daquilo que se vê, o cubo branco, já vive na cabeça de seu espectador. 38 2.4 As laterais de um quadro não costumam ser olhadas. O espectador é convidado a se esquecer delas. Raramente são consideradas parte da obra. Mas quando tomamos pinturas como, antes de qualquer coisa, superfícies – e esta é uma tendência durante todo o século vinte –, somos tentados a ver o quadro como um todo, como um objeto, uma coisa afixada à parede: um caixote. E seus lados, com grampos, pregos, e também suas sombras, tornam-se difíceis de se ignorar. Figura 7. Sem título, 2009. Óleo e esmalte sintético sobre caixas de papelão, 33 x 14 x 11 cm cada. Em 2009, mostrei na Galeria Virgílio, em São Paulo, três quadros feitos de caixas de sapato (figura 7). As caixas haviam sido pintadas, duas de vermelho e a outra, de vermelho e cinza – e afixadas na parede. O tom de vermelho era o mesmo que as caixas tinham, originalmente; a tinta apenas velava as letras (antes brancas), que ainda podiam ser vistas, conforme a luz e a posição do espectador. De frente, tínhamos a superfície, como um quadro; se nos colocássemos de lado, víamos a sobreposição da tampa sobre a caixa, e a origem do objeto se impunha. Anos depois, esses trabalhos acabaram reverberando em quadros em óleo sobre tela. Mas em telas especiais, com chassis de diferentes proporções. 39 Figura 8. Sem título, 2013/14. Óleo sobre tela, 34 x 25 cm. Começo a pintar na horizontal, com as telas sobre uma mesa. À medida que as camadas vão se sobrepondo, a tinta escorre pelas laterais (figura 8). É onde ainda são visíveis as cores empregadas, incluindo as que foram cobertas por outras. O lado do quadro pode ser visto como um relatório, uma espécie de registro de procedimentos que quem olha a pintura apenas de frente nem sempre tem acesso. 40 Figura 9. Sem título, 2014. Óleo sobre tela, 32 x 22 x 12 cm. Foto de Julia Janequine. Imaginei que tornando as laterais do quadro maiores, não apenas seu caráter de objeto seria enfatizado – sua sombra ficaria mais robusta –, quanto os escorridos poderiam adquirir um papel mais importante. Experimentei pintar em telas construídas com chassis exageradamente profundos e variados – medindo cinco, sete, dez ou quinze centímetros, em quadros de apenas 30 de altura e 20 de largura (figuras 9, 10 e 11). Posteriormente, executei pinturas maiores, com igual chassi hipertrofiado (figuras 12, 13 e 14). 41 Figura 12. Vista da exposição Meu cuidado todo, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2019. Foto de Gabi Carrera. Figura 10. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 30 x 20 x 15 cm. Figura 11. Sem título, 2016. Óleo sobre tela, 30 x 20 x 20 cm. 42 Figura 13. Sem título, 2019. Óleo sobre tela, 60 x 40 x 15 cm. Foto de Gabi Carrera. 43 Figura 14. Sem título, 2017/19. Óleo sobre tela, 95 x 38 x 20 cm. Foto de Gabi Carrera. 44 12 Donald Judd (1928-1994), artista estadunidense. 13 Aluísio Carvão (1920-2001), artista brasileiro. 14 Willys de Castro (1926-1988), artista brasileiro. 15 Roberto Conduru descreve um objeto ativo de Willys de Castro (1926-1988) como “’caixa’ regular composta de seis faces: cinco à mostra e uma de contato com a superfície de apoio (CONDURU, 2005, p. 49).” Figura 15. Aluísio Carvão, Cubocor, 1960. Óleo sobre cimento, 16,5 x 16,5 x 16,5 cm. Coleção Particular. Se as pinturas/caixas de sapato remetiam, ao mesmo tempo, às esculturas de parede de Donald Judd12 e, sobretudo, ao Cubocor, obra em cimento de Aluísio Carvão13 (figura 15), as telas mais novas têm como precedentes – e inspirações – os objetos ativos de Willys de Castro.14 Tratam-se de pinturas/objetos pintadas também nas laterais, que instigam o espectador a um olhar oblíquo, convidando-o a vê-la de ângulos diferentes, explorando as formas que se configuram, de acordo com o seu ponto de vista, criando uma ilusão óptica15 (figura 16). Figura 16. Willys de Castro, Objeto ativo, 1959. Óleo sobre madeira, 92 x 2,3 x 6,9 cm. Coleção Particular 45 2.5 Desde 2007, minhas pinturas crescem nas bordas. A tinta excede os limites do plano pictórico, em forma de crostas ou franjas. Estas caem sobre o próprio quadro ou pesam em seus limites inferiores, e são novamente cobertas de tinta. Pinta-se a tela e pinta-se o corpo de tinta. Rebarbas de tinta pendem na parte inferior e nas laterais do quadro, e projetam sombras irregulares, onduladas, na parede (figuras 17 e 19). Figura 17. Sem título, óleo sobre tela, 2013. 137 x 160 cm. Foto de Marcelo Almeida. 46 Sombras de contornos curvilíneos também são provocadas por molduras entalhadas, próprias de uma arte anterior ao modernismo (figura 18). Mas molduras servem, entre outras coisas, para puxar nosso olhar para o interior do quadro. Figura 18. Vista da exposição Toulouse Lautrec em vermelho, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, (MASP), em 2017. Figura 19. Vista da exposição Triangular: arte deste século - Aquisições recentes para o acervo da Casa da Cultura da América Latina da Universidade de Brasília, na Casa Niemeyer, Brasília, 2019. 47 As pinturas cubistas de Picasso e Braque costumam ser levadas em conta como os primeiros quadros que deliberadamente negam a condição de janela. Não por acaso, ficam pouco à vontade dentro de molduras. Nelas, contudo, há uma concentração dos elementos principais no centro do espaço: à medida que se aproxima dos limites, a pintura vai esmaecendo, como se perdendo foco, como as fotografias do mesmo período (figura 20).16 Segundo Clement Greenberg,17 a razão para Picasso e Braque não assinarem a maioria de suas pinturas desse momento seria, justamente, para evitar suas margens, e assim “chamar menos atenção para a sua planaridade literal.”18 16 Segundo Brian O’Doherty, o cubismo mantém “o status quo da pintura de cavalete”. As pinturas cubistas, nos termos do autor, “são centrípetas, acumulando-se em direção ao centro, esmaecendo-se em direção à borda.” Matisse, com seu uso da cor e sua noção de escala, ainda na opinião de O’Doherty, teria compreendido “melhor do que ninguém o dilema da superfície pictórica e sua tendência de estender-se para fora.” (O’DOHERTY, 2002, p. 15-16) 17 Clement Greenberg(1909-1994), crítico de arte estadunidense. 18 GREENBERG, 1996, p. 87. As bordas de minhas pinturas sugerem o movimento oposto. O próprio fato de a tinta escorrer para além do retângulo do quadro faz com que seu caráter de superfície (literal) seja acentuado; todo o plano da tela, não apenas as sobras de Figura 20. Pablo Picasso, Garota com bandolim, (Fanny Tellier), 1910. Óleo sobre tela, 100,3 x 73,6 cm. The Museum of Modern Art (MoMA), Nova York. 48 tinta, mas a porção delimitada pelo chassi tende a se apresentar mais como uma pele do que como um recuo. As pinturas se tornam, de alguma forma, esculturais. As rebarbas de tinta são afirmações quase literais de que o quadro é algo que acontece da tela para fora, e não para dentro. Uma casca, não uma vidraça. As sobras de tinta, caindo pelos lados e por baixo da tela, como fraldas de camisa, são equivalentes às laterais da tela: estão lá, embora tenhamos sidos treinados para não as considerar parte do quadro. Algo semelhante aparece em certas pinturas de Sigmar Polke,20 em que o tecido da tela sobra e pende, além do suposto campo pictórico delimitado pelo retângulo do chassi (figura 21). Figura 21. Sigmar Polke, Tendência mais quente da temporada, 2003. Tecidos diversos, 304 x 487 cm. Coleção particular. 20 Sigmar Polke (1941-2010), artista alemão. 2.6 Eu deveria ter em torno de seis anos. Meu pai teve a ideia de usar um velho lampião como enfeite. O objeto, marrom, quase feito de ferrugem, encontrado entre coisas antigas da família, na casa da recém-comprada chácara, seria coberto com tinta brilhante e pendurado na parede. Eu, que nunca vira meu pai empunhar um pincel ou expressar qualquer interesse pela decoração da casa, vi a anunciada atividade com interesse e algum descrédito. 49 21 Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês. 22 Diferentemente de suas pinturas tardias, executadas nos Estados Unidos, com a ajuda de fita adesiva. 23 Paul Klee (1879-1940), pintor alemão, de origem suíça; Joaquín Torres-García (1874- 1949), artista uruguaio. 24 O que não é raro. Marcel Duchamp, em uma conferência em 1957, afirma que o valor de uma obra de arte se localiza entre “o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente” In: BATTCOCK, 1986, p. 72. O dia em que lampião mudaria de cor chegou, e fui chamado para testemunhar. No chão, de pé, uma lata grande de tinta esmalte (azul, se lembro certo), e nenhum pincel, rolo ou solvente. Meu pai amarrou a alça do lampião com um arame fino e o suspendeu. Assisti àquele objeto aparentemente pesado, corroído, feito um leproso dos filmes, mergulhar no azul absoluto do interior da lata de tinta. Sua imediata emersão, revelava-o transfigurado: uma peça reluzente, leve, tomada pela cor. Toda exterioridade. 2.7 Quando vemos de perto, muitas das pinturas abstratas de Mondrian21 padecem de problemas técnicos ou de conservação: a tinta apresenta rachaduras, principalmente nas áreas brancas. As linhas retas, negras, tão características, por terem sido feitas à mão livre,22 são ligeiramente trêmulas. Isso, de alguma maneira, entra em contradição com os princípios do neoplasticismo, que lemos nos escritos do artista e enxergamos nos próprios quadros. Poderíamos apontar que artistas da geração de Mondrian, como Paul Klee e Joaquín Torres-García,23 conciliam, em suas poéticas, geometria e afeto, onde se percebe a presença da mão. Cabe, no entanto, apontar que a obra deles, com um vínculo mais próximo com o cubismo de Braque, Picasso e Gris, trazem em si um lirismo ao qual a pintura de Mondrian se opõe. A obra de Klee pode acolher rachaduras na tinta ou um traço trêmulo sem conflito algum, enquanto na pintura do criador do neoplasticismo isso não ocorre sem dor. Essa ambiguidade, a meu ver, em vez de ser um problema, confere uma qualidade especial às suas pinturas, mesmo que ocorram (e talvez por isso) à revelia do artista.24 A rachadura num Mondrian é uma espécie de dissonância. 50 25 Uma experiência decisiva, para mim foi ter visto uma grande exposição de suas obras, intitulada: Mondrian: nature to abstraction, aberta na Tate Gallery entre 26 de julho e 30 de novembro de 1997. Características, como os craquelados e as linhas trêmulas me saltaram aos olhos, por não ser algo perceptível na maioria das reproduções em livros. 26 No livro Piet Mondrian: Structures in space, Susanne Deicher atribui as rachaduras ao fato de Mondrian usar petróleo como solvente (DEICHER, 2004, p. 64). 27 Alfredo Volpi (1896-1988) e Mira Schendel (1919-1988), artistas brasileiros. Ele, nascido na Itália e ela, na Suíça. 28 MARQUES, 2001, p. 21. 29 “A questão neoconcreta (…)”, nas palavras de Ronaldo Brito, “é impregnar vivencialmente as linguagens geométricas, repropô-las como manifestações expressivas, recoloca-las como objeto de envolvimento fenomenológico.” (BRITO, 1999, p. 76) A primeira vez em que me confrontei com as trincas na pintura do artista holandês foi em uma grande exposição dedicada a ele em 1997.25 No material impresso da exposição, havia um comentário a respeito: elas seriam o resultado de uma aplicação inapropriada da tinta a óleo, que havia sido aplicada de uma vez só, e não em camadas.26 Porém, a ideia de um Mondrian pintado em demãos sucessivas de uma mesma cor me pareceu tão ilógico ou mesmo absurdo quanto um Mondrian com rachaduras. 2.8 Pintores posteriores, como os brasileiros Volpi e Mira Schendel27 levariam adiante uma certa junção da geometria com uma presença franca da matéria, do acidente e do improviso. Maria Eduarda Marques, em seu livro sobre Mira, fala em um certo “desejo de preservar o aspecto sensorial da expressão artística, estabelecendo uma relação dialética entre a rigidez da construção e o aspecto corpóreo da matéria e do gesto.”28 O movimento neoconcreto brasileiro corresponde a um esforço em abraçar o caráter construtivo moderno com a experiência sensorial.29 De alguma maneira, juntar Mondrian e suas rachaduras – fazer com que um incorpore o outro, e não explorar o choque existente entre os dois. Talvez onde isso esteja mais visível – e mais pleno – seja nas esculturas de ferro de Amilcar de Castro, onde a oxidação é acolhida e, em vez de contradizer, soa como bem-vinda à obra. Poderíamos ainda citar a textura da madeira nas xilogravuras intituladas Tecelares, de Lygia Pape, 51 30 Amilcar de Castro (1920-2002), Lygia Pape (1927-2004), Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), artistas brasileiros, associados ao movimento neoconcreto, como Willys de Castro, Aluísio Carvão, Ferreira Gullar, entre outros. 31 Barnett Newman (1905-1970), Agnes Martin (1912-2004), Richard Diebenkorn (1922- 1993), Brice Marden (1938- ) e Sean Scully (1945- ), pintores norte-americanos – sendo a segunda, de origem canadense e o ultimo, de origem irlandesa. Sergio Sister (1948- ), Geraldo Leão (1957- ) e Fabio Miguez (1962- ) são pintores brasileiros. 32 Eduardo Sued (1925- ), pintor brasileiro, nascido e atuante na cidade do Rio de Janeiro. nas Obras moles e nos Trepantes de Lygia Clark, nos Bólides e nos Parangolés de Hélio Oiticica.30 Mas aqui, convém observar, não estamos falando de pintura. Ou estamos, mas através de trabalhos que se distanciam do que poderíamos chamar de pintura. Sob formas diversas, a relação entre geometria e expressividade – ou uma abordagem mais voltada aos sentidos – é visível na obra de pintores bastante diversos como Barnett Newman, Agnes Martin, Richard Diebenkorn, Brice Marden, Sean Scully, Sergio Sister, Geraldo Leão e Fabio Miguez.31 2.9 No início dos anos 1980, o brasileiro Eduardo Sued32 produz pinturas de caráter geométrico, com superfícies lisas, sem o menor sinal de pincel ou espátula. Claramente é um herdeiro da tradição construtiva brasileira e portanto, do neoplasticismo de
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