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2012 Literatura BrasiLeira: do Período CoLoniaL ao romantismo Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Copyright © UNIASSELVI 2012 Elaboração: Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 869 P284l Pasqualini, Joseni Terezinha Frainer Literatura brasileira : do período colonial ao romantismo/ Joseni Terezinha Frainer Pasqualini. Indaial : Grupo UNIASSELVI, 2012. 237 p. il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-370-9 1. Literatura brasileira 2. Romantismo I. Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título Impresso por: III aPresentação Caro/a acadêmico/a, seja bem-vindo/a ao estudo da disciplina de Literatura Brasileira: do Período Colonial ao Romantismo. Apreciar essa literatura é refletir sobre o contexto histórico, os períodos, os artistas, uma vez que na composição de uma obra literária estão expressas uma cultura, um tempo, uma ideologia e uma estética, mas, sobretudo, uma manifestação da arte. Para a elaboração deste caderno nossa atenção centrou-se na literatura medieval, na renascentista, na literatura escrita em solo brasileiro no período em que o Brasil pertencia a Portugal, para, em seguida, refletirmos sobre a literatura de um Brasil pós-colonial. Sendo assim, apresentamos textos literários dos autores mais expressivos, de modo especial os que nos ajudam a pensar na construção e evolução da literatura brasileira. As escolhas, tanto dos poetas como dos críticos literários, foram pensadas em termos de atender ao objetivo de analisar autores e épocas das manifestações literárias escritas nos três primeiros séculos da nação brasileira, para compreensão do fenômeno literário de nossa nação. Enfim, cremos que os conteúdos abordados podem auxiliá-lo/a no processo de aquisição e aprimoramento de conhecimentos e na capacidade de estabelecer relações, debater e argumentar, o que, esperamos, contribua para que você se torne um/a professor/a sempre em busca de aperfeiçoamento. Prof.ª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI V VI VII UNIDADE 1 - A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA ......................................... 1 TÓPICO 1 - A IDADE MÉDIA .............................................................................................................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O CONTEXTO LITERÁRIO DA EUROPA MEDIEVAL .............................................................. 3 3 A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE UM PORTUGAL MEDIEVAL ................................................ 5 4 A EUROPA RENASCENTISTA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA ................................................. 6 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 15 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 17 TÓPICO 2 - A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL ......................... 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19 2 A COLONIZAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA ........................................................................... 19 2.1 A LITERATURA DE INFORMAÇÃO ........................................................................................... 20 3 A CARTA DE CAMINHA ................................................................................................................... 21 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 27 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 29 TÓPICO 3 - OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA ........................................................... 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 31 2 A LITERATURA JESUÍTA ................................................................................................................. 31 3 COUTINHO E CANDIDO: SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA ....... 37 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 43 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 45 UNIDADE 2 - AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO ................................................. 47 TÓPICO 1 - A LITERATURA SEISCENTISTA .................................................................................. 49 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 49 2 O MANEIRISMO .................................................................................................................................. 50 3 O CONTEXTO HISTÓRICO E REPRESENTANTES DO BARROCO EUROPEU .................. 55 3.1 A REFORMA E A CONTRARREFORMA .................................................................................... 56 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 64 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................66 TÓPICO 2 - O BARROCO NO BRASIL ............................................................................................. 67 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 67 2 A PRIMEIRA EPOPEIA BRASILEIRA ............................................................................................. 67 3 GREGÓRIO DE MATOS..................................................................................................................... 70 4 PADRE ANTÔNIO VIEIRA E OS SERMÕES ................................................................................ 75 5 BOTELHO DE OLIVEIRA E NUNO MARQUES PEREIRA: POESIA EM TERRAS BAIANAS ...................................................................................................... 81 5.1 A PINTURA E A ESCULTURA BARROCA NO BRASIL .......................................................... 85 sumário VIII LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 91 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 96 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 98 TÓPICO 3 - O ARCADISMO ................................................................................................................ 99 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 99 2 O CONTEXTO HISTÓRICO-FILOSÓFICO DO SÉCULO XVIII ............................................... 99 3 CONVENÇÕES ÁRCADES E SEUS REPRESENTANTES 104 3.1 CLÁUDIO MANUEL DA COSTA...............................................................................................106 3.2 TOMÁS ANTONIO GONZAGA .................................................................................................111 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................126 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................129 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................131 UNIDADE 3 - O MOVIMENTO ROMÂNTICO .............................................................................133 TÓPICO 1 - IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS ..................................................................135 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................135 2 O ROMANTISMO: CONTEXTO HISTÓRICO NA EUROPA E POR EXTENSÃO NO BRASIL .........................................................................................................136 3 OS PRECURSORES DO ROMANTISMO ....................................................................................143 RESUMO DO TÓPICO 1 .....................................................................................................................156 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................159 TÓPICO 2 - DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO ......................................................161 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................161 2 OS POETAS E A TEMÁTICA INDIANISTA ................................................................................161 3 GONÇALVES DIAS: INDIANISTA POR NATUREZA ..............................................................166 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................183 RESUMO DO TÓPICO2 ......................................................................................................................186 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................188 TÓPICO 3 - O ULTRARROMANTISMO .........................................................................................191 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................191 2 POETAS DO INDIVIDUALISMO ROMÂNTICO ......................................................................191 3 O POETA DOS ESCRAVOS .............................................................................................................213 4 O ROMANCE DE FICÇÃO...............................................................................................................218 4.1 REPRESENTAÇÃO TEATRAL ....................................................................................................224 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................228 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................231 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................233 1 UNIDADE 1 A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • refletir sobre as mudanças ocorridas no campo da arte a partir do Re- nascimento; • abordar questões pertinentes ao contexto histórico do qual a literatura faz parte; • analisar textos e identificar características da literatura informativa e jesuítica; • abordar as concepções de diferentes críticos literários no que concerne a uma autonomia literária brasileira em relação a Portugal. Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles você encontrará atividades que o/a ajudarão a fixar os conhecimentos abordados. TÓPICO 1 – A IDADE MÉDIA TÓPICO 2 – A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL TÓPICO 3 – OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMEN- TO DE NOSSA LITERATURA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A IDADE MÉDIA 1 INTRODUÇÃO Para a compreensão do argumento literário brasileiro é preciso esboçar um panorama histórico da Europa e de Portugal, no período que antecede a colonização do Brasil. Vale lembrar que, até o ano de 476, Roma foi capital do Império Romano, subjugado após esta data pelos germânicos. Este acontecimento serve de transição para o início da Idade Média. Já no final do século XIII, expande- se no Continente Europeu, principalmente na Itália, um movimento intelectual a partir do qual se desenvolveu a doutrina filosófica e uma nova concepção artística, o Humanismo. A base desse movimento descartava o pensamento servil proposto pela Igreja, valorizando os estudos clássicos e priorizando uma postura racional. 2 O CONTEXTO LITERÁRIO DA EUROPA MEDIEVAL A cultura da Idade Média refletia o momento histórico daquele período: as Cruzadas, a luta contra os mouros, os feudos, o poder espiritual do clero. O sistema econômico e político foi marcado pelo feudalismo, que consistia numa hierarquia rígida entre o suserano (aquele que possuía domínio sobre um feudo e de que dependiam outros feudos) e o vassalo que, mediante juramento àquele, dele se tornava dependente, rendendo-lhe obediência. Além da nobreza, havia ainda outra classe social: o clero, que, na época, detinha grande poder, por possuir grandes extensões de terras, além de dedicar-se também à política. No mundo medieval não havia liberdade religiosa e era a Igreja a guardiã da verdade divina, o que lhe outorgava o direito de controlara vida das pessoas e influenciar nas decisões políticas. O poder máximo da Igreja medieval ocorreu entre os anos de 1198 e 1216, época em que o papa era considerado figura importante dentro do cenário religioso e político, com poder de coroar reis, decidir sobre disputas territoriais e excomungar quem discordasse de suas decisões. No período em questão, padres, bispos e papas vendiam indulgências, acumulando cada vez mais riquezas. A Igreja associava a perdição da alma à realização dos desejos carnais, condenando, dessa maneira, o sensualismo e promovendo a castidade e a devoção a Deus como meio de conquistar a graça divina. Nessa perspectiva, a pena ao Inferno era o que as pessoas temiam e o teocentrismo era base do pensamento da Igreja Católica na Idade Média. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 4 TEOCENTRISMO: visão cristã de mundo baseada na ideia de um ser humano desgraçado e pecador e de Deus como ser perfeito, centro de todas as coisas. (SILVEIRA apud MOISÉS, 2004). UNI A influência da Igreja sobre a produção cultural foi determinante para que se expandisse a visão teocêntrica, cuja razão era iluminada pela revelação divina. Na Europa medieval a produção cultural era composta de textos teológicos, biografias de santos e histórias de cavalaria, o que refletia o domínio da Igreja e da nobreza sobre a sociedade. Os textos sagrados, as obras dos filósofos da Antiguidade, para não representarem qualquer ameaça ao poder da Igreja, eram reproduzidos nas abadias e mosteiros. É nesse contexto de proibição que nasce também o lirismo trovadoresco, aliado ao servilismo dos vassalos aos senhores feudais e dos fiéis a Deus, cuja concepção deu origem à literatura medieval: afirmação da submissão do trovador à sua dama ou do cavaleiro à sua donzela. “A lira trovadoresca é fundamentalmente uma lírica amorosa, que se assenta sobre uma rede específica de relações sociais. Transferem-se assim para o serviço da mulher aquelas atitudes e formas de subordinação que se estabeleciam antes entre o vassalo e o senhor.” A nomenclatura da canção de amor provençal é transportada para as relações feudais: a mulher é a senhora, o homem o seu servidor, “preza-se a generosidade e tem- se em pouco a avareza, estabelece-se entre o homem e a mulher um pacto de serviço e lealdade”. (VIEIRA, 1987, p. 367). UNI O trovador medieval consagrava o amor platônico, pois a dama era a criatura mais nobre e respeitável da criação, a mulher ideal, passava a ser a pessoa a quem compunha os seus versos líricos. Além do Trovadorismo, também se difundiram as novelas de cavalaria, originárias das narrativas de assuntos guerreiros em que o cavaleiro defendia o bem e vencia o mal. O cavaleiro medieval era concebido segundo os padrões da Igreja Católica. Era casto, fiel, dedicado, disposto ao sacrifício para defender a honra cristã. Esse herói feudal nos remete às Cruzadas, envolvido na defesa da Europa Ocidental contra os sarracenos e eslavos, inimigos da cristandade. A ideia de cavaleiro medieval opunha-se à do cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em amores ilícitos. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 5 As novelas de cavalaria não apresentavam autoria e circulavam pela Europa como verdadeira propaganda das Cruzadas, para estimular a fé cristã e angariar o apoio das populações ao movimento. Eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época. Ao final do século XIII o teocentrismo medieval cedeu lugar à valorização do homem e suas potencialidades. Este começa a controlar o seu destino e, a partir do Renascimento, passa a conceber uma visão de mundo antropocêntrica. O Renascimento não rompe com o mundo medieval, no entanto, é um período marcado pela circulação de ordem artística, cultural e científica. O homem passa a exercer sua capacidade de questionar o mundo, ou seja, a fazer uso da razão. A natureza passou a ser vista como obra e bondade divinas. Esse novo modo de ver o mundo surge nas obras literárias e artísticas, as quais contribuíram para a revolução estética. 3 A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE UM PORTUGAL MEDIEVAL Portugal tornou-se uma nação independente na Idade Média em 1143 e, na Europa deste período, como já enfatizado, o homem vivia imerso no catolicismo. Nessa perspectiva, os movimentos relevantes foram marcados pela presença da Igreja e quem não seguisse os preceitos católicos estava à margem da sociedade. Portugal começava a afirmar-se como reino independente, embora ainda mantivesse laços econômicos, sociais e culturais com o restante da Península Ibérica. Lembre, caro/a acadêmico/a, que, conforme você estudou no Caderno de Literatura Portuguesa, as primeiras manifestações literárias de Portugal foram editadas em galego-português, quando o trovador Paio Soares Taveirós compõe a cantiga chamada A Ribeirinha. Aí ocorre o início da primeira escola literária portuguesa, o Trovadorismo. O lirismo trovadoresco antecede a prosa portuguesa. Desse modo, são dois períodos que marcam o surgimento da literatura portuguesa: o primeiro, lírico, caracterizado pela poesia das cantigas; e o segundo, a prosa, trazendo as novelas de cavalaria. O período trovadoresco da literatura portuguesa foi marcado pelo florescimento das chamadas cantigas, poemas criados com o objetivo de que fossem cantados, acompanhados por instrumentos musicais. Essas cantigas compreendiam as de amor e de amigo. Existiam ainda as cantigas do gênero satírico, de escárnio e as de maldizer. As novelas de cavalaria marcam a segunda etapa da literatura portuguesa do período medieval. Elas têm grande destaque enquanto obras de ficção escritas em prosa. Sua origem está nas canções de gesta, pois tratavam de aventuras de cavaleiros andantes. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 6 Um dos primeiros textos em prosa conhecidos em Portugal é a novela de cavalaria Amadis de Gaula, cujo modelo de cavaleiro era o herói apaixonado pela donzela. No texto são abordados temas como fidelidade à mulher amada, o desejo físico em flagrante oposição ao platonismo, o sentimentalismo e a timidez do herói, o amor cortês palaciano, as lutas e o ideal do guerreiro, o sensualismo evidente e o desejo carnal masculino e feminino. Outro gênero da época foram as crônicas historiográficas. Elas apresentam um panorama da sociedade lusitana, expondo a vida palaciana, suas contradições e vícios, o movimento dos trabalhadores nas aldeias, as festas urbanas, a decadência da aristocracia, dentre outros aspectos. Além da crônica histórica, outra contribuição foi a prosa didática, a qual se constitui principalmente de textos doutrinários compostos ou traduzidos pela nobreza, com temas religiosos e morais. Este tipo de literatura desenvolveu-se num período em que houve grande preocupação com a cultura. Príncipes deram ênfase à organização de bibliotecas e à escrita. Também se desenvolve a chamada Poesia Palaciana, escrita por nobres e para a nobreza, ressaltando seus usos, seus costumes na vida da corte. A produção literária portuguesa da Idade Média, como já enfatizamos, foi marcada pelo teocentrismo. Com o surgimento do movimento renascentista, o pensamento passa a ser diverso e tal fato é evidenciado também pela literatura, assunto que abordaremos no próximo tópico. 4 A EUROPA RENASCENTISTA E A PRODUÇÃO LITERÁRIA Na Europa dos séculos XIV a XVI é latente a produção científica e artística. Toda essa intensificação no campo da arte e da ciência ficou conhecida como Renascimento ou Renascença. O berço do Renascimento foi a Itália. Mas, por que a Itália? Vamos recordar alguns fatos relacionados ao contexto dessa época, no intuito de melhor compreender a arte que ali se desenvolvia. A Itália possuía cidades nas quais as atividades comerciais, mesmo durante a Idade Média, eram intensas. Basta lembrar Veneza e Gênova, duas importantes cidades portuárias italianas. Elas mantinham um contato estreitocom os árabes e bizantinos por meio do comércio, fato este que ofereceu condições para que os italianos tivessem acesso às obras clássicas desses povos. Vale lembrar ainda que o Império Romano possuía a memória da cultura clássica, e o Renascimento buscou influência nessa cultura greco-romana. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 7 Caro/a acadêmico/a. O ato de patrocinar e investir em arte e cultura é conhecido como mecenato. O termo deriva do nome de um influente conselheiro do Império Romano, Caio Mecenas, que, com suas ideias, influenciou o então Imperador Otávio Augusto a sustentar a produção artística de poetas e intelectuais da época. Tal ideia tornou-se modelo a ser seguido e vários governos, no intuito de obter fama e glória, fomentavam produções artísticas. “Os principais mecenas da época do Renascimento cultural foram: Lourenço de Medici, famoso banqueiro italiano; Come de Medici, nobre banqueiro e político italiano; e Galeazzo Maria Sforza, duque de Milão”. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL, [s.d.], p. 5870). UNI Outro aspecto a ser mencionado diz respeito ao Humanismo: pode-se dizer que ele pregava a pesquisa, a observação e a crítica. Foi um movimento intelectual com forte aversão ao princípio da autoridade. Para Sevcenko (1994), o Renascimento foi a colocação do Humanismo no plano concreto. Há que se considerar que, na Idade Média, os fenômenos naturais ou acontecimentos estariam atrelados a uma explicação originada nos desígnios divinos, o pensamento teocêntrico obtinha maior força e o poder, como vimos, advinha da Igreja. Com o Renascimento, ampliam-se e são reconhecidas novas formas de se pensar as expressões artísticas, as ciências e a política. Foi durante o movimento renascentista que ocorreu a disseminação do humanismo e pode ser definido como uma doutrina de caráter filosófico considerada como afirmação da independência, autonomia e libertação do espírito humano. O historiador Jacob Burckhardt (1818-1897) enfatiza que o humanismo coloca o homem no centro de todas as preocupações filosóficas, morais e artísticas. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL, [s.d.], p. 5870). A partir do grande acúmulo de riquezas obtidas no comércio com o Oriente, formou-se uma poderosa classe de ricos mercadores, banqueiros e poderosos senhores. Estes, ou seja, príncipes, condes, bispos, dentre outros, em troca de reconhecimento, prestígio e status de nobreza, investiam grandes somas em dinheiro na arte. Sendo assim, artistas de várias localidades se dirigiam à Itália em busca de poderosos (mecenas) que financiassem suas obras. Apesar de o humanismo ligar-se intimamente ao Renascimento, ele não iniciou na Renascença, ou seja, as manifestações humanistas fizeram parte da Antiguidade Clássica, bem como do decorrer da Baixa Idade Média. (TOTA; LIMA, 2004). Podemos então afirmar que o Renascimento é a continuidade de um diálogo que se inicia na Idade Média. UNI UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 8 A visão de mundo da burguesia sintoniza-se com a renovação, o Renascimento. A ideia da cultura medieval que se configurava pela religiosidade, pela interpretação dos fatos ligados a fenômenos da natureza não mais combinava com a classe burguesa em ascensão. Desse modo, o sucesso nos negócios dependia da observação, do raciocínio e do cálculo, e não da intervenção divina. Na Europa medieval, conforme já descrito, houve produção cultural, mas no Renascimento ocorreu uma significativa expansão. O mesmo foi dividido em três fases: “Trecento” (século XIV), “Quattrocento” (século XV) e “Cinquecento” (século XVI). Da primeira fase destacamos o poeta Francisco Petrarca, Giovanni Boccacio, e sua célebre obra, Decameron, e Dante Alighieri e A Divina Comédia. Petrarca, considerado o “Pai do Humanismo”, compôs inúmeras poesias líricas e odes, em dialeto italiano e na língua latina. Destas destacamos o soneto no qual o “eu” lírico explicita a relação entre o estado de espírito dos amantes, a beleza do dia e a natureza como referência. Obras como as de Petrarca constituíram a base para o desenvolvimento do Humanismo e serviram de inspiração para poetas e artistas de outros países da Europa. Além de cantar o amor entre os amantes na literatura, havia ainda preocupação com o destino do ser humano após a morte. Muitas eram as crônicas e lendas que descreviam os aspectos da vida eterna. Inspirado por essa tradição, o poeta Dante Alighieri dedicou-se à composição de uma das obras-primas da Literatura universal, a Divina Comédia. Considerado pelos italianos como o seu poeta maior, Alighieri viveu entre 1265 e 1321. O autor florentino colaborou com o surgimento de um movimento poético denominado Dolce Stil Nuovo. Duas rosas de amor, no Éden colhidas, No dia, quando Maio era nascente, De amante antigo e sábio alto presente Entre dois jovens foram repartidas. Com riso vago e frases comovidas De enamorar até um silvano horrente, E assim de um amoroso raio ardente Nossas faces ficaram acendidas. O sol não viu jamais um par tão brando – Num suspiro e num riso ele dizia – Os dois jovens amantes abraçando. Assim frases e rosas repartia, E o coração se alegra, recordando Ó feliz eloquência, ó doce dia! (PETRARCA, 1998, p. 32) TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 9 A concepção do Dolce Stil Nuovo era “o poder do amor como mediador da sabedoria divina; comunicação direta entre a amada e o Reino de Deus; seu poder de conferir fé, conhecimento e renovação interior ao amante; e finalmente, a restrição explícita de tais dons aos que amam”. (AUERBACH, 1997, p. 43). NOTA Esse estilo “[...] é quase sinônimo de poesia de amor”. (CARPEAUX, 1959, p. 332). Tal concepção deu origem a um movimento poético voltado a celebrar os dotes morais da amada e Dante foi o representante maior da poesia stilnuovista, uma expressão idealizada, transcendental, tal qual convinha a um amor por um ser quase celestial. Para compor a Divina Comédia, Dante procurou unir a história da Igreja do seu tempo, a política de Florença e a trajetória do ser humano, juntamente com as suas concepções filosóficas, religiosas e literárias. Poema épico, com propósitos filosóficos, teológicos e morais, o poema poderia ser a afirmação do modo medieval de ver o mundo sob vários aspectos. Escrito num período de catorze anos (1307-1321), sintetiza a visão de Dante quanto ao mundo das almas – uma fantástica viagem pelos três reinos do além- túmulo – Inferno, Purgatório e Paraíso, dividida em três partes, com trinta e três cantos cada uma. O Inferno possui um canto a mais, que serve de introdução ao poema. No total, são cem cantos, com 14.233 versos hendecassílabos, encadeados por rimas segundo o esquema ABA, BCB, CDC. Esse encadeamento pode ser visualizado a partir dos primeiros versos e se repete ao longo de toda a obra: A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida. Ah! Que a tarefa de narrar é dura essa selva selvagem, rude e forte que volve o medo à mente que a figura. De tão amarga, pouco mais lhe é a morte, mas, tratar do bem que enfim lá achei, direi do mais que me guardava a sorte. (ALIGHIERI, 2005, p. 25) UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 10 Observa-se que o poema possui uma simetria matemática baseada no número três, cujas estrofes, com três versos cada uma, rimam da forma encadeada, formando, ainda, a terza rima, ou seja, a linha central de cada terceto controla as duas linhas marginais do terceto seguinte. A terza rima dá uma impressão de movimento, ao fazer com que cada terceto antecipe o som que irá ecoar duas vezes no terceto seguinte. Com a terza rima, “Dante encontrou um veículo privilegiado para a progressão de extensas sequências narrativas ou expositivas, pelo peculiar encadeamento que proporciona a cada tercina com as que antecedem e as que lhes sucedem”. (MOURA, 2005, p. 11). UNI Escrita predominantemente em dialeto florentino, revelando o desejo do poeta de que a língua toscanapassasse a ser reconhecida como língua oficial, “[...] a Comédia constitui um ponto terminal e um divisor de águas” (AUERBACH, 1997, p. 119), atribuindo ao poeta a paternidade da língua italiana, da mesma forma que o mesmo dá início à literatura italiana. O poeta descreveu a geografia e a população do “outro mundo” e deu forma sensível às ideias religiosas; o escritor foi geógrafo e historiador do Inferno, Purgatório e Paraíso. A Comédia é o relato da viagem e do testemunho da salvação de Dante; é, também, a parábola para qualquer cristão perdido no pecado. O personagem se encontrava no meio do caminho de sua vida, vendo-se perdido em uma floresta escura, que poderia simbolizar um período de entrega a uma vida mundana, ou seja, havia deixado de seguir o caminho dito certo. A viagem do peregrino é acompanhada por Virgílio, que simboliza o intelecto, a razão, a sabedoria moral, que o guiou para fora da selva escura. Com Virgílio, o personagem encontra a possibilidade de elevar-se da “selva selvagem”. Perdido no pecado, empreende a caminhada através do além-túmulo, ao lado do guia, e é nessa condição que o mestre conduz o viajante pelo Inferno e depois pelo Purgatório, representando a razão que é, na concepção aristotélica adotada por Dante, condição da Virtude. (MAURO, 2005). O poeta, ao narrar em primeira pessoa, mobilizou em seu poema as suas virtudes expressiva e imaginativa, como escreve Anatol Rosenfeld: [...] é perfeitamente possível que haja referência indireta a vivências reais; estas, porém, foram transfiguradas pela energia da imaginação e da linguagem poética que visam a uma expressão “mais verdadeira”, mais definitiva e mais absoluta. (1989, p. 22). Ainda segundo o que revela Contini, “no ‘eu’ de Dante convergem o homem em geral, sujeito do viver e do agir, e o indivíduo histórico, titular de uma experiência determinada em um certo espaço e um certo tempo”. (CONTINI, 1999, p. 35). TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 11 Especialmente no Inferno, o personagem assume em si toda a experiência humana, narrando sua perdição, conversando com as almas e vendo toda a espécie de sofrimento e tormento que se apresenta como caminho a ser percorrido para encontrar a verdade. O narrador não é conhecedor do drama das almas e, na medida em que faz sua peregrinação, passa a compreender os fatos através das imagens que encontra, dos acontecimentos que suscitam sentimentos de piedade, temor, dúvidas que inquietam e instigam seu espírito. Segundo o crítico literário Todorov, é a chamada “visão de fora da narração” (1971, p. 237), que ocorre quando o narrador descreve unicamente o que presencia e ouve. Nessa perspectiva, a narrativa parece residir na firmeza do caráter do personagem, ao lidar com algumas das questões mais fundamentais da condição humana. Diante dos desafios, ele segue, com convicção, sua crença na existência da vida eterna e sugere como finalidade e prioridade de nossa vivência terrena a busca da união com Deus, por meio da purificação. Com gradualidade, nos revelou o seu crescimento espiritual e sua maturação, até a conquista de uma condição correta para encontrar o caminho rumo à salvação.. A Divina Comédia constitui uma doutrina da humanidade, um código moral, cuja obediência aos seus preceitos levaria o homem à conquista do Paraíso. Dessa maneira, o autor exalta e justifica as crenças do catolicismo e, como forma de castigo, destina o homem pecador ao Inferno, e ao homem virtuoso oferece como prêmio alcançar o Paraíso. Quando conhecemos o poema inteiro, reconhecemos quão engenhosa e convincentemente Dante operou para se enquadrar nos homens reais, em seus contemporâneos, amigos, inimigos, personagens históricas recentes, figuras lendárias e bíblicas e figuras da ficção antiga. (ELIOT, 1989, p. 77). O seu sacro poema é, pois, uma obra impregnada de ideias e fenômenos que se propagam ao longo do tempo: é isto que possibilitou o alistamento de Dante como cidadão da Literatura e da História. Esses toscanos exerceram forte influência sobre as literaturas de toda a Europa. Daí a dizer que são considerados precursores do Renascimento. Em meados de 1300, segundo Otto Maria Carpeaux (1959, p. 329), a “Itália já possuía uma literatura moderna, apoiada no renascimento das letras antigas, enquanto o resto da Europa se encontrava ainda nas trevas medievais”. Ainda segundo o mesmo, a gente europeia passou a admirar a renascença italiana que teria “[...] criado o homem moderno e a civilização moderna”. (Op.cit., p. 329). Você se lembra dos mecenas? Aqueles que patrocinavam a arte? Então, do segundo período, “quattrocento” (século XV), merece destaque o fato de a família Medici apadrinhar os escritores, tornando, assim, Florença o principal centro renascentista. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 12 Quanto à terceira fase, o “cinquecento” (século XVI), pode-se destacar Nicolau Maquiavel, pela obra O Príncipe, e Desidério Erasmo de Rotterdam, com O Elogio da Loucura, na qual criticou a sociedade europeia: satirizava os costumes da época e inflava o povo a perceber a necessidade de reformar a Igreja Católica. Na França, o Renascimento teve importantes expoentes: Rabelais (1490- 1553), autor de Gargantua e Pantagruel; Montaigne (1533-1592), autor de estudos intitulados Ensaios. Na Inglaterra, um dos expoentes do Renascimento foi Thomas More (1475-1535), autor de Utopia. Nessa obra é descrita a vida da população de uma ilha imaginária. Outro escritor que merece destaque é o filósofo Francis Bacon (1561-1626), autor de Novun Organun. William Shakespeare, autor de peças teatrais como Hamlet e Otelo, também se consagrou no Renascimento. Na Alemanha, a pintura renascentista imortalizou nomes como Hans Holbein (1497-1553) e Albert Dürer (1471-1528). Na Espanha, a principal figura do Renascimento foi Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote de La Mancha, obra cujo tema e enredo satirizam a cavalaria medieval. Caro/a acadêmico/a: Leonardo da Vinci, autor de Mona Lisa e Santa Ceia, e de estudos que anteciparam importantes inventos e conhecimentos técnico-científicos, tais como o avião, o helicóptero e o submarino, também fez parte do Renascimento. Outro artista italiano foi Michelangelo, que projetou a cúpula da Basílica de São Pedro (em Roma) e pintou afrescos. O Juízo Final e A Criação de Adão são algumas das cenas da Capela Sistina de autoria deste gênio. FIGURA 1 – A CRIAÇÃO DE ADÃO FONTE: Disponível em: <www.wga.hu/index1.html.>. No ABC index: Michelangelo Buonarroti>Frescoes on the Sistine Cell>. Acesso em: 24 jan. 2011. Além de pintor, Michelangelo foi também escultor de notáveis obras, como a Pietà. TÓPICO 1 | A IDADE MÉDIA 13 FIGURA 2 – PIETÀ FONTE: Disponível em: <www.casthalia.com.br/a.../michelangelo_teto. htm>. Acesso em: 24 jan. 2011. No campo científico destacaram-se Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Giordano Bruno. A geografia é transformada devido aos conhecimentos advindos do descobrimento de novos continentes. No campo da tecnologia, destaque-se a invenção da imprensa e da pólvora. NOTA Nunca é demais lembrar que, dentre as características que fazem parte desse movimento renascentista, encontramos: uma sociedade que admirava a beleza e tentava reproduzi-la nas obras de arte; um tempo no qual a razão passou a ser a base do conhecimento e um homem capaz de criar e explicar os fenômenos que o rodeiam, ao mesmo tempo em que passa a valorizar os prazeres sensoriais. Ligada a estes aspectos, destaca-se também uma sociedade com um objetivo em comum, qual seja, sorver da Antiguidade greco-romana a cultura e a estética. Então, os artistas renascentistas passaram a ler e apreciar cada vez mais as obras dos gregos e romanos, na tentativa de imitá-los. Tal fato renovou não apenas as artes plásticas, a literatura, a arquitetura, mas a organização política e econômica daquelas sociedades dos séculos XIV a XVI. E o Brasil? Antes de falar sobre o Renascimento em nosso país,deter-nos- emos um pouco no Renascimento em Portugal. As ideias renascentistas portuguesas eram, como não poderiam deixar de ser, as mesmas que as de toda a Europa. Lembre-se de que Sá de Miranda, autor que você estudou na disciplina de Literatura Portuguesa, passou um período na Itália. Em seu retorno, aproximadamente em 1527, trouxe na bagagem não somente a estética clássica harmoniosa e culta, que vigorava naquele país renascentista, mas as novas concepções e ideias. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 14 Dentre a produção literária portuguesa desse período podemos destacar o teatro de Gil Vicente. Estudiosos contemporâneos dividem os textos vicentinos em: autos de moralidade, autos cavaleirescos e pastoris, farsas, alegorias de temas profanos. Era um tipo de teatro popular, por causa das suas características consideradas fundamentais – temas, linguagem utilizada e atores. Antes de Gil Vicente não havia teatro em Portugal, mas encenações de caráter religioso. Nas suas composições, Vicente procurou manter certa proximidade às influências medievais, com um teatro didático-moralizante. Se, em parte, focalizava as virtudes cristãs, procurava também não perder de vista a sociedade lusitana da época, trazendo o humor e senso crítico. Valendo-se de uma simplicidade que lhe era peculiar, Gil Vicente procurava passar ao público uma visão crítica da sociedade. O elemento básico para a composição das peças era a vida diária, a vida real das pessoas e a doutrina cristã. Mas, sem dúvida, a maior figura do Renascimento em Portugal foi Luís Vaz de Camões. O poeta lírico e épico. Camões perpetuou e eternizou o povo português ao elaborar Os Lusíadas, publicado em 1572. O poema relata a história de Portugal desde sua formação até a descoberta do caminho para as Índias, por Vasco da Gama. Na narrativa em questão aparecem a mitologia pagã e a visão cristã, os sentimentos sobre a guerra e o império, o desejo da aventura. Caro/a acadêmico/a, você já estudou este poeta e sua epopeia no Caderno de Literatura Portuguesa e pôde perceber que Camões funde elementos épicos e líricos. Nela estão presentes duas importantes vertentes do Renascimento português: as expedições ultramarinas e o Humanismo. E foi em uma dessas expedições ultramarinas que as terras brasileiras foram “descobertas”. O Brasil não foi imediatamente explorado. Para os portugueses, interessavam as colônias orientais. Foi aproximadamente em 1532 que se iniciou a colonização propriamente dita e com ela também o processo que foi o germe para a literatura brasileira. Fatos estes que serão abordados no próximo tópico. 15 Neste tópico, você viu que: • No mundo medieval não havia liberdade religiosa e era a Igreja a guardiã da verdade divina, o que lhe outorgava o direito de controlar a vida das pessoas e influenciar nas decisões políticas. O teocentrismo era a base do pensamento da Igreja Católica na Idade Média. Além disso, o sistema econômico e político era marcado pelo feudalismo. • Na Europa medieval a produção cultural era composta de textos teológicos, biografias de santos e histórias de cavalaria, o que refletia o domínio da Igreja e da nobreza sobre a sociedade. • A lira trovadoresca é fundamentalmente uma lírica amorosa, na qual o poeta trovador consagra o amor platônico: a dama como criatura mais nobre e respeitável da criação, uma mulher ideal. • Na Europa medieval também se difundiram as novelas de cavalaria, originárias das narrativas de assuntos guerreiros, em que o cavaleiro defendia o bem e vencia o mal. • O teocentrismo medieval começa a ceder lugar à visão de mundo antropocêntrica. • Na Europa dos séculos XIV a XVI é latente a produção científica e artística, patrocinada pelos mecenas. Toda essa intensificação no campo da arte e da ciência ficou conhecida como Renascimento ou Renascença. • O Humanismo pregava a pesquisa, a observação e a crítica. Foi um movimento intelectual com forte aversão ao princípio da autoridade. A base do movimento descartava o pensamento servil proposto pela Igreja, valorizando os estudos clássicos e priorizando uma postura racional. • O Renascimento foi a realização do Humanismo no plano concreto. • A visão de mundo da burguesia sintoniza-se com a renovação, o Renascimento. Sendo assim, a interpretação dos fatos ligados a fenômenos da natureza, bem como as questões ligadas à religiosidade, não mais combinavam com a classe burguesa em ascensão. • A Renascença, no que concerne aos movimentos artísticos, foi dividida em três fases: “Trecento” (século XIV), “Quatrocento” (século XV) e “Cinquecento” (século XVI). RESUMO DO TÓPICO 1 16 • Destacam-se da primeira fase, o “trecento”, artistas como Petrarca e Dante Alighieri, que, além de cantarem o amor entre os amantes, escreviam também sobre o destino do ser humano após a morte. Foi Dante quem escreveu uma das obras-primas da literatura universal, a Divina Comédia, que relata aspectos da vida eterna e, por isso, consagrou-se como o maior poeta italiano. • Do segundo período, o “quattrocento”, merece destaque o fato de que Florença tornou-se o principal centro renascentista. • Quanto à terceira fase, o “cinquecento” (século XVI), vários foram os artistas que se destacaram: Nicolau Maquiavel, Erasmo de Rotterdam, Rabelais, Montaigne, Thomas More, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Leonardo da Vinci, dentre outros. • Dentre as características que fazem parte do Renascimento, destacamos: uma sociedade que admirava a beleza e tentava reproduzi-la nas obras de arte; a razão, que passou a ser a base do conhecimento; um homem capaz de explicar os fenômenos que o rodeavam; artistas que absorvem da Antiguidade greco- romana a cultura e a estética e, então, passaram a ler e apreciar cada vez mais as obras dos gregos e romanos, na tentativa de imitá-los. • A maior figura do Renascimento em Portugal foi Luís Vaz de Camões. O poeta lírico e épico perpetuou e eternizou o povo português ao elaborar Os Lusíadas, publicado em 1572. • Na obra de Camões estão presentes duas importantes vertentes do Renascimento português: as expedições ultramarinas e o Humanismo. 17 1 As novelas de cavalaria e as crônicas historiográficas marcam a literatura portuguesa do período medieval. Elabore algumas considerações sobre elas, procurando destacar suas diferenças. 2 Elenque alguns fatos que nos ajudam a entender o porquê de a Itália ser considerada berço do Renascimento. 3 Na Idade Média, os fenômenos naturais ou acontecimentos estariam atrelados a uma explicação originada nos desígnios divinos. Com o Renascimento, ocorrem mudanças no modo de conceber tais acontecimentos. Aponte algumas destas mudanças. AUTOATIVIDADE 18 19 TÓPICO 2 A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A madeira (o pau-brasil), que atraiu a atenção dos portugueses para a nova terra e da qual extraíam uma tinta vermelha, tinha razoável mercado na Europa. Para sua exploração, os portugueses não movimentaram grande volume de capital, sendo assim, aqui estabeleceram pequenas fortificações, precárias, para proteção da costa e envio da madeira. Sem o estabelecimento de uma sociedade, a vida cultural sofreria de escassez e descontinuidade. Esse período, denominado “Quinhentismo”, apresentou algumas manifestações, escritos com o objetivo de informar e de catequizar. Vejamos, a seguir, o contexto que os originou e, assim, descrever um pouco do que aconteceu no Brasil entre 1500 e 1600 no âmbito da arte literária. 2 A COLONIZAÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA Para delinear um estudo sobre a literatura brasileira é preciso considerar o início da colonização. Com a chegada dos portugueses ao Brasil, inicia-se a fase colonial e após os primeiros contatos com os indígenas, por volta de 1530, Portugal, efetivamente, inicia a colonização das terras do Novo Mundo. Tal intento ocorre, pois o comércio com as Índias já não era mais tão lucrativo, devido à concorrênciade outros países que também lá chegaram. Além disso, a segurança da Colônia estava ameaçada. Portugal temia perder as terras para os invasores corsários estrangeiros. O sentido da colonização deve ser entendido da seguinte forma: a Colônia fica sob o controle de Portugal, e da Colônia serão extraídos os produtos e metais preciosos enviados à Metrópole. Acontece então a extração do pau-brasil, o cultivo da cana-de-açúcar e o envio de metais preciosos à Corte. A passagem de um Brasil colonial para um Brasil independente ocorre por um “[...] lento processo de aculturação do português à terra e aos nativos, deixando de ser Colônia quando passa a ser sujeito da sua história”. (BOSI, 1992, p. 13). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 20 2.1 A LITERATURA DE INFORMAÇÃO Antes de iniciar a discussão sobre os escritos da Colônia, é interessante refletir sobre as considerações estabelecidas por Antonio Candido (1959). O estudioso distingue manifestação literária de literatura propriamente dita. Segundo o crítico, a literatura é um conjunto de obras que pressupõe em comum temas, língua e imagens, características estas que dão a conhecer “as notas dominantes duma determinada fase” e promovem uma continuidade literária; para tanto, três elementos são indispensáveis: [...] a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral uma linguagem transmitida em estilos) que liga uns aos outros. (CANDIDO, 1959, p. 26). Sem este conjunto de elementos não há tradição, os escritos não são representativos de um sistema. No entanto, são escritos significativos e possuem valor. Segundo o estudioso, os escritos em terras brasileiras que vão do século XVI ao XVIII são, pois, manifestações literárias importantes para a formação da literatura brasileira. Bosi assim se expressa sobre os textos informativos: “[...] a pré-história das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país.” (1992, p. 15). Os primeiros textos, de modo geral, eram descrições sobre a qualidade da terra, as possibilidades do que poderia ser explorado, as dificuldades locais, a fauna, a flora, a vida dos nativos e os primeiros encontros destes com os portugueses. Sua função era comunicar, orientar, relatar, enfim, dar a conhecer à Coroa o que se passava nas expedições ultramarinas. Essa informação expressa o modo de noticiar as grandes navegações de Portugal, Espanha e de tantas outras expedições – um gênero muito difundido no século XV, conhecido como literatura de viagem. Em solo brasileiro, desses textos comumente chamados de literatura informativa, destacamos: • A Carta do Descobrimento – Pero Vaz de Caminha A el-rei D. Manuel, relatando a chegada dos portugueses e os primeiros contatos com a natureza e os índios. Escrita em 1500. • O Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil – Pero de Magalhães Gândavo. Escrito por volta de 1576. • Fernão Cardim chega em 1584 ao Brasil e percorre capitanias e povoações. Descreve a natureza – fauna e flora – e os indígenas. Ele o faz sob o título Tratado da Terra e da Gente do Brasil. TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 21 • O Diário de Navegação de Pero Lopes e Souza, escrivão do primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonso de Souza (1530). • O Tratado Descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza. 3 A CARTA DE CAMINHA Quando a corte portuguesa aqui chegou, encontrou uma natureza exuberante, os índios e seus costumes, fatos que deveriam ser comunicados ao rei D. Manuel. Pero Vaz de Caminha era o escrivão da frota incumbido de acompanhar a expedição de Pedro Álvares Cabral e relatar o que nela ocorria. Caminha, tão logo aportou na nova terra, comunicou o fato ao rei. O teor da carta, considerada a certidão de nascimento do Brasil, permite-nos perceber as expectativas dos portugueses em relação ao Brasil. Para tanto, Caminha faz uso da tipologia descritiva. Lembre, caro/a acadêmico/a, que fazer uso da linguagem para representar a imagem de alguma cena, seres ou objetos é adotar o ato de descrever. Os textos que possuem como estratégia predominante a descrição oferecem a possibilidade de visualizar o cenário, as personagens, os objetos. Para tanto, o escritor emprega a linguagem denotativa. Além disso, na organização de uma descrição, quem escreve capta a realidade a partir de um ponto de vista, organizando as ideias no intuito de informar o leitor, convencê-lo, transmitir impressões, sentimentos e emoções. No caso da carta endereçada à corte portuguesa, Caminha relata com objetividade e clareza, no intuito de atender aos interesses da Coroa. Enumera algumas das características físicas dos índios através de adjetivos como “avermelhados”, “rostos e narizes bem feitos”, “cabelos corredios”: “A feição deles era parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos, andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto”. (CAMINHA, 1999, p. 19). Perceba que a beleza física e a nudez impressionaram os portugueses. Os adornos indígenas também inquietam e são descritos com riqueza de detalhes: Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. (Op.cit., p. 19-20). Por vezes, Caminha atenua a descrição do selvagem com os conectivos “porém”, “contudo”, conforme o fragmento: UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 22 Eles, porém, com tudo, andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me aprece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. E isto me fez presumir que não têm casas em moradas em que se acolham. E o ar, a que se criam, os faz tais. (Op.cit., p. 43-44). A Carta é, sem dúvida, fonte de pesquisa tanto da gente quanto das terras do além-mar. Percebemos na introdução e ao final do relato a relação de subordinação à Coroa, patrocinadora das expedições marítimas: “Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade”. (Op.cit., p. 11). “Beijo as mãos de Vossa Alteza”. (Op.cit., p. 62). Caminha permeia a carta significativamente com reverências ao rei, à Igreja e ao capitão. Apesar de toda essa hierarquização, sugere qual deveria ser a principal preocupação da Coroa, qual seja, focar a atenção ao povo indígena: “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”. (CAMINHA, 1999, p. 61). Ao longo da narração são relatados encontros entre os indígenas e os portugueses. A comunicação se estabelece através da linguagem não verbal, como observa Pero Vaz de Caminha: O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, comose quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. (1999, p. 21). Tais acenos interessaram sobremaneira os portugueses, interpretados como indicação de riquezas que poderiam ser exploradas na Terra de Vera Cruz. Outros trechos da Carta dão a entender que existe ouro em terras brasileiras. É descrita uma provável permuta proposta pelos indígenas, uma troca de objetos de adorno dos portugueses por ouro: Viu um deles umas contas de rosairo, brancas; acenou que lhas dessem e folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço e depois tirou-as e embrulhou- as no braço; e acenava para terra e então para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo. (Op.cit., p. 22). TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 23 O escambo começaria incidindo sobre diversos objetos. Os contatos se intensificaram e com eles a familiaridade: “Tudo era, de certa maneira, pautado pelo toma-lá-dá-cá, mesmo se o prazer de convívio se acrescentava à avidez da troca”. (SEABRA, 2000, [s.p.]). Ao capitão da expedição interessa descobrir se existia ouro e tentou obter, através dos gestos, informações precisas acerca da existência ou não do metal precioso, questionando um velho indígena: E depois foi o Capitão para cima, ao longo do rio, que anda sempre em frente da praia, e ali esperou um velho que trazia na mão uma pá de almadia; falo, estando o Capitão com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós, sobre as coisas que a gente lhe perguntava de ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra. (CAMINHA, 1999, p. 39-40). Nenhum vestígio, a presença de ouro ainda era enigmática, como constatou Pero Vaz de Caminha ao final da Carta: “[...] até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro: nem lho vimos.” (1999, p. 61). Caminha acompanha as ações dos índios e europeus, as reações e atitudes de cada grupo, chegando a perceber as emoções que o contato desperta em ambos. No entanto, é preciso atentar para a relação complexa que se tece, a comunicação se estabelece de várias formas, mas também a alienação, própria de trocas frequentemente desiguais, como as que se desenvolveram entre povos, civilizações e culturas estabelecidas pelas descobertas. Pero Vaz de Caminha (1450?-1500) é designado escrivão da feitoria de Calicute, na Índia. Segue com Cabral, em 1500, a caminho do Brasil. Quando Cabral chegou ao Brasil, cumpre sua missão de contar os feitos ao Rei e, em seguida, parte para a Índia, onde morreu no final do mesmo ano nas lutas entre portugueses e muçulmanos. A Carta, considerada o mais importante documento sobre o início da história do Brasil, ficou guardada nos arquivos da Torre do Tombo por mais de três séculos, sendo divulgada pela primeira vez em 1817, no livro Corografia Brasileira, escrito pelo padre Aires do Casal, fato que corroborou para esclarecer várias questões inerentes às terras recém-conquistadas. UNI Além de Caminha, outros viajantes também fizeram relatos sobre o Brasil. Pero Magalhães Gândavo escreveu a História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. No Prólogo informa ao leitor o motivo que o levou a escrever sobre a Província: “A causa principal que me obrigou a lançar mão da presente historia, e sair com ella a luz, foi por não haver até agora pessoa que a emprendesse, havendo já setenta e tantos annos que esta Provincia he descoberta.” (GÂNDAVO, 1980, [s.p.]). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 24 Mas para que nesta parte magoemos ao Demonio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memoria da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens, medeante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos- lhe Provincia de Santa Cruz, como em principio (que assi o amoesta tambem aquelle illustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década, tratando deste mesmo descobrimento) porque na verdade mais he destimar, e melhor soa nos ouvidos da gente Christã o nome de hum pao em que se obrou o misterio de nossa redençam que o doutro que nam serve de mais que de tingir pannos ou cousas semelhantes. (1980, [s.p.]). No trecho a seguir, extraídos do Capítulo V, intitulado: das plantas, mantimentos e fruitas que ha nesta província, Gândavo faz referências às qualidades das frutas aqui existentes: São tantas e tam diversas as plantas, fruitas, e hervas que ha nesta Província [...] Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. (1980, [s.p.]). [...] Huma planta se da támbem nesta Provincia, que foi da ilha de Sam Thomé, com a fruita da qual se ajudam muitas pessoas a sustentar na terra. Esta planta he mui tenra e nam muito alta, nam tem ramos senam humas folhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita della se chama bananas. Parecem- se na feição com pepinos, e crião-se em cachos: alguns delles ha tam grandes que tem de cento e cincoenta bananas pera cima, e muitas vezes he tamanho o peso della que acontece quebrar a planta pelo meio. Como são de vez colhem estes cachos, e dali a alguns dias amadurecem. Depois de colhidos cortão esta planta porque nam frutifica mais que a primeira vez: mas tornam logo a nascer della huns filhos que brotam do mesmo pé, de se fazem outros semelhantes. Esta fruita he mui sabrosa, e das boas, que ha na terra: tem huma pelle como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lanção fora quando a querem comer: mas faz dano à saude e causa fevre a quem se desmanda nella“. (1980, [s.p.]). No Capítulo I, lamenta o fato da mudança de nome de Terra de Santa Cruz para Brasil. Segundo Gândavo, tal acontecimento é obra do Demônio e, para derrotar trabalho tão ardiloso, sugere: TÓPICO 2 | A ILHA DE VERA CRUZ, A TERRA DE SANTA CRUZ: BRASIL 25 Há na obra descrição da fauna, flora, dos costumes indígenas, seus ritos e as guerras entre os povos nativos. Ao que parece, o autor assume uma postura negativa, uma vez que compara os costumes dos aborígenes aos padrões culturais e religiosos do povo português. A respeito da língua tupi, declara: A lingoa de que usam, toda pela costa, he huma: ainda que em certos vocabulos differe n’algumas partes; mas nam de maneira que se deixem huns aos outros de entender: e isto até altura de vinte e sete grãos, que dahi por diante ha outra gentilidade, de que nós nam temos tanta noticia, que falam já outra lingoa differente. Esta de que trato, que he ageral pela costa, he mui branda, e a qualquer nação facil de tomar. Alguns vocabulos ha nella de que nam usam senam as femeas, e outros que nam servem senam pera os machos: carece de tres letras, convem a saber, nam se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna despanto porque assi nam têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem alem disto conta, nem peso, nem medido. (1980, [s.p.]). Gabriel Soares de Souza também escreveu sobre a colônia. Seu Tratado Descritivo do Brasil é fonte de informações. Tal qual Gândavo e Caminha, o objetivo é o de informar à Metrópole sobre o que a Colônia poderia oferecer. Segundo Bosi, “[...] percorre toda a fauna e a flora da Bahia fazendo um inventário de quem vê tudo entre atento e encantado”. (1992, p. 21). Os escritos que relatam o reconhecimento de um novo espaço respondem à necessidade de revelar geograficamente e socialmente a nova terra a Portugal e à Europa em geral. Revelam um maravilhar-se diante dessa nova paisagem e dos nativos: E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir- se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte. Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram”. (CAMINHA, 1999, p. 16). Além dessa admiração diante da beleza, são exploradas comparações com o paraíso. Américo Vespúcio, cartógrafo e geógrafo, membro da primeira expedição enviada por D. Manuel em 1501, para explorar o litoral brasileiro, em seus escritos relata a beleza da gente nativa e ainda compara o “novo mundo” ao paraíso terrestre: “Questa terra é piena, preso al paradiso terrestre”. (VESPÚCIO apud COUTINHO, 2004a, p. 247). UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 26 Esse lugar ideal, paradisíaco, também é tema do escritor Thomas More, já citado como representante da terceira fase do Renascimento. Sua obra, Utopia, publicada em 1516, é marcada pela descrição de um lugar, uma ilha na qual os homens vivem em sistema de igualdade, acima das diferenças de classes, um paraíso. Explorar dimensões míticas culturais é inaugurado por Erasmo, em Elogio da Loucura, em 1508. Sucessores como Montaigne, Rebelais e Daniel Defoe, ao dar vazão a estes escritos, se alargam na descrição física e comportamento do elemento humano, sem deixar de lado o paradisíaco, projetam e ao mesmo tempo provocam o interesse do “Velho Mundo” sobre o “Novo Mundo”. As palavras de Vespúcio e Caminha aparecem em Gândavo e Anchieta e ecoam em Nóbrega, explorando um jardim, bosque de frutos viçosos em uma terra paradisíaca, “de tal maneira graciosa, que querendo aproveitá-la, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”. (CAMINHA, 1999, p. 61). São informações preciosas pela clareza e realismo com que descrevem essa visão edênica chamada Brasil. E dentre outras características, podemos destacar a exaltação de tudo o que fosse pitoresco e exótico. Informações como as descritas foram frequentes no século XVI; paralelamente a estas, aparecem os escritores portugueses jesuítas. Estes revelam, além de ricas informações, uma intenção catequética. É o que veremos a seguir. 27 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você, viu que: • A madeira que atraiu a atenção dos portugueses para a nova terra, o pau- brasil, tinha razoável mercado na Europa. Para sua exploração, estabeleceram- se em terras brasileiras pequenas fortificações precárias, para proteção da costa e envio da madeira. Sem o aparecimento de uma sociedade, a vida cultural sofreria de escassez e descontinuidade e, assim, a jovem nação passa a ser colônia de Portugal. • O sentido da colonização deve ser entendido da seguinte forma: a Colônia fica sob o controle de Portugal e da Colônia serão extraídos os produtos e metais preciosos enviados à Metrópole. • No que concerne aos primeiros escritos em solo brasileiro, estes não são representativos de um sistema. No entanto, são escritos significativos e possuem valor. Sendo assim, para alguns estudiosos, os escritos em terras brasileiras, que vão do século XVI ao XVIII, são manifestações literárias importantes para a formação da literatura brasileira. • Os primeiros escritos em terras brasileiras foram os documentos que informavam à corte portuguesa a chegada e o encontro com os habitantes, os nativos. De modo geral, eram descrições sobre a qualidade da terra, as possibilidades do que poderia ser explorado, as dificuldades locais, a fauna, a flora, a vida dos nativos e os primeiros encontros destes com os portugueses. • Em solo brasileiro, desses textos comumente chamados de literatura informativa destacamos: A Carta do Descobrimento; O Tratado da Terra do Brasil e a história da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil; Tratado da Terra e da Gente do Brasil; O Tratado Descritivo do Brasil, dentre outros. • Pero Vaz de Caminha era o escrivão da frota incumbido de acompanhar a expedição de Pedro Álvares Cabral e relatar o que nela ocorria. Caminha, tão logo aportou na nova terra, comunicou o fato ao rei. O teor da carta, considerada a certidão de nascimento do Brasil, permite-nos perceber as expectativas dos portugueses em relação ao Brasil. • Na carta endereçada à corte portuguesa, Caminha relata e enumera com objetividade e clareza algumas das características físicas dos índios, fatos que revelam a comunicação que se estabelece através da linguagem não verbal e o escambo que se iniciaria entre os aborígenes e o homem português. 28 • Além de Caminha, Pero Magalhães Gândavo faz referência às plantas, às frutas, aos pássaros, enfim, fauna e flora aqui existentes. Descreve também os costumes indígenas, seus ritos e as guerras entre os povos nativos. Ao que parece, o autor assume uma postura negativa em relação aos indígenas. • De modo geral, esses escritos informativos revelam um maravilhar-se diante dessa nova paisagem e dos nativos: esse gênero literário, que explora dimensões míticas culturais, é inaugurado por Erasmo, em Elogio da Loucura, em 1508. 29 1 É frequente nos escritos informativos o emprego de comparações (neste caso a Corte Portuguesa), na tentativa de exprimir aos leitores o desconhecido, o inusitado, o extraordinário. Cite uma dessas comparações. Você poderá retirar dos fragmentos dos autores analisados ou, se preferir, procure na internet as obras na íntegra. 2 A Carta de Pero Vaz de Caminha afigura-se como uma espécie de “Certidão de Nascimento” de nosso país. Localize uma passagem do texto de Caminha na qual, em meio às expressões de admiração e louvor, está subentendida a ideia de “conquista”, “posse” da Nova Terra. 3 As primeiras informações dos europeus, portugueses, documentam a natureza e o homem brasileiro. Sobre A Carta de Caminha, é correto afirmar: A - Aproxima-se mais de um relato, dando notícias à corte de Portugal sobre as primeiras impressões da nova terra e da gente aqui encontrada. B - Enfatiza uma terra de rara beleza e fertilidade, uma visão edênica da natureza do Brasil e sua exuberância. C - O texto revela o encontro de duas culturas diferentes: a portuguesa e a indígena. D - A carta de Caminha pode ser considerada como pertencente a uma literatura que explora o ‘eu’ lírico amoroso, quando se observam as comparações e descrições da fauna e da flora. a) ( ) As afirmativas A e D estão corretas. b) ( ) As afirmativas A, B e C estão corretas. c) ( ) Somente a afirmativa C está correta. d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. AUTOATIVIDADE 30 31 TÓPICO 3 OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Para a Companhia de Jesus, a docência era uma das características principais dos seus missionários. Nos colégios, os religiosos não somente ensinavam os alunos candidatos à vocação sacerdotal, como também jovens que não pretendiam seguir a vida religiosa, com o mesmo rigor e sujeitos às mesmas regras. No Brasil, a Companhia aporta nove anos após a fundação da Ordem e se fixa na Bahia. A tônica na terra recém-descoberta passou a ser a conversão dos índios à fé cristã. Além dos intensos trabalhos com a educação dos aborígenes e do povo em geral, os jesuítas dedicaram-se à escrita de poemas, autos e sermões. Nesse tópico, dos inacianos que aqui viveram, destacaremos Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. 2 A LITERATURA JESUÍTICA A Companhia de Jesus, uma ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola, em 1540, tinha por objetivo expandir a fé e os dogmas cristãos. Nesse sentido, o alargamentodos impérios português e espanhol veio a calhar. Os jesuítas estariam presentes no Continente Americano desde o início da colonização. A docência passaria a ser a característica principal da Companhia. Inicialmente os colégios dedicavam seus esforços apenas a alunos candidatos à vocação sacerdotal. Posteriormente passaram a aceitar também jovens que não pretendessem seguir a vida religiosa, mas ficariam sujeitos às mesmas regras dos candidatos a jesuítas. Foi em Messina, na Sicília, que, em 1548, Inácio de Loyola abriu o primeiro colégio da Companhia, que serviria de inspiração a todos os outros. Em 1551 um Colégio Jesuíta é fundado em Roma, o qual começou a ensinar, além de Gramática e Retórica, Filosofia e Teologia. Os jesuítas empreenderam e implementaram a sistematização da sua atividade docente e publicaram, em 1599, a Ratio Studiorum. Segundo Joaquim Ferreira Gomes (1995, p. 35), [...] a Ratio não é um tratado de pedagogia, mas um código, um programa, uma lei orgânica que se ocupa do conteúdo do ensino ministrado nos colégios e universidades da Companhia e que impõe métodos e regras a serem observados pelos responsáveis e pelos professores desses colégios e universidades. UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA 32 Eram 466 regras que compunham a Ratio Studiorum. Elas versavam sobre: férias, feriados, formação dos professores, relações entre os pais dos alunos, metodologias de trabalho, plano de estudos (humanidades, filosofia, história, ciências físicas e matemáticas), avaliação, regras disciplinares, dentre outros assuntos pertinentes à formação. Em 1549, membros da Companhia de Jesus chegaram ao Brasil e se fixaram na Bahia. Lá, fundaram um colégio e iniciaram a catequese dos índios. A fé ibérica e medieval veio na bagagem desses missionários; em terras brasileiras, seu principal objetivo era propagá-la e a tônica passou a ser a conversão dos índios à fé cristã. Tais intentos ficaram registrados nos escritos desses jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Manuel da Nóbrega nasceu em Portugal, em 18 de outubro de 1517. Formado em Cânones (Coimbra, 1541), em 1544 entra para a Companhia de Jesus. Cinco anos depois, vem para o Brasil, juntamente com Tomé de Souza, primeiro governador geral, chefiando a missão incumbida de instalar a Ordem na terra nova. Colaborou na fundação de Salvador e do Rio de Janeiro, e fundou São Paulo, em 25 de janeiro de 1554, ajudado por José de Anchieta. Faleceu em 18 de outubro de 1570. Escreveu: Cartas do Brasil (publicadas em conjunto em 1886) e Diálogo sobre a Conversão do Gentio (escrito entre 1556 e 1558 e publicado em 1880). (MOISÉS, 1999). UNI Nóbrega escreveu Diálogo sobre a Conversão do Gentio. Nesta obra apresenta um debate, uma conversa entre as personagens Gonçalo Álvares e Matheus Nogueira: uma discussão sobre a preocupação com o doutrinamento e a conversão do indígena ao cristianismo. O diálogo é um gênero cultivado desde a Grécia. O filósofo Sócrates, por exemplo, empregava-o para averiguar uma verdade filosófica. Este poderia ocorrer entre personagens reais ou fictícios. NOTA TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 33 A obra explicita a posição de Nóbrega, que, segundo o missionário, para a conversão do gentio, seria necessária a dedicação dos jesuítas. Segundo Faria (2006, p. 76), O Diálogo apresenta-se, assim, como um convite à conversão para o próprio missionário, que estava, com certeza, deixando-se enfraquecer por causa das dificuldades encontradas no embate com o gentio. O missionário abatido e desanimado (no Diálogo, representado por Alves) justifica sua posição de aversão ao indígena e à lida com ele, pois este não seria humano e não mereceria investimento. Vale ressaltar que o maior obstáculo para a catequese incidia sobre a questão dos hábitos indígenas. No início do Diálogo, o interlocutor Gonçalo Alves afirma: “– Por demais hé trabalhar com estes; são tão bestiais, que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem- aventurança sabem desejar; pregar a estes hé pregar em deserto ha pedras”. (NÓBREGA, 2006, p. 2). Nessa passagem percebe-se a intertextualidade com o Evangelho de Lucas, a parábola do semeador que revela uma colheita custosa: “Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho; foi pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu sobre a pedra; e, tendo crescido, secou por falta de umidade [...]” (BÍBLIA SAGRADA, 1993, Lucas, 8:5-8). A personagem Gonçalo Alves manifesta o árduo trabalho que terá o missionário em terras brasileiras, comparando-o ao de um semeador. José de Anchieta nasceu na Ilha de Tenerife, uma das Ilhas Canárias, em 1534, e faleceu em Reritiba (Espírito Santo) em 1597. Veio para o Brasil ainda noviço em 1553, logo fez sentir sua ação apostólica fundando com Nóbrega um colégio em Piratininga, núcleo da cidade de São Paulo. Pelo zelo religioso e pela sensibilidade humana, Anchieta ficou na história da colônia como exemplo de vida espiritual, particularmente heroica, nas condições adversas em que viveu. Suas poesias foram escritas em português, castelhano, tupi e latim. (BOSI, 1992). UNI Os escritos de Anchieta são autos e poemas. Nestes, revela que as necessidades humanas são espirituais e não materiais. Traduz não a materialidade do Renascimento, mas a salvação através de Deus. 34 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA Nos versos a vida não tem dura, o bem vai se gastando, Anchieta chama atenção para a brevidade da vida. Diante dessa pequena dimensão, o ser humano não deveria comprometer-se com a precariedade do mundo terreno. Lembra ao homem que tudo é vão e efêmero, a vida carnal é uma passagem, somente Deus é supremo. Segundo Leodegário de Azevedo Filho (1986), Anchieta é contrário à concepção epicurista, qual seja, devido à brevidade da vida e à não crença na eternidade da alma, o homem busca os prazeres mundanos e aproveita cada momento (carpe diem). Por enfatizar a fugacidade do tempo, a ilusão da vida e as coisas mundanas, Anchieta faz alusão à literatura barroca que se idealizaria plenamente no século XVII. No entanto, a forma de suas poesias, a exemplo de Em Deus meu criador, aproxima-se do arquétipo da poesia medieval. O mesmo emprega a redondilha. Redondilha é o nome adotado, a partir do século XVI, para as estrofes em verso de cinco ou sete sílabas poéticas. É também chamada de medida velha e foi muito utilizada por Camões. NOTA Segundo Bosi (1992, p. 23), “[...] o vetor afetivo de Anchieta é a consolação pelo amor divino”, como podemos atestar na poesia que segue: Em Deus meu criador Não há cousa segura, tudo quanto se vê vai passando A vida não tem dura. O bem se vai gastando. Toda criatura passa voando. Contente assim, minh´alma, do doce amor de Deus toda ferida, o mundo deixa em calma buscando a outra vida, na qual deseja ser absorvida. (ANCHIETA apud BOSI, 1992, p. 26) TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 35 Mas se os poemas valem em si mesmos como estruturas literárias, os autos são de cunho pedagógico. Emprega ora o português e ora o tupi, conforme o público a doutrinar. Vejamos algumas palavras: Bispo é Pai-Guaçu; Tupany é Nossa Senhora; Alma é anga; demônio é anhangá e Deus é Tupã. “Aculturar também é sinônimo de traduzir”. (BOSI, 1992, p. 64). Além disso, Anchieta e os demais missionários colheram das narrativas correntes algumas passagens nas quais apareciam entidades cósmicas (Tupã), ou então heróis civilizados (Sumé). Recorrem a tais narrativas sem compromisso com a cultura desse povo, aos missionários interessava as que se identificassem, sob algum aspecto, com figuras bíblicas. (BOSI, 1992, p. 68). A literatura serviu como instrumento para conversão e expansão da fé cristã e, então, o colonizador que aqui chegou impôs a celebração e orespeito à sua religião, o culto dos seus apegos, aos valores morais e estéticos, bem como o predomínio da sua língua. Sendo assim, muitas das manifestações culturais praticadas pelos nativos foram reprimidas e algumas foram proibidas, como foi o caso do culto aos mortos com seus cantos e danças. Para os jesuítas, tais ritos se traduziam como que em possessões demoníacas e, por esse motivo, os cristãos não poderiam assim celebrá- los. O agente aculturador incutiu nos indígenas os ritos cristãos e coibiu os que existiam. “Os índios brasileiros não venceram o dominador e, sim, foram vencidos, e a cultura que se instalou no Brasil foi a ibérica europeia.” (CANDIDO, 2002, p. 94). O teatro de Anchieta desempenhou importante função de catequizar e por isso mesmo pedagógica: um teatro à moda Gil Vicente, popular nos temas, na linguagem utilizada pelos atores. Anchieta explorou o gosto que os nativos nutriam pela dança, suas crenças e, em encenações de caráter religioso, com função puramente catequética, transmitia conceitos religiosos, morais e éticos. As peças combinavam dogmas católicos com costumes indígenas. Os missionários percebiam no teatro um poderoso aliado para, gradativamente, incutir nos nativos as verdades cristãs. Padre José de Anchieta foi autor expressivo desses autos, peças que mesclavam a língua tupi, o português e o espanhol. O auto intitulado Na Festa de São Lourenço consta de quatro atos e uma dança cantada como procissão final. Na peça em questão aparecem três diabos que querem aniquilar a aldeia: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia. No excerto que segue os demônios expressam o prazer e se vangloriam da possibilidade de “devorarem as almas”: Do santíssimo sacramento Ó que pão, ó que comida, ó que divino manjar. Se nos dá no santo altar cada dia! Ó que divino bocado, que tem todos os sabores! Vinde, pobres pecadores a comer. a comer. Morra eu, por que viver vós possais dentro de mim. Ganhai-me, pois me perdi em amar-me. (ANCHIETA apud BOSI, 1980, p. 23) 36 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA FONTE: ANCHIETA, José de. Auto representado na Festa de São Lourenço, Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro - Ministério da Educação e Cultura, 1973. (Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro). Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Acesso em: 24 jan. 2011. Podemos observar que Anchieta explorou o tema religioso, contrapondo os demônios indígenas, que ameaçavam as aldeias, e a salvação, que parte dos santos e anjos católicos, São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia desses demônios. PARA REFLETIR: em terras brasileiras foram Manuel da Nóbrega e José de Anchieta os fundadores das primeiras cidades do Brasil: Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro. Em 1759, o Marquês de Pombal, com o pretexto de um atentado contra o rei D. José, expulsou os jesuítas de Portugal e das colônias. No Brasil anterior à era pombalina que expulsa os jesuítas, em relação à língua pode-se dizer que ela passa por um bilinguismo: português e tupinambá. A Igreja aprova em concílio o uso das línguas vulgares para a catequização. A aprovação dada pelo Papa Martinho V, em 1419, coincidiu com a era das viagens ultramarinas, e os padres jesuítas lançam mão da língua do índio como medida essencial e, em seguida, progressivamente ocorre um ambiente de troca. UNI AIMBIRÊ Bebem cauim a seu jeito, como completos sandeus ao cauim rendem seu preito. Esse cauim é que tolhe sua graça espiritual. Perdidos no bacanal seus espíritos se encolhem em nosso laço fatal. SÃO LOURENÇO Não se esforçam por orar na luta do dia a dia. Isto é fraqueza, decerto. AIMBIRÊ Sua boca respira perto do pouco que Deus confia. SARAVAIA É verdade, intimamente resmungam desafiando ao Deus que os está guiando. Dizem: “Será realmente capaz de me ver passando?” SÃO SEBASTIÃO (Para Saravaia:) Serás tu um pobre rato? Ou és um gambá nojento? Ou és a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os índios no mato? SARAVAIA No anseio de devorar as almas, sequer dormi. [...] TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 37 É preciso enfatizar que um escritor depende do público, uma vez que a literatura age sobre os leitores ao mesmo tempo que somente se desenvolve na medida em que estes a vivem. Nesse sentido, o primeiro público da literatura foi o indígena. Em seguida, estendeu-se aos auditórios de academias de comemorações públicas e igrejas que exploravam sermões e recitais. As primeiras manifestações redigidas revelam a gramática da metrópole. Diante disso, Candido (1959, p. 98) afirma que “[...] usar a linguagem do colonizador foi adquirir armas para definir a identidade do colonizado e reivindicar a sua autonomia”. Para estudiosos como Afrânio Coutinho, é somente a partir de e com Alencar que se revelariam os primeiros prenúncios de uma nova língua – a brasileira. Este corajosamente inova com uma escrita que nasce da fala corrente do país (COUTINHO, 2004a). Se a língua brasileira se inicia com Alencar, a literatura brasileira também? É sobre a formação da literatura brasileira que refletiremos a seguir. 3 COUTINHO E CANDIDO: SOBRE A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA As origens da literatura brasileira suscitam por parte dos estudiosos algumas reflexões, por vezes idealizadas, no âmbito estético e/ou histórico. A vertente histórica procura discuti-la em termos de formação da sociedade brasileira, da cronologia, de diferenças, de possibilidades, de independência e de autonomia em relação à Colônia. A estética, por sua vez, preocupa-se com questões que envolvem estilos, características temáticas e formas usadas para expressar a realidade humana, social e local. Os estudiosos Afrânio Coutinho e Antonio Candido, cada qual ao seu modo, procuram expor como se estabelece e se desenvolve a literatura brasileira. Não temos a pretensão de buscar as divergências ou convergências entre pesquisadores tão importantes, mas apresentar alguns pontos considerados por nós importantes para o aprimoramento do estudo da Literatura Brasileira. O processo literário é histórico e acontece num tempo e num espaço nos quais coexistem elementos históricos, geográficos e sociais, a individualidade do autor, a língua e as crenças. Sendo assim, segundo Coutinho, um historiador poderia valer-se da literatura para obter material de documentação histórica, mas tal empreitada não pode ser confundida com crítica literária. E ainda, “[...] não se pode ser crítico literário e estético e, ao mesmo tempo, historiador e etnólogo”, uma vez que cada um exige atitudes diferentes, “[...] maneiras distintas de tratar matéria radicalmente diferente”. (COUTINHO, 2004a, p. 72). 38 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA Para o estudioso em questão, no Brasil há uma tradição que, ancorada à teoria germânica, naturalista e positivista, reforça a concepção de que literatura são os escritos de romancistas e poetas, ao lado de juristas, jornalistas, incluindo nesse rol até escritos sobre medicina. A história literária poderia registrar e observar as relações entre as ciências sociais e a história e a etnografia, mas fazê- lo perifericamente, pois o foco deveria ser a interpretação, a estrutura intrínseca, a estética da obra literária, incorporando nesta o social, o humano, o vivo. (Op. cit., p. 79). Além da questão entre o crítico literário e o historiador, Coutinho ressalta o exagero dispensado à cronologia. Na literatura, a cronologia não poderia ser vista como critério definitório, uma vez que várias épocas estilísticas se sucederam ou se superpuseram com características distintas, inexistindo períodos fixos entre épocas. Nesse sentido, para o estudioso, há que se reportar ao Romantismo, Barroco, Simbolismo, “[...] procurando definir estilos literários, que se sucederam no século, possuidores cada qual de sua unidade interna, sua identidade, sua tipologia comum, seu sistemade normas, que os caracterizam irrecusavelmente, como tendo aparecido naquele tempo”. (2004a, p. 106). Propõe, então, o termo periodização estilística, que põe em relevo o caráter estético das obras, proporciona a inter-relação dos meios artísticos e a autonomia da literatura. E ainda, a periodização corrobora para a compreensão e valorização de estilos, muitas vezes tidos como secundários. Com isso, o autor não descarta o viés da cronologia, mas argumenta que a [...] periodização estilística é um instrumento conceitual do maior valor para a solução do problema na literatura brasileira. Oferece ampla margem para a renovação interpretativa e revisão da produção literária no Brasil, encaminhando, demais disso, a compreensão da autonomia do fenômeno literário em relação a outros fenômenos da vida, e da autonomia e originalidade da literatura brasileira. (COUTINHO, 2004a, p. 110). Além disso, em estudos relacionados à origem da literatura encontra- se comumente a tese de que a produção escrita em terras brasileiras, do século XVI ao XVIII, é prolongamento da literatura portuguesa, e que a brasileira se inicia somente após a Independência, com o Romantismo. Para Coutinho, lançar mão desse conceito é descartar o fato de que, mesmo subordinado a Portugal, o Brasil era um país com aspectos geográficos diferentes da Metrópole, e tão logo se inicia a imigração, hábitos se fundiram e se ampliaram entre índios e portugueses e, mais tarde, entre os negros. Sendo assim, são distintos de Portugal homens e sociedade, bem como as manifestações artísticas. Segundo Coutinho, tal diversidade leva-nos à necessidade de considerar como brasileira a parte da literatura anterior à Independência. Assim, TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 39 A literatura brasileira começou no século XVI, pela voz barroca dos jesuítas, em primeira linha Anchieta, que deve ser considerado o seu fundador. Iniciada no primeiro século, ela cresceu aos poucos, desenvolvendo gradativamente as suas características temáticas e formais, as suas peculiaridades, a sua fisionomia, promovendo uma fórmula brasileira, graças a uma crescente aproximação e incorporação da realidade humana, social, geográfica e local, e ao esforço do pensamento nativista, a princípio contra Portugal, tornando-se autônoma com o Romantismo, para afinal, com o Modernismo, estabelecer-se o princípio de que a literatura brasileira deve ser antes de exportação que de importação. (Op. cit., p. 110). Desse modo, à luz dos estudos de Coutinho, afasta-se o conceito de literatura colonial usado para designar aquela produzida antes da Independência, e literatura nacional pós-Independência, adotando-se a periodização estilística. “Então, no período colonial, concebe-se no Brasil, em termos de Literatura, a expressão estilística barroca, arcádica e neoclássica, repelindo-se a dicotomia entre literatura nacional e colonial”. (COUTINHO, 2004a, p. 111). Ambas as literaturas brasileira e portuguesa são fonte da medieval. E desenvolveram-se cada qual com peculiaridades distintas. A literatura não foi exclusividade nessa questão de fonte, a língua também o foi, o idioma brasileiro de raízes medievais diverge do de Portugal. Vale mencionar José de Anchieta, que lança mão do polilinguismo: português, latim, espanhol e tupi, no intuito de atingir os vários públicos da época. Origina-se, assim, a literatura brasileira de homens imigrantes que, em contato com os pares aqui nascidos, procuraram adaptar-se à nova geografia, àquilo que as novas terras ofereciam, às novas condições, culinárias, ecológicas, aos novos tipos de relações humanas. Não poderia então exprimir-se tal qual o europeu, por isso transformaram, adaptaram, condicionaram a literatura às novas necessidades expressionais. É nesse sentido que Coutinho defende a seguinte ideia: A literatura brasileira teve início imediato, quando o homem novo começou a construir suas imagens em termos de nova realidade, pela voz de seus cantores populares, através das inúmeras formas folclóricas, e em fase mais avançada, pelos seus poetas, pregadores e oradores que, desde os primeiros tempos da colônia, vieram plasmando o novo instrumento verbal, para vazar o lirismo que a sua alma gerara, extasiada diante da natureza diversa. (2004a, p. 132). É brasileira logo de início, pois exprime os desejos, aflições, medos, angústias, êxtase, experiência, testemunhando o homem brasileiro que se expressou no barroquismo, arcadismo, neoclassicismo, romantismo, realismo, parnasianismo, simbolismo, impressionismo e modernismo, perfazendo uma linha evolutiva decorrente das fontes europeias, bebendo das mesmas em um processo de dependência e busca de autonomia e “[...] devido ao natural fator da distância e do primitivismo da nova terra descoberta, a mesma demora a afirmar- se, mas nem por isso deixa de ser, desde o seu início, brasileira”. (Op. cit., p. 130). 40 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA Para Coutinho (2004a), as primeiras manifestações constituem uma literatura de exaltação, de conhecimento da terra e a maioria dessas obras não pertence à literatura no sentido estrito. Porém, os escritos de José de Anchieta podem ser considerados como o marco inicial da literatura brasileira, uma vez que os seus teatros, poesias líricas, danças, aparições, que visavam valorizar os ideais cristãos, apresentam manifestações que revelam sentido estético. Coutinho sustenta que, descontados os escritos de conhecimento da terra, “[...] a literatura deste jesuíta nasceu sob o signo do Barroco”. (2004a, p. 130). Para Antonio Candido, estilizar a realidade local não significa ainda literatura, esta somente passa a existir quando há tradição de produção de obras que contemplem a realidade local, ao mesmo tempo em que alcança a universalidade. Para este autor, pode-se estudar a literatura na América sob dois ângulos dialeticamente correspondentes “[...] a literatura como prolongamento das literaturas metropolitanas e como ruptura em relação a elas”. (2002, p. 98). É prolongamento quando pensamos na sua ligação com a Metrópole, o Ocidente. É ruptura, quando nela detectamos a procura da originalidade. Candido coaduna com a ideia de que a universalidade e particularidade das formas de expressão alcançadas na literatura brasileira estão diretamente associadas à imposição exercida pela cultura dos colonizadores e à adaptação cultural aos elementos da realidade local. Assim, para Candido, transplantamos literaturas e a partir delas criou- se a expressão local. O fato de os poetas, em terras brasileiras, se utilizarem da mitologia e transportarem as ninfas para as paisagens brasileiras, não pode ser pensado como processo de cópia, mas, sim, uma demonstração de que a nossa realidade poderia ser traduzida. Os escritores em terras brasileiras incorporaram o nativismo, mais tarde o nacionalismo e a consciência dos problemas sociais. (CANDIDO, 2002). Candido considera esse processo de formação uma alienação aparente, ingrediente para a libertação, ou seja, dos modelos europeus surgem as primeiras manifestações de expressão do sentimento nacional e, ao final do Romantismo, poder- se-ia dizer que existe uma literatura brasileira constituída, uma literatura nacional. No processo de formação da literatura no Brasil, há um momento em que esta começa a se articular: só em meados do século XVIII se formou algo como um sistema literário, como uma inter-relação entre obras e autores, um esboço de público e a constituição da tradição. (2002, p. 95). Quando criticado pelo seu entendimento sobre a formação da literatura brasileira, assim se expressa o teórico: TÓPICO 3 | OS JESUÍTAS: FONTE DE CONHECIMENTO E ALARGAMENTO DE NOSSA LITERATURA 41 E inclusive houve um colega da Universidade de São Paulo que me acusou de ser pouco brasileiro, de ter uma visão de europeu. E a carta de Pero Vaz de Caminha? Aí começa a literatura?E o padre Anchieta? São manifestações de uma literatura madura, de uma literatura existente, que é a literatura portuguesa. Quem veio para o Brasil trouxe o soneto pronto, trouxe o tratado pronto, trouxe a epopeia. Ninguém inventou nada disso aqui, e não se trata de inventar, de procurar o começo dos começos. Eu estou interessado em estudar quando se formou o sistema literário, mas como eu fui o primeiro e, até agora, o único que fez isso, levantei muita celeuma; mas como eu sou teimoso, apesar de Candido, acho que manteria exatamente aqueles dois períodos. Então, eu diria: a Literatura Brasileira se divide em manifestações literárias, formação da literatura e o sistema literário já consolidado. (2002, p. 115). Lembremos que para o autor a literatura é um conjunto de produtores literários, um público e um mecanismo transmissor que liga uns aos outros. Sem estes elementos não há tradição literária, enfatiza o autor: os escritos “[...] não são representativos de um sistema, significando, quando muito, o seu esboço”. (Op. cit., p. 24). Para o autor, trata-se de escritos significativos que possuem valor, que ele denomina de manifestações literárias. Segundo o estudioso, os escritos em terras brasileiras que vão do século XVI ao XVIII são, pois, manifestações literárias importantes para a formação da literatura brasileira. O teórico considera inegável o vínculo com as literaturas europeias, e, paradoxalmente, reconhecê-lo funde-se à renovação e ação contra a dominação que o originou. Pode-se falar em imitação subserviente e rejeição. Daquela, destaca- se a repetição anacrônica dos modelos estrangeiros e a alienação repetindo-lhe as manifestações. Da última, a realidade e peculiaridades locais que aparecem representadas, tomam força estimulante e transformadora da imitação à criação em prol da universalização da literatura brasileira. Para Candido, a literatura no Brasil é rebento da portuguesa e seu reflexo. Processo que se finda quase no século XVIII, é um período no qual ecoam nos escritos de poetas brasileiros algo que os distingue, por traduzirem em suas inspirações seus propósitos. Sendo assim, sob o olhar de Candido, duas são as divisões que, genuinamente, se podem fazer no desenvolvimento da literatura brasileira: período colonial e período nacional. Para Veríssimo (1998), o movimento literário que ocorria em pátria portuguesa e seu florescimento no campo da literatura não chegaram a terras brasileiras. Os que se aventuraram nas viagens ultramarinas “[...] eram da multidão ignara que constituía a maioria da nação, o “vulgo vil sem nome” (1998, p. 38) com preocupações puramente materiais, de dominação dos que aqui habitavam e da riqueza existente. Então juntamente com as primeiras preocupações espirituais, meio século após a chegada dos portugueses, é que jesuítas se fazem sentir através de escolas, de catequização, bem como os primeiros sopros de literatura. Esta não refletia os mitos, lendas e o sentimento brasileiro em período colonial, era inspiração de Portugal. Nas palavras de Veríssimo: “[...] duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da literatura brasileira são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período colonial e período nacional”. (1998, p. 17). 42 UNIDADE 1 | A EUROPA DA IDADE MÉDIA E RENASCENTISTA Bem, feitas estas considerações sobre alguns estudiosos e suas reflexões acerca do início da literatura em terras brasileiras, desejamos provocá-lo/a, caro/a acadêmico/a, a pesquisar sobre outros estudiosos e seus pontos de vista. E, após as leituras, procure responder com qual deles você se identifica. 43 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você, viu que: • A Companhia de Jesus, uma ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola, em 1540, tinha por objetivo expandir a fé e os dogmas cristãos. • Os jesuítas empreenderam e implementaram a sistematização da sua atividade docente e publicaram, em 1599, a Ratio Studiorum. Eram 466 regras que compunham a Ratio Studiorum e versavam sobre: férias, feriados, formação dos professores, relações entre os pais dos alunos, metodologias de trabalho, plano de estudos (humanidades, filosofia, história, ciências físicas e matemáticas), avaliação, regras disciplinares, dentre outros assuntos pertinentes à formação. • Em 1549, membros da Companhia de Jesus chegam ao Brasil com os mesmos dogmas, a mesma fé ibérica e medieval desses missionários. • O principal objetivo dos jesuítas era propagar o cristianismo e a conversão dos índios à fé cristã. Tais intentos ficaram registrados em seus escritos. • Manuel da Nóbrega escreveu Diálogo sobre a Conversão do Gentio. A obra explicita a posição do missionário: para a conversão do gentio (os indígenas), seria necessário dedicação. • O Padre José de Anchieta escreveu autos de cunho pedagógico e poemas. Por vezes, enfatizava a fugacidade do tempo, a ilusão da vida e as coisas mundanas. Desse modo, fazia alusão à literatura barroca que se idealizaria plenamente no século XVII. • A literatura jesuítica serviu como instrumento para conversão e expansão da fé cristã, impôs a celebração e o respeito à sua religião, o culto dos seus apegos, aos valores morais e estéticos. Sendo assim, muitas das manifestações culturais praticadas pelos nativos foram reprimidas e algumas foram proibidas. • A crítica literária que preconiza a vertente histórica procura discuti-la em termos de formação da sociedade brasileira, da cronologia, de diferenças, de possibilidades, de independência e de autonomia em relação à Colônia. Já a vertente estética preocupa-se com questões que envolvem estilos, características temáticas e formas usadas para expressar a realidade humana, social e local. • O estudioso Afrânio Coutinho ressalta o exagero dispensado à cronologia. Na literatura, a cronologia não poderia ser vista como critério definitório, uma vez que várias épocas estilísticas se sucederam ou se superpuseram com características distintas, inexistindo períodos fixos entre épocas. 44 • Coutinho propõe o termo periodização estilística, que põe em relevo o caráter estético das obras, proporciona a inter-relação dos meios artísticos e a autonomia da literatura. • Sobre a origem da literatura brasileira encontra-se comumente a tese de que a produção escrita em terras brasileiras, do século XVI ao XVIII, é prolongamento da literatura portuguesa, e que a brasileira se inicia somente após a Independência, com o Romantismo. Para Coutinho, lançar mão desse conceito é descartar o fato de que, mesmo subordinado a Portugal, o Brasil era um país com aspectos geográficos diferentes da Metrópole, e, tão logo se inicia a imigração, hábitos se fundiram e se ampliaram entre índios e portugueses e, mais tarde, entre os negros. • Coutinho afasta-se do conceito de literatura colonial usado para designar aquela produzida antes da Independência e literatura nacional pós-Independência, e adota a periodização estilística. • Para Antonio Candido, estilizar a realidade local não significa ainda literatura. Esta somente passa a existir quando há tradição de produção de obras que contemplem a realidade local, ao mesmo tempo em que alcança a universalidade. Sendo assim, Candido considera esse processo de formação uma alienação aparente, ingrediente para a libertação, pois, dos modelos europeus, surgem as primeiras manifestações de expressão do sentimento nacional e, ao final do Romantismo, poder-se-ia dizer que existe uma literatura brasileira constituída, uma literatura nacional. 45 1 No período colonial, além da Carta de Caminha, apareceram as produções dos jesuítas. Assinale as alternativas que contemplam as manifestações jesuíticas: (A) A produção jesuítica inclui poemas, estudos da língua aborígine, cartas e autos. (B) Escritos com propósitos catequéticos que incluem a necessidade de ensinar aos índios os princípios básicos do cristianismo. (C) Poemas com a finalidade de formar uma crítica aos problemassociais do Brasil Colônia e denunciar a situação indígena. (D) Principais representantes: José de Anchieta e Manuel da Nóbrega. a) ( ) As afirmativas A, B, e D estão corretas. b) ( ) Somente a afirmativa B está correta. c) ( ) Somente a afirmativa C está correta. d) ( ) As afirmativas A e D estão corretas. 2 Sobre a questão dos conceitos de literatura colonial e literatura nacional, estudiosos como Afrânio Coutinho e Antonio Candido manifestam opiniões diferentes. Sintetize a opinião de cada um destes críticos literários. AUTOATIVIDADE 46 47 UNIDADE 2 AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • compreender o Barroco como um movimento estético marcado pelo con- traste, dramaticidade, exuberância e de tendência ao decorativo; • apresentar questões da Reforma protestante e da Contrarreforma como motivadoras do Barroco; • refletir sobre as mudanças ocorridas na Literatura a partir do pensamento iluminista; • abordar temas, características e autores do movimento árcade. Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles você encontrará atividades que o/a ajudarão a fixar os conhecimentos abordados. TÓPICO 1 – A LITERATURA SEISCENTISTA TÓPICO 2 – O BARROCO NO BRASIL TÓPICO 3 – O ARCADISMO 48 49 TÓPICO 1 A LITERATURA SEISCENTISTA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O Barroco, um estilo artístico iniciado entre os séculos XVII e XVIII, teve origem na Europa e se estendeu para a América. O movimento deu continuidade ao Renascimento, porque ambos eram perpassados por um profundo interesse pela arte da Antiguidade clássica, ainda que diferentemente a interpretassem e a expressassem. Conforme Coutinho (2004b, p. 6), o Barroco não era somente um estilo, mas um complexo cultural do qual se originou também a Literatura Brasileira pelas mãos dos escritores Bento Teixeira, Gregório de Matos, Padre Antônio Vieira, Botelho de Oliveira e Nuno Marques Pereira, dentre outros. Como características exploradas pelo Barroco, vale destacar o forte contraste, a dramaticidade, a exuberância e uma tendência ao decorativo, além de expressar uma tensão entre materialidade e necessidades da vida espiritual. No dizer de Afrânio Coutinho, O Barroco tenta a conciliação, a incorporação, a fusão (o fusionismo é a sua tendência dominante) do ideal medieval, espiritual, supraterreno, com os novos valores que o Renascimento pôs em voga: o humanismo, o gosto das coisas terrenas, as satisfações mundanas e carnais. (2004b, p. 15). Temas e características se expandem e se intensificam após um movimento intermediário que ocorreu entre o pensamento renascentista e o Barroco propriamente dito, que ficou conhecido como Maneirismo. No intuito de melhor compreender a estética desse período, abordaremos o Maneirismo, movimento do qual a Itália foi protagonista. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 50 2 O MANEIRISMO A Itália, a partir do Renascimento, tornou-se o maior polo de atração artística, centro iluminador de influência de toda a Europa. Entre os anos de 1515 e 1600 surge na Itália o Maneirismo, um movimento de estilo autônomo, derivado do Renascimento. Tinha por concepção a revisão dos valores clássicos e naturalistas prestigiados pelo Humanismo renascentista. Inventado no século XVII pelo historiador italiano Luigi Lanzi, o vocábulo guardava, até muito recentemente, sentido pejorativo, como sinônimo de ‘afetação’, que lhe viria da contiguidade com as palavras amaneirado e amaneiramento. (MOISÉS, 2004, p. 273). O objetivo do artista era obter um efeito que proporcionasse emoção, elegância e tensão, além da contradição e o conflito. (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL, [s.d.], p. 7194). Sendo assim, caracterizou-se pela sofisticação, originalidade, interpretação individual, dinamismo, complexidade na forma e artificialismo nos temas. O historiador Arnold Hauser (1976) reconheceu no maneirismo uma abordagem que contextualizava causas e significados em termos econômicos, políticos e sociais e explorava associações psicológicas. Desse modo, sua prática traduzia o tumultuado contexto social e cultural daquele tempo, além das angústias e incertezas. Na literatura, o movimento era caracterizado por sentimentos de dúvida, fracasso, ambiguidade, duplicidade e ironia, carregado de elementos que denunciavam um desejo intenso de ordem e paz. A crise espiritual desencadeada pela ruptura do domínio católico repercute na literatura também através das traduções da Bíblia, estabelecendo novos padrões de escrita. Segundo Coutinho (2004b, p. 23), [...] é uma literatura que exprime o sentido profundo do drama do homem e do mundo, a vocação de sentir a vida dramaticamente, o sentimento trágico da existência, a angústia do homem em face do Cosmo, a ideia da salvação do unicum humano por meio da arte. Também há uma intensificação do drama, fazendo uso de referências literárias e citações visuais. Foi nesse contexto que, na Itália, Torquato Tasso escreveu Gerusalemme Liberata. TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 51 FIGURA 3 – JERUSALÉM LIBERTADA FONTE: Disponível em: <http://www.fausernet.novara.it/fauser/biblio/ index028.htm>. Acesso em: 24 jan. 2011. Jerusalém Libertada [...] Canto XX Desta arte vence Godofredo; e tanto Resta ainda do dia aos esplendores Que à cidade já livre, e ao templo santo Do Salvador, conduz os vencedores. Sem que deponha o sanguinoso manto, Entra co’os mais libertadores; E ali suspende as armas, e devoto O grã Sepulcro adora, e cumpre o voto. FONTE: TASSO, Torquato. Jerusalém libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. O enredo deste poema épico se desenvolve enfatizando questões e embates da época das Cruzadas. Entre um duelo e outro, o espírito dos cavaleiros é enfraquecido, espalhando a discórdia. Nos conflitos sangrentos que se travavam entre os cristãos e os infiéis, surge Godofredo, protagonista de uma luta entre as forças divinas e o mal representado por coisas terrenas. Os duelos guerreiros e amorosos se misturam ao sentimento religioso: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 52 O poema mostra o herói Godofredo de Bulhões, um cristão enfrentando a futilidade de seus ideais. Com pesar, vê seu desejo de construir uma comunidade de homens valorosos e leais impossibilitado pela mesquinhez, ambição e hedonismo das pessoas, que são levadas mais pelas paixões mundanas e materialismo do que pelos princípios morais. O protagonista, na hora da morte, não deixa de ser guerreiro para morrer como bom cristão, “mas guarda simultânea e contraditoriamente o ímpeto belicoso de golpear os inimigos e a atitude piedosa e contrita de quem, na hora derradeira, pede perdão a Deus”. (SILVA, 1979, p. 369). Para Tasso, Jerusalém, a Cidade Santa, não era apenas símbolo da conquista histórica, mas o coração do mundo, lugar por excelência de lutas em defesa do Cristianismo. O conflito interior na alma do homem é característica presente na literatura dessa época, que traz à luz os sentimentos e as dúvidas, temas que cercavam também a própria noção de poesia – sua função, natureza e suas normas. Além da literatura, as artes plásticas eram representadas pelos exageros das formas, uma maneira de romper com a regularidade e harmonia do Renascimento. O Maneirismo foi, então, um movimento artístico de protesto às estruturas sociais da época. Ainda segundo Hauser, [...] é impossível compreender o Maneirismo se não se compreende o fato de que a sua imitação dos modelos clássicos é uma fuga do caos ameaçador, e que o grande esforço subjetivo das suas formas é a expressão do medo de que a forma venha a cair na luta com a vida, e de que a arte venha a se desvanecer numa beleza sem conteúdo. (1976, p. 21). O estilo é fortemente palaciano, pelo menos em sua origem, pois seus principais expoentes participavam dos círculos ilustrados das cortes. O Maneirismo, aocontrário da arte renascentista, tinha a natureza como fonte de inspiração e fornecia os padrões a serem imitados, rejeitava a cópia e comparava a arte como fonte da criação do espírito, manifestação da alma do artista. Os maneiristas davam maior ênfase à liberdade e à espontaneidade do gênio criador. O movimento nos legou um grande acervo de realizações artísticas. “Iniciando-se nas artes plásticas antes de ser absorvido pela literatura, o Maneirismo confunde-se não raro com as tendências estéticas quinhentistas”. (MOISÉS, 2004, p. 273). Procuraram sair do controle de normas impostas, preservaram e revigoraram temas e formas clássicas, conceberam uma nova maneira de observar e descrever a natureza, mantendo vivo o ceticismo sobre ela, questionando a primazia absoluta do racionalismo, do equilíbrio idealista e da própria concepção de beleza. Sobre a escultura pode-se afirmar que ela concebe um estilo tipificado, cuja forma predominante é a figura serpentinata. A ideia remontava aos gregos, que consideravam a linha sinuosa o melhor veículo para a expressão do movimento. Na Renascença tal conceito foi absorvido por Leonardo da Vinci e Michelangelo, que o transferiram para a figura humana. TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 53 O modelo foi adaptado também à pintura e arquitetura. Aparecem escadarias espirais, atribuindo à figura serpentinata, já explorada na escultura, grande prestígio em função de sua estética plástica, carregada de simbologia, conforme se observa na figura abaixo, parede da Capela Sistina, de autoria de Michelangelo, cuja pintura demonstra o estilo da época, as formas curvilíneas. FIGURA 4 – MICHELANGELO: O JUÍZO FINAL, CAPELA SISTINA FONTE: Disponível em: <https://www.infoescola.com/wp-content/ uploads/2012/05/juizo-final.jpg>. Acesso em: 24 jan. 2011. Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564), pintor e escultor, viveu parte de sua infância e adolescência na cidade de Florença. Criou importantes obras, com grande influência da cultura greco-romana, dentre elas a escultura da Pietá, do Davi e a pintura da Sagrada Família. Nos anos de 1508 a 1512 pintou o teto da Capela Sistina no Vaticano e, em seguida, trabalhou na elaboração do Juízo Final, do altar da Capela Sistina. Em 1547 foi indicado como o arquiteto oficial da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Até os dias de hoje é considerado um dos mais talentosos artistas plásticos de todos os tempos, junto com outros de sua época, como, por exemplo, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Donatello e Giotto di Bondone. UNI UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 54 FIGURA 5 – FOTOGRAFIA DE RÉPLICA DE DAVI - PALAZZO VECCHIO (FLORENÇA) FONTE: Arquivo pessoal da autora Na época em que floresceu o Maneirismo o homem estava dividido entre o prazer pagão e a fé religiosa e em crise com a decadência dos valores. Tal oposição enfatizou a percepção sensorial da realidade expressada e, conforme argumenta Coutinho (2004b, p. 36), “[...] a figura humana retilínea, bela, irradiante, virou a figura retorcida, a figura serpentinata, dominante na pintura”. Os estudos no campo da estética e da crítica acerca do conceito do Maneirismo dão conta de que é caracterizado como um “estilo de historicidade definida, ligado à maniera essencial ao Cinquecento”. (COUTINHO, 2004b, p. 35). Para alguns estudiosos, o Maneirismo não seria um movimento, mas uma tendência do espírito humano, sofisticado e de oposição ao Classicismo. Para outros, o mesmo deve ser entendido como um momento histórico no seu tempo e espaço, um estilo [...] caracterizado pela preocupação dominante da maniera, que tanto se encontra em pinturas de Rafael e Miguel Ângelo [...]. O fato é que, assim delimitados o campo e o conceito, o Maneirismo continua sendo objeto de pesquisas e trabalhos notáveis, à luz dos quais se vai esclarecendo um período importante da história artística do Ocidente, tanto em artes plásticas e visuais, quanto em literatura. (COUTINHO, 2004b, p. 35). O que permite distingui-lo do Barroco é que este último é sensorial e naturalista, perpassado por sensações do mundo físico. O Maneirismo, por sua vez, não considera o sentimento, é autônomo e individual e distancia-se da realidade física e do mundo sensório, enfatizando os problemas filosóficos e morais da TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 55 condição humana. O Barroco revela-se realista e popular, e o Maneirismo é a arte da Elite, também desprovido do sentimento de democracia, é sóbrio, introspecto e perpassado pela melancolia. Tais diferenças transitaram de um para o outro, e o Maneirismo aparece como uma antecipação parcial do Barroco. O Maneirismo foi importante porque, pela sua própria natureza ambivalente e contraditória, representou um momento de expansão e de abertura para a diversidade depois das delimitações e da estética do Renascimento. Pelos elementos que explorou, como a transitoriedade da vida, os desenganos, os contrastes e as figuras de linguagem, funde-se em 1580 ao Barroco, cujo conceito será enfatizado a seguir. 3 O CONTEXTO HISTÓRICO E REPRESENTANTES DO BARROCO EUROPEU O Barroco traduz uma arte realista e popular e caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela propagação dos elementos decorativos. Os fatores que explicam o seu surgimento também são de ordem cultural, econômica e política, a exemplo do Maneirismo. De acordo com Afrânio Coutinho (2004b, p. 18), “[...] para a teoria moderna o Barroco é um conceito amplo que abarca manifestações variadas e diferentes conforme o país, outrora conhecidas pelos termos locais de Conceitismo e Culteranismo (Espanha e Portugal), Maneirismo e Seiscentismo (Itália), Eufuísmo (Inglaterra), Preciosismo (França), Silesianismo (Alemanha), muitas delas formas imperfeitas ou não desenvolvidas”. UNI Cultural porque priorizava o racionalismo e a valorização do homem, cuja mentalidade se opunha à religiosidade católica medieval, uma vez que o espírito crítico do Renascimento desconsiderou os tradicionais ensinamentos da Igreja. Nessa perspectiva, a disseminação e a leitura dos textos bíblicos, dos escritos dos sábios e santos da Igreja provocaram um clima de debate e questionamento das verdades estabelecidas, em substituição à autoridade da Igreja, ou seja, pretendiam uma religião mais ajustada aos novos tempos. No que tange à economia, esta obrigou a Igreja a adequar seus ensinamentos à nova realidade, uma vez que os preceitos católicos estavam ainda de acordo com a economia de subsistência da Idade Média. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 56 Já no plano político, o poder do rei se contrapunha ao da Igreja. Os conflitos entre os interesses da monarquia e os de Roma estavam manifestos na cobrança de impostos, na manutenção das leis e na nomeação dos bispos. Os reis não admitiam que as rendas obtidas pela Igreja fossem enviadas para Roma e, além disso, disputavam com os papas o direito de nomear os bispos, pois estes tinham um grande poder político. O rompimento da monarquia com a Igreja Católica foi desencadeado pelos conflitos de interesses, cujo movimento ficou conhecido como Reforma e Contrarreforma. 3.1 A REFORMA E A CONTRARREFORMA O século XVI foi marcado por dois movimentos religiosos que tiveram grande repercussão social e cultural: a Reforma protestante, liderado pela alemão Martinho Lutero, e a Católica, da Igreja de Roma, denominada também de Contrarreforma. A ostentação da Igreja, a compra de cargos eclesiásticos, o envolvimento na política, a venda de indulgências e de falsas relíquias religiosas contribuíram para a Reforma, a crise e o declínio da Igreja Católica. Antes que Lutero reagisse contra os abusos da Igreja, muitos católicos já o haviam feito, a exemplo do humanista Erasmo de Rotterdam, autor do livro O Elogio da Loucura, no qual tece uma crítica à sociedade e aos membros corruptos do catolicismo. FIGURA 6 – ELOGIO DA LOUCURA FONTE: Disponível em: <http://www.sebodomessias.com.br/sebo/(S(2qze3w55n53vtf55axtufe55))/detalheproduto. aspx?idItem=35036>. Acesso em: 24 jan. 2011. Eu desejaria saber se haverá, para a Igreja, inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas. (ROTTERDAM, 2004, p. 59). TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 57 Em seu livro, Erasmo personifica a loucura que conversa com o leitor e faz o seu próprio elogio. Todas as coisas humanas têm dois aspectos... para dizer a verdade, todo este mundo não é senão uma sombra e uma aparência; mas esta grande e interminável comédia não pode representar-se de um outro modo. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade. (ROTTERDAM, 2004, p. 62). Essa obra, através do humor e da sátira aos religiosos e à burguesia, influenciou os intelectuais. De acordo com Erasmo, a venda das indulgências era um dos abusos praticados pela Igreja de Roma: “Persuadidos dos perdões e das indulgências ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia batismal”. (Op. cit., 2004, p. 93). Fato este que contribuiu para a Reforma Protestante que culminou com o fim da unidade do Cristianismo. Um dos seus representantes foi o estudioso da Bíblia, o alemão Martinho Lutero (1483-1546). Suas críticas eram direcionadas à venda de indulgências, pois, para ele, somente a Deus caberia conceder o perdão aos pecados. Além disso, Lutero enfatizava a necessidade da leitura da Bíblia a todos os fiéis e não somente a um grupo restrito de representantes da Igreja Católica, que interpretavam e divulgavam a palavra divina. Veja, caro/a acadêmico/a, alguns aspectos abordados por Lutero. Ele faz menção à possibilidade de salvação pela fé e pelo arrependimento; à sujeição dos papas ao “erro” como qualquer ser humano; ao celibato do clero; às imagens presentes nas igrejas católicas entendidas por Lutero como idolatria; e ainda, a veneração e o culto deveriam ser prestados somente a Deus e, no que diz respeito ao rito da comunhão, reafirmava a fé na ressurreição de Cristo e na sua promessa de resgatar os pecados. UNI Um dos seguidores das ideias de Lutero foi João Calvino (1509-1564), e sua doutrina em muitos pontos convergia para o luteranismo. No entanto, pode- se observar uma diferença no que se refere à salvação. Para Lutero, ela se dá pela fé e, para Calvino, pela predestinação. Com base em Santo Agostinho, Calvino concebe a vida do ser humano como uma predestinação de Deus. Desse modo, a salvação não depende da fé e nem das boas obras, mas, sim, da escolha divina. Os sinais da escolha divina se manifestariam na vida dos indivíduos pelo trabalho, o cumprimento dos deveres para com a sociedade e a família, o que resultaria no progresso econômico. A burguesia encontrou no calvinismo a doutrina adequada a seus interesses e ao seu modo de vida. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 58 DICAS Para entender essa questão do rompimento entre a realeza e a Igreja, e também para enriquecer seus estudos, assista ao filme Robin Hood. Robin Hood e seu bando de saqueadores decidem enfrentar o poder e a corrupção que tomou conta da cidade de Nottingham, sufocada pelos altos impostos. O protagonista luta contra os poderosos e a favor dos oprimidos, passando a ser considerado um fora da lei. Foi por conta desses movimentos que a Igreja Católica se reestruturou e lançou a Contrarreforma, um conjunto de medidas tomadas para deter o avanço das igrejas reformadas e impedir a evasão de fiéis católicos para o protestantismo. Nesse sentido, os representantes dos católicos propunham uma nova concepção de Deus, retornando à “linha vertical do medievalismo, reafirmando a ligação do homem com o divino rompida pelo Renascimento”. (COUTINHO, 2004b, p. 19). A principal providência tomada na Contrarreforma foi a convocação do Concílio de Trento, que aconteceu entre os anos de 1545 e 1563. Neste, foram reafirmados os dogmas e os princípios católicos negados pelos reformadores, bem como elaborada a relação de livros proibidos e um Catecismo para a educação religiosa. Além disso, o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) foi remodelado e reativado para perseguir os que se desviassem dos princípios católicos. A Contrarreforma reafirmava ainda que somente a Igreja podia interpretar a Bíblia. Mais tarde a Europa passou também pela Reforma Anglicana, cujos motivos foram políticos. Ela teve origem no conflito entre o rei Henrique VIII da Inglaterra e o papa Clemente VII, que não concordou em conceder ao rei o divórcio de sua primeira esposa, Catarina de Aragão. A questão do divórcio serviu como pretexto para o rompimento definitivo. Por meio do Ato de Supremacia, Henrique VIII tornou-se o chefe da Igreja inglesa. Os membros do clero inglês tiveram que jurar fidelidade ao rei e romper com o papa. Os que se recusaram foram destituídos e perseguidos. As terras confiscadas da Igreja foram vendidas à nobreza inglesa, que, desta forma, se tornou fiel partidária da Igreja Anglicana. TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 59 As determinações provenientes do Concílio de Trento também repercutiram nas artes. Desse modo, a teologia assumiu o controle e impôs restrições às excentricidades maneiristas, em busca de uma recuperação do decoro, de uma maior compreensibilidade da arte pelo povo e de uma homogeneização do estilo. Desde então, tudo devia ser submetido de antemão ao crivo dos censores, desde o tema, a forma de tratamento e até mesmo a escolha das cores e dos gestos. Os personagens nus do Juízo Final de Michelangelo têm suas genitálias repintadas e cobertas, pois, conforme Coutinho, nesse fazer estaria a “[...] tentativa de reencontrar o fio perdido da tradição cristã, procurando exprimi-la sob novos moldes intelectuais e artísticos”. (2004b, p. 18). A Igreja Católica, através da arte, propagou a fé em sua nova formulação e estimulou a piedade nos devotos, afinal o homem desse tempo aspirava à religiosidade medieval e a Igreja tencionou enchê-lo do desejo artístico e pela pretensão da Contrarreforma, “[...] redespertando os terrores do Inferno e as ânsias da eternidade”. (COUTINHO, 2004b, p. 19). Esse fato gerou um grande conflito espiritual e estético, pois o homem era, ao mesmo tempo, seduzido pelas apelações terrenas e pelos valores do mundo – “amor, dinheiro, luxo, posição, aventura, que a Renascença, o Humanismo e as descobertas marítimas e invenções modernas puseram em relevo. Desse conflito, desse dualismo é impregnada a arte barroca”. (COUTINHO, 2004b, p. 19). Do ponto de vista etimológico, a origem da palavra Barroco faz menção a um processo relativo à memória que designa um silogismo aristotélico com conclusão falsa. O silogismo é a forma mais perfeita do raciocínio e contém todos os pensamentos parciais logicamente necessários. Buscando ser coerente na defesa da causa, o orador fundamenta a argumentação no silogismo. (MOISÉS, 2004, p. 126). UNI A palavra Barroco poderia ainda designar um tipo de pérola de forma irregular, ou mesmo um terreno desigual, assimétrico. Apresenta um estilo que se manifesta com figuras de proporções alongadas e contorcidas. Embora existam várias hipóteses, é possível perceber na estética barroca um jogo de ideias, rebuscamento e assimetria. No dizer de Massaud Moisés (2004, p. 52), “[...] a estética barroca visava unificar a dualidade renascentista, formada pela coexistência de valores medievais e católicos e das novidades pagãs trazidas pela restauração do espírito clássico”. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 60 Miguel de Cervantes Saavedra viveu entre 1547-1616. Foi romancista, dramaturgo e poeta espanhol. Em 1605 publicou Dom Quixote, romance que, devido ao seu sucessoimediato, foi traduzido para o inglês e o francês. “Cervantes, como cristão fiel e patriota, alcançou a essência mais profunda na sua obra literária”. (LUKÁCS, 1982, p. 118). UNI O protagonista Dom Quixote lia os romances de cavalaria e, desse modo, tomado pela fantasia de suas leituras, imbuiu-se da atmosfera daqueles heróis. Ao “duelar com os moinhos de vento”, buscava um suposto combate ou, como cita Lukács (1982, p. 118), “a necessidade de heroísmo”. Essa postura traduz o sentimento do personagem desse contexto literário que reflete sobre as ações e sobre questões da condição humana. Nesse sentido, Afrânio Coutinho (2004b, p. 12): propõe a teoria wolffliniana como possibilidade de melhor compreender a concepção do Barroco, a qual estabelece alguns fundamentos que correspondem à dicotomia do claro e escuro, luz e sombra, assimetria, o contraste, a abundância de detalhes e o retorcido. O Barroco seria o desenvolvimento natural do Classicismo renascentista e diferente por ser mais visual e não revelar sua arte, mas dissimulá-la. A mudança se manifesta em categorias bem marcadas: contrariamente ao Renascimento, em que as mesmas são lineares, planas, tácteis, coordenadas, fechadas e claras, no Barroco, por sua vez, são visuais, profundas, subordinadas, abertas ao observador e com uma claridade relativa. Na literatura, tal como nas artes plásticas, as formas simples e lineares são substituídas pelas formas complicadas, artifício que não deve ser confundido como um ornamento supérfluo, mas condição fundamental de beleza. No dizer de Silva (1979, p. 426), esse traço da literatura barroca é conhecido por fusionismo, “[...] tendência para unificar num todo múltiplos pormenores e para associar e mesclar numa unidade orgânica elementos contraditórios”. Trata-se de um recurso que tende para a expressão não linear e indireta, traduzida pelo contraste e conflito. Um exemplo expressivo dessa literatura foi Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o qual criou um protagonista – um cavaleiro que passa a maior parte do tempo num mundo ilusório envolto em seus ideais, um personagem questionador. TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 61 Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou- se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo. (SAAVEDRA, 2003, p. 62). A postura de Dom Quixote é diferente do personagem épico que, “enquanto a alma parte em busca de aventuras e as vive, ignora o tormento efetivo da busca”. (LUKÁCS, 1982, p. 28). Significa dizer que a personagem das epopeias permanecia estável e idêntica em si mesma, ou seja, sua alma não conhecia o conflito interior. Georg Lukács (1885-1971) foi um filósofo húngaro e autor do livro Teoria do Romance, cujo conteúdo aborda uma visão da sociedade moderna, caracterizado por um processo progressivo de racionalização, ou seja, o ser humano não se orienta segundo os valores comuns, mas segundo os próprios interesses. UNI Para Lukács, o herói não possuía o encurtamento da alma, ou seja, tinha seu destino guiado pelos deuses. Em sua obra A Teoria do Romance (1982), o autor expõe seu pensamento acerca de um tempo em que não havia filosofia, e tudo era explicado pelo viés da mitologia. Era um tempo sem dúvidas e, dessa maneira, sem necessidade de perguntas: “[...] o homem grego só conhece respostas, mas nenhuma pergunta, só conhece soluções (às vezes enigmáticas), mas nenhum enigma, só conhece formas, mas nenhum caos”. (LUKÁCS, 1982, p. 29). A personagem do contexto literário atual vive um tempo cuja totalidade da vida perdeu sua força. Se a epopeia enfatizava o homem fechado em seu universo, o romance, por sua vez, rompe com a postura do sujeito e seu mundo, no qual a totalidade deve ser procurada em uma atmosfera fragmentada. [...] “aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os afligidos, acorrentados e opressos vão pelas estradas por suas culpas, ou por serem desgraçados.” (SAAVEDRA, 2003, p. 62). Lukács argumenta que Dom Quixote é um devaneador e se sente menor que o mundo. Isso é decorrente da inadequação entre a alma e a obra literária, revelada por esse herói problemático, incapaz de realizar seu ideal. Define tal fato de idealismo abstrato. Sendo assim, o protagonista de Cervantes é exemplo do ser desajustado, em conflito com o mundo. Nesse caso, há uma tendência, por parte do indivíduo, de buscar questões conflituosas e lutas exteriores. O mesmo experimenta contradições, sentimentos e anseios, deixando de ser simples e reto, transparente e uniforme. Vejamos: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 62 [...] Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que Dom Quixote os viu, disse para o escudeiro: – A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da Terra. – Quais gigantes? – disse Sancho Pança. – Aqueles que ali vês – respondeu o amo –, de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas. – Olhe bem Vossa Mercê – disse o escudeiro –, que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós. (SAAVEDRA, 2003, p. 75). O autor, da maneira luminosa e sensível, descreve na alma de Dom Quixote, “[...] um inextricável e profundo entrecruzamento de sublime e de loucura, esse bom êxito não se deve apenas ao tato genial do escritor, mas também ao instante histórico-filosófico em que foi escrito o seu livro”. (LUKÁCS, 1982, p. 115). O estilo é carregado de expressões rebuscadas, recursos de que Cervantes se vale Esse modo de agir, indeciso e vacilante, é o que o faz perder a totalidade da vida e, conforme Lukács (1982, p. 59), o herói do romance não revela nenhum aspecto transcendental, pois nos seus limites pessoais estão os próprios limites do mundo. E continua o autor: “[...] o tempo em que viveu Cervantes foi aquele que assistiu à última floração de uma grande mística desesperada, ao esforço fanático de uma religião em via de naufragar para se renovar pelas suas próprias forças”. (1982, p. 118). O texto de Cervantes é caracterizado por uma psicologia inconsistente e imprevisível da personagem Dom Quixote, que procura enfrentamentos que animem sua alma. Nas palavras de Lukács, “[...] uma psicologia rígida e uma conduta que se atomiza em aventuras isoladas condicionam-se mutuamente”. (1982, p. 114). Observe: Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado: – Não fujas, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe. Levantou-se neste comenos um pouco de vento, e começaram as velas a mover- se; vendo isto Dom Quixote, disse: – Ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, heis de mo pagar. E dizendo isto, encomendando-se todo o coração à sua Senhora Dulcineia, pedindo-lhe que em tamanho transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo afora.[...] (SAAVEDRA, 2003, p. 116). TÓPICO 1 | A LITERATURA SEISCENTISTA 63 para evidenciar os pontos fracos do herói, uma personagem que, se analisada sob o viés psicológico, passou pelo encurtamentoda alma, deixando escapar toda aquela aptidão da totalidade épica. Do ponto de vista artístico, não há mais o transcendente, ou seja, o destino de uma nação atrelado à personagem, mas, sim, um homem periférico que passa a guiar o seu próprio destino. Tal aspecto, que distancia o homem da intervenção dos deuses, é característica da Literatura Barroca. Em Dom Quixote também se manifesta o fusionismo tal como ocorre na técnica do [...] claro-escuro na pintura barroca. O uso de verbos prismáticos (ver, ouvir) e o emprego de certas alusões permitem que as figuras humanas e as ações não sejam descritas, mas refletidas através da visão das personagens, como se se tratasse de um espelho onde a realidade se refletisse. (SILVA, 1979, p. 428). Dessa postura conflitante resulta o paradoxo que caracteriza uma personagem dividida, de sentimentos mesclados. Outro elemento presente nessa literatura é o oximoro “[...] que constitui uma figura estilística que traduz precisamente esta fusão de valores paradoxalmente contraditórios (liberdade amarga, pérfida bondade, orgulhosa fraqueza”. (Op.cit., 1979, p. 428). Ainda que o período de elaboração de Dom Quixote traduzisse um status de homem solitário e questionador, era necessário observar os preceitos cristãos ou um princípio divino que reinava “[...] com a mesma onipotência sobre a vida humana, e essa necessidade de totalidade que se ultrapassa a si mesma, esse rebaixamento priva os homens de qualquer relevo”. (LUKÁCS, 1982, p. 116). Assim, pode-se afirmar que o conflito espiritual e a efemeridade do tempo que supera o eterno moviam a literatura barroca. Nesse período, em decorrência dos ideais da Contrarreforma que, através dos seus preceitos, incutia nos seus fiéis o medo de que o Deus cristão desamparasse o mundo. O homem se torna solitário e só pode encontrar na sua alma, que não descobre Pátria em nenhuma parte, o sentido e a substância em que o mundo, separado da sua paradoxal ancoragem no além, atualmente presente, está ora em diante entregue à imanência do seu próprio não senso. (LUKÁCS, 1982, p. 117). Se o racionalismo renascentista possibilitou ao homem certo autoconhecimento que o revestiu de um caráter tático e utilitarista e que poderia dominar a natureza e o ambiente social, o Barroco, por sua vez, fundiu a religião e a filosofia moral. Sendo assim, os autores literários conciliaram as forças polares que advinham dos preceitos contrarreformistas com as motivações do ser humano perdido no labirinto da dúvida e cercado pelo terror católico. O Barroco, a exemplo de outros movimentos, também encontra no Brasil terreno fértil, argumento este que será evidenciado no próximo tópico. 64 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você, viu que: • O Maneirismo foi um movimento de estilo autônomo que tinha por concepção a revisão dos valores clássicos e naturalistas. O objetivo era obter um efeito que proporcionasse emoção, elegância e tensão, além da contradição e o conflito. Sua prática traduzia o tumultuado contexto social e cultural, as angústias e incertezas. • Na literatura, o Maneirismo foi caracterizado por sentimentos de dúvida, fracasso, ambiguidade, duplicidade e ironia. • As artes plásticas também foram representadas pelos exageros das formas do Maneirismo, rompendo com a regularidade e harmonia do Renascimento. Os artistas conceberam uma nova maneira de observar e descrever a natureza, mantendo vivo o ceticismo sobre ela. • A escultura maneirista concebeu a figura serpentinata, a linha sinuosa, a figura retorcida que expressou o movimento. O modelo foi adaptado também à pintura e arquitetura. • O que permite distinguir o Maneirismo do Barroco é que este último é sensorial e naturalista, perpassado por sensações do mundo físico. Já o Maneirismo não considera o sentimento, é autônomo e individual e distancia-se da realidade física e do mundo sensório, enfatizando os problemas filosóficos e morais da condição humana. • O Barroco traduz uma arte realista e popular e caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela propagação dos elementos decorativos. Os fatores que explicam o seu surgimento são culturais e políticos. • A Reforma protestante, liderada por Martinho Lutero, fazia críticas à venda de indulgências e enfatizava a necessidade da leitura da Bíblia a todos os fiéis e não somente a um grupo restrito de representantes da Igreja Católica, que interpretava e divulgava a palavra divina. • Posteriormente ao movimento protestante, a Igreja Católica se reestruturou e lançou a Contrarreforma, juntamente com um conjunto de medidas, dentre elas: deter o avanço das igrejas reformadas, convocação do Concílio de Trento. • A estética barroca visava unificar a dualidade renascentista, formada pela coexistência de valores medievais e católicos e das novidades pagãs trazidas pela restauração do espírito clássico. 65 • No Barroco as categorias são visuais, profundas, subordinadas, abertas ao observador e com uma claridade relativa. Na literatura, as formas são complicadas, artifício que não deve ser confundido com um ornamento supérfluo, mas condição fundamental de beleza. Esse traço é conhecido por fusionismo, o qual unifica num todo múltiplos pormenores para associar e mesclar, numa unidade orgânica, elementos contraditórios. • A personagem barroca é caracterizada por uma psicologia inconsistente e imprevisível, que evidenciava o ponto fraco do herói. 66 1 A Arte Barroca desenvolveu-se no século XVII, num período muito importante da história da civilização ocidental. Foi nesse contexto que surgiu a Arte Barroca. Assim, de acordo com suas principais características, assinale V para a sentença verdadeira e F para a falsa. a) ( ) A estética barroca visava unificar os valores católicos com o paganismo clássico. b) ( ) Diante da Reforma Protestante, a Igreja Católica logo se organizou contra. E assim a Arte Barroca serviu para revigorar seus princípios doutrinários. c) ( ) Com o vigor barroco, as igrejas se tornaram ambientes de encantamento, projetados para impressionar os visitantes com a glória divina. d) ( ) O ideal humanista, que concebia um rigor científico e a composição equilibrada, eram características da Arte Barroca. 2 Escolha a alternativa que completa a frase a seguir: A linguagem _______, o paradoxo, ________ e o registro das impressões sensoriais são recursos linguísticos presentes na poesia ________. a) ( ) subjetiva - o verso livre - romântica. b) ( ) simples - a antítese - parnasiana. c) ( ) detalhada - o subjetivismo - simbolista. d) ( ) rebuscada - a antítese - barroca. 3 Por que o estilo barroco está ligado ao período de expansão da Igreja Católica durante a Contrarreforma? 4 Segundo a concepção da Arte Barroca, julgue os itens a seguir em verdadeiros (V) ou falsos (F): a) ( ) São características da pintura barroca: composição em diagonal e o contraste do claro-escuro. b) ( ) Na literatura ocorre um equilíbrio entre a razão e a emoção. c) ( ) Na escultura há um predomínio de linhas curvas ou serpenteadas, o excesso de dobras nas vestes e a utilização do dourado. d) ( ) A arquitetura barroca não trabalhou com efeitos decorativos. AUTOATIVIDADE 67 TÓPICO 2 O BARROCO NO BRASIL UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O Barroco chega ao Brasil quase cem anos depois do início da colonização. As primeiras vilas produziam cultura num período em que os residentes lutavam por estabelecer a própria economia, daí a dizer que o movimento se desenvolveu diversamente daquele europeu. A literatura, em especial, ainda se inspirava na tradição portuguesa, mas com temas nativistas de apego à terra e afeto às nossas coisas. Tal propósito acabaria por determinar as primeiras manifestações literárias que exprimiriam um gênero nacional, movido pela mesma atmosfera que envolvia o Barroco, ou seja, de insegurança existencial, de efemeridade dos bens mundanos e da busca de Deus. 2 A PRIMEIRA EPOPEIA BRASILEIRA Prosopopeia,de Bento Teixeira, escrita em 1601, é considerada por muitos críticos a primeira epopeia brasileira, cujo poema de 94 estrofes exalta Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania de Pernambuco. Sobre isso, afirma Coutinho: Assim como as capitanias de S. Vicente e do Espírito Santo ouviram na voz solitária de Anchieta os últimos ecos da poesia medieval portuguesa, coube ao Nordeste brasileiro, através dos versos de Bento Teixeira, um cristão-novo vindo do Porto, fincar o marco, praticamente isolado, da poesia oriunda do Renascimento. (2004b, p. 47). O seu valor histórico advém por ter sido a primeira obra literária publicada no Brasil. Escrita em oitava rima, ou seja, as estrofes contêm oito versos (decassílabos), denotando, desse modo, a influência do poema épico de Camões que cantou os feitos lusitanos. Assim é elaborado o texto de Bento Teixeira: “[...] sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio de reminiscências, imitações, arremedos e paródias dos Lusíadas. (VERÍSSIMO, 1998, p. 51). A Prosopopeia obedece a um elaborado sistema rítmico, denominado também de oitava real, cujo esquema pode ser assim demonstrado: ABABABCC. Observe: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 68 Cantem Poetas o Poder Romano, (A) Submetendo Nações ao jugo duro; (B) O Mantuano pinte o Rei Troiano, (A) Descendo à confusão do Reino escuro; (B) Que eu canto um Albuquerque soberano, (A) Da Fé, da cara Pátria firme muro, (B) Cujo valor e ser, que o Céu lhe inspira, (C) Pode estancar a Lácia e Grega lira. (C) (TEIXEIRA apud PEIXOTO, 1923, p. 6, estrofe I) O poema, conforme podemos constatar, faz alusão ao grande poeta Virgílio, natural de Mântua: “o Mantuano pinte o Rei Troiano”. O poeta Virgílio é lembrado pela autoria da Eneida, que inaugura a poesia épica latina. A epopeia virgiliana trata da fundação de Roma e tem como personagem principal Enéas, guerreiro troiano que foi incumbido pelos deuses de fundar a nova pátria. Em sua saga, Enéas percorre um longo caminho até chegar à região do Lácio, fundando a nação latina. De acordo com Coutinho, o poema se excede pelas “[...] referências mitológicas já descoloridas pelo uso, pela incapacidade de comover”. (2004b, p. 48). A presença desses elementos numa época movida pelo pensamento católico foi motivo de crítica, não constituindo qualidade como na era clássica, conforme argumenta Anazildo Vasconcelos Silva: O esforço é inútil, pois a mitologia pagã clássica, esvaziada como linguagem mítica em face da cristianização do mundo, era então incapaz de desrealizar um fato histórico do século XVI. A utilização dos deuses para a criação do cenário mítico, em que se dá a fala de Proteu, constitui um recurso retórico apenas, e não integra o personagem, que, despojado da condição mítica, impossibilitado de agenciar o maravilhoso, não alcança a qualificação épica do herói. (1987, p. 24). Bento Teixeira se vale da figura mitológica de Proteu, deus dos vaticínios, ou seja, aquele que profetiza ou prenuncia algo. Há que se mencionar que é característico das epopeias iniciar a obra com uma invocação. Bento Teixeira, em sua Prosopopeia, inova ao invocar o Deus dos cristãos. Além deste, invoca e consagra, através da fala de Proteu, Jorge de Albuquerque, donatário de Pernambuco: “o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe de Albuquerque excelente” (apud VERÍSSIMO, 1998, p. 52). O protagonista de Prosopopeia, Jorge Albuquerque Coelho, segundo os historiadores, era de rara virtude, dado a gentilezas guerreiras e civis, fato este que motivou a poesia de Bento Teixeira. “Em todos os tempos, poetas e literatos foram inclinadíssimos à bajulação dos poderosos”. (VERÍSSIMO, 1998, p. 54). Segundo Veríssimo, sob o ponto de vista poético e formal, o poema não tem mérito, seus versos TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 69 [...] são prosaicos, como banais [...]. A língua não tem distinção nem relevo, e o estilo já traz todos os defeitos que maculam o pior estilo poético do tempo, [...] o vazio ou o afetado da ideia e a penúria do sentimento poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes, sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único, restaurara esses recursos na poesia do seu tempo. (1998, p. 52). No dizer de Veríssimo, os recursos utilizados por Teixeira não foram coerentes para a época, no entanto, é uma estratégia lançada em nome da palavra poética. O poema narrado ou falado descreve também os aspectos geográficos e naturais do Recife de Pernambuco, denominado, nos versos de Teixeira, de nova Lusitânia: Para a parte do sul onde a pequena Ursa, se vê de guardas rodeada, Onde o Céu luminoso mais serena, Tem sua influição, e temperada. Junto da nova Lusitânia ordena, A natureza, mãe, bem atentada, Um porto tam quieto e tam seguro, Que pera as curvas naus serve de muro. (TEIXEIRA apud PEIXOTO, 1923, p. 51) Bento Teixeira é natural de Pernambuco, nascido por volta de 1561. Prosopopeia foi publicada em Lisboa pelo livreiro Antônio Ribeiro, que recebeu do próprio editor o seguinte julgamento crítico: “algumas rimas de ânimo mais afeiçoado que poético”. (WOLF, 1955, p. 24). UNI Além disso, Bento Teixeira teria sido o primeiro a engrossar os escritos no Brasil. Com a Prosopopeia, primeiro poema épico, o autor marca o “primeiro passo dos brasileiros na vida literária”. (Op. cit., 1998, p. 57). Desse modo, poder-se-ia dizer que o texto é resultado da vontade nacionalista e patriótica, da literatura do período colonial. Caro/a acadêmico/a, veremos a seguir que a literatura barroca brasileira representada especialmente pela poesia de Gregório de Matos, estimado pelo seu engenho poético, e também pelo Padre Antônio Vieira, magnífico orador. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 70 3 GREGÓRIO DE MATOS Conforme já enfatizamos, o Barroco foi caracterizado pela crise: um homem dividido em dois pensamentos, conflito gerado pelo temor do pecado e a preocupação com a salvação da alma, e a literatura era testemunho desse estado. Os acontecimentos oriundos da Europa relacionados à Reforma e Contrarreforma, e a fundação da Companhia de Jesus, também se manifestaram no Brasil, cuja arte os representou tanto na forma quanto no conteúdo. O homem do Barroco é um saudoso da religiosidade medieval e, ao mesmo tempo, um seduzido pelas solicitações terrenas e valores mundanos, amor, dinheiro, luxo, posição que a renascença e o humanismo puseram em relevo. Desse dualismo nasceu a arte barroca. (COUTINHO, 2004b, p. 39). A temática do barroco esteve ligada à vida e à morte, à matéria e ao espírito, ao amor platônico e ao amor carnal, ao pecado e ao perdão. Além disso, há ainda a presença de elementos como o castigo, o misticismo e o arrependimento. O homem é pressionado à renúncia dos prazeres, à mortificação da carne e à observância plena do amor a Deus. É nesse contexto que surge a poesia de Gregório de Matos, que nasceu em 1633, em Salvador, na Bahia. Estudou Direito em Coimbra, ocupando vários cargos na magistratura portuguesa. Já de volta a Salvador, compôs poemas satíricos que justificaram o apelido de Boca do Inferno. Em 1694, casa-se com Maria de Povos, inspiradora de alguns de seus poemas líricos. Mais tarde foi deportado para Angola; retornou ao Brasil um ano depois, proibido, porém, de pisar em terras baianas e de apresentar suas sátiras. (NICOLA, 2003). O escritor Gregório de Matos morreu em 1696, no Recife. Apesar de ser conhecido como poeta satírico, Gregório também foi autor de poesia religiosa e lírica. Sua obra permaneceu inédita até o século XX, quando a Academia Brasileira de Letras publicou seis volumes, assim distribuídos: I. Poesia sacra; II. Poesia lírica; III. Poesia graciosa; IV e V. Poesia satírica; VI. Últimas. UNI O escritor soube empregar em suas poesias o estilo cultista, que consistia em lidar com as palavras estilisticamente. Expõe o nível linguístico do textobarroco com construções sintáticas e vocabulário elevado. Explora também o conceptismo, representado pelo jogo de ideias, com o objetivo de argumentar e de convencer o leitor. Por vezes, o faz empregando o deboche, como podemos constatar nos versos que seguem: TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 71 Aos vícios Eu sou aquele, que os passados anos Cantei na minha lira maldizente Torpezas do Brasil, vícios e enganos. (MATOS, 1979, p. 73) Veja que o poeta se define como aquele que denuncia os vícios do seu tempo, a desonestidade e a corrupção. É conhecido também por marcar nossa literatura com temas que versam sobre a transitoriedade e a perda: Vejamos: A brevidade dos gostos da vida Nasce o Sol; e não dura mais que um dia: Depois da Luz, se segue a noite escura: Em tristes sombras morre a Formosura; em contínuas tristezas a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se formosa a Luz é, por que não dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto, da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza; na Formosura, não se dê constância: E na alegria, sinta-se a tristeza. Comece o mundo, enfim, pela ignorância; pois tem qualquer dos bens, por natureza, a firmeza somente na inconstância. (MATOS, 1979, p. 64) No soneto, observa-se o efêmero das coisas, como vemos em: “Nasce o Sol; e não dura mais que um dia”, bem como a antítese “Depois da Luz, se segue a noite escura”: para explicar o dualismo e a luta de forças opostas que o arrastam. Matos confronta elementos como noite/dia, tristeza/alegria, firmeza/inconstância, dentre outros, cujo intuito era a descrição do oposto. Vê-se aqui, caro/a acadêmico/a, a antítese, uma figura de linguagem muito presente na literatura barroca. Além disso, expõe um visualismo e os exageros dos recursos expressivos. Observe como o autor define a vaidade: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 72 Dos desenganos da vida humana, metaforicamente É a vaidade, Fábio, nesta vida, Rosa, que da manhã lisonjeada, Púrpuras mil, com ambição dourada, Airosa rompe, arrasta presumida É planta, que de abril favorecida Por mares de soberba desatada, Florida galeota empavesada, Sulca ufana, navega destemida. É nau enfim, que em breve ligeireza Com presunção de Fênix generosa, Galhardias apresta, alentos preza: Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa De que importa, se aguarda sem defesa Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (MATOS, 1979, p. 81) Como você pode perceber, o soneto em questão foi elaborado inteiramente em torno de conceitos sobre a vaidade: A mesma “navega na soberba”, “suplica elogios”. É a temática desenvolvida que traduz o contraditório da condição humana e a vaidade da vida terrena. Tais questões dão conta das preocupações do homem seiscentista. Segundo os teóricos literários, é o exemplo da melhor poesia barroca pela forma, ou seja, o decassílabo rimado, herança do Renascimento, servindo de pano de fundo para a reflexão moral. A escolha de palavras como: púrpura, airosa, galeota, empavesada, dentre outras, resulta no rebuscamento característico dos textos barrocos. A linguagem rebuscada é também obtida pelo uso de várias figuras, como a metáfora que aparece no início do poema para explicar o que é a vaidade, que, no dizer de Matos, ela é rosa, é planta, é nau. O jogo de palavras e os efeitos sensoriais são empregados pelo autor como recursos que sugerem a superação dos limites da realidade, ao lado do raciocínio sutil. Há também no poema a hipérbole, que se caracteriza pelo exagero dos termos empregados, como em “púrpuras mil”, e da metonímia, que consiste na utilização da matéria (ferro a planta) pelo objeto (machado). O hipérbato é outra figura que se constitui pela inversão na ordem dos termos da oração: “É a vaidade, Fábio, nesta vida/ Rosa...”. Na ordem direta, o verso seria assim exposto: “Fábio, nesta vida, a vaidade é/ Rosa. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 73 Outro recurso comumente utilizado na literatura barroca são os elementos mitológicos. Neste poema Gregório se refere à fênix, símbolo da imortalidade, único pássaro que se fazia morrer numa fogueira e renascia de suas cinzas. “Os egípcios fizeram da fênix uma divindade: figuraram-na do tamanho de uma águia com um magnífico topete, as penas do pescoço douradas, a cauda branca mesclada de penas vermelhas e com os olhos flamejantes” (SPINA, 1971, p. 35), representando para além da imortalidade a vaidade. Há que se analisar que o poema gregoriano, sob um olhar observador, revela uma mensagem no sentido de fazer uma crítica à vaidade. Matos também foi o primeiro a expressar um sentimento nacionalista, como é possível observar nos versos provenientes da linguagem coloquial e as expressões populares: Que os brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal. (MATOS, 1979, p.117) Tal expressão embaraçava os seus contemporâneos, e, em vista disso, parte de sua obra foi censurada pela sátira com que o poeta compunha, contendo temas sobre o governo da Bahia e os seus problemas sociais. Nesse sentido, o conceito de sátira presente nos poemas de Matos faz alusão à indignação e ao anseio moralizante dos costumes. No dizer de Massaud Moisés (2004, p. 412), a sátira “consiste na crítica das instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. [...] envolve uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é a sua marca distintiva, a insatisfação, perante o estabelecimento, a sua mola básica”. “Passou a ser uma atitude de crítica social assumida por escritores, uma maneira de denunciar comportamentos sob todos os aspectos. Foi ponto de partida de um nativismo crítico, brasileiro, mas antiufanista”. (MAGALHÃES, 2004, p. 16). Da sátira ao lamento. Se aquela lhe serviu de expressão, no poema Triste Bahia Gregório abandona a zombaria por um tom de lamento, no qual o autor identifica-se com a cidade, ao comparar a situação de decadência em que ambos vivem, bem como aspectos da vida social baiana. Triste Bahia Senhora Dona Bahia, nobre e opulenta cidade, Madrasta dos naturais, e dos estrangeiros madre: Dizei-me por vida vossa Em que fundais o ditame UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 74 De exaltar os que aqui vêm, E abater os que aqui nascem? Se o fazeis pelo interesse de que os estranhos vos gabem, isso os paisanos fariam com conhecidas vantagens. E suposto que os louvores em boca própria não valem, se tem força esta sentença, mor força terá a verdade. (MATOS apud MENDES, 1996, p. 54-55) Segundo os críticos literários brasileiros, o poeta foi um escritor a incorporar o retrato da cidade da Bahia colonial e de seus habitantes. Ao final de cada estrofe há uma conclusão que abrange questões ligadas à verdade e à honra, bem como a degradação dos valores em decorrência da ambição e usura dos governantes, responsáveis pela fome da população na Bahia. “A importância literária de sua copiosa obra poética é singularmente levantada por lances interessantíssimos à história dos nossos costumes e da sociedade do seu tempo”. (VERÍSSIMO, 1998, p. 113). No poema transparecem ainda perguntas e respostas, recursos que imprimem um ensinamento, característica essa da poesia barroca. Além disso, o texto é permeado de um conteúdo que contemplava os problemas sociais. Também se expressou na poesia sacra: A Jesus Cristo Nosso Senhor Uma característica presente neste soneto faz referência ao tema, cujo eu lírico contrito se confessa pecador. O autor argumenta que sua falta não representa a vontade de se distanciar do Senhor, mas confiança em Cristo na salvação. Podemos observar a presença do conflito espiritual e da antítese, além da linguagem cultista que aparece no verso – da vossa alta clemência me despido –, metáfora que significa o desejo do perdão. Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado.Se basta a vós irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na Sacra História, Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. (MATOS, 1979, p.108) TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 75 Desse modo, o Barroco, enquanto movimento estético de âmbito universal, também floresceu e se expandiu no território brasileiro pelas letras gregorianas que tão bem o expressou pela poesia lírica, sátira e sacra. Esta última também foi explorada pelo Padre Antônio Vieira, autor que abordaremos a seguir. 4 PADRE ANTÔNIO VIEIRA E OS SERMÕES Na história do Brasil Colônia o Padre Antônio Vieira teve papel importante para a afirmação da nossa literatura, especialmente porque seus escritos versavam sobre a defesa dos escravos e dos índios. Os seus Sermões se constituem num conjunto de obras de oratória, um acervo rico e voltado às coisas sacras e à vida social portuguesa e brasileira daquela época. No dizer de Coutinho (2004b, p. 85), “[...] o pregador adquiriu tais proporções como homem de pensamento e de ação, no panorama religioso, político e social do século XVII, que seria impossível considerá-lo por um só aspecto, separadamente de qualquer outro”. Trata-se de um grande cronista da história do Brasil, uma vez que o religioso jamais ignorou as questões sociais e políticas do seu século. “Nenhum dos sermonistas brasileiros coloniais exerceu no seu meio e tempo ação ou influência que se lhes refletisse nos sermões, dando-lhes a vida e emoção que ainda descobrimos nos de Vieira”. (VERÍSSIMO, 1998, p. 82). Nos Sermões, o orador deixa transparecer uma ânsia da eternidade e ele, especialmente no Brasil, “[...] tinha em alta conta a missão de falar à ‘imensa universidade das almas’, representadas pelas tribos do Grão-Pará e do Amazonas, nas embaraçosas línguas que aprendera em contato com elas”. (COUTINHO, 2004b, p. 84). Lembre-se, caro/a acadêmico/a, de que, conforme vimos no Caderno de Literatura Portuguesa, Padre Antônio Vieira pertence à tradição literária portuguesa mais do que à brasileira; no entanto, em nossa Nação seus escritos configuram-se na particularidade da época barroca em decorrência de suas ideias avançadas que versavam sobre a defesa dos explorados. No dizer de Alfredo Bosi: [...] existe um Vieira brasileiro, um Vieira português e um Vieira europeu, e essa riqueza de dimensões deve-se não apenas ao caráter supranacional da Companhia de Jesus que ele tão bem encarnou, como à sua estatura humana em que não me parece exagero reconhecer traços de gênio. (1992, p. 48). Padre Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa. Foi orador, missionário, diplomata e escritor. A extraordinária obra e religiosidade sempre estiveram ligadas a fatos econômicos e políticos do Brasil Colônia. Sua formação se deu no Colégio dos Jesuítas. Vieira era contrário às ideias da burguesia cristã (os pequenos comerciantes), fato este que o levou à condenação pela Inquisição. (COUTINHO, 2004b, p. 80). UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 76 FIGURA 7 – PADRE VIEIRA, LITOGRAFIA DO ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, LISBOA FONTE: Disponível em: <www.meusestudos.com>. Acesso em: 24 jan. 2011. Conforme já enfatizado, o Barroco foi um movimento artístico cuja base era o drama humano. Nos textos, a ordem natural das palavras era alterada, e as frases interrogativas refletiam os questionamentos, incertezas e dúvidas. Havia ainda o pensamento de que o tempo é fugaz, consome e tudo consumia, levando à morte. Vieira também reafirmava a transitoriedade da vida, enfatizando os ideais de humildade e desapego dos bens materiais. No fulcro da personalidade do Padre Vieira estava o desejo da ação. A religiosidade, a sólida cultura humanística e a perícia verbal serviam, nesse militante incansável, a projetos grandiosos, quase sempre quiméricos, mas todos nascidos da utopia contrarreformista de uma Igreja Triunfante na Terra, sonho medieval que um Império português e missionário tornaria afinal realidade. (BOSI, 1992, p. 48). O orador escreveu com propriedade verbal, utilizando expressões que caracterizam o movimento Barroco com paradoxos e recursos persuasivos que combatiam as injustiças sociais. Alguns dos seus escritos revelam a preocupação e expressam o pensamento em defesa dos índios, para os quais dedicou o Sermão Dominga da Quaresma e o Sermão de Santo Antônio aos Peixes, cujas composições são modelos estilísticos para a literatura. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 77 Vale lembrar que você estudou no Caderno de Literatura Portuguesa que um de seus principais escritos é o Sermão da Sexagésima, proferido na Capela Real de Lisboa. Neste, Vieira tinha por objetivo despertar uma consciência de ação e de reflexão, através de analogias entre o contexto de sua época e a Bíblia. Contendo aspectos metalinguísticos e dividido em dez partes, o Sermão da Sexagésima faz alusão à arte de pregar. “Partindo de uma parábola do Evangelho de São Mateus que compara o pregar ao semear, Vieira, como lhe era comum, submete a metáfora a intermináveis variações, sem sair do mundo botânico”. (COUTINHO, 2004b, p. 88). O religioso argumenta que seus contemporâneos são ladrilhadores, porque fragmentam as sagradas palavras, são maus pregadores, por servirem aos homens e não a Deus, conforme podemos observar a seguir. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está branco, de outra há de estar negro: se de uma parte está dia, de outra há de estar noite? Se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?[...] Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? – Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a Palavra de Deus. (VIEIRA, 1960, p. 107). Há no referido sermão uma crítica aos pregadores que, na comparação de Vieira, seriam como ladrilhadores, assim qualificados porque davam importância às coisas terrenas, mais que às espirituais. Para Viera principiam [...] por demonstrar que ‘as palavras sem obras são tiro sem bala; atroam, mas não ferem’ o que era um jeito de reduzir a nada as prédicas que se dirigiam a tais ouvintes, mais inclinados à beleza exterior do discurso que às doutrinas de pura edificação moral. (COUTINHO, 2004b, p. 89). É possível perceber a intenção de convencer o ouvinte pelo entendimento de seus argumentos. O autor dos Sermões teve por base as concepções de Santo Agostinho, a doutrina da escolástica, que enfatizava “[...] a memória, o entendimento e a vontade, convertidas em figuras simbólicas a dialogarem entre si sobre os mistérios da religião e da morte”. (COUTINHO, 2004b, p. 97). Os argumentos estabeleciam relações entre conceitos, representando-os exteriormente. No Sermão em questão, o mesmo faz alusão ao evangelho bíblico, metáfora que revela uma verdade moral. No dizer de Coutinho, de modo geral, os escritos do religioso apresentam quatro significações: “o histórico, o alegórico, o analógico e o tropológico”. (2004b, p. 99). UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 78 O contexto histórico da época é revelado pelo tema presente no texto o qual denuncia fatos. O orador reprimia o abuso dos agentes políticos e religiosos que diziam inverdades para se beneficiar. O Sermão constitui um recurso representativo capaz de expressar os anseios de Vieira, que, no caso, o faz pela comparação análoga, ou seja, o mesmo “[...] estabeleceanalogia entre o semear e o pregar” (COUTINHO, 2004b, p.100) e adverte sobre a confusão gerada pela incompreensão da palavra de Deus. Já o sentido tropológico está no fato de os textos ensinarem verdades morais, aproximando, desse modo, as concepções bíblicas à postura dos seus contemporâneos, aos quais dirigia seus sermões. A alegoria, por sua vez, é um translado que exprime um conceito escondido em palavras que representa outro; um procedimento estilístico que consente significar outra realidade. (CICCIA, 2002, p. 15). A riqueza da alegoria como forma de expressão transfere ao leitor uma imagem imediata de algo, antes que se possa alcançar a ideia definida sobre o significado daquilo que foi citado. No dizer do teórico literário Antoine Compagnon, “[...] a alegoria, por intermédio da qual toda a Idade Média pensou a questão da intenção, repousa na realidade, na superposição de dois pares teoricamente distintos, um jurídico e outro estilístico”. (2003, p. 56). Quanto à significação do Sermão da Sexagésima, Alcir Pécora também argumenta a favor dos sentidos que podem ser depreendidos do texto. O autor afirma que Vieira pretendia, com sua retórica, alcançar “[...] o sentido literal, o alegórico e o anagógico, distribuindo-os em feixes de significações adequadas à ocasião, segundo as três virtudes teologais: alegoria e Fé, tropologia e Caridade, anagoge e Esperança.” (1994, p. 17). A anagogia é uma expressão que designa êxtase, elevação da alma para a contemplação das coisas divinas e é inerente aos textos bíblicos porque ensinam a maneira de conseguir a salvação da alma. Tais fatores de significado são recursos dos quais Vieira lançou mão, além da coesão, da coerência textual, os elementos do discurso – argumentativos e estilísticos – o quais valorizam os seus escritos. A linguagem que traduzia austeridade e beleza comovia os ouvintes e legitimava o pensamento de Vieira. No Sermão da Sexagésima, o religioso propôs a pregação ideal e, didaticamente, fazia alusão às dificuldades e ensinava a superá-las. Em nome dos desprotegidos, Vieira aliou o estilo ao pensamento, sendo desse modo um semeador dos ideais cristãos, revestidos de entusiasmo, de persuasão e de beleza. Vale destacar que o orador se reportava aos fiéis de modo geral, mas também ao clero, ensinando retórica e oratória. Era também um homem de ação e o púlpito constituía o espaço de pregação e de educação em defesa dos índios. Outro Sermão, denominado Santo Antônio aos peixes, proferido no dia do Santo, criticava os colonos que aprisionavam índios. No texto em questão, Vieira, não obtendo resultados com os homens, resolve compará-los aos peixes. Assim Vieira expõe sua analogia: TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 79 " [...] quero hoje à imitação de Santo Antonio voltar-me de terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto, que bem me ouvirão" (VEIRA, 1960, p. 135). Essa perspectiva denota uma qualidade da literatura barroca, caracterizada pelo paradoxo, ou seja, os peixes, criaturas boas de Deus, e o homem, cheio de defeitos e vícios. Os peixes, segundo Vieira, também são criação de Deus, no entanto são bons ouvintes, obedientes e livres. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lho nego. [...] A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. [...]. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto, e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outro”. (VIEIRA, 1960, p.136). Ao louvar os peixes, Vieira mostra a relação entre o homem e o divino. Nesse sentido, os pecadores exploram a terra, tirando-lhe tudo o que encontram. O religioso enfatiza a necessidade de tirar dos olhos a vaidade terrena e olhar para o céu; assim procedendo, o homem não esqueceria o Inferno. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água; e, em vendo, o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. (VIEIRA, p. 1960, 135.) Outro aspecto presente no Sermão faz alusão à repreensão de Vieira aos peixes, que está no fato de se comerem uns aos outros. Os homens exploram- se entre si, os grandes aniquilam os pequenos em nome da vaidade. Os peixes seriam melhores pelos instintos, por serem irracionais e inconscientes. O homem, por sua vez, é racional, possui livre-arbítrio, é consciente dos seus atos, daí a ser considerado morto de espírito. [...] Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia coisa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer. Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes. (VIEIRA, 1960, p. 135). Os peixes seriam a alegoria do homem de então, pois transferem a ideia da sociedade organizada em camadas hierárquicas. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 80 " [...] Olhai, peixes, lá no mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar" (VIEIRA, 1960, p. 136). Claro e profundo, ao mesmo tempo lógico e convincente, o orador explorou de modo extraordinário a linguagem: a sintaxe, o vocabulário cheio de conotações. O mesmo se dirige aos pregadores, alegando que ele próprio não estava a cumprir a sua função: Vós, diz Cristo Senhor, falando com os Pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela, que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira doutrina, que lhes dão, a não querem receber, ou é porque o sal não salga, e os Pregadores dizem uma cousa, e fazem outra, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem: ou é porque o sal não salga, e os Pregadores se pregam a si, e não a Cristo; ou é porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. (VIEIRA, 1960, p. 136). Como podemos observar, o religioso, além de argumentar contra os maus pregadores, os quais não conseguiam efetivar sua mensagem, também critica os maus ouvintes, fiéis que não punham em prática os ensinamentos bíblicos. Nesse sentido, Padre Vieira pretendia uma educação espiritual, sem, entretanto, deixar de perpassar em seus escritos um caráter político e ideológico. Os motivos das pregações, cuja habilidade da fala era capaz de adaptar-se aos vários públicos, era, no dizer de Hansen, [...] uma pregação culta e popular ou, em termos do século XVII, ‘discreta’ e ‘vulgar’, que implicavam questões específicas de temática e de linguagem relacionadas também a um diretório pastoral específico, como é o caso dos sermões de missão. (apud LOPES, 2000, p. 30). O religioso, autor essencialmente barroco, congrega em seus sermões o jogo de palavras, os elementos visuais, os contrastes e o exagero. Trata-se de um autor que se utilizou do conceptismo para persuadir e da retórica para legitimar seu discurso. Transmitiu, assim, um saber sobre a metodologia da pregação, pois pretendia uma prática educativa imbuída de humanização. Desse modo, a fala do pregador expressavauma verdade divina, além da evangelização que também chegou ao Brasil através do próprio autor e dos que nele buscaram inspiração. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 81 5 BOTELHO DE OLIVEIRA E NUNO MARQUES PEREIRA: POESIA EM TERRAS BAIANAS Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) é autor da obra poética Música do Parnaso. Foi o primeiro poeta lírico nascido no Brasil. Bacharelou-se em Coimbra. Além do ofício de advogado, exerceu a vereança e foi capitão-mor e fidalgo do Rei. (COUTINHO, 2004b, p. 126). A obra poética citada é dividida em quatro coros: o primeiro em língua portuguesa, o segundo em língua espanhola, o terceiro em italiano e o quarto em latim. Os historiadores “[...] viram nessa ostentação linguística um traço de mera fatuidade pessoal. Entretanto, as publicações plurilíngues não eram raras entre os séculos XVI e XVII”. (COUTINHO, 2004b, p. 128). O livro contém a primeira coleção brasileira de poemas, sonetos, canções madrigais e duas comédias em castelhano. Até o século XV a canção madrigal apresentava forma fixa: dois ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos, em versos decassílabos rimados. “Adquiriu, posteriormente, estrutura livre quanto ao número de versos, ao metro empregado e ao esquema de rimas. Vingou, porém, a tendência para se resumir numa única estrofe de cerca de dez versos, em que se alteram o decassílabo e o hexassílabo. Associado intimamente à musica, [...] o madrigal aparentava-se à pastorela e ao idílio”. (MOISÉS, 2004, p. 272). UNI Especialmente no poema A ilha da maré, exalta as belezas do Recôncavo Baiano, terra que o inspirou: Esta ilha de Maré, ou de alegria Que é termo da Bahia Tem quase tudo quanto o Brasil todo, Que de todo o Brasil é breve apodo; E se algum tempo Citereia a achara, Por esta sua Chipre desprezara, Porém tem com Maria verdadeira Outra Vênus melhor por padroeira. (OLIVEIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 147) De acordo com Veríssimo (1998, p. 94), ao exaltar um sentimento brasileiro, revela o “[...] primeiro sintoma de emoção estética produzida pela terra em um dos seus naturais, e literariamente exprimida”. Há na composição de Botelho a linguagem cultista em duas feições, uma satírica e outra galante, esta última celebra a dama inspiradora, Anarda: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 82 Bem pode dar agora Anarda ímpia A meu rude discurso cultas flores, A meu plectro feliz doce harmonia. (OLIVEIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 133) O poema reflete os elementos do Renascimento que, ao consagrar Anarda, revela o ideal de amor, característica essa herdada de Petrarca. Anarda constitui, portanto, o centro de um universo transfigurado imprevisivelmente porque passara a obedecer às sugestões de um léxico em moda: o da poética de Góngora. [...] A língua de Góngora era em suma uma língua de exceção naturalmente sedutora ou irresistível para um ou outro espírito aristocrático. E Manuel Botelho de Oliveira estava nesse caso. (COUTINHO, 2004b, p. 134). Além da questão da idealização da mulher, a lírica de Botelho traz a redondilha camoniana, estruturada em versos do tipo ABC, conforme podemos observar: Quatro AA: Tenho recopilado O que o Brasil contém para invejado E para preferir a toda a terra Em si perfeitos quatro AA encerra. Tem o primeiro A, nos arvoredos Sempre verdes aos olhos, sempre ledos; Tem o segundo A, nos ares puros Na tempérie agradáveis e seguros; Tem o terceiro A, nas águas frias, Que refrescam o peito, e são sadias; O quarto A, no açúcar deleitoso. Que é do Mundo o regalo mais mimoso. São pois os quatro AA por singulares Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares. (OLIVEIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 146) No dizer de Coutinho, nos versos em questão Botelho de Oliveira submete- se às formulas e imagens poéticas dos modelos europeus. “A metáfora da concha aplicada à ilha não era de modo algum original, nem tampouco a imagem resumindo os encantos da terra nativa”. (Op.cit., p. 146). Na Música do Parnaso, o autor enaltece a terra brasileira descrevendo com detalhes geográficos a região baiana. Botelho de Oliveira apresenta uma visão da terra natal, envolto em uma atmosfera lírica, através de símiles, imagens, metáforas e também descreve a natureza tal como se apresenta. Enaltece o solo inclusive com as comparações que faz das frutas brasileiras com as da Europa. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 83 “Símile: latim simile(m), coisa semelhante. Figura de pensamento, até certo ponto sinônimo de comparação, o símile dela se distingue na medida em que se caracteriza pelo confronto de dois seres ou coisas de natureza diferente, a fim de ressaltar um deles”. (MOISÉS, 2004, p. 477). IMPORTANT E A revelação verdadeiramente notável da Música do Parnaso é a que se prepara nessa silva, onde o nativismo está caracterizado sobretudo pelo paladar. Por aí, e não pela descrição da ilha e do encanto de suas paisagens e pomares, é que a composição adquire um significado apreciável. Esteticamente constitui uma espécie de ruptura produzida pela interferência do fator biográfico ou pessoal sobre o convencional, dado o tono evasivo que Botelho de Oliveira imprimiu a quase tudo o que escreveu. (COUTINHO, 2004b, p. 145). A poesia de Botelho de Oliveira é considerada, pelos teóricos, rebento da literatura de expansão, exaltando a nova terra e constitui exemplo bem representativo do espírito de brasilidade, cuja obra rendeu-lhe menção na história da Literatura do Brasil. No que concerne a esse aspecto, Nuno Marques Pereira foi outro representante da literatura do grupo baiano. Existem controvérsias acerca da sua nacionalidade – portuguesa ou brasileira –, o que se sabe é que foi por volta do ano de 1652. Segundo Coutinho (2004, p. 149), ele “[...] teria sido atraído pelas minas de ouro juntamente com os emboabas, em cujo chefe, o mestre Manuel Nunes Viana, teve um protetor”. O fato que expressa incerteza da sua nacionalidade vem mencionado pelo próprio autor em sua obra Compêndio Narrativo do Peregrino da América, escrita no século XVIII: Não me começarei a inculcar pelo solar do meu nascimento, ou alabanças da minha Pátria: por aquela ser muito humilde, e esta ter pouco nome: suposto que, para nascer, qualquer lugar basta”. (PEREIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 150). O texto de Marques Pereira trata ainda de vários discursos espirituais e morais. É uma narrativa alegórica, dividida em cinquenta capítulos, que descreve a conversação entre “[...] Peregrino e um ancião sucedendo-se episódios e encontros com os mais diversos indivíduos e entidades personificadas”. (COUTINHO, 2004b, p. 153). Faz alusão às andanças do Peregrino nos estados da Bahia e Minas Gerais, terra de cobiça em decorrência do ouro e também terreno fértil para a fé religiosa. Enfatiza também as questões sobre a exploração de ouro e a vida da colônia, constituindo desse modo, o tema, a peregrinação: UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 84 Neste tempo chegou à minha Pátria a notícia dos grandes haveres, que se havia descoberto neste Estado do Brasil nas minas de ouro, por cuja razão me deliberei embarcar em uma frota, que fazia viagem para o Rio de Janeiro, sem mais cabedais, que a ferramenta do meu ofício. (PEREIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 151). Assim, a narrativa de Pereira retrata a intenção moral, explorada no movimento barroco, com visões da natureza, em que o Peregrino descreve o seu caminhar cotidiano, a paisagem e as conversas com as pessoas que encontrava: E logo me pus em marcha: e caminhando parte daquele dia, fui encontrando várias pessoas, de quem tomava os roteiros vocais, para seguir com acerto a jornada que levava. A este tempo, porque o sol já me negava toda a frescura para poder andar, me vali de uma copa da árvore, que em um alto estava para me poder defender de seus vibrantes raios: e deste lugar estava descobrindo o eminente dos montes, o baixo dos vales e muita parte do espaçoso dos campos. (PEREIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 155). O título da obra em questãofaz menção ao caráter espiritual e moralista. Essa questão vem evidenciada no texto que segue: "Sabei que é este mundo estrada de Peregrinos, não lugar nem habitação de moradores, porque a verdadeira Pátria é o Céu. Como assim advertiu S. Gregório Papa: que por isso enquanto andam os homens neste mundo lhes chamam caminhantes" (PEREIRA apud COUTINHO, 2004b,). No dizer de Veríssimo, o intuito era de “[...] denunciar ou de emendar os costumes do Estado, que se antolhavam péssimos, escreveu o livro citado, único lavor literário que se lhe sabe, e cujo título completo lhe define estímulo e propósito” (1998, p. 123). É possível observar no texto de Pereira o efeito cultista, cuja intenção era introduzir o ensinamento espiritual: Uso das presentes humanidades, e moralidades, e histórias tão repetidas para melhor te persuadir deleitando-te o gosto, e entretendo- te a vontade; quis seguir alguns autores da melhor nota nesta minha escrita, que também usaram deste modo de escrever em diálogo e interlocutores. (PEREIRA apud COUTINHO, 2004b, p. 152). Historiadores, a exemplo de Varnhagen, viam em seus escritos aspectos dos textos de Padre Antônio Vieira. No entanto, para Coutinho (2004, p. 153), “[...] a comparação é exagerada, o moralista não passava de um imitador do estilo predical em que se entremeavam também algumas fórmulas da retórica vieiriana”. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 85 O período colonial em que floresceu o Barroco no Brasil esteve representado especialmente pelos escritores Gregório de Matos, Padre Antônio Vieira, Botelho de Oliveira e Nuno Marques Pereira, os quais souberam retratar o sentimento de apego à terra e contribuíram sobremaneira para a cultura das letras do Brasil. “Trabalharam primeiro pela emancipação intelectual e, por esta, sem aliás disso se aperceberem, pela nossa emancipação nacional”. (VERÍSSIMO, 1998, p. 122). Nesse sentido, o Barroco estava atrelado a uma ideologia traduzida nas manifestações artísticas. A produção literária revela o pensamento que acolhe o contrário, a controvérsia, cujos textos não pretendiam solucionar conflitos, mas eram voltados ao homem real. A utilização das figuras de linguagem e a estrutura formal possibilitam a representação dessa realidade. No dizer de Affonso Ávila, na criação literária barroca “[...] temos uma forma que se abre sem determinar limites, apelando a um êxtase dos sentidos”. (1980, p. 74). Conflito, contradição, elementos estéticos, padrões morais de significação alegórica, linguagem esta que representava o imaterial. Tal literatura, carregada de metáforas, antíteses, hipérboles e rebuscamento, é reveladora do tormento entre homem e Deus. Para além dos textos escritos a arte barroca se difunde em diversas áreas e assume uma tendência sensualista, caracterizada pela busca do detalhe, constituindo o próximo assunto e ser apresentado. 5.1 A PINTURA E A ESCULTURA BARROCA NO BRASIL O Barroco exprime um universo de ostentação o qual sintetiza as glórias do céu e as pompas da terra. Traduz o gosto da decoração rica e espetacular, da arte de exuberância e de intenso poder expressivo que não admitia parede nua ou coluna sem enfeites. Os estudos da teoria wolffliniana acerca do barroco se estendem também às artes plásticas, em que as categorias se opõem, ou seja, a forma fechada e a forma aberta, a oposição da claridade absoluta para a claridade relativa. As distorções do modelo barroco revelam o esforço de romper com as formas regulares do período clássico, introduzindo uma prática inerente ao contexto social e cultural. Nessa perspectiva, os barroquistas logravam uma arte que espelhasse suas angústias e incertezas, substituindo o idealismo impessoal que estava acima do homem, por suas concepções pessoais. A tradição e a inovação eram contradições que deveriam ser definidas pela razão, ainda que estivessem permeadas por questões psicológicas. Os pintores e escultores expressaram em sua arte a sensualidade, a melancolia, o lúdico e a ambiguidade. Suas concepções refletiam a preocupação com a vida cotidiana, aliada ao desejo de experimentar e inovar. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 86 No Brasil, o Barroco resultou numa nova experiência, em decorrência da realidade geográfica cuja natureza favoreceu as artes em geral. Com o intuito de atrair a fé e demonstrar a emoção do povo, esteve associado à religião católica. Nessa perspectiva, a estética barroca foi de grande importância na história da arte brasileira do período de colonização. Encontramos desse período igrejas com trabalhos em relevo feitos em madeira, entalhes nas figuras sacras e anjos revestidos por finas camadas de ouro. Daí a dizer que essa estética principiava a firmação da fé, porque provocava o deslumbramento e o fervor dos fiéis nos detalhes e ornamentos. Além do ouro que ornamentava as igrejas, havia pinturas em suas cúpulas com cenas bíblicas, a exemplo da Igreja de São Francisco de Assis, marco do estilo barroco pela abundância de luz e cor, pintura esta de autoria de Manuel da Costa de Ataíde, um artista de grande expressão do movimento barroco brasileiro. A pintura do Mestre Ataíde retratava o céu, aumentando a sensação de profundidade no ambiente. Outra característica faz menção à subjetividade, pelo conflito e pela emoção provocada a quem observa. FIGURA 8 – IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS – OURO PRETO, CUJO INTERIOR REVESTIDO DE TALHA DOURADA LHE RENDEU O TÍTULO DE IGREJA MAIS RICA DO BRASIL FONTE: Oliveira, (2006, p. 27) TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 87 O artista utilizava cores, texturas, luz e sombra, traços diagonais e curvas, dentro de um espaço delineado. O claro e o escuro em contraste intensificavam os sentimentos e expressavam as emoções do ser humano, enaltecendo a religião em todos os detalhes, a exemplo da pintura da Igreja de Bom Jesus, em Congonhas. FIGURA 9 – CAPELA DA IGREJA BOM JESUS FONTE: Oliveira, (2006, p. 16) Ataíde utilizava tinta a óleo, com cores vivas e alegres, caracterizando, desse modo, gestos expressivos e fortes combinações. As suas pinturas nos tetos das igrejas incorporam-se às esculturas e arquitetura de Aleijadinho. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 88 FIGURA 10 – PINTURA DO TETO DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS FONTE: Oliveira, (2006, p. 36) A escultura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, desenvolve-se em Minas gerais. O artista adaptou sua arte ao ambiente dos trópicos e sujeito à metrópole, com recursos e valores regionais, constituindo, desse modo, um dos primeiros momentos de criação genuinamente brasileira, devido à força plástica e expressiva, conforme podemos observar na escultura da Última Ceia e da Paixão de Cristo, cuja expressão revela certo movimento, traduzida nos gestos e olhares. Antônio Francisco Lisboa tinha o apelido Aleijadinho devido a uma doença degenerativa que provocou a perda dos membros. O artista nasceu na antiga Vila Rica (atual Ouro Preto). Era filho de um arquiteto português e de uma escrava. Aleijadinho, arquiteto e escultor do Período Colonial, é considerado o artista mais importante do estilo barroco no Brasil. Apesar de, formalmente, só ter recebido a educação primária, cresceu entre obras de arte. Deixou mostras em várias cidades de Minas Gerais, nas quais desenhou e esculpiu para dezenas de igrejas. Em Mariana, assinou o chafariz da Samaritana e a Congonhas do Campo (1800-1805) legou suas obras-primas: as estátuas em pedra-sabão dos 12 profetas. Quando começou a esculpir as famosas imagens, contava com mais de 60 anos e já estava deformado pela doença que lhe inutilizara as mãos e os pés, devendo, por isso, trabalhar com o martelo e o cinzel amarrados aos punhos pelos ajudantes. Além dos profetas, esculpiu as 66 figuras em cedro (1796) que compõem a Via-Sacra. Recebeu reconhecimento devido ao seu talento em criar obras concebidas dentro de um barroco rigorosamente brasileiro. IMPORTANT E TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 89FIGURA 11 – ESCULTURA DA PAIXÃO DE CRISTO (ALEIJADINHO) FONTE: Oliveira, (2006, p. 92) FIGURA 12 – ESCULTURA DA ÚLTIMA CEIA (ALEIJADINHO) FONTE: Oliveira, (2006, p. 92) Aleijadinho é o idealizador do projeto da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, com estátuas de anjos esculpidos em pedra-sabão. No Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, estão expostas nas escadarias as esculturas dos 12 profetas, cada um numa posição diferente, dando a impressão de movimento. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 90 FIGURA 13 – OS 12 PROFETAS, INSTALADOS EM CONGONHAS DO CAMPO. PELA ORDEM, DA ESQUERDA PARA A DIREITA, COMEÇANDO NO ALTO: ISAÍAS, JEREMIAS, BARUC, EZEQUIEL, DANIEL, OSEIAS, JOEL, ABDIAS, AMÓS, JONAS, HABACUC E NAUN FONTE: Oliveira, (2006, p. 54) Assim, pode-se dizer que o estilo barroco estendeu-se em todas as artes, embora os estudos acerca do seu conceito não sejam de todo uma unanimidade. Tal divergência está em [...] saber se o barroco deve ser considerado como uma constante da cultura e, sobretudo, dos estilos artísticos, constituindo, por conseguinte, um fenômeno essencialmente meta-histórico –, ou se deve ser considerado, pelo contrário, como um fenômeno historicamente situado e condicionado. (SILVA, 1979, p. 375). No entanto, a concepção de que o Barroco deve ser entendido pelo viés histórico ganha consistência pelos princípios fundamentais que o embasaram, quais sejam: estéticos, espirituais, religiosos e sociológicos. A decadência desse pensamento barroquista começa no início do século XVIII em decorrência de vários fatores e, dentre eles, pode-se citar o surgimento das “luzes do esclarecimento”, o Iluminismo, o qual favoreceu a compreensão do mundo. Tais ideias representaram o declínio do movimento, também pela ascensão da burguesia que combatia o poder monárquico e religioso. Elas influenciaram a pintura, a música, a literatura e a arquitetura pelo domínio da razão, pela imitação dos clássicos e aproximação com a natureza. Nesse sentido, o exagero da expressão barroca começa a ser substituído pela simplicidade da Arcádia, que propunha a poesia bucólica e pastoril. O aspecto formal é marcado pelo soneto, em versos decassílabos e rima optativa. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 91 Em 1768, Cláudio Manuel da Costa publicou o livro Obras Poéticas, que marcou a transição do Barroco para o Arcadismo. Além deste, outros autores árcades se destacaram, dentre os quais Tomás Antônio Gonzaga; Basílio da Gama; Manuel Inácio da Silva Alvarenga; José de Santa Rita Durão. O estilo, as características e os autores desse movimento literário serão abordados no próximo tópico. LEITURA COMPLEMENTAR VIEIRA OU A CRUZ DA DESIGUALDADE Alfredo Bosi Gregório de Matos e Antônio Vieira foram contemporâneos. Há testemunhos de que se conheceram e estimaram no período baiano de ambos, que coincidiu com os últimos anos de vida de um e de outro: o poeta morreu em 1696, o pregador no ano seguinte. Comparado com o piccolo mondo de Gregório, sátiro e cronista das mazelas da Bahia, o universo de Vieira se mostra mais largo. Jesuíta, conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptor de príncipes, diplomata em cortes europeias, defensor de cristãos-novos e, com igual zelo, missionário no Maranhão e no Pará. Vieira traz em si uma estatura e um horizonte internacional. O interesse que ainda hoje desperta a sua obra extensa e vária (207 sermões, textos exegéticos, profecias, cartas, relatórios políticos...) só tem a ganhar se for norteado por um empenho interpretativo que consiga extrair dela a riqueza das suas contradições, que são as do sistema colonial como um todo, e que só a experiência brasileira, de per se, não explica. [...] A defesa dos índios contra os colonos do Maranhão é o assunto do Sermão da Epifania, pregado na Capela Real, em 1662, perante a rainha viúva Dona Luísa, que regeu os negócios da monarquia durante a minoridade de D. Afonso VI. Convém lembrar as circunstâncias que precederam a fala de Vieira. Ele e outros missionários estavam retornando a Lisboa expulsos pelos colonos após uma série de atritos causados pela questão do cativeiro. O pregador, valendo-se da presença da regente e do menino, futuro rei, pede que os jesuítas voltem ao Maranhão e possam implantar missões autônomas em relação aos senhores de escravos. O sermão é exemplar como xadrez de conflitos sociais, dados os interesses em jogo, obrigando o discurso ora a avançar até posições extremas, ora a compor uma linguagem de compromisso. No fundo, o pregador acha-se dividido entre uma lógica maior, de raiz universalista, tendencialmente igualitária, e uma retórica menor, que trabalha ad hoc, particularista e interesseira. O efeito é um misto de ardor e diplomacia, veemência e sinuosidade, que define a grandeza e os limites do nosso jesuíta. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 92 O contraste se faz tanto mais agudo quanto mais absoluta se propõe a doutrina inicial da igualdade de todos os povos, trazida, a certa altura, ao primeiro plano do sermão. Para argumentar, Vieira alega as razões da natureza, que têm por si a força da evidência, e as razões das Escrituras, que se abonam com a autoridade da revelação. As verdades naturais, primeiro: As nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais vizinhas, outras mais remotas do sol. E pode haver maior inconsideração do entendimento, nem maior erro do juízo entre os homens, que cuidar eu que hei-de-ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu escravo, porque nascemos mais perto? Depois, os depoimentos da tradição cristã: reza esta que um dos Reis Magos, de nome Belchior, era negro, e os outros dois, brancos; todos, porém, foram salvos por Deus da fúria de Herodes, “[...] que os homens de qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé.” A filiação comum e universal dos homens em relação a um Deus criador e único é o aval da irmandade de todos: “E entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de cor, porque todos são brancos”. Esta última sentença, que naturalmente causa espécie, é esclarecida adiante pela doutrina segundo a qual o batismo limpou espiritualmente a todos, sem distinção. Posto o discurso nessa chave, o que dele se seguiria, caso fosse mantido o seu grau de coerência interna? Sobreviria a condenação pura e simples do que se praticava então no Brasil, ou seja, tomaria forma lógica o repúdio a qualquer tipo de cativeiro. Para aí caminha o ímpeto dos argumentos éticos. Para aí levam os símiles com a dupla rota da estrela de Belém, a qual primeiro conduziu os magos a Cristo (figura da conversão dos gentios) e, em seguida, os desviou do caminho onde Herodes os faria matar – figura da libertação dos mesmos índios das garras dos colonos. Analogamente, essa viria a ser a dupla missão dos jesuítas: levar a boa nova às almas dos tupinambás e defender os seus corpos quando ameaçados de cair às mãos dos brancos. Do ponto de vista da ortodoxia, Vieira sabia-se respaldado por vários documentos de papas favoráveis à liberdade dos índios, a começar pela arquicitada bula Sublimis Deus, emitida por Paulo III, em 1537, quando ia acesa na Espanha a polêmica teológica em torno da verdadeira natureza dos homens americanos: Pelas presentes letras, decretamos e declaramos com nossa autoridade apostólica que os referidos índios e todos os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos, embora se encontrem fora da fé de Cristo, são dotados de liberdade, e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas cousas, e ainda mais, que podem usar, possuir e gozar livremente desta liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão; e que é írrito, nulo e de nenhum valor tudo quanto se fizer em qualquer tempo de outra forma. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 93 No entanto, esse ideal,nítido a absoluto enquanto jus naturale e enquanto verdade de fé, já fora abandonado pelo compromisso político dos padres (confessado pelo próprio Vieira) de “descer” com os portugueses ao sertão, domesticar e reduzir os aborígines à obediência; enfim trazê-los a Belém do Pará e a São Luís para trabalharem a metade do ano nas roças dos colonos. Na prática, logo que a produção aumentava, exigiam-se mais braços e mais longo tempo de serviço. Como os jesuítas resistissem a essas requisições abusivas e como reservassem a outra metade do ano para catequizar os mesmos índios nas aldeias, acabaram expulsos do Pará e do Maranhão, motivo principal das queixas de Vieira à regente Dona Luísa. A homilia não esconde o ponto doloroso da questão inteira: sob pretexto de guerra justa, a Igreja permitira o cativeiro do índio. Assim, os mesmos pastores a quem fora entregue o cuidado das ovelhas tangeram-nas para a goela dos lobos: Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos à fraqueza de nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa. [...] Cristo não consentiu que os Magos perdessem a pátria, porque reversi sunt in regionen suam. (Mt. 2, 12); e nós só consentimos que percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo não consentiu que os magos perdessem a soberania, porque reis vieram e reis tornaram; e nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania natural com que nasceram e vivem isentos de toda sujeição; mas somos os que, sujeitando-nos ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos, também, ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente, Cristo não consentiu que os Magos perdessem a liberdade porque os livrou do poder e da tirania de Herodes, e nós não só lhes defendemos a liberdade, mas pactuamos com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meios cativos, obrigando-os a servir alternadamente a metade do ano. A contradição, de que Vieira se mostra bem consciente, e que o pungia como um remorso, espelha a condição ambígua da Igreja colonial. Como poderia uma instituição, que vivia dentro do Estado monárquico, e à custa dos excedentes deste, desenvolver um projeto social coeso à revelia das forças que dominavam este mesmo sistema? A tensão acaba se resolvendo de um de dois modos, ambos infelizes para os jesuítas. Ou o compromisso, ou a resistência. Na primeira opção, tal como se deu no Maranhão, todo o processo revelou-se instável, pois se estabeleceu entre um modelo de subsistência de ritmo lento, a aldeia da missão, e um modelo de produção agromercantil, o engenho, a fazenda de algodão ou de fumo. Era fatal que este último exigisse cada vez mais a força de trabalho do primeiro; nesse momento, o pacto entre o colono e o jesuíta mostra a sua precariedade, e o enfrentamento se dá no interior de um esquema assimétrico de poderes. UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO 94 Na vila de São Paulo de Piratininga, a resistência levou ao fim que se sabe: o choque e a expulsão já se haviam dado em 1640, depois de escaramuças repetidas contra os bandeirantes. As missões do Sul terminariam tragicamente nos meados do século XVIII. [...] Em síntese: Há tipos de índios no Maranhão: os escravos que já estão na cidade; os que vivem nas aldeias de El-Rei como livres; e os que moram nos sertões. 1) Os escravos da cidade. Estes servem diretamente aos colonos. Como foram herdados ou havidos de má-fé, devem ter o direito de escolher entre sair do seu cativeiro ou continuar nos trabalhos que ora fazem. A proposta, no caso, é oferecer-lhes a liberdade de ir para “as aldeias de El-Rei”, que são missões jesuíticas apoiadas moralmente pela Coroa. 2) Os escravos das aldeias de El-Rei. O pregador os tem como livres: nada há a propor. 3) Os que vivem nos sertões. Destes (na verdade, a grande mina das bandeiras e dos colonos) só poderiam ser tirados aqueles que já estivessem cativos de tribos inimigas e na iminência de serem mortos. Os colonos os libertariam trazendo- os à cidade como escravos. É o que se chamava “operação de resgate”, pela qual os portugueses levavam consigo os condenados, os “índios de corda”. O caráter frequentemente arbitrário do “resgate” aparece no modo escarninho com que trata Vieira: “comprar ou resgatar (como dizem) dando o piedoso nome de resgate a uma venda não forçada ou violenta, que talvez se faz com a pistola nos peitos.” O orador ainda concede que sejam retirados do sertão os índios “vendidos como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados de quatro religiões, Carmelitas, Franciscanos, Mercedários e da Companhia de Jesus”. Conforme o julgamento dessas autoridades, iriam para a cidade os cativos em guerra considerada justa; e para as aldeias, os demais. Quanto a estes, a proposta é que vivam nas aldeias seis meses por ano, alternando- os com outros tantos reservados para tratarem de suas lavouras e famílias. Daí se infere que rigorosamente escravos dos colonos ficariam os índios de corda e os de “guerra justa”, além daqueles que, consultados, preferissem continuar sujeitos aos portugueses do Maranhão. No caso do resgate, o orador vai até o pormenor do preço: duas varas de algodão, que valem dois tostões. A proposta deveria ser assinada por todos e submetida à apreciação do rei. TÓPICO 2 | O BARROCO NO BRASIL 95 Vieira, ao que parece, jogava em um bem certo (a libertação dos índios da cidade e a segurança dos índios das aldeias missionárias) contra um mal incerto: a compra de índios por motivo de “guerra justa”, que deveria sempre ser avaliada pelo critério final das autoridades coloniais e das ordens religiosas sobre as quais contava influir. A concessão prometida a interesses futuros era a isca pela qual esperava persuadir os colonos a soltar as “ataduras da injustiça”. Deslocava-se o eixo da discussão para o conceito de “guerra justa”; o que era uma forma de contornar o problema fundamental da licitude, ou não, do cativeiro, questão que as máximas do Direito Natural e os Evangelhos já tinham solvido pela negativa radical. No fecho da homilia, depois de tentada a mediação com o interlocutor, volta à antinomia drástica do bem e do mal: a consciência, de um lado; os interesses, do outro. E a indignação sobe de ponto: “Saiba o mundo que ainda há consciência, e que não é o interesse tão absoluto e tão universal senhor de tudo, como se cuida.” E com “morras!” ao demônio e à ambição, e vivas a Deus e à consciência, termina este sermão em que a lógica e a retórica esgrimem para perfazer uma difícil operação triangular: o menos forte entre os fortes (o jesuíta) se propõe convencer o mais forte (o colono) a poupar o mais fraco dos três, o índio. FONTE: BOSI, Alfredo. Vieira ou a cruz da desigualdade. In: Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 119-148. 96 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você, viu que: • O Barroco foi caracterizado pela crise de um homem dividido em dois pensamentos: o conflito gerado pelo temor do pecado e a preocupação com a salvação da alma. • Bento Teixeira escreveu, em 1601, Prosopopeia – considerada a primeira epopeia brasileira, que exalta Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania de Pernambuco. • Gregório de Matos empregou o estilo cultista, que consistia em lidar com as palavras estilisticamente, e explorou também o conceptismo, representado pelo jogo de ideias, com o objetivo de argumentar e de convencer o leitor. • O autor conhecido como Boca do Inferno denunciou os vícios do seu tempo, adesonestidade e a corrupção; é conhecido também por marcar a nossa literatura com temas que versam sobre a transitoriedade da vida e a perda. • A antítese, a metáfora, a hipérbole, o hipérbato, além dos elementos mitológicos, são elementos presentes nos textos de Matos. • Além da poesia sacra e amorosa, a sátira também marcou a expressão do escritor Gregório de Matos, o qual criticava as instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade e dos indivíduos. • Padre Antônio Vieira teve papel importante na nossa literatura porque seus Sermões se constituem num conjunto de obras de oratória. • O religioso Vieira reafirmou a transitoriedade da vida, enfatizando os ideais de humildade e desapego dos bens materiais. Especialmente no Brasil, o autor tinha a missão de falar e defender as tribos indígenas, conforme o fez nos Sermões Dominga da Quaresma e de Santo Antônio aos Peixes. • Vieira explorou de modo extraordinário a linguagem: a sintaxe, o vocabulário cheio de conotações. • Padre Vieira utilizou o conceptismo para persuadir e a retórica para legitimar seu discurso. Transmitiu um saber sobre a metodologia da pregação, pois pretendia uma prática educativa imbuída de humanização. • Manuel Botelho de Oliveira é autor de Música do Parnaso – na qual utilizou a linguagem cultista em duas feições, uma satírica e outra galante, nesta última idealizou a mulher pela redondilha camoniana. 97 • A Música do Parnaso enaltece a terra brasileira, descrevendo com detalhes geográficos a região baiana, uma visão da terra natal, envolto em uma atmosfera lírica, através de símiles, imagens, metáforas e também descreve a natureza tal como se apresenta. • Nuno Marques Pereira foi outro representante da literatura do grupo baiano, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, uma narrativa alegórica, que descreve a conversação entre Peregrino e um ancião. • Os barroquistas concebiam uma arte que espelhasse suas angústias e incertezas, substituindo o idealismo impessoal que estava acima do homem. A tradição e a inovação eram contradições que deveriam ser definidas pela razão, ainda que estivessem permeadas por questões psicológicas. • Os pintores e escultores expressaram em sua arte a sensualidade, a melancolia, o lúdico e a ambiguidade. • No Brasil, o Barroco resultou numa nova experiência, em decorrência da realidade geográfica cuja natureza favoreceu as artes em geral, com o intuito de atrair a fé e demonstrar a emoção do povo. • A escultura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, desenvolve-se em Minas gerais. Ele adaptou sua arte ao ambiente dos trópicos e sujeito à metrópole, com recursos e valores regionais, constituindo, desse modo, um dos primeiros momentos de criação genuinamente brasileira. • A decadência desse pensamento Barroco começa no início do século XVIII em decorrência de vários fatores; dentre eles, pode-se citar o surgimento das “luzes do esclarecimento”, o Iluminismo, o qual favoreceu a compreensão do mundo. 98 1 Observe os versos do soneto intitulado A instabilidade das cousas do mundo, de Gregório de Matos: “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,/Depois da Luz se segue a noite escura,/ Em tristes sombras morre a formosura,/ Em contínuas tristezas a alegrias”. De acordo com os versos, a ideia central do texto é: a) ( ) a duração prolongada do sofrimento; b) ( ) a falsidade das aparências; c) ( ) os contrastes da vida; d) ( ) a duração efêmera de todas as realidades do mundo. 2 Leia o fragmento que segue: “O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras”. O trecho do Sermão da Sexagésima, do Padre Antônio Vieira, enfatiza: a) ( ) Uma crítica aos pregadores que seriam como ladrilhadores, assim qualificados porque, em vez de espalhar a palavra de Deus como quem semeia, o faziam de maneira fragmentada. b) ( ) Uma repreensão aos peixes pelo fato de se comerem uns aos outros. c) ( ) Os pecadores que exploram a terra, tirando-lhe tudo o que encontram. d) ( ) Os maus ouvintes, fiéis que não punham em prática os ensinamentos bíblicos. 3 Quanto à pintura do Mestre Ataíde, representante do Barroco brasileiro, é correto afirmar: a) ( ) Havia uma tendência para a utilização da cor preta. b) ( ) As cores de tons azul e rosa foram banidas da pintura do mestre. c) ( ) O artista barroco esteve ligado ao misterioso e ao sobrenatural. d) ( ) Nas cúpulas das igrejas, as técnicas de pintura por ele utilizadas aumentam a sensação de profundidade do ambiente. AUTOATIVIDADE 99 TÓPICO 3 O ARCADISMO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Durante o período do Barroco, as construções das igrejas e dos palácios eram suntuosas e causavam um sentimento de respeito e admiração por aquilo que representavam – o poder de Deus e o poder do Estado. Os ornamentos das construções do Arcadismo, por sua vez, eram feitos com materiais simples e cores discretas. Desse modo, as construções e jardins do século XVIII, embora graciosos, revelam um novo sentido de vida, insatisfeito com a realeza, com os exageros do Barroco, cujas formas eram rígidas, artificiais e complicadas. Tais mudanças estéticas terão por base os ideais do Iluminismo, os quais combinavam os interesses entre a burguesia e parte da nobreza, que se cercava de sábios para gerir os interesses do povo. Também em decorrência dos ideais iluministas ocorrem novas manifestações artísticas, sob a denominação de Arcadismo ou Neoclassicismo e que refletem a ideologia da classe burguesa. Mas a maior revolução causada pelo movimento foi em decorrência da sua concepção de que as coisas podem ser compreendidas pelo poder da razão, que passa a ser sinônimo de verdade. 2 O CONTEXTO HISTÓRICO-FILOSÓFICO DO SÉCULO XVIII Antes de iniciarmos um estudo acerca dos movimentos literários do período de um Brasil transitório colonial para o autônomo, é necessário fazer uma incursão sobre as ideias iluministas, pois elas são postas em cena quando letrados se aventuram na arte escrita, tanto do movimento dito árcade quanto do romântico. O Iluminismo foi um movimento cultural que se difundiu a partir do século XVIII e que, metaforicamente, significa luz ao intelecto. O mesmo se apoiou nas ideias do Empirismo inglês de Hobbes (1588-1679), de Locke (1632- 1704) e de Hume (1711- 1776). Na França, o movimento esteve ancorado em pensadores como Voltaire (1694- 1778), Montesquieu (1689-1755), Diderot (1713- 1784), Alembert (1717-1783) e Rousseau (1712-1778). 100 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO FIGURA 14 – VOLTAIRE E ROUSSEAU, DOIS PILARES DO SÉCULO DAS LUZES, EM UMA GRAVURA DO SÉCULO XVIII FONTE: Disponível em: <http://www.dialogocomosfilosofos.com. br/2010/01/iluminismo/>. Acesso em: 24 jan. 2011. Esses estudiosos, além de outros, foram os colaboradores da grande Enciclopédia, cujo teor consistia em vários artigos e ensaios que versavam sobre as ciências, as artes e os afazeres do homem, uma obra preocupada em difundir este novo pensamento baseado na razão. Nessa perspectiva dá-se início à idade das luzes contrapondo-a à obscuridade medieval; sendo assim, foi sob o Iluminismo que se iniciou a Idade Moderna. FIGURA 15 – A ENCICLOPÉDIA FONTE: Disponível em: <http://www.dialogocomosfilosofos.com. br/2010/01/iluminismo/>. Acesso em: 24 jan. 2011. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 101 No contexto econômico, no ano de 1700 o comércio torna-se sempre mais intenso e as riquezas extraídas das terras colonizadas rendiam uma vida ativa, tanto economicamente quanto culturalmente, para os colonizadores. Desenvolvem- se também as conquistas científicas e tecnológicas e estas rendiam ao homem a plenitude e a crença em sua capacidade que advinha não da nobreza, mas dele mesmo. O homem dessa época colocava a experiência a serviço da ciência, galgava rapidamente o saber. Assim, também, o comerciante, o trabalhador têxtil, o pequenoempreendedor e o artesão passam a fazer parte de uma nova classe burguesa, economicamente ativa e produtiva. Tal classe começa a perceber que era explorada, uma vez que contribuía com taxas altíssimas e não possuía nenhum direito. As ideias do Iluminismo que pregavam a justiça, a liberdade e a solidariedade vinham a calhar entre estes novos burgueses que pretendiam firmar-se na sociedade, reclamar os seus direitos e aspirar ao poder. Os ideais iluministas se difundiram, sobretudo, devido à diminuição do analfabetismo, pois “[...] na Europa desse período, 40 por cento dos cidadãos sabiam ler” (SAMBUGAR et al., 1997, p. 9), e começam também a circular em grande escala os primeiros jornais impressos. Caro/a acadêmico/a, as ideias dos iluministas foram fomentadas pelas sociedades secretas, dentre as quais a maçonaria, que já existia como confraria na Idade Média com objetivos humanitários. Estes europeus instruídos entendiam que tais ideias poderiam pôr fim ao regime absolutista imposto sob a rígida classificação social e os privilégios concedidos aos nobres. Desse modo, precursores como Teresa da Áustria, Frederico II da Prússia, Catarina da Rússia e Leopoldo da Toscana iniciam reformas para atender ao povo e suas reivindicações, por temerem protestos violentos. No entanto, há que se enfatizar que tais ideias se alargam e firmam-se apenas após as revoluções americana, francesa e industrial. Sumariamente podemos afirmar que a Revolução Americana reclamava independência. A mesma teve início com uma série de boicotes que culminaram com a guerra de 1773 a 1783, ano da paz em Versalhes, quando a Inglaterra reconhece a independência de suas colônias inglesas da América. A guerra se resolve com a formação dos Estados Unidos, o primeiro exemplo de nação democrática. No que concerne à Revolução Francesa, ela pôs fim às classes privilegiadas dos nobres, do alto clero, com a manifestação contra a Bastilha, que durou de 1789 a 1795. Essa mudança colocou em cena Napoleão Bonaparte, um jovem general que tinha a confiança dos intelectuais e burgueses, pelos seus anseios de liberdade. O ambicioso Bonaparte buscava poder e conquista pessoal, o que, em 1804, culminou com a sua aclamação como imperador da França. Ocorre então, na Europa, uma sucessiva série de conquistas napoleônicas. Seu declínio inicia por volta de 1815 e, quando derrotado pelos exércitos europeus, é confinado em uma ilha. Por sua vez, a Revolução Industrial é reveladora de uma mudança na vida social, qual seja, o nascimento do capitalismo e dos conflitos entre empregadores e operários. A burguesia passa a ser a protagonista e vê a divulgação de suas ideias, através do crescimento dos meios de comunicação impressos, gazetas e periódicos, que corroboram na difusão e formação da opinião pública. 102 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Antes das revoluções em questão, especialmente os anos de 1700 foram marcados por um tempo de estratificação social: o proletariado trabalhando e recebendo baixíssimos salários, com uma vida de misérias; os nobres e ricos aproveitando a vida com passatempos ociosos, roupas e bens materiais suntuosos. A classe intermediária, por sua vez, oscilava entre estes dois extremos, ou seja, os burgueses, preocupados com a falta de direitos e a ambição de proporcionar uma vida de progresso para todos. Sendo assim, conforme já enfatizado, as novas ideias iluministas discutem tais comportamentos, propondo o retorno a uma vida simples e natural, uma transformação cultural e, além disso, recomendavam que os métodos científicos aplicados à ciência devessem também ser utilizados para indagar as ciências do espírito. Para os pensadores iluministas, tudo o que não era provado cientificamente, através de métodos, era posto em dúvida. Também a religião perdia a força, pois era baseada em dogmas e não em certezas racionais. O passado construído sobre uma errônea concepção de vida era contestado, desde as formas autoritárias de governo. Nesse sentido exaltava-se a igualdade, por direito natural, sem os privilégios de berço. Todavia, o povo percebeu que nada conseguiria sem a ajuda dos intelectuais, pois somente uma elite iluminada poderia modificar a situação social existente: o proletariado era considerado a futura destinatária de melhoramentos sociais, mas incapaz de assumir responsabilidades políticas. (SAMBUGAR et al., 1997, p. 15). No campo literário os reflexos dessas mudanças também floresceram. Aparecem conteúdos novos, não mais inspirados em mitos e na imaginação, mas no real. Uma nova produção estética, um novo objeto, não mais o belo, mas o sublime. Entre os vários gêneros literários, foi o romance que obteve muito sucesso, em especial em 1800, pois, com a ascensão da vida econômica ligada à industrialização, alargou-se a classe de burgueses, que possuíam dinheiro para adquirir livros. Ao invés da poesia, preferiam um gênero mais fácil e mais cativante, com conteúdos que refletissem a realidade, de fácil compreensão por parte do vasto público. Além disso, os romances de cunho patriótico, político e social exprimiam as ideias do povo, que se sentia protagonista e se entusiasmava ao encontrar seus pensamentos expressos por escritores. Em Portugal o Iluminismo marca a crise que se deu entre a burguesia e a aristocracia e se estende ao Brasil entre a sociedade local e os colonizadores. No século XVIII, o Sudeste passa a ser o eixo cultural, político e econômico do Brasil. A mineração toma o espaço do plantio da cana-de-açúcar e de seu fabrico. Em Minas Gerais as pedras e o ouro representam a economia da época, geram riquezas e contribuem para o surgimento das primeiras cidades e vilas, também promovem o desenvolvimento dos serviços e ofícios. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 103 Sob o governo de Portugal, que controla a vida social, a exploração do ouro e a sonegação dos impostos, acontece a organização administrativa, com a nomeação de vários funcionários. Dentre estes, em 1750, o Marquês de Pombal é designado o primeiro-ministro do Brasil, o qual inicia uma série de procedimentos com o intuito de alavancar Portugal da decadência econômica em que estava imerso desde o século XVI. Ele amplia as cobranças financeiras do tesouro luso e os impostos são brutalmente aumentados na Colônia. Tal situação enfrenta resistências, por parte dos jesuítas, os quais são expulsos das terras brasileiras no ano de 1758. Também integrantes da nobreza, opositores ao projeto do Marquês, são aprisionados. Existiu ainda neste período uma tentativa de mudança do modelo econômico, sendo que o ouro foi o grande responsável pelas reformas. O metal era, na época, suficiente para abastecer os cofres do Reino e sustentava o luxo, a ostentação da Corte, bem como financiava a Revolução Industrial portuguesa, dominada comercialmente pelos ingleses. Além disso, aqui no Brasil havia os comerciantes, os mineiros e tropeiros que se apoderavam da outra parte. No entanto, a partir do século XVIII, a exploração das minas dá sinal de esgotamento e as dívidas dos proprietários de minas com a Coroa Portuguesa aumentam, provocando desconforto entre ambos. A ascensão de D. Maria ao trono contribui para o aumento da pressão administrativa sobre a Colônia. Além dos altos impostos, a rainha proíbe o desenvolvimento da atividade industrial. Na política, membros das elites, motivados pelo sucesso da Independência Americana e imbuídos de ideias iluministas, questionam os tributos cobrados pelo governo de Portugal e ambicionam o fim da dependência portuguesa. Mas o movimento culminou com a traição e o enforcamento de Tiradentes, o mentor da Inconfidência Mineira, atrasando, desse modo, o sonho de liberdade. O episódio foi de grande importância ao passado colonial brasileiro e colaborou para o surgimento de poetas árcades, engajados no projeto de um Brasil Republicano. Em Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto, formou-se, dentre os moradores, um grupo de líderesque ficaria conhecido na história política e literária brasileira. Sob a égide do Arcadismo e associado ao pensamento iluminista, o grupo tinha anseios liberais necessários para a reforma na sociedade de então. Esse novo estímulo, ainda que discreto, estreita as relações sociais, tendo na literatura e na música elementos de aproximação entre as pessoas. Na época eram promovidos saraus literários, nos quais se recitavam poemas e pequenas peças musicais, eventos que atraíam opiniões e impressões, constituindo um público interessado em arte, sobretudo na literatura. 104 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO A sociedade urbana estimula e aplaude os seus artistas, constituída de poetas, músicos, escultores, arquitetos e pintores, dentre outros. Surgem, desse modo, as associações de intelectuais, formadas de poetas que convergiram paras as Academias e Arcádias, cujos objetivos e princípios literários eram comuns. Tal articulação, que girava em torno de valores estéticos e ideológicos, contribui para que se tivesse no país uma noção de escola artística. Assim sendo, o Arcadismo consolidaria o “sistema literário”, conforme as concepções de Antonio Candido (1959), ou seja, um conjunto de fatores que favoreceu a arte literária, garantindo aos escritores regularidade e capacidade de permanecerem gerando a tradição cultural. Tais fatores que contribuem para o sistema literário são três, no dizer de Candido: os autores, como já enfatizado; as obras que são produzidas dentro de um mesmo código linguístico e dotadas de características comuns; e o público leitor que constitui um componente relevante deste sistema. Para Candido, não há literatura sem o leitor, sendo ainda o responsável pela continuidade entre o passado, o presente e o seu futuro. Por meio deste há uma transmissão de ideias, de rejeições, de experiências e de valores estéticos. Assim, com o surgimento do Arcadismo no Brasil, embora tímido, é estabelecido um sistema literário, que representa, desse modo, o primeiro passo no processo de criação da literatura brasileira de forma contínua. Os autores compunham obras que eram lidas, contribuindo para que houvesse as condições de desenvolvimento da literatura autônoma. Contudo, o Brasil dependia política e economicamente de Portugal, fato este que gerava também a dependência cultural. Nesse sentido, os árcades brasileiros seguiam os modelos europeus, não existindo, portanto, até então, uma arte diferenciada (COUTINHO, 1959), embora pudéssemos elencar as características desses artistas, que serão enfatizados. 3 CONVENÇÕES ÁRCADES E SEUS REPRESENTANTES Um dos pontos característicos do Arcadismo concebia a arte como cópia da natureza, o equilíbrio entre o natural e o ideal, a união entre o útil e o agradável e a busca do verossímil. Este último aspecto faz alusão não ao real concreto ou aquilo que aconteceu, mas ao que poderia acontecer. Sobre esse conceito, Silva (1979, p. 447) explica que “[...] o princípio da verossimilhança exclui da literatura tudo o que seja insólito, anormal, estritamente local ou puro capricho da imaginação”. Além dessa questão, o Arcadismo buscava o idílico, cujo conceito se refere a uma composição poética breve, de natureza descritiva, com temas pastoris ou campestres, quase sempre amoroso, de ritmo suave e abundante e riqueza imagética. Os versos eram dotados da musicalidade, uma forma de integrar a poesia com a música. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 105 O idílio, de origem helênica, abrangia quaisquer formas poéticas de pequena extensão, em grande parte dialogada. É uma das manifestações formais dos poemas de situações campestres, que não se restringem apenas à poesia, incluindo também a prosa e a comédia. (MOISÉS, 2004). UNI No movimento havia a integralização entre sociedade, literatura e natureza, através de temas bucólicos e de imagens: “[...] o verdadeiro é natural, o natural é o racional”, afirma Candido (1959, p. 56), sobre a concepção que traduz o ideal dos árcades. A leitura dos poemas líricos sugeria uma vida campesina, perpassada de uma subjetividade própria do pastor ficcional; desse contexto surge o bucolismo. Nas palavras de Candido (1959, p. 54), a poesia pastoril [...] como tema talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural, transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos de frustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vida interior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia. A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana. Nesse sentido, ao imitar os modelos dos antigos, o Arcadismo incorpora uma conotação de um lugar ideal, um contato com a natureza, sereno e equilibrado, assumindo também a sensualidade e a entrega ao amor com naturalidade. Outras convenções e temas foram adotados pelos árcades, dentre eles: • O fugir do urbano, da cidade e viver na mediocridade. Havia nesse pensamento a concepção que propunha o distanciamento das vaidades burguesas para um lugar tranquilo e quase anônimo, nas palavras do poeta Horácio: fugere urbem ut vivere aurea mediocritate, enfatiza Coutinho (2004b). Para a Arcádia, a natureza era um refúgio no qual o poeta buscava fundir-se na paisagem campestre que observava sem excepcionalidade, somente a singeleza com uma vida equilibrada. • A concepção do Arcadismo incluía ainda uma caracterização e especificidade, um espaço-poético que constituía o locus amoenus – lugar ameno. A natureza constituía, desse modo, um cenário agradável, artificial, porque era imitação da Literatura clássica. O poeta árcade não descrevia uma paisagem tal como se apresentava, mas a idealizava. 106 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO “O locus amoenus representa uma bela e ensombrada nesga da natureza, cujo mínimo de apresentação consiste numa árvore (ou várias), numa campina e numa fonte ou regato”. (CURTIUS, 1957, p. 202). Trata-se de um lugar com elementos naturais como as águas que correm transparentes e escuras sob as compactas copas das árvores que não deixam penetrar a luz. UNI O movimento pregava também o carpe diem, ou seja, viver intensamente o dia, sem pensar no amanhã, cuja conotação fazia menção à duração da vida, que é passageira. O tema também foi proposto por Horácio e aparece com frequência na lírica. Os autores desse movimento se inspiravam no culto à racionalidade filosófica e científica. Eles concebiam uma poesia permeada pelo “[...] racionalismo de base que não exclui, antes estimula, a fantasia”. (MOISÉS, 1999, p. 39). Essa questão simboliza o ideal da libertação do homem que se encontrava nas trevas e passa a ter as ideias iluminadas através do uso da Razão. Outra convenção se refere à expressão inutilia truncat – cortar o inútil –, ou seja, os autores árcades rejeitaram os exageros verbais e os detalhes argumentativos, por acreditarem na Literatura como instrumento didático, com capacidade de transformar a sociedade. Para tanto, se utilizavam de temas da vida cotidiana e descreviam com racionalismo a paisagem clara e tranquila, transmitindo ao leitor sua individualidade, a exemplo de Cláudio Manuel da Costa, sobre o qual trataremos a seguir. 3.1 CLÁUDIO MANUEL DA COSTA O Arcadismo no Brasil foi de grande expressão, especialmente em Vila Rica, Minas Gerais, sob influência de vários acontecimentos, conforme já enfatizado. O autor se identificava com os ideais árcades, no entanto, há quem argumente que algumas de suas poesias contêm características do Barroco, por apresentarem metáforas, aspectos do cultismo e uma linguagem elaborada, conforme podemos observar no soneto que segue.Aquela cinta azul, que o céu estende A nossa mão esquerda, aquele grito, Com que está toda a noite o corvo aflito Dizendo um não sei quê, que não se entende; TÓPICO 3 | O ARCADISMO 107 Levantar-me de um sonho, quando atende O meu ouvido um mísero conflito, A tempo, que o voraz lobo maldito A minha ovelha mais mimosa ofende; Encontrar a dormir tão preguiçoso Melampo, o meu fiel, que na manada Sempre desperto está, sempre ansioso; Ah! queira Deus, que minta a sorte irada: Mas de tão triste agouro cuidadoso Só me lembro de Nise, e de mais nada. (COSTA, 1966, p. 12) O soneto em questão apresenta uma linguagem que contraria as pretensões do pensamento árcade, que buscava a simplicidade da poesia, destinada também a um novo público, a burguesia. Sobre essa questão assim se expressa Coutinho (2004b, p. 224): “[...] sua poesia escapa, à luz dessa compreensão, a uma classificação rigorosa de Arcadismo: aproxima-se, antes, do Quinhentismo, distinguindo-se dele apenas pela maior ênfase dada à expressão subjetiva”. Cláudio Manuel da Costa, o Glauceste Satúrnio, nasceu em Vila Rica, Minas Gerais, em 1729. Estudou Direito em Coimbra e ainda em Portugal publica seus primeiros poemas. Retornou ao Brasil, Vila Rica, e lá ocupou cargos administrativos. Cláudio foi um dos principais nomes da Inconfidência Mineira, fato este que o levou à prisão, na qual apareceu morto em 1789, acreditando uns em suicídio e outros em homicídio. (COUTINHO, 2004b, p. 222). UNI Todavia, como participante do movimento árcade, Cláudio Manuel da Costa explorou a temática pastoril, a vida, a moral e o amor. O poema que segue versa sobre a musa idealizada e a natureza como refúgio: 108 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Neste soneto, o eu lírico pastor lamenta por encontrar-se num lugar de grande beleza natural, mas não estar acompanhado da mulher amada (Só minha alma em fatal melancolia). Nise, a musa inspiradora, não representa uma relação amorosa, descrita fisicamente, mas o ideal da mulher amada. A exaltação da natureza, o locus amoenus, fonte de alegria e prazer, contrasta com a ausência da mulher modelo: tristeza que se revela a partir da alma. Além de poemas líricos, escreveu um poema considerado épico, intitulado Vila Rica, publicado em 1837. Neste o autor narra fatos históricos, dentre os quais episódios sobre a descoberta das minas na região, a exemplo do Canto VI: Levados de fervor, que o peito encerra Vês os Paulistas, animosa gente, Que ao Rei procuram do metal luzente Co’ as próprias mãos enriquecer o erário. Arzão é este, é Este, o temerário, Que da Casca os sertões tentou primeiro: Vê qual despreza o nobre aventureiro, Os laços e as traições, que lhe prepara Do cruento gentio a fome avara. A exemplos de um contempla iguais a todos, E distintos ao rei por vários modos Vê os Pires, Camargos e Pedrosos, Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos, Lemos, Toledos, Pais, Guerras, Furtados, E os outros, que primeiro assinalados Se fizeram no arrojo das conquistas, Ó grandes sempre, ó imortais Paulistas! Embora vós, ninfas do Tejo, embora Cante do Lusitano a voz sonora Os claros feitos do seu grande Gama; Dos meus Paulistas honrarei a fama. Eles a fome e sede vão sofrendo, Rotos e nus os corpos vêm trazendo, Na enfermidade a cura lhes falece, E a miséria por tudo se conhece; Já rompe, Nise, a matutina aurora O negro manto, com que a noite escura, Sufocando do Sol a face pura, Tinha escondido a chama brilhadora. Que alegre, que suave, que sonora, Aquela fontezinha aqui murmura! E nestes campos cheios de verdura Que avultado o prazer tanto melhora! Só minha alma em fatal melancolia, Por te não poder ver, Nise adorada, Não sabe inda, que coisa é alegria; E a suavidade do prazer trocada, Tanto mais aborrece a luz do dia, Quanto a sombra da noite lhe agrada. (COSTA, 1966, p. 29) TÓPICO 3 | O ARCADISMO 109 Em seu zelo outro espírito não obra Mais que o amor do seu rei: isto lhes sobra. (COSTA, 1966, p. 64) O poema versa sobre a cidade de Vila Rica desde sua fundação e exalta também o trabalho dos bandeirantes. O texto faz alusão especial à riqueza oriunda da extração de metais preciosos que enriquecia o erário português. Vila Rica é um poema dividido em 10 cantos, em verso decassílabo, recurso literário que o autor manejava com “[...] um desembaraço que não demonstraria nos metros menores, Cláudio realiza, assim, uma poesia de tons delicados”. (COUTINHO, 2004b, p. 225). Outros temas faziam parte dos seus poemas, a exemplo da Fábula do Ribeirão do Carmo, que aborda vários elementos mitológicos para explicar a exploração do ouro no rio que corta Mariana, antiga Vila de Ribeirão do Carmo: [...] Nasci; tendo em meu mal logo tão dura, Como em meu nascimento, a desventura. Fui da florente idade Pela cândida estrada Os pés movendo com gentil vaidade; E a pompa imaginada De toda a minha glória num só dia Trocou de meu destino a aleivosia. Pela floresta, e prado Bem polido mancebo, Girava em meu poder tão confiado, Que até do mesmo Febo Imaginava o trono peregrino Ajoelhado aos pés do meu destino. Não ficou tronco, ou penha, Que não desse tributo A meu braço feliz; que já desdenha, Despótico, absoluto, As tenras flores, as mimosas plantas, Em rendimentos mil, em glórias tantas. Mas ah! Que Amor tirano No tempo, em que a alegria Se aproveitava mais do meu engano; Por aleivosa via introduziu cruel a desventura, Que houve de ser mortal, por não ter cura. Vizinho ao berço caro, Aonde a pátria tive, Vivia Eulina, esse prodígio raro, Que não sei, se ainda vive, 110 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Para brasão eterno da beleza, Para injúria fatal da natureza. Era Eulina de Aucolo A mais prezada filha; Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo se lhe prostra, se humilha Na cópia da riqueza florescente, Destro na lira, no cantar ciente. De seus primeiros anos Na beleza nativa, Humilde Aucolo, em ritos não profanos, A bela ninfa esquiva Em voto ao sacro Apolo consagrara; E dele em prêmio tantos dons herdara. Três lustros, todos d’ ouro, A gentil formosura, Vinha tocando apenas, quando o louro, Brilhante Deus procura Acreditar do pai o culto atento, Na grata aceitação do rendimento. [...] (COSTA, 1966, p. 37) No poema em questão o rio representa a glória do ouro. O ribeirão é personificado pelo pastor que tentou roubar a musa prometida a Apolo, que, para castigá-lo, o transforma num rio com o leito repleto de ouro, cuja pena rigorosa acaba ocasionando a sua destruição, pela ambição do homem. O autor, sob a influência da paisagem local, como as pedras, as montanhas e o vale, descreve um ambiente campesino, resumindo o ideário árcade. O próximo soneto faz alusão à vida pastoril em contraste com a urbana. Se sou pobre pastor, se não governo Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes; Se em frio, calma, e chuvas inclementes Passo o verão, outono, estio, inverno; Nem por isso trocara o abrigo terno Desta choça em que vivo, coas enchentes Dessa grande fortuna: assaz presentes Tenho as paixões desse tormento eterno. Adorar as traições, amar o engano, Ouvir dos lastimosos o gemido, Passar aflito o dia, o mês, e o ano; TÓPICO 3 | O ARCADISMO 111 Seja embora prazer; que a meu ouvido Soa melhor a voz do desengano, Que da torpe lisonja o infame ruído. (COSTA, 1966, p. 8) O autor contrapõe a vida urbana à vida campestre, ou seja, o campesino que, segundo o poema, se constitui o abrigo terno, que se configura num locus amoenus. Além disso, o texto mostra que, embora a natureza apresente os seus fenômenos como chuvas inclementes, a vida urbana, por sua vez, traz os defeitos morais e éticos como em adorar as traições, amar o engano. O pastor reconhece que viver na cidade seja embora prazer, nem por isso trocaria a vida rupestre. Além dos argumentos exemplificados pelos poemas apresentados, Cláudio Manuel da Costa traz um apelo à liberdade, contrariando os planos de dominação do império português. Sobre essa questão,assim se expressa Jorge de La Serna: A Arcádia mostra, pela voz de seu presidente, sua falta de sintonia com o modelo pombalino, como também com o incipiente projeto liberal, embora, por outro lado, prove sua modernidade no que se refere à concepção da obra de arte como produto de um trabalho eminentemente formal, que aspira à excelência, e para cuja realização plena o poeta reclama liberdade. (1995, p. 28). O Arcadismo reafirma, desse modo, o desejo de liberdade também no que se refere à arte. Além desse Glauceste, esse movimento literário foi representado também por Tomás Antônio Gonzaga, o mais popular dos poetas árcades, por apresentar uma linguagem bem elaborada, capaz de expressar o ideal de vida da classe burguesa em ascensão. 3.2 TOMÁS ANTONIO GONZAGA Segundo os teóricos, o bucolismo marcou um duplo aspecto na literatura árcade: de um lado os poetas rodeados pela natureza e, do outro, essa mesma natureza carecia dos elementos presentes nos modelos clássicos, como ninfas, pastores e flautistas. Desse modo, os autores estavam em meio ao dilema de serem fiéis ao meio em que se encontravam e realizarem uma poesia fora dos cânones ou usar uma linguagem artificial. Coutinho (2004b, p. 227) enfatiza isso dizendo que Gonzaga foi o mais árcade dos nossos poetas do século XVIII, inclusive pela tendência acentuada para a poesia bucólica. O problema da imitação da natureza não foi de fácil solução para o Arcadismo: demasiada fidelidade poderia atentar contra o bom gosto, contra a nobreza da linguagem, pois a vida pastoril é rude e os pastores são gente simples, primitiva. 112 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Nessa perspectiva, a solução encontrada pelos arcadistas foi de eliminarem todos os excessos e expressão dos próprios sentimentos, que não deveriam ser referidos, mas subentendidos. Conforme Coutinho (2004b, p. 229), “o poeta era um pintor de situações, não de emoções”. A lírica de Gonzaga (1744-1810) – o Dirceu – traz contornos subjetivos pela influência da amada Marília, a musa que o inspira desde o início do seu poema, conforme podemos observar na Lira I – 1ª parte: Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, que viva de guardar alheio gado, de tosco trato, de expressões grosseiro, dos frios gelos e dos sóis queimado. Tenho próprio casal e nele assisto; dá-me vinho, legume, fruta, azeite; das brancas ovelhinhas tiro o leite e mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília bela, graças à minha estrela! (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 87) Nos versos podemos observar que o autor contempla elementos da natureza. O eu lírico transforma-se em um pastor e demonstra toda a sua paixão pela bela e jovem Marília, o retrato da mulher ideal, a pastorinha rococó, com uma linguagem que “[...] parece falsa, alambicada, artificiosa, pedante: exatamente o efeito contrário ao que buscava o arcadismo. É o rococó típico”. (COUTINHO, 2004b, p. 231). Sobre essa questão, vale ainda enfatizar que o espírito rococó era caracterizado pela sensualidade da beleza, afetação, aprimoramento, futilidade, elegância, suavidade da linguagem, sentimento exacerbado, lascívia, gosto da natureza. Coutinho explica que esta arte de transição “[...] exprime a passagem da época cortês para a sociedade em que a classe média fornecerá os padrões de gosto e sensibilidade, caminhando no sentido do subjetivismo. (2004b, p. 210). Gonzaga, embora português de nascimento, viveu no Brasil parte de sua infância. Estudou em Coimbra e, de volta ao Brasil, a partir de 1782 passou a exercer em Vila Rica o cargo de ouvidor. Aos 40 anos de idade apaixonou-se por uma adolescente de 17 (Maria Doroteia Joaquina de Seixas). A família da moça opunha-se ao namoro. Quando o poeta já vencia a resistência da família, foi preso (1789) e enviado para a Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, como participante da Inconfidência Mineira. Os últimos 17 anos de vida passou no degredo, em Moçambique, casado com a filha de um comerciante de escravos. Gonzaga nunca se casou com Maria Doroteia, mas esse namoro tornou-se o primeiro mito amoroso de nossa literatura e inspirou uma de nossas mais belas obras líricas. UNI TÓPICO 3 | O ARCADISMO 113 FIGURA 16 – MARÍLIA DE DIRCEU FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/thumb/8/81/Mar%C3%ADlia_de_Dirceo. jpg/200px-Mar%C3%ADlia_de_Dirceo.jpg>. Acesso em: 24 jan. 2011. O poema, Marília de Dirceu, publicado em três partes, é estruturado em 80 liras e 13 sonetos. A primeira parte, escrita em 1792, contempla os textos da época anterior à prisão, os quais versam sobre o pastor Dirceu e sua Marília: a ansiedade de um homem apaixonado, com projetos de uma vida sossegada, ao lado da amada e rodeado de filhos. A segunda parte, datada de 1799, o autor estava encarcerado e, dessa maneira, exprime a solidão de um Dirceu saudoso de Marília. Nesta sombria masmorra, aonde, Marília, vivo, encosto a mão no rosto, fico às vezes pensativo. Ah, que imagens tão funestas Me finge o pesar ativo! (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 62) Nesta fase de cárcere encontramos a melhor poesia de Gonzaga, o “autor do livro de poemas mais lido na língua portuguesa, depois de Os Lusíadas”. (COUTINHO, 2004b, p. 227). A terceira parte, por sua vez, de menor valor literário, é dedicada à Marília e a outras musas e já teve sua autoria contestada. Gonzaga ratifica a poética neoclássica ao fazer menção à mitologia e, além disso, expressa seu sentimento ético, ou seja, a postura do homem do seu tempo. Tal questão é exposta na Lira 27, parte I. 114 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO O ser herói, Marília, não consiste em queimar os impérios: move a guerra, espalha o sangue humano, e despovoa a terra também o mau tirano. Consiste o ser herói em viver justo: E tanto pode ser herói o pobre, Como o maior augusto. Eu é que sou herói, Marília bela, seguindo da virtude a honrosa estrada: ganhei, ganhei um trono ah! Não manchei a espada, não o roubei ao dono. (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 16) Dirceu é a referência do homem grego, porém diferente deste no caráter, conforme expõe Coutinho (2004, p. 230), “[...] de acentuado cunho realista, de concepção burguesa da vida, dentro do espírito didático do século”. A bela Doroteia constitui figura importantíssima à vida de Gonzaga, dada a sua influência que, segundo Antonio Candido (1959, p. 116), [...] foi um acaso feliz para a nossa literatura esta conjunção de um poeta de meia idade com a menina de dezessete anos. O quarentão é amoroso refinado, capaz de sentir poesia onde o adolescente só vê o embaraço cotidiano; e a proximidade da velhice intensifica, em relação à moça em flor, um encantamento que mais se apura pela fuga do tempo e a previsão da morte. Nesse sentido, o relacionamento amoroso do poeta quando ainda vivia em Vila Rica, e depois quando se encontrava preso no Rio de Janeiro, serviu-lhe de inspiração, especialmente quando descreve a mulher por quem era apaixonado: Lisas faces cor-de-rosa, brancos dentes, olhos belos, lindos beiços encarnados, pescoço e peitos nevados, negros e finos cabelos. (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 45) É notável o sensualismo presente nos seus versos, nos quais “demora-se ele na descrição da figura física da amada”. (COUTINHO, 2004b, p. 232). Esse dizer reflete a motivação de sua lira, enaltecida pela doce Marília. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 115 Outra influência fundamental foi Cláudio Manuel da Costa, o Glauceste, pastor que acompanha Dirceu em suas aventuras amorosas, conforme é dito na Lira XII: [...] Tu dirás então contigo: “Ali Dirceu esperava “Para me levar consigo; E ali sofreu a prisão.” Mandarás aos surdos Deuses Novos suspiros em vão. Quando vires igualmente Do caro Glauceste a choça, Onde alegre se juntavam Os poucos da escolha nossa, [...] (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 115) Gonzaga foi movido pela força do amor e inspirado no amigo Cláudio Manuel da Costa, maisvelho e experiente, um dos responsáveis pela renovação dos cânones poéticos e que teve as obras publicadas no ano de 1767. Quando Gonzaga se encontrava em Coimbra, provavelmente lia os escritos do colega e também conviveu no Brasil, por ocasião da Inconfidência Mineira. “O encontro de Doroteia e Cláudio (do amor e da técnica) abriu novo trilho para ela, e a poesia surgiu deste modo, de repente, como veículo para afirmar brilhantemente seu ser [...]” (CANDIDO, 1959, p. 118). A vida na prisão contribuiu para uma escrita mais austera, misto de realismo e individualismo. Sob a figura de Dirceu, o autor árcade concebe a sua biografia, ao revelar sua posição em relação à amada e ao descrever o difícil momento político. Antonio Candido (1959, p. 118) afirma que “[...] a obra de Gonzaga é admirável graças à tal capacidade de extrair uma linha condutora dentre a variedade de afetos e estados d’alma, construindo um só movimento”. E ainda, enfatiza Candido que o mesmo torna-se um poeta pessoal e “[...] mais do que cantor de Marília, ele é cantor de si mesmo”. Nesta perspectiva, “[...] a sua grande mensagem é construída em torno dele próprio”. (1959, 119). As Cartas Chilenas, que durante muito tempo permaneceram anônimas, completam a obra de Tomás Antônio Gonzaga. Elas, no entanto, por um longo período foram motivo de discussão e estudos acerca do estilo, do conteúdo, expressões linguísticas utilizadas. A pretensão era chegar ao seu verdadeiro autor que, por consenso, foi Gonzaga, cuja autoria “baseia-se, em termos gerais, em três aspectos: a tradição, os fatos concretos e históricos, e as provas do confronto dos textos, chamadas provas de estilo”, enfatiza Coutinho (2004, p. 259). 116 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Trata-se de poemas satíricos, escritos em linguagem bastante agressiva, que circulam em Vila Rica pouco antes da Inconfidência Mineira. Apresentam versos decassílabos e têm a estrutura de uma carta, na qual Gonzaga assina com o pseudônimo de Critilo e endereçada a Doroteu – o poeta Cláudio Manoel da Costa –, que vivia supostamente na Espanha. Nessas cartas, Critilo, habitante de Santiago do Chile (na verdade Vila Rica), narra os desmandos do governador chileno, um político sem moral, despótico e narcisista, o Fanfarrão Minésio, na realidade Luiz da Cunha Menezes, governador de Minas Gerais. FIGURA 17 – CARTAS CHILENAS FONTE: Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/ chilenas.gif>. Acesso em: 24 jan. 2011. Na primeira carta, Critilo descreve ao amigo Doroteu a entrada que fez o Fanfarrão no Chile, em todos os pormenores. Vejamos: Não queres que te informe dos costumes. Dos incultos gentios? Não perguntas e entre eles há nações, que os beiços furam? E outras que matam, com piedade falsa, Aos pais, que afrouxam ao poder dos anos? Pois se queres ouvir notícias velhas Dispersas por imensos alfarrábios, Escuta a história de um moderno chefe. Que acaba de reger a nossa Chile, Ilustre imitador a Sancho Pança. E quem dissera, amigo, que podia Gerar segundo Sancho a nossa Espanha! Não penses, Doroteu, que vou contar-te Por verdadeira história uma novela Da classe das patranhas, que nos contam Verbosos navegantes, que já deram Ao globo deste mundo volta inteira. Uma velha madrasta me persiga, Uma mulher zelosa me atormente, E tenha um bando de gatunos filhos, Que um chavo não me deixem, se este chefe Não fez ainda mais do que eu refiro. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 117 Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo Da sorte que o topei a vez primeira; Nem esta digressão motiva tédio Como aquelas que são dos fins alheias, Que o gesto, mais o traje nas pessoas Faz o mesmo que fazem os letreiros Nas frentes enfeitadas dos livrinhos, Que dão, do que eles tratam, boa ideia. Tem pesado semblante, a cor é baça. O corpo de estatura um tanto esbelta Feições compridas e olhadura feia, Tem grossas sobrancelhas, testa curta, Nariz direito e grande, fala pouco Em rouco, baixo som de mau falsete Sem ser velho, já tem cabelo ruço E cobre este defeito e fria calva À força de polvilho, que lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo No gordo rocinante escarranchado As longas calças pelo umbigo atadas, Amarelo colete e sobretudo Vestida uma vermelha e justa farda De cada bolso da fardeta, pendem Listadas pontas de dois brancos lenços; Na cabeça vazia se atravessa Um chapéu desmarcado, nem sei como Sustenta o pobre só do laço o peso. Ah! tu, Catão severo, tu que estranhas O rir-se um cônsul moço, que fizeras Se em Chile agora entrasses e se visses Ser o rei dos peraltas quem governa? Já lá vai, Doroteu, aquela idade Em que os próprios mancebos, que subiam À honra do governo, aos outros davam Exemplos de modéstia, até nos trajes. Deviam, Doroteu, morrer os povos Apenas os maiores imitaram Os rostos e os costumes das mulheres Seguindo as modas e raspando as barbas. Os grandes do país, com gesto humilde Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo; Ele austero os recebe, só se digna Afrouxar do toutiço a mola um nada, Ou pôr nas abas do chapéu os dedos. Caminha atrás do chefe um tal Robério Que entre os criados tem respeito de aio; Estatura pequena, largo o rosto, Delgadas pernas e pançudo ventre, Sobejo de ombros, de pescoço falto; Tem de pisorga cores e conserva As bufantes bochechas sempre inchadas. Bem que já velho seja, inda presume De ser aos olhos das madamas grato E o demo lhe encaixou que tinha pernas Capazes de montar no bom ginete Que rincha no Parnaso. Pobre tonto! Quem te mete em camisas de onze varas! Tu só podes cantar, em coxos versos E ao som da má rebeca, com que atroas Os feitos do teu amo e os seus despachos. Ao lado de Robério, vem Matúsio, Que respira do chefe o modo e o gesto. É peralta rapaz de tesas gâmbias, Tem cabelo castanho e brancas faces, Tem um ar de mylord e a todos trata Como a inúteis bichinhos; só conversa Com o rico rendeiro, ou quem lhe conta Das moças do país as frescas praças. Dos bolsos da casaca dependura As pontas perfumadas dos lencinhos, Que é sinal, ou caráter, que distingue Aos serventes das casas dos mais homens, Assim como as famílias se conhecem Por herdados brasões de antigas armas. Montado em nédia mula vem um padre Que tem de capelão as justas honras. Formou-se em Salamanca, é homem sábio. Já do mistério do Pilar um dia. Um sermão recitou, que foi um pasmo. Labregão no feitio e meio idoso. Tem olhos encovados, barba tesa, Fechadas sobrancelhas, rosto fusco, Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera Que num corpo, que tem de nabo a 118 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO forma, Haviam pôr os céus tão grande caco! O resto da família é todo o mesmo, Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes Um rifão que nos diz, que dos domingos Se tiram muito bem os dias santos. Ah! pobre Chile, que desgraça esperas! Quanto melhor te fora se sentisses As pragas, que no Egito se choraram, Do que veres que sobe ao teu governo Carrancudo casquilho, a quem rodeiam Os néscios, os marotos e os peraltas! Seguido, pois, dos grandes entra o chefe No nosso Santiago junto à noite. À casa me recolho e cheio destas Tristíssimas imagens, no discurso, Mil coisas feias, sem querer, revolvo. Por ver se a dor divirto, vou sentar-me Na janela da sala e ao ar levanto Os olhos já molhados. Céus, que vejo! Não vejo estrelas que, serenas, brilhem, Nem vejo a lua que prateia os mares: Vejo um grande cometa, a quem os doutos Caudato apelidaram. Este cobre A terra toda co’ disforme rabo. Aflito o coração no peito bate, Erriça-se o cabelo, as pernas tremem. O sangue se congela e todo o corpo Se cobre de suor. Tal foi o medo. Ainda bem o acordo não restauro Quando logo me lembra que este dia É o dia fatal, em que se entende Que andam, no mundo, soltos, os diabos. Não rias, Doroteu, dos meus agouros; Os antigos romanos foram sábios, Tiveram agoureiros: estes mesmos Muitas vezes choraram, por tomarem Os avisos celestes como acasos. [...] (GONZAGA apud PROENÇA FILHO, 1978, p. 3)Nos versos apresentados, Gonzaga expõe os costumes da cidade de Vila Rica, especialmente os atos e desmandos do seu governante. O autor das cartas descreve a entrada no Chile do governador, relatando as violências e injustiças, as desordens deste que nomeia de Fanfarrão. Este finge piedade com o intuito de angariar negócios. O autor das cartas revoluciona, fazendo da literatura um modo de combater a corrupção da época. “Critilo era um pintor de cenas movimentadas e sua pena trabalhava quase como uma câmera cinematográfica”, diz Coutinho (2004b, p. 265). Ao elaborar o prólogo das Cartas Chilenas, assim o autor se expressa: Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um governador despótico. Eu mudei algumas coisas menos interessantes, para as acomodar melhor ao nosso gosto. Peço-te que me desculpes algumas faltas, pois, se és douto, hás de conhecer a suma dificuldade, que há na tradução em verso. Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerários sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e talvez que tu sejas também um deles etc. No prefácio, argumenta que D. Quixote, como cavaleiro andante, poderia desterrar o fanfarrão, cujo discurso constitui um interessante registro histórico e dá mostras sobre a corrupção no Brasil, bem como a insatisfação do povo desde os tempos coloniais. As cartas constituem também um desabafo e eram endereçadas a Cláudio Manoel da Costa – o Amigo Doroteu, prezado amigo, é desse modo que Gonzaga se dirige a ele. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 119 O assunto das cartas faz referência à tirania e ao abuso de poder do Fanfarrão Minésio, no que se refere à falta de decoro, e, sobretudo, no desrespeito à lei. O autor é capaz de escrever de maneira familiar, especialmente quando descreve fatos da política de sua cidade. Tomás Antônio Gonzaga se utiliza da sátira de tal modo que não tem preocupação com as outras questões formais. Os versos brancos concentram-se no caráter e postura do governador Menezes. “Retrato, admiravelmente pintado de uma época, as Cartas Chilenas valem pelo que são: uma sátira nobre, a melhor que em língua portuguesa se escreveu no século XVIII”, enfatiza Coutinho (2004b, p. 267). Para Antonio Candido (1959, p. 27), Gonzaga é a expansão de uma personalidade brilhante. A sua poesia nasce da sua vida, e sua vida foi alterada para sempre pela força da poesia. “É uma demonstração de fé no poder criador de um indivíduo, quando em contato com as exigências do amor, da profissão e da época. A Arcádia, antes mero cenário, desce à terra e se estabelece em Vila Rica”. Além destes dois importantes poetas, representados por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, do grupo mineiro também fez parte Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). O poeta era mestiço, de ascendência humilde. Formou-se em Cânones, em Coimbra. Em 1794 foi preso e permaneceu dois anos encarcerado, acusado de conspirar contra o governo e a religião. Foi fundador e principal membro da Sociedade Literária do Rio de Janeiro. De Silva Alvarenga, Glaura é uma coletânea composta de 59 rondós e de 56 madrigais, na qual expressa o amor de Alcindo Palmireno à sua amada. Traze a Aurora cintilante, Que, rompendo o véu escuro, Mostre a Glaura novo e puro Seu brilhante resplendor. Nos seus olhos ressuscite Destes montes a alegria; Crescerá de dia em dia Sem limite o meu ardor. (ALVARENGA apud COUTINHO, 2004b) Nos versos apresentados, o poeta exalta a pastora Glaura e externa o seu afeto que, segundo ele, é sem limite e intenso. Segundo os críticos, o encanto melodioso de alguns rondós faz de Silva Alvarenga um poeta expressivo do movimento árcade, o qual “realizou uma poesia cuja marca mais forte é a espontaneidade”. (COUTINHO, 2004b, p. 236). O rondó é um poema lírico de forma fixa, de origem francesa, que traz a ideia de circularidade – do latim, rotundu(m), redondo, em forma de roda. No Brasil, o rondó foi utilizado por este autor devido à sua estrutura, que pode ser de dois tipos: Francês e Português. O primeiro é caracterizado por três estrofes, uma quintilha, um terceto 120 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO e outra quintilha, em versos octossílabos, ou, de quando em quando, decassílabos. (MOISÉS, 2004, p. 410). Já o rondó português constitui-se de uma quadra que se repete ao fim de oitavas ou de duas quadras, ou seja, apresenta uma quadra recorrente. “Os rondós – sempre em redondilha – começam, com poucas exceções, por um quarteto que serve de estribilho, com rimas encadeadas”. (COUTINHO, 2004b, p. 236). Observe essa estrutura no poema que segue: Os Suspiros, Rondó XLV (ALVARENGA apud MOISÉS, 2004, p. 411) O autor foi destaque entre os árcades mineiros por utilizar o redondilho conforme podemos constatar nos versos: Ah! Conserva, Amor, que ouviste/ O meu triste suspirar, os quais se repetem depois das estrofes de quatro versos. Além da estrutura formal e sob o ponto de vista do conteúdo, Silva Alvarenga exprime dois sentimentos básicos: o primeiro na exaltação do pastor árcade à mulher amada: Carinhosa e doce, ó Glaura, Vem esta aura lisonjeira, E a mangueira já florida Nos convida a respirar. Sobre a relva o sol doirado Bebe as lágrimas da Aurora, E suave os dons de Flora Neste prado vê brotar. (ALVARENGA apud COUTINHO, 2004b) Posteriormente, Alvarenga externa o sentimento de perda pela morte de sua amada. Nos versos a seguir podemos constatar o sentimento de saudade e de pesar, pela Glaura que já não mais existe: Se algum dia, Glaura bela, Visitar estes retiros; Ouça os míseros suspiros Que infeliz entrego ao ar. Seja este áspero rochedo Quem repita as minhas mágoas; E o ruído destas águas Quem lhe pinte o meu pesar. Ah! Conserva, Amor, que ouviste O meu triste suspirar. Guarda amante e compassiva Flébil Eco, que me escutas, Na aspereza destas grutas Retratado o meu penar Aqui Glaura pela tarde Que decline a calma espera, Qual a deusa di Citera Quando sai do fundo do mar. Ah! Conserva, Amor, que ouviste O meu triste suspirar. TÓPICO 3 | O ARCADISMO 121 [...] Mortal saudade, é esta a sepultura; Já Glaura não existe. Ah, como vejo triste em sombra escura, O campo, que alegravam os seus olhos. (ALVARENGA apud COUTINHO, 2004b) Os rondós se transformam num lamento profundo e, conforme os teóricos, Silva Alvarenga é tido como precursor do romantismo, na medida em que expõe as dores do eu. Para Veríssimo (1998, p. 157), ele “[...] era seguramente homem de muito boas letras, com a melhor cultura literária que então em Portugal se pudesse fazer. Quanto a ela, juntava, além do engenho poético, talento real, espírito e bom gosto pouco vulgar no tempo”. Além dos autores já abordados, o Arcadismo no Brasil foi representado por mais escritores, dentre eles José Basílio da Gama e Frei José Santa Rita Durão, os quais produziram obras significativas do período em questão. Os escritos de Basílio da Gama dividem-se em partes: a narrativa e a lírica. A primeira, no dizer dos teóricos, era melhor e mais numerosa porque o poeta se inspirou em Virgílio, Petrarca, Tasso e Camões. José Basílio da Gama nasceu em São José do Rio das Mortes, atual Tiradentes, em 1741. Estudou no colégio dos jesuítas, no Rio de Janeiro, até o período em que a Companhia de Jesus foi banida do Brasil por decreto do Marquês de Pombal. Mais tarde ingressou na Arcádia Romana com o nome de Termindo Sipílio. Em 1767 voltou ao Brasil e no ano seguinte já estava em Lisboa, onde foi detido por ordem do Marquês de Pombal, por ter sido denunciado como partidário dos jesuítas. Chegou a ser condenado ao degredo em Angola, mas livrou-se da pena ao escrever um epitalâmio – poema nupcial à filha de Pombal, rogando-lhe clemência e, ao mesmo tempo, louvando o ministro e insurgindo-se contra os jesuítas. Com essa tática, Pombal cancelou-lhe a sentença e passou a protegê-lo. Recebeu carta de fidalguia e nobreza. Basílioda Gama morreu em Lisboa, em 1795. Antes de sua morte, em 1769 publicou em Lisboa o seu poema mais importante, o Uraguai, no qual o autor tece uma crítica aos jesuítas e enaltece a política pombalina. O poema épico é composto em versos decassílabos brancos e dividido em cinco cantos. A obra descreve a guerra entre índios e jesuítas contra portugueses e espanhóis, pela conquista da Colônia de Sete Povos das Missões, na região do Uruguai (Uraguai), liderados pelo general português Gomes de Andrade e Catâneo, o chefe das tropas espanholas. O primeiro canto descreve a marcha dos comandantes e soldados até o local do conflito, os quais encontram dois índios – Sepé e o cacique Cacambo – dispostos a negociar a paz. No entanto, a tentativa destes últimos falha e o combate inicia, configurando o motivo histórico do poema, conforme podemos constatar nos versos que seguem: 122 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Segundo Coutinho (2004b, p. 248), os versos em questão relatam o confronto e que, apesar da honrosa valentia e força dos indígenas, muitos deles sucumbem, dentre eles Sepé, amigo de Cacambo. Depois deste episódio, o índio Cacambo está a descansar, quando, em sonho, vê a figura de Sepé que lhe pede para vingar sua morte. Esta é efetivada por um incêndio no acampamento dos brancos. Depois deste feito, Cacambo volta com os jesuítas para junto dos seus e da esposa Lindoia, onde é aprisionado e morto. [...] Deixados os quartéis, enfim partimos Por diversas estradas, procurando Tomar no meio os rebelados povos. Por muitas léguas de áspero caminho, Por lagos, bosques, vales e montanhas, Chegamos onde nos impede o passo Arrebatado e caudaloso rio. Por toda a oposta margem se descobre De bárbaros o número infinito Que ao longe nos insulta e nos espera. Preparo curvas balsas e pelotas, E em uma parte de passar aceno, Enquanto em outra passo oculto as tropas. Quase tocava o fim da empresa, quando Do vosso general um mensageiro Me afirma que se havia retirado: A disciplina militar dos índios Tinha esterilizado aqueles campos. Que eu também me retire, me aconselha, Até que o tempo mostre outro caminho. Irado, não o nego, lhe respondo: Que para trás não sei mover um passo. Venha quando puder, que eu firme o espero. (GAMA apud COUTINHO, 2004b, p. 248) Canto terceiro Foi todo o seu delito. Não consente O cauteloso Balda que Lindoia Chegue a falar ao seu esposo; e manda Que uma escura prisão o esconda e aparte Da luz do sol. Nem os reais parentes, Nem dos amigos a piedade, e o pranto Da enternecida esposa abranda o peito Do obstinado juiz: até que à força De desgostos, de mágoa e de saudade, Por meio de um licor desconhecido, Que lhe deu compassivo o santo padre, Jaz o ilustre Cacambo – entre os gentios Único que na paz e em dura guerra De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado ocultamente e sem as honras De régio funeral, desconhecida Pouca terra os honrados ossos cobre. (GAMA apud COUTINHO, 2004b, p. 248) TÓPICO 3 | O ARCADISMO 123 Outro acontecimento que causa profunda comoção e, segundo Coutinho (2004b, p. 248), “o momento mais belo do poema”, é o suicídio de Lindoia, que se faz picar por uma cobra, conforme é relatado no Canto quarto: Este lugar delicioso e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. Para os teóricos, neste poema Basílio enaltece a figura do índio e busca a consolidação de um mito nacional. Ao que parece, é uma antecipação do indianismo romântico, porém com motivações diferentes. Nesse sentido, o épico de Basílio é contraposto aos Lusíadas, pois o herói é o conquistado, o índio, e não o conquistador que, conforme havia escrito Camões, era o povo português o desbravador de mares e de novas terras. Também no que se refere à métrica, às estrofes e às rimas, o Uraguai é diferente da épica camoniana. “A linguagem direta e sem artifícios faz com que o Uraguai possa ser lido ainda hoje com facilidade, sem obrigar o leitor médio a exercícios gramaticais e consultas a dicionários de mitologia para elucidar trechos complicados”. (COUTINHO, 2004b, p. 250). Além disso, Basílio da Gama, do grupo mineiro foi o autor que mais se destacou, devido ao engenho do qual lançou mão para escrever o épico Uraguai e também por enaltecer a coisas da Pátria. “Soube demais cantá-las com um raro espírito de liberdade cívica e poética”, afirma Veríssimo (1998, p. 164). Em 1781, Santa Rita Durão, outro integrante da plêiade mineira, publica o Caramuru – um poema épico que descreve a aventura de Diogo Álvares Correia na descoberta da Bahia e os costumes dos índios. É um poema composto de dez cantos, em versos decassílabos e oitava rima – estrofe de oito versos, segundo o modelo camoniano. 124 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO FIGURA 18 – CARAMURU FONTE: Disponível em: <http://rmmv.org/poesia-e-citacoes/ retalhos-de-poesia-s-a-t>. Acesso em: 24 jan. 2011. Dos poetas mineiros, Frei José de Santa Rita Durão é o mais velho. Nasceu em Mariana, em 1722. Em Portugal, professou-se na Ordem de Santo Agostinho e formou-se em Teologia na Universidade de Coimbra. No dizer de Veríssimo (1998, p. 166), “[...] em nenhum dos poetas da plêiade mineira, ou quaisquer outros seus contemporâneos, o nativismo que preludiou aqui o nacionalismo e o patriotismo, como estímulo de inspiração literária, manifesta-se tão claramente como em Santa Rita Durão”. O enredo do Caramuru tem por base o descobrimento e a colonização da Bahia. A narração enfatiza Diogo Álvares Correia – o Caramuru – que, vítima de um naufrágio, chega à praia com alguns companheiros, sendo recebido por uma tribo de índios antropófagos. O mesmo torna-se prisioneiro e, quando está para ser sacrificado, faz uso da arma de fogo, da qual os índios não conheciam a pólvora. Maravilhados com o evento, os nativos passam a venerá-lo. Também os costumes indígenas tiveram em Durão uma descrição exata, conforme podemos observar: [...] A cor vermelha em si, mostram tingida De outra cor diferente, que os afeia. Pedras e paus de embiras enfiados, Que na face e nariz trazem enfiados. (DURÃO apud COUTINHO, 2004b, p. 255) O autor descreve os índios tais como se apresentam e depois do ocorrido com a já mencionada cena da arma, o protagonista passa a mediar relações entre os nativos e o colonizador. Também se casa com a índia Paraguaçu, idealizada pelo autor nos versos que seguem: TÓPICO 3 | O ARCADISMO 125 De cor tão alva como a branca neve E donde não é neve, era de rosa: O nariz natural, boca mui breve Olhos de bela luz, testa espaçosa. (DURÃO apud COUTINHO, 2004b, p. 255) Paraguaçu é apresentada com características que a aproximam das mulheres europeias de pele branca e rosada. Para Coutinho (2004b, p. 256), “O retrato que Durão pinta de Paraguaçu, por exemplo, mostra uma índia em tudo semelhante às beldades brancas”. Outra personagem feminina do épico é a índia Moema, que também se apaixona por Diogo. Por conta deste amor, a mesma tenta segui-lo, lançando-se ao mar quando vê o português partindo com Paraguaçu. Assim Durão descreve Moema quando segue a nau, nadando até a exaustão e morte: Copiosa multidão da nau francesa Corre a ver o espetáculo, assombrada; E ignorando a ocasião da estranha empresa, Pasma da turba feminil, que nada. Uma que às mais precede em gentileza, Não vinha menos bela, do que irada; Era Moema, que de inveja geme, E já vizinha à nau se apega ao leme. [...] “Bárbaro (a bela diz) tigre e não homem... Porém o tigre, por cruel que brame, Acha forças no amor, que enfim o domem; Só a ti não domou, por mais que eu te ame. Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem, Como não consumisaquele infame? Mas pagar tanto amor com tédio e asco ... Ah! que corisco és tu... raio... penhasco! Enfim, tens coração de ver-me aflita, Flutuar, moribunda, entre estas ondas; A um ai somente, com que aos meus respondas. Bárbaro, se esta fé teu peito irrita Nem o passado amor teu peito incita (Disse, vendo-o fugir) ah! Não te escondas Dispara sobre mim teu cruel raio...” Perde o lume dos olhos, pasma e treme, Pálida a cor, o aspecto moribundo; Com mão já sem vigor, soltando o leme Entre as salsas escumas desce ao fundo. Mas na onda do mar, que, irado, freme, Tornando a aparecer desde o profundo, “Ah! Diogo cruel !” - disse com mágoa - E sem mais vista ser, sorveu-se na água. (DURÃO apud COUTINHO, 2004b, p. 257) Debilitada, a indígena prefere morrer a perder de vista o homem branco e, desse modo, Moema perece, tragada pelas ondas. Tal episódio é, no dizer de Coutinho (2004b, p. 256), “o melhor trecho do poema”, dada a fantasia de que se utiliza e precedida pela descrição, conforme já enfatizado. 126 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO LEITURA COMPLEMENTAR Para uma melhor compreensão da questão indianista, tema explorado pelos poetas árcades, propomos a leitura das reflexões feitas por Afrânio Coutinho, que tece considerações inerentes aos textos de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, cujos autores foram abordados nos nossos estudos sobre o Arcadismo. POESIA NARRATIVA ARCÁDICA A denominação de “poesia épica” ao gênero que aqui se vai estudar tem sido contestada por historiadores e críticos, inclusive Silvio e Veríssimo. A épica pressupõe, em primeiro lugar, um motivo bastante grande, nobre e sublime, que quase sempre transcende os limites do individual, para se projetar nos do nacional ou universal. A Eneida é, em última análise, a história de Roma; Os Lusíadas, o momento de grandeza que Portugal viveu; e o Paraíso Perdido não é somente a fábula bíblica por si já simbólica – mas também a luta do bem contra o mal, segundo as convicções religiosas de Milton. Falta à chamada poesia épica brasileira do século XVIII essa nobreza de assunto e sentido simbólico que supera o imediato. O Caramuru é apenas uma aventura individual, que dificilmente poderia vir a ser a epopeia do europeu que descobre o Novo Mundo. Já o Uraguai tem um motivo bem mais próprio à épica porque mostra um drama coletivo – a exploração e massacre do índio, seja pelos jesuítas, seja pelos portugueses e espanhóis; mas a conveniência política levou o poeta a deixar em segundo plano o verdadeiro assunto épico, transformando seu poema numa narrativa da qual O nativismo e o indianismo animam as épicas de Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Em ambos predominou a expressão narrativa, no entanto o primeiro adotou o modelo virginiano “[...] e mais arcádico, do verso branco e da estrofação livre; por outro, Santa Rita Durão segue o modelo camoniano”. (COUTINHO, 2004b, p. 246). O movimento árcade produziu uma literatura que apresentava os elementos da nossa terra, legitimando o nacionalismo, o qual enfatizava a vida indígena, especialmente pelas letras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, autores que também representaram o Arcadismo, trataram do patriotismo quando descreveram elementos de Minas Gerais. Essas obras aludem a uma literatura do Brasil e foram fundamentais para a sua formação. De acordo com Antonio Candido (1959, p. 115), poder-se-ia dizer que a importância dos poetas arcádicos reside no “esforço de trazer à pátria os temas e as técnicas mentais e artísticas do Ocidente europeu, dando à nossa literatura um alcance potencialmente universal, antes mesmo que ela tomasse consciência de sua individualidade nacional.” TÓPICO 3 | O ARCADISMO 127 não se tira nenhum exemplo ou consequência – um dos pontos característicos do poema heroico, cuja intenção, segundo definição de Dryden, “[...] é habituar o espírito à virtude heroica por meio do exemplo; expõe em verso o que pode deleitar, ao mesmo tempo que instruir”. Bowra, que cita tal definição, comenta: [...] os autores da epopeia literária quase são forçados a indicar uma moral. Os seus heróis são exemplos daquilo que os homens deviam ser ou tipos do destino humano, cujos próprios erros devem apontar-se e recordar-se. Esta intenção didática nunca se encontra muito afastada, apesar de não precisar haver referência imediata ou contemporânea. Privados dessas características, o Uraguai e o Caramuru se ressentem da pretensão heroica. Perdem a espontaneidade do romance, sem conseguir a grandeza do épico; são epopeias frustradas, embora cheguem a ter momentos belos – significativamente, aqueles em que o sentimento lírico predominou. Não cabe a Basílio e a Durão culpa maior do que a de não terem compreendido que a matéria da epopeia é fruto de uma tradição e um sentimento coletivos, que lhes faltava. Fidelino de Figueiredo afirma que [...] só com o poema de Camões se verificou o processo de gênese das epopeias; todos os outros poemas do fim do século XVI aos meados do XIX são crônicas versejadas, poemas narrativos, panegíricos biográficos em verso, porque o poeta, com ou sem gênio, não cria a matéria épica que, recordarei, é obra coletiva e anterior à sua individual coordenação artística. Explicada a razão da preferência da expressão narrativa à épica – o que é antes uma questão de situação, e não de simples denominação –, podemos dizer que a poesia descritiva arcádica não se caracterizou tão nitidamente como a lírica. O único ponto de identidade entre elas será, talvez, a linguagem direta, despida dos artifícios barrocos seiscentistas. Se, por um lado, Basílio adota o modelo mais virginiano, e mais arcádico, do verso branco e da estrofação livre, por outro, Santa Rita Durão segue o modelo camoniano. O indianismo que esses dois poetas introduzem na literatura de língua portuguesa tem o mesmo caráter do nacionalismo dos poetas líricos: é apenas exterior. É bem verdade que o problema da colonização, tal como possivelmente o sentira o índio, aparece várias vezes em Basílio, inclusive nestes famosos versos, que tanto valem para os portugueses como para os jesuítas: Gentes da Europa, nunca vos trouxera O mar e o vento a nós. Ah não debalde Estendeu entre nós a natureza Todo esse plano espaço imenso de águas!... 128 UNIDADE 2 | AS ANTÍTESES E PARADOXOS DO BARROCO Em princípio, porém, não são os assuntos indígenas – as tradições, lendas e costumes – que preocupavam esses poetas, mas apenas o índio como elemento exótico e decorativo, exatamente como a paisagem na poesia lírica. Não são motivos indígenas, mas o índio como motivo. E, ainda, uma forma de nativismo, não de nacionalismo, como de nativismo são os traços da paisagem mineira encontráveis em Cláudio, Gonzaga ou Silva Alvarenga. No caso de Basílio, nacionalismo seria o partido dos índios – os verdadeiros americanos – e não o dos portugueses, que, pelo menos ostensivamente, parece tomar. Mais adiante, será examinada essa questão. Assinale-se, ainda, que é possível ver, no fato de preferirem os poetas narrativos a figura do índio à do pastor, uma nova manifestação, mais de acordo com a realidade, do desejo de retorno ao “estado natural”. E, enquanto os árcades se satisfazem com uma pantomima, e dentro dela tinham características extremamente realistas, como nas descrições de Gonzaga, os narradores, preferindo a realidade do índio, o retratavam, e à natureza, com menos verdade. Embelezavam o nativo, atribuindo-lhe, em alto grau de intensidade, um aspecto físico e uma formação moral que não se poderia, sem alterar as leis da probabilidade, encontrar senão no europeu. Pelos motivos ou pela linguagem, ou ainda mais certamente porque era mais poeta, Basílio superou seus contemporâneos portugueses. É principalmente a ele que se referem as histórias literárias, ao falar nos épicos do século XVIII, e não ao Conde de Ericeira, a José Agostinho Macedo ououtros. FONTE: ERA BARROCA/ERA NEOCLÁSSICA. In: COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Global, 2004b, p. 245, v. 2. 129 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você viu que: • O Iluminismo foi um movimento cultural que se difundiu a partir do século XVIII e que, metaforicamente, significa luz ao intelecto. • As ideias do Iluminismo pregavam a justiça, a liberdade e solidariedade e propunham o fim do regime absolutista imposto sob a rígida classificação social e os privilégios concedidos aos nobres, a exemplo do que ocorreu com a Revolução Francesa. • As ideias iluministas concebiam uma vida simples e natural e uma transformação cultural. Com elas, a religião perdia a força, pois era baseada em dogmas e não em certezas racionais. • No campo literário os reflexos dessas mudanças também floresceram. Aparecem conteúdos novos, inspirados no real. Uma nova produção estética, um novo objeto, não mais o belo, mas o sublime. O romance de cunho patriótico, político e social é que obteve sucesso em 1800, com a ascensão da classe burguesa. • No período colonial brasileiro surgiu um grupo de poetas árcades, engajados no projeto de um Brasil Republicano. • O Arcadismo favoreceu a arte literária, garantindo aos escritores regularidade e capacidade de permanecerem gerando a tradição cultural. • O Arcadismo concebia a arte como cópia da natureza, o equilíbrio entre o natural e o ideal, a união entre o útil e o agradável e a busca do verossímil. Buscava também o idílico, ou seja, a vida campesina, o bucólico – fugir do urbano, da cidade e viver na mediocridade. • A concepção deste movimento concebia um espaço poético que constituía o locus amoenus – o lugar ameno, o carpe diem, o viver intensamente o dia, sem pensar no amanhã, e a inutilia truncat – cortar o inútil. • Os autores árcades rejeitaram os exageros verbais e os detalhes argumentativos, por acreditarem na Literatura como instrumento didático, com capacidade de transformar a sociedade. • Cláudio Manuel da Costa foi um poeta de grande expressão, explorou a temática pastoril, a vida, a moral e o amor e a cidade de Vila Rica. 130 • Tomás Antônio Gonzaga foi o mais árcade dos nossos poetas do século XVIII. A lírica do seu Dirceu trazia contornos subjetivos pela influência da amada Marília, a musa que o inspirou. • As Cartas Chilenas completam a obra de Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de poemas satíricos, escritos que versam sobre os costumes da cidade de Vila Rica, especialmente os atos e desmandos do seu governador Menezes. • Silva Alvarenga foi autor de Glaura e também se mostrou expressivo no movimento árcade, por conta dos seus sentimentos básicos: a exaltação do pastor à mulher e o sentimento de perda pela morte de sua amada. • O Arcadismo no Brasil foi ainda representado pelo escritor José Basílio da Gama, com Uraguai. • Santa Rita Durão, outro integrante da plêiade mineira, publica o Caramuru – um poema épico que descreve a aventura de Diogo Álvares Correia na descoberta da Bahia e os costumes dos índios. • A importância dos poetas árcades reside no esforço de trazer à pátria os temas e as técnicas mentais e artísticas do Ocidente europeu, dando à nossa literatura um alcance universal, antes mesmo que ela fosse reconhecida nacionalmente. 131 1 Sobre o Arcadismo brasileiro, marque V para a alternativa verdadeira e F para a falsa: a) ( ) Tem suas fontes nos antigos grandes autores gregos e latinos, dos quais imita os motivos e formas. b) ( ) Teve em Cláudio Manuel da Costa o representante que, de forma original, recusou a motivação bucólica e os modelos camonianos da lírica amorosa. c) ( ) O Arcadismo nos legou os poemas de feição épica Caramuru (com reconhecida qualidade literária) – de Frei José de Santa Rita Durão – e o Uraguai – de Basílio da Gama. d) ( ) Norteou, em termos dos valores estéticos básicos, a produção dos versos de Marília de Dirceu, obra que celebrizou Tomás Antônio Gonzaga e que destaca a originalidade de estilo e de tratamento local dos temas pelo autor. 2 Quanto à linguagem árcade é correto afirmar: a) ( ) prefere a ordem indireta, tal como no latim literário; b) ( ) tornou-se artificial, pedante, inatural; c) ( ) manteve as ousadias expressionais do Barroco; d) ( ) promove um retorno às “virtudes clássicas” da clareza, da simplicidade e da harmonia. 3 Relacione as duas colunas de acordo com os pseudônimos e seus respectivos autores árcades: A - Glauceste Satúrnio. ( ) Tomás Antônio Gonzaga. B - Alcindo Palmireno . ( ) Cláudio Manuel da Costa. C - Dirceu. ( ) Basílio da Gama. D - Termindo Sipílio ( ) Silva Alvarenga. Agora assinale a sequência que contém a alternativa CORRETA: a) ( ) A - B - D - C. b) ( ) C - A - D - B. c) ( ) D - C - B - A. d) ( ) B - A - D - C. AUTOATIVIDADE 132 133 UNIDADE 3 O MOVIMENTO ROMÂNTICO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • reconhecer a importância do Romantismo para a constituição da naciona- lidade e universalidade da Literatura Brasileira; • analisar os principais autores e obras do Romantismo brasileiro; • refletir sobre as temáticas e o estilo empregados nos textos do movimento romântico brasileiro. Esta unidade está dividida em três tópicos. No final de cada um deles você encontrará atividades que o/a ajudarão a fixar os conhecimentos abordados. TÓPICO 1 – IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS TÓPICO 2 – DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO TÓPICO 3 – O ULTRARROMANTISMO 134 135 TÓPICO 1 IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO De certo modo, o Romantismo é um novo ciclo que engloba a cultura e a civilização em que a aristocracia perde seu poder para a classe burguesa em ascensão. O Romantismo é reflexo e consequência das revoluções que o marcaram e o antecederam, em especial a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Estas foram portadoras de transformações através da industrialização, do crescimento da população urbana, da burguesia, um novo público, com novos gostos artísticos marcados por mudanças, tanto na temática como na renovação das formas literárias, com predomínio da liberdade métrica ou poética. A temática central do poeta romântico fez-se em torno do “eu” e das emoções deste “eu”. A valorização excessiva dos sentimentos desencadeou não apenas os aspectos emotivos, mas estendeu-se à expressão de estados de exuberância de sentimentos e à revelação de um subjetivismo mórbido e autodestrutivo. Para o pensamento romântico, o homem, no intento de obter o verdadeiro conhecimento, deve proceder de modo a desviar o olhar de tudo o que o rodeia e procurar a verdade dentro de si próprio. O movimento tornou-se uma realidade em todos os países, mantendo certa proximidade e número de características, o que contribuiu para fixá-lo como um movimento universal. O Romantismo formou-se lentamente e se impôs ao final de 1700 e início de 1800. É impossível estabelecer a data precisa, mas alguns pontos que auxiliam a cronologia podem servir de base como primeiras manifestações à luz do Romantismo. É o que abordaremos a seguir. UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 136 2 O ROMANTISMO: CONTEXTO HISTÓRICO NA EUROPA E POR EXTENSÃO NO BRASIL O Romantismo foi um complexo movimento cultural que, partindo dos pressupostos do pensamento e gosto do Iluminismo, enriqueceu-se de valores espirituais procedendo a uma renovação não somente no campo da literatura e nas artes em geral, mas também nos costumes da vida civil. Proveniente do advérbio latino romanice, que designava à maneira dos romanos, deriva em francês o vocábulo romanz, escrito rommant após o século XII e roman a partir do século XVII. Rommant, primeiramente, significava a língua vulgar em oposição ao latim e, posteriormente, passou a designar uma espécie de composição literária escritaem língua vulgar com temas que versavam sobre aventuras heroicas ou corteses. (SILVA, 1979). No século XVII entram em uso na Inglaterra romanesque e, na França, romantisme. Estes vocábulos, cada qual em seu país, rotulam o movimento cultural que abarca tendências por vezes antagônicas e excludentes, abrangendo mudanças nos padrões humanos, estéticos, filosóficos, religiosos, científicos, econômicos e exprimiam, sobretudo, aspectos melancólicos e selvagens da natureza, sentimentos e emoções diante de uma paisagem ou uma cena. Não se pode fixar o lugar onde primeiro surgiu, mas sabe-se que foi entendido como um movimento estético, traduzido num estilo de vida e arte, que dominou a civilização ocidental durante o período compreendido entre a metade dos séculos XVIII e XIX. Essa nova tendência reflete um estado de espírito inconformista em relação ao intelectualismo, ao absolutismo, ao convencionalismo clássico, ao esgotamento das formas e temas então dominantes. A imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade conquistam aos poucos o lugar que era ocupado pela razão. Ao que parece a Alemanha foi historicamente uma das nações que primeiramente fixou as novas ideias românticas, através da revista Athenaeum (1798-1800), publicada pelos irmãos Schlegel e que reunia nomes como os poetas Novalis (1772-1801) e Johann Tieck (1773-1853) e os filósofos Johann Fichte (1762- 1814) e Friedrich Schelling (1775-1854). A revista circulou por dois anos e deu a conhecer os temas fundamentais desses escritores, tais como: a primazia sobre o sentimento individual, a centralidade do “eu”, a investigação da natureza e da história, fermento cultural que antecipava a sensibilidade romântica. Na Inglaterra surgem nomes como Samuel Coleridge (1772-1834) e William Wordsworth (1770-1850), com temas que indagavam o intelecto, a vontade e a fantasia, e na França, iluministas como Rousseau e suas reflexões sobre a natureza e a exaltação do primitivismo, interpretadas como antecipação no desenvolvimento da sensibilidade romântica. TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 137 Além destes, um dos nomes expressivos para a disseminação do Romantismo foi Madame de Staël (1766-1817), que conclamava em seus escritos o abandono à imitação e ao abuso da mitologia dos clássicos, no intuito de modernizar uma cultura já superada. Staël, além de reprovar a imitação dos clássicos, se mostra a favor da tradução de obras estrangeiras contemporâneas. Caro/a acadêmico/a, refletiremos sobre o ato de traduzir, no intuito de voltar nossa atenção a estudiosos que, tal qual Staël, defende-o como fomento e fonte de renovação do conhecimento. Muitos papéis foram atribuídos à tradução e a importância desses viria a culminar com a necessidade pertinente em cada época. Para os romanos, estimulados a conquistas que eram, a finalidade da tradução era de emulação: tomar o modelo dos gregos, por exemplo, para superá- los, “de fato, naquela época se conquistava quando se traduzia – não somente deixando de lado o que era histórico [...] eliminava-se o nome do poeta e colocava- se no seu lugar o próprio”. (NIETZSCHE apud HEIDERMANN, 2001, p. 183). Na Idade Média a tradução era usada para difundir a religião, além da exaltação à língua e ao estilo nacional. No período humanista, revelou-se uma maior preocupação pelo conteúdo do texto original e pela preservação da intenção do autor. Nesse contexto, foi expressiva a contribuição de Leonardo Bruni quando da escrita do tratado De interpretatione recta, em 1420. Nele, percebia-se a ressalva de se manter o espírito e a alma do original, mas sempre na língua de chegada. Então, neste sentido notava-se a preocupação em exaltar a língua nacional, no caso o latim, pois, para Bruni, tudo o que fora escrito em grego poderia ser escrito em latim. (2004). No período renascentista, Lutero, em estreita conexão com a Reforma, percebeu a necessidade de traduzir as Sagradas Escrituras para o vernáculo, sem seguir a versão literal, acontecimento esse marcante para a cultura, língua e identidade do povo alemão. Muitos outros que se dedicaram à tradução poderiam ser citados, cada qual com a contribuição e a compreensão advindas de seus estudos. Nas teorias sobre tradução mais recentes, abre-se cada vez mais um diálogo profícuo com outras áreas do conhecimento: filosofia, história, linguística, literatura e psicanálise. Foi com Saussure (2006) que se abriu o ciclo dos grandes debates na área da linguística, no que concerne ao sentido das palavras. Ela contribuiu para suscitar no tradutor a incerteza da possibilidade de traduzir, na totalidade, o sentido de um enunciado. Mostrou, também, ao longo de seus estudos, o porquê de tal incerteza, já que os problemas da tradução se acentuam a partir da expressividade que as palavras comportam, em especial na literatura. Foi Charles Bally, em seu Traité de Stylistique Française (1902) quem levantou o problema da existência da “linguagem afetiva”, diversa da “linguagem intelectual” (BALLY apud MOUNIN, 1965, p. 102). Nessa perpectiva, um dos pontos mais polêmicos no campo tradutológico parece ser a tradução de textos literários, visto que na literatura é intrínseca a presença da subjetividade. UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 138 Benedetto Croce escreveu sobre a impossibilidade das traduções, se elas tiverem as pretensões de transvazar uma expressão em outra. A dificuldade reside no fato de que a poesia e a prosa têm uma elaboração de caráter estético. Um escritor determina, no ato da escritura, uma forma estética, ou seja, cria uma expressão, um modo singular de escrever. Para Croce, esse é um obstáculo insuperável, pois a tradução poderá diminuir ou poderá modificar a forma estética primeira. (CROCE, 1902). O tradutor lida com diferenças na sintaxe, na alternância fonética e fonológica, no ritmo, nas diferenças culturais, geográficas e temporais. Frente às preocupações quanto às “perdas” e à possibilidade da “intraduzibilidade,” a teoria tradutológica de Friedrich Schleiermacher, Sobre os Diferentes Métodos de Tradução, aponta dois caminhos que poderão ser trilhados pelo tradutor de obras literárias: O verdadeiro tradutor, aquele que realmente pretende levar ao encontro essas duas pessoas tão separadas, seu autor e seu leitor, e conduzir o último a uma compreensão e apreciação tão correta e completa quanto possível e proporcionar-lhe a mesma apreciação que a do primeiro, sem tirá-lo de sua língua materna, que caminhos ele pode tomar? A meu ver, só existem dois. Ou o tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor até ele; ou deixa o leitor em paz e leva o autor até ele. (2001, p. 43). O primeiro caminho apontado por Schleiermacher acena para as traduções que carregam as marcas do estrangeiro, ao passo que, no segundo, o texto vertido limitará o conhecimento de singularidades do autor estrangeiro, já que o tradutor que assim procede opta para que a obra soe nacional. Conforme o autor alemão, a entrada do elemento estrangeiro através da tradução enriqueceria a literatura e a língua de chegada, “nossa língua só pode prosperar bem renovada e desenvolver completamente a sua força própria através do contato multilateral com o estrangeiro.” (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 83). A tradução funciona na literatura como inovadora ou subversora – pode introduzir novos conceitos e gêneros, novos mecanismos e a história da tradução é também a história da inovação literária. Assim, pode-se afirmar que tradução constitui um imperativo da intercomunicação no mundo moderno. É considerada uma atividade fundamental para a difusão de conhecimentos, reforçando os já existentes ou trazendo o novo, aproxima culturas e povos, influencia na formação da língua e da literatura de uma nação, sua formação histórica, fixação de conceitos estéticos e na evolução de formas estilísticas da literatura moderna. Como afirma Walter Benjamin, “[...] ao longo dos séculos, a tradução imprimiu marcas profundas nahistória, não menos que as deixadas pela poesia e a doutrina”. (2001, p. 205). Desse modo, no Romantismo, nomes como o de Staël corroboraram para a observância e a percepção de que a tradução contribui para ampliar as fronteiras da língua e enriquecer a literatura e cultura local. Vejamos o que nos comunica Madame de Staël em seu ensaio Do Espírito das Traduções: TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 139 Não há mais eminente serviço que se pode prestar à literatura do que transportar de uma língua para outra as obras-primas do espírito humano. Existem tão poucas produções de primeira ordem; o gênio em qualquer área que seja é um fenômeno tão raro, que se cada nação moderna fosse reduzida a seus próprios tesouros, seria sempre pobre. (STAËL, 2004). Caro/a acadêmico/a, as ideias sobre a tradução, bem como outras declarações sobre a literatura de Staël divulgadas na Itália, mais precisamente na revista Biblioteca Italiana, em Milão, em 1816, são reprovadas por diversos italianos. Dentre estes podemos citar Pietro Giardino (1774-1848), que publica um artigo na mesma revista a favor dos clássicos. Desta polêmica entre clássicos versus românticos surge a revista Il Conciliatore, em 1818, que procura conciliar as duas posições antagônicas. Ainda na Itália, Giovanni Berchet é considerado um dos pais do romantismo, pois expressa sua preocupação com a poesia que deveria ser livre da imitação dos clássicos, ser paixão e inspiração da alma humana. Além disso, afirma que a língua a ser usada deve ser compreensível a todo o povo, e a poesia deverá ser instrumento de educação nacional. Essa função atribuída ao fazer poético poderá servir de explicação dos temas relacionados ao nacionalismo e à concepção heroica da vida. Segundo Silva (1979), quem elaborou e sistematizou diferenças entre arte clássica e arte romântica foi August Wilhelm Schlegel, que [...] caracteriza a arte clássica como uma arte que exclui todas as antinomias, ao contrário da arte romântica que se compraz na simbiose dos gêneros e dos elementos heterogêneos: natureza e arte, poesia e prosa, ideias abstratas e sensações concretas, terrestre e divino etc. (SILVA, 1979, p. 471). No plano estético recusam-se as regras e as normas clássicas, cedendo, então, lugar para total liberdade criadora e, desse modo, do equilíbrio racional à anarquia, e do universalismo estético para o individualismo. Se no Classicismo a tônica recaía sobre o rigor métrico, agora no Romantismo o que se observa é a procura do liberar-se destes velhos esquemas e, assim, as composições, as estrofes, os versos passariam a ter uma liberdade na qual métrica e rima não fossem mais imperativos. Foi revogada qualquer imitação tanto da retórica como do conteúdo, e a linguagem também se adaptava e servia à criatividade do artista. Vejamos alguns princípios basilares que aparecem nos escritos do Romantismo: O espiritualismo contra o idealismo absoluto exaltava o sentimento, a fantasia, o desejo de conhecer mais e responder às vibrações da sensibilidade humana. Sendo assim, a poesia, expressão do sentimento, deveria ser fruto de uma criatividade singular, voz da alma, livre de modelos e regras, apta a representar e transfigurar a realidade. UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 140 O individualismo, a partir da afirmação do “eu”, o homem passa a ser exaltado em suas particularidades. A concepção do “eu”, dos filósofos germânicos Fichte e Schelling, é elemento dorsal do romantismo. Para eles, o Eu constitui-se e revela-se como Eu absoluto. “O Eu é simultaneamente agente e produto da ação”. (SILVA, 1979, p. 475). Nas palavras de Moisés, “[...] o romântico sente-se o centro do Universo, o seu ego constitui a única paisagem que lhe interessa, de tal forma que a Natureza se lhe afigura mera projeção de seu mundo interior.” (2004, p. 409). A teoria do “eu” absoluto de Fichte influenciou sobremaneira a concepção romântica do “eu” e do universo. Ainda segundo Silva, os românticos interpretaram a teoria erroneamente, uma vez que O espírito humano, para os românticos, constitui uma entidade dotada de uma atividade que tende para o infinito, que aspira a romper os limites que o constringem, numa busca incessante do absoluto, embora este permaneça sempre como um alvo inatingível. Energia infinita do eu e anseio do absoluto por um lado; impossibilidade de transcender de modo total o finito e o contingente, por outra banda – eis os grandes polos entre os quais se desdobra a aventura do eu romântico. (1979, p. 475). Nascem desse homem do Romantismo, desejoso do absoluto e da percepção da impossibilidade de alcançá-lo, a melancolia, a insegurança, a nostalgia de algo distante, a solidão e o sofrimento: o mal do século, doença que se propaga entre os românticos, que os entedia e os faz preferir a morte à vida. Ainda nas palavras de Silva, O mal du siècle não se pode entender, portanto, como a sintomatologia de almas anêmicas que, desprovidas de audácia para a aventura e isentas de fundos anseios, se fecham receosas em si mesmas. A energia anímica superabundante, geradora de tensões insuportáveis, mãe dos infinitos desejos e dos sonhos sem limites, é que explica essa estranha florescência de tédios e agonias que devastou a sensibilidade romântica. (1979, p. 479). No que se refere ao herói romântico, este é rebelde, altivo e desdenhoso, luta contra as leis e os limites que o oprimem, desafia a sociedade e o próprio Deus, ou seja, o Romantismo revela uma condição titânica do homem. Veja o que nos revela Silva sobre o titanismo, cuja concepção transcreveremos na íntegra: Prometeu é a figura mítica que os românticos frequentemente exaltam como símbolo e paradigma da condição titânica do homem, pois que, tal como Prometeu, é o homem um ser em parte divino, “um turvo rio nascido de uma fonte pura”, cujo destino é urdido de miséria, solidão e rebeldia, mas que triunfa deste destino pela revolta e transformando em vitória a própria morte, como proclamou Byron: “Na tua paciente energia, na resistência e na revolta do teu invencível espírito, que nem a terra nem o Céu puderam abalar, herdamos nós uma poderosa lição; tu és para os Mortais um símbolo e um sinal do seu destino e da sua força. Como tu, o Homem é em parte divino, um turvo rio nascido de uma fonte pura; e o Homem pode prever fragmentariamente o TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 141 seu destino mortal, e sua miséria, e sua revolta, a sua triste existência solitária, ao que o seu Espírito pode opor a sua essência à altura de todas as dores, uma vontade firme e uma consciência profunda que, mesmo na tortura, pode descobrir a sua recompensa concentrada em si própria, pois que triunfa quando ousa desafiar e porque faz da Morte uma Vitória.” Satã tal como Milton o pinta no Paradise Lost – majestoso anjo caído em cujos olhos belos moram a tristeza e a morte, animado de um heroísmo sombrio e orgulhoso, proclamando corajosamente a glória e a grandeza do seu desafio ao Criador –, tornou-se outro grande símbolo para os românticos, como personificação da rebeldia e da aspiração de alcançar o Absoluto. Caim é igualmente interpretado pelos românticos como um sublime rebelde que, torturado pela miséria e pela dor do destino humano, ávido da eternidade e do infinito, se recusa a obedecer docilmente a Deus, chamando os outros homens à revolta heroica, preferindo a morte à vida efêmera e escravizada: “trabalhei e lavrei, suando ao sol, de acordo com a maldição divina: devo fazer mais alguma coisa? Por que havia eu de ser dócil? Pela guerra travada com todos os elementos antes que eles nos cedam o pão que comemos? Por que havia eu de ser reconhecido? Por ser pó, por rastejar no pó até que volte ao pó?”. Também D. João, o gozador impenitente e libertino do teatro seiscentista, se transforma com o romantismo num peregrino do Absoluto, buscando reencontrar através do amor, como Fausto através da ciência, o paraíso perdido, o segredo do universo,a unidade primordial. Muitas vezes, os românticos transferem para certas figuras humanas a revolta, o desafio idealista, a fome de absoluto que consumiam Prometeu, Satã, Caim ou D. João. O bandido, o pirata, o fora da lei, filhos de Satã pela rebeldia e pela generosidade, constituem figuras das mais admiradas pelos românticos, tendo Schiller criado em Karl Moor herói de seu drama, Die Räuber (1781), uma figura de bandido que ficou paradigmática. Também no homem fatal do romantismo se reencontram muitos elementos característicos de Satã, desde a fisionomia – face pálida, olhar sem piedade – até o temperamento e as feições psicológico-morais – melancolia, desespero, revolta, pendor inelutável para a destruição e o mal. Childe Harold, Manfredo, Lara – eis outros tantos homens fatais através de quem Byron exprimiu o seu titanismo e através dos quais se divulgou na Europa esse tipo de herói romântico. Outras vezes, são figuras dos poetas geniais, desgraçados e perseguidos pela sociedade, condenados à solidão, incompreendidos pelos outros homens, desafiando o destino, que os românticos exaltam como símbolos da aventura titânica do homem. Por isso o romantismo se deixou fascinar pela história e pela lenda de poetas como Dante, exilado e foragido, Tasso, encarcerado e demente, Camões, amante infeliz e desterrado etc. FONTE: Silva, 1979, p. 477-478 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 142 A ironia também se faz presente nas características do Romantismo. Ela entra em cena para lembrar ao homem que cada triunfo é prólogo de um novo combate, “numa cadeia infindável de gestos e atos incessantemente recomeçados”. (SILVA, 1979, p. 481). Outro elemento importante a ser observado no Romantismo é o conflito latente do romântico advindo do desgosto perante a finitude e o imperfeito. Sendo assim, procura ansiosamente a evasão no fantástico, no sonho, na orgia, no espaço e no tempo, sentimento e paixão contra a razão e a lógica. Outra característica é a religiosidade ao invés do ateísmo, ou seja, uma revivência do ideal religioso, após um parcial ofuscamento gerado pelo racionalismo iluminista. Vale ressaltar que essa religiosidade dificilmente aceita dogmas e a autoridade hierárquica, e tende a dispensar os ritos e a mediação sacerdotal. Sendo assim, podemos afirmar que a religiosidade para os românticos é de natureza sentimental e intuitiva: cultuavam Deus na natureza, na água, no mar, nas montanhas, nos animais, em tudo o que existe no universo. Para Silva (1979), o panteísmo foi a forma de religiosidade explorada pelo Romantismo. Podemos citar ainda que no Romantismo uma mesma composição poderia variar na métrica, e a qualidade poética se impunha sobre ritmos mais musicais, crescendo as denominadas baladas, que exigem uma poesia mais popular com conteúdos interessantes, educativos, expressados em linguagem simples adaptada aos novos burgueses, culturalmente motivados. Constitui-se, assim, uma transformação estética e poética desenvolvida em oposição à tradição dos escritos gregos e latinos. Há que se considerar que muitas das formas características do neoclassicismo, como as odes, a égloga e a tragédia, entram em decadência. No lugar da tragédia, por exemplo, presente em Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Sêneca, nas quais o herói se relaciona somente com a luta e o aniquilamento e nunca o fator psicológico o assola, surge o romance, uma forma literária relativamente moderna que se firma quando a epopeia desaparece cedendo-lhe lugar. O romance, bem como as modificações da tragédia, acontecem porque o conceito de vida e a sua relação com a essência transformaram-se. (LUKÁCS, 1982, p. 62). No decorrer dos últimos séculos, torna-se a mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. (SILVA, 1979, p. 671). Aparecem os romances de análise psicológica, os de costumes, a poesia intimista, a filosófica, o poema e a prosa. TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 143 Caro/a acadêmico/a, no que se refere ao romance, pode-se afirmar que juntamente com a novela torna-se uma literatura agradável e emplaca como expressão dos afetos e espelho das condições sociais e políticas da sociedade industrial. Pode ser considerado o gênero mais adequado para exprimir os afetos, os problemas, as condições sociais e políticas de uma sociedade em contínuo movimento. Sobre o aparecimento do romance, assim nos fala Lukács: a tragédia em sua essência se conservou intacta, mesmo com as mudanças por quais passou; a epopeia, por sua vez, desapareceu e cedeu espaço para um gênero completamente novo: o romance que se caracteriza “[...] a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e privada de significação para o indivíduo – o leva a um claro conhecimento de si.“ (LUKÁCS, 1982, p. 91). UNI Na fase do romantismo, como já assinalamos, o movimento intentava algo diverso do que existia tanto no que se refere à atividade mental, bem como mudanças de interesse literário da poesia à prosa. O escrever em versos passa por uma revolução no que tange às regras. No Brasil o Romantismo foi expressivo e marca a fase áurea de transição da nossa literatura. É o que discutiremos a seguir. 3 OS PRECURSORES DO ROMANTISMO No século XVIII confluem várias correntes, tais como o Barroco retardatário, o Neoclassicismo e o Arcadismo. Além destas, desenvolve-se aquele que foi denominado estilo rococó e irrompe o Pré-Romantismo. Escritores são, simultaneamente, reconhecidos como neoclassicistas e pré-românticos, daí a dizer que paira no campo das artes uma certa complexidade quando da tentativa de delimitar correntes, formas e estilos. Em outras palavras, é difícil estabelecer uma periodologia literária. Atente então, caro/a acadêmico/a, para o Pré-Romantismo: ele não possui “[...] a homogeneidade de uma escola literária, nem apresenta um campo sistemático de doutrinas” (SILVA, 1979, p. 464) e, mesmo assim, não poderia ser considerado um movimento sem estilo e/ou formas próprias. Outrossim, revela características que fazem alusão à valorização do sentimento, bondade e virtude emanam do homem e se sobrepõem às normas jurídicas ou éticas; podemos então dizer que o coração falava mais alto. UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 144 Os escritores que fazem parte do rol desse importante movimento apresentam obras nas quais a emoção é transmitida através de uma bela paisagem, deixando transparecer uma afetividade, um laço de união entre o eu e a natureza e, por vezes, revela-se na saudade, angústia e lágrimas. Ocorre um distanciamento das influências greco-latinas e, sendo assim, a morte, os sonhos, os sepulcros e os presságios negativos também fazem parte das revelações pré-românticas, e traduzem a “[...] nostalgia do infinito e a funda insatisfação espiritual que já angustiam os pré-românticos e que hão de revelar-se mais exacerbadamente nos românticos”. (SILVA, 1979, p. 466). No que tange ao Brasil, o Pré-Romantismo, para o estudioso Afrânio Coutinho (2004c), encontra-se inserido no Arcadismo, uma vez que o movimento abarca duas fases, uma neoclássica e a outra pré-romântica. A primeira fase foi subjugada pela influência portuguesa, já a segunda aparece como mais livre. Uma possibilidade advinda dos fatores e do momento pelo qual o Brasil passava. Sob as duas fases, evidenciam-se prenúncios do Romantismo. Com a estada da família real, deu-se o rompimento entre brasileiros e portugueses, “[...] pode-se dizer o levante de uns contra os outros, fenômeno necessário da separação de dois povos” (VERÍSSIMO, 1998, p. 177) e, assim, Portugal perde seu papel de criador, educador e provedor desta sociedade que ora se emancipava. No que diz respeito à literatura, assim se manifesta Veríssimo: “No Brasil cantavam os poetas mineiros, alguns deles românticos por antecipação, mas em suma era o mesmo Arcadismo o tom dominante nas letras”. E ainda afirma o autor: [...] entre o fim do renascimento poético aqui operado(dentro, aliás, só de si mesmo e sem irradiação notável) pela plêiade mineira e as primeiras manifestações do nosso Romantismo, isto é, entre o último decênio do século XVIII e o terceiro do XIX, dá-se a poesia brasileira uma paralisação do movimento que parecia prenunciar-lhe a autonomia. Pode-se mesmo dizer que se dá um regresso ao estafado Arcadismo português. Nunca tivera o Brasil tantos poetas, se a esses versejadores se pode atribuir o epíteto. Relativamente aos progressos que já fizéramos, nunca os tivera tão ruins, tão insípidos e incolores. (1998, p. 178). Se a história literária revela que o Arcadismo em Portugal concentrou- se entre 1756 a 1825, no Brasil, conforme Coutinho (2004c), apresenta a data de 1768 a 1795 como registro da primeira fase, predominantemente arcádica, com escritores como Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Basílio da Gama, dentre outros. Para demarcar a segunda fase portadora dos rumores do Romantismo, divulgados nos periódicos que, através de seus ensaios, contribuem para a formação dos ideais de liberdade, Coutinho (2004c) estabelece a data de 1808 a 1836. Momento reconhecido como marco divisor do colonialismo à autonomia, de transição que possibilitará na literatura o aparecimento da consciência crítica, anteriormente negada em virtude da política colonizadora. Sendo assim, o processo da autonomia se inicia com a vinda da dinastia portuguesa que escolhe o Brasil, especificamente o Rio de Janeiro, como forma de erguer um novo império, parte de um projeto para fugir da violência napoleônica. TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 145 Neste período de transformação de um Brasil-Colônia para um imperialismo, como já mencionamos, a corte portuguesa se estabelece no Rio de Janeiro e os que aqui chegam forçam a criação de um local que lembrasse o distante Portugal. Sendo assim, foram idealizadas numerosas reformas, como a abertura de portos, a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, bem como a expansão do comércio, da indústria e da agricultura. Ocorreram também reformas no ensino, com a criação da escola superior e de tipografias, o que possibilitou o comércio de livros, a instalação da imprensa periódica, de bibliotecas e museus. Neste contexto, se dissemina o cultivo da oratória e das artes cênicas, tudo sob o aval de D. João VI, que nutria um gosto especial pelas manifestações artísticas. De acordo com Coutinho (2004c, p. 46), “[...] há em tudo isso, de maneira geral, mistura de Arcadismo, Pré-Romantismo, até mesmo Romantismo e o despontar da literatura folclórica”. Ainda segundo o mesmo autor, se compararmos os três séculos anteriores, período do colonialismo, veremos que as atividades artísticas limitavam-se a reproduzir a vida literária da metrópole e, a partir de 1808, no que se refere à literatura, podemos verificar a presença de influências internas e externas. As externas são estimuladoras e atuam juntamente com os fatores internos, rumo ao pensamento da realidade local e nacional e um amadurecimento que somente o tempo permitiria. No dizer de Coutinho, Desenvolvem-se a mentalidade, as possibilidades aquisitivas do brasileiro, o interesse consciente pelos próprios destinos, forma- se uma elite representativa de sua vida política e cultural, até certo ponto demasiado autossuficiente de sua capacidade, capacidade adolescente de quem se basta a si próprio. Estabelece-se um regime de intercomunicabilidade no país, procura-se o contato com o Velho Mundo, além-fronteiras de Portugal. (2004c, p. 42). Neste ínterim, alarga-se a oratória religiosa, em especial nas figuras de Januário da Cunha Barbosa, Frei Francisco de S. Paio, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, oradores que se consagram favorecidos por D. João VI, que se comportava como que um “mecenas”, valorizando o púlpito e quem nele se revelava através da palavra e da musicalidade. Uma das figuras expressivas foi Mont’Alverne. Francisco José de Carvalho ou Francisco de Mont’Alverne nasceu no Rio de Janeiro, em 1784. Entrou para o convento na cidade de São Paulo, em 1804, como colegial. O jovem se sobressai nos estudos e, em 1810, foi eleito pregador e professor de Filosofia. Exerceu também o magistério no Rio de Janeiro, lecionando Retórica, Filosofia Nacional e Moral e Teologia Dogmática. Nos colégios nos quais estudou era costume a defesa de conclusões magnas, realizadas em festas literárias. Mont’Alverne participou da oratória e, pelo estilo e adorno, conseguiu vitória e fama. Acometido pela cegueira, isolou-se dos afazeres acadêmicos por um longo período, aproximadamente doze anos. No ano de 1848, Joaquim Pinto Brasil fundou uma associação literária que foi denominada “Ensaio” e convidou Mont’Alverne para assistir a essa solenidade e lá lhe renderam homenagens. UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 146 Era a primeira vez que Mont’Alverne, depois de doze anos de duro esquecimento, via-se restituído à posteridade honrosa a que tinha jus por sua inteligência e por seus serviços. Lágrimas abundantes correram de seus olhos, o prazer inefável reanimou suas feições abatidas e maceradas pelo desgosto, sua voz sonora e grave desprendeu-se de seus lábios quase frios pela indiferença. Ouviu-se um ligeiro queixume da vítima da ingratidão, logo depois um agradecimento a quem lhe sabia fazer justiça. (SISSON, 1999, p. 325). Surpreso com a homenagem, assim se manifestou Mont´Alverne ( 1848 apud SISSON, 1999, p. 326): Estou fraco e abatido... a posição em que estou é tão extraordinária para mim que talvez não a compreendais!... Se eu soubesse que era arrancado das bordas do meu sepulcro, do seio do meu retiro, para receber das mãos da mocidade uma coroa de louros, honra cívica que premia meus serviços pisados pela ignorância, esquecidos pela estupidez, e mal pagos pela mais fria indiferença, ainda assim talvez não tivesse coragem de apresentar-me para recebê-la. Eu sei que ela tem um grande peso, que tem um brilho muito acima de meu merecimento, e que meus trabalhos não correspondem a esta auréola que recebo no fim da minha vida! A convite do Imperador Dom Pedro, profere no dia 19 de outubro de 1854 o panegírico a São Pedro de Alcântara. Convidados ouviram e aplaudiram extasiados Mont’Alverne. Vejamos parte do discurso: É tarde... É muito tarde!... Não, não poderei terminar o quadro que acabo de bosquejar: compelido por uma força irresistível a encetar de novo a carreira que percorri por 26 anos, quando a imaginação está extinta, quando a robustez da inteligência está enfraquecida por tantos esforços, quando não vejo as galas do santuário, e eu mesmo pareço estranho àqueles que me escutam, como desempenhar esse passado tão fértil de reminiscências? Como reproduzir esse transporte, esse enlevo com que realcei as festas da religião e da pátria?... É tarde... É muito tarde!... Seria impossível reconhecer um carro de triunfo neste púlpito que há dezoito anos é para mim um pensamento sinistro, uma recordação aflitiva, um fantasma infenso e importuno, a pira em que arderam meus olhos, e cujos degraus desci só e silencioso para esconder-me no retiro do claustro. Os bardos do Tabor, os cantores de Hermon e de Sinai, batidos da tribulação, devorados de pesares, não ouvindo mais os ecos repetirem as estrofes de seus cânticos, nas quebradas de suas montanhas pitorescas; não escutando a voz do deserto que levava ao longe a melodia de seus hinos; penduraram seus alaúdes nos salgueiros que bordavam o rio da escravidão; e quando os homens que apreciavam suas composições, quando aqueles que se deleitavam com os perfumes do seu estilo e a beleza de suas imagens vinham pedir-lhes a repetição TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 147 dessas epopeias em que perpetuavam a memória de seus antepassados e as maravilhas do Todo-Poderoso, eles cobriam suas faces umedecidas de pranto e abandonavam as cordas frouxas e desafinadas de seus instrumentos musicaisao vento das tempestades. (ALVERNE, 1848 apud SISSON, 1999, p. 329). Perceba que Alverne fala da impossibilidade na qual se encontra e que, devido ao seu estado, não pode, através da palavra, fazer-se ouvir às gerações como outrora. O franciscano finaliza o exórdio colocando em pauta a religião como primeira, única e inesgotável fonte da qual se nutriu durante a vida: Religião divina, misteriosa e encantadora. Tu que dirigiste meus passos na vereda escabrosa da eloquência, tu a quem devo todas as minhas aspirações, tu, minha estrela, minha consolação, meu único refúgio, toma esta coroa... Se dos espinhos que a cercam rebentar alguma flor, se das silvas que a enlaçam reverdecerem algumas flores, se um enfeite, se um adorno renascer dessas vergônteas já secas, deposita-a nas mãos do Imperador para que a suspenda como um troféu sobre o altar do grande homem a quem ele deve o seu nome e o Brasil a proteção mais decidida. (ALVERNE, 1848 apud SISSON, 1999, p. 332). O vocábulo panegírico significa um discurso solene numa reunião pública. Primitivamente, a palavra designava oração de louvor proferida nas assembleias gerais dos gregos. Herdeiros da cultura ateniense, os latinos assim a receberam, o que fez com que cultuassem e expandissem essa prática na Europa. Atualmente, o termo adquiriu conotação pejorativa, significa elogio desmedido e interesseiro. (MOISÉS, 2004). UNI Devido à eloquência, à dicção, ao adorno e à linguagem empregados em seus escritos, eles se tornaram modelo retórico a ser seguido. Pregando por ocasião do aniversário do juramento da Constituição, podemos observar, por parte do orador, um patriotismo acentuado e o destaque à figura de D. Pedro I, que colaborou na elaboração da constituição do país recém-liberto. Observe: UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 148 Foi sem dúvida um dos mais soberbos triunfos da filosofia a aquisição dum príncipe que, recebendo o cetro e a coroa das mãos dum povo, que ele mesmo libertara, proclamou a soberania popular, resolveu a teoria da legitimidade e completou o grande ato da independência do Brasil, oferecendo-lhe uma Constituição, na qual se reúnem as inspirações mais sublimes, os votos de todos os homens generosos, e todos os penhores do engrandecimento nacional. (ALVERNE, 1848 apud BOSI,1980, p. 96). O franciscano assim se expressou quando da conclusão de um de seus escritos: “Tantos esforços, fadigas tão aturadas eram precisas para deixar um vestígio de minha passagem nesta terra, onde recebi aplausos, coroas e ovações, de que nenhum orador, nenhum filósofo antes de mim ousou ainda gloriar-se.” (ALVERNE apud SISSON, 1999, p. 312). Assim, através de um falar torrencial, antecipa o gosto [...] pelas figuras de acumulação, as interrogações, os incisos apostróficos, as reticências: como deles antecipa o ideal de um individualismo libertário e heroico: e pouco importa se o herói é um mártir cristão ou um patriota oitocentista. (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 159). Esta é a maneira da qual lança mão para conclamar o povo a compreender os mistérios divinos da religião e amar a pátria, Brasil, levando os espectadores espontaneamente aos aplausos. No dizer de Bosi, as características presentes nos escritos de Mont’Alverne são “[...] a intenção apologética, um vago e retórico amor da pátria e, embora soe estranho na boca de um frade, um exagerado conceito de si-narcisismo que bem assenta a esse avatar dos românticos”. (1980, p. 95). Daí a dizer que sua obra pressentia o romantismo. FIGURA 19 – FRANCISCO DE MONT’ALVERNE FONTE: Sisson, (1999) TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 149 Vale também citar como precursor do Romantismo o Pe. Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), que, nascido carioca, foi sacerdote, poeta profano e orador sacro. Estudou na Europa e devido às suas ideias manifestadas em composições profanas, foi rotulado herege. A partir da ordenação sacerdotal, abandonou a poesia profana, ganhando renome como orador sacro, com escritos de cunho filosófico e inspiração religiosa. Em 1808, estabeleceu-se definitivamente no Rio de Janeiro. De 1810 a 1812 compôs as Cartas que versam sobre a liberdade de opinião, no intuito de enfatizar que a fé religiosa, sincera e forte, deveria coexistir com extrema liberdade intelectual. FIGURA 20 – ANTÔNIO PEREIRA SOUSA CALDAS (1762-1814) FONTE: Disponível em: < http://www.antoniomiranda.com.br/ poesia_brasis/rio_de_janeiro/antonio_pereira_de_souza_caldas. html>. Acesso em: 2 jan. 2011. Suas poesias foram publicadas postumamente pelo amigo Francisco de Borja Garção Stockler. Em seus escritos predomina uma inspiração religiosa e moralista. Traduziu os Salmos de Davi e, em 1784, inspirado na teoria de Rousseau, compõe Ode ao homem selvagem. Leia parte do poema: UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 150 FIGURA 21 – ODE AO HOMEM SELVAGEM FONTE: CALDAS, Antônio Pereira de Sousa. Poesias sacras e profanas. In: Obras poéticas. Notas e aditamentos de F. de E. Stockler. Coimbra: Imprensa Trovão e Companhia, 1836, p. 125, v. 2. Há que se ressaltar que Rousseau defendeu a ideia da bondade natural do homem e escreveu sobre as origens da desigualdade social. Desenvolveu essa teoria na obra “Discours sur L`Origine de L`Inegalité”, publicada em 1755 e em “Du Contrat Social”, publicada em 1762. Diante do problema da desigualdade humana, defende que todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte da natureza do homem. Inspirou, assim, movimentos que visavam à busca pela liberdade, bem como a poesia de escritores que também encontravam acalanto nas palavras e na filosofia de Rousseau, como foi o caso de Antônio Pereira Sousa Caldas. Outro precursor a ser destacado é Frei Francisco de S. Carlos (1768- 1829), um franciscano que nos legou o poema religioso A Assunção, em honra à Santa Virgem, publicado em 1819, versos decassílabos, de rimas emparelhadas. Vejamos: TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 151 A Assunção da Santa Virgem [frag.] Canto I FONTE: ORFEU SPAM. Jornal Eletrônico de Poesias e Artes. Disponível em: <http://www.astorm entas.com/poema.aspx?id=11711&tp=&titulo=Canto+III+%5B%C3%93+Musa%2C+d%C3%A1+a+ meus+versos+a+do%C3%A7ura%5D>. Acesso em: 24 jan. 2011 Em seus escritos o conteúdo, por vezes, pende para o moralizante, em que a morte parece solução para o mundo que está em pecado. Veríssimo assim se pronuncia sobre o poema em honra à Santa Virgem: Uma das mais insulsas e aborridas produções da nossa poesia. Em oito estirados cantos de versos decassílabos, rimados uniformemente em parelha, monotonia que é aumentada pela pobreza das rimas e geral mesquinheza da forma, descreve o poeta a Assunção da Virgem desde a ressurreição do seu túmulo, em Éfeso, até a sua chegada ao Paraíso, através de várias peripécias maravilhosas por ele imaginadas. O poema é do princípio ao fim prosaico, sem se lhe poder tirar algum episódio ou trecho realmente belo, a inventiva pobre, balda de novidades ou grandeza, a língua mesquinha e vulgar. (1998, p. 183). À parte as considerações de Veríssimo, o franciscano, por expressar um nacionalismo cantado em rimas e formas livres, enaltecendo a terra brasileira, foi dignificado como precursor do Romantismo. Além destes, o patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, também é destaque na literatura deste período. Bonifácio nasceu em Santos, São Paulo, em 1763. Formou-se em Filosofia e leis em Coimbra. Em 1819, retorna ao Brasil e os acontecimentos com os quais aqui se depara despertam seu sentimento nacional, tornando-se um dos protagonistas da Independência. Vejamos um pouco da história de vida deste ilustre brasileiro, que nasceu em 13 de junho de 1763. Foram seus pais o coronel Bonifácio José de Andrada e D. Maria Bárbara da Silva. O casal, além de José Bonifácio, teve mais dois filhos, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva e Martim Francisco. Era no tempo frígido, e sereno, Em que ao nosso Hemisfério o riso ameno Já mostra a primavera:vida ganha O verdor dos Jardins, e da Campanha Ia o Sol em Ástrea quase entrando, Seus raios inda frouxos dardejando. O torto Cajueiro se adornava Das purpúreas folhinhas, que brotava. Cobria-se de flores a mangueira, E o ar embalsamava a laranjeira. A sua fruta d’ouro, que em doçura Vence a Aristeu, caía de madura. O terno Sabiá buscando amores Já saudava por entre os mil verdores Do copado pomar, seu senhorio, A chegada das águas, e do Estio. Das ursas o Pyrhois se desviava, E ao Capripedo término voltava. Do polo Árctico a parte toda escura Deixando, o Céu da linda cinosura, O Lapão frio, a inculta Noruega, A quem natura quase tudo nega. [...] UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 152 O coronel Bonifácio de Andrada, seu pai, era conhecido em Santos. A mãe de José Bonifácio, D. Maria Bárbara, de caráter altivo e de vontade forte, ambiciosa da grandeza e glória de seus filhos, fazia os Andrada, ainda crianças, estudarem exaustivamente. Em 1777, seguiu José Bonifácio para a cidade de São Paulo, no intuito de se dedicar a estudos mais avançados e, no ano de 1780, parte para Portugal, para estudos universitários. Matriculou-se na Faculdade de Direito Canônico e em Filosofia Natural. Sob o aval do duque Lafões, o jovem José Bonifácio passa a fazer parte da Academia Real das Ciências. Naquele tempo, a entrada na Academia das Ciências era um grande sucesso, porque os ministros compareciam a sessões, na intenção de escolher os homens que depois deveriam passar ao serviço do rei. Em 1789, a rainha de Portugal, D. Maria I, rubricou o decreto de nomeação feito a José Bonifácio e outro brasileiro, Arruda Câmara, para fazerem parte de uma viagem científica por toda a Europa, como naturalistas e especialmente metalurgistas. Por seus trabalhos literários, alguns dos quais se referiam ao Brasil, tornou-se conhecido em toda a Europa. Além de suas memórias, escreveu para jornais científicos da Alemanha, França e Itália, notando-se entre esses trabalhos os que são relativos às minas da Suécia, Noruega e ao fluido elétrico. Em 1800, voltou para Portugal após 10 anos de estudos de observação, rico de ideias e poderoso pela reputação que havia adquirido, e foi nomeado na Universidade de Coimbra para ler em aulas de geognesia e metalurgia. Ainda em Portugal acenderam-se no jovem os brios da nacionalidade, da luta pela liberdade. Em 1819, pede José Bonifácio licença para voltar à pátria Brasil. Aqui participou ativamente da vida política da nação. (SISSON, 1999). Para além da atuação política se manifesta através da poesia e da prosa, na qual transporta sua preocupação com problemas que assolam a vida social e política brasileira, como as questões relacionadas aos indígenas e à escravidão. As poesias foram escritas na “fase do exílio em Bordéus, as quais ao mesmo tempo são arcádicas, pré-românticas e voltadas para a realidade política brasileira que o envolveu”. (COUTINHO, 2004c, p. 49). É uma escrita que exalta o sentimento patriótico e os tão sonhados ideais de liberdade. Na poesia que segue podemos comprovar as queixas feitas ao poder da Pátria que o negou, o rancor que nutre pelos que o tiraram do poder; além disso, enaltece o povo baiano pela sua coragem. Transparece um nativismo exacerbado, revelando a exuberante natureza brasileira. TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 153 Ode aos baianos [frag.] [...] Morrerei no desterro em terra estranha, Que no Brasil só vis escravos medram: Pra mim o Brasil não é mais pátria, Pois faltou à justiça. Vales e serras, altas matas, rios, Nunca mais vos verei - sonhei outrora Poderia entre vós morrer contente; Mas não - monstros o vedam. Não verei mais a viração suave Parar o aéreo voo, e de mil flores Roubar aromas e brincar travessa Co trêmulo raminho Oh! país sem igual, país mimoso! [...] FONTE: BONIFÁCIO, José. Poesias. Edição fac-similar da principal, de 1825, extremamente rara; com as poesias ajuntadas na edição de 1861, muito rara; com uma contribuição inédita. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1942. (Coleção Afrânio Peixoto). Disponível em: <http://www. astormentas.com/din/poema.asp?key=12571&titulo=Ode aos Baianos>. Acesso em: 24 jan. 2011. Se na poesia Ode aos baianos são transmitidos sentimentos de desprezo por uma terra que já não pode ao poeta pertencer, nesta que segue Bonifácio conclama júbilo, união e servidão à liberdade da Pátria Brasil. Veja parte do poema: Escritor e tradutor, manifestou e exprimiu o patriotismo, celebrou e proclamou a liberdade que desde cedo o motivou. Além desses temas, o amor também foi por ele descrito: Em bródio festivo Mil copos retinam; Que a nós não nos minam Remorsos cruéis; Em júbilo vivo Juremos constantes De ser como dantes À pátria fiéis ......................................... Gritemos unidos Em santa amizade Salve, ó liberdade! E viva o Brasil! Sim, cessem gemidos, Que a pátria adorada Veremos vingada Do bando servil. (SILVA apud VERÍSSIMO, 1998) UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO 154 Ser e não Ser O poema já prenuncia questões que caracterizam o Romantismo, quais sejam, o amor, o medo e a nostalgia proveniente da ausência da amada, bem como sua idealização e a dor de perdê-la. Sobre a questão dos precursores do Romantismo, FIGURA 22 – JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA FONTE: Sisson, (1999) Veríssimo assim se expressa em relação aos poetas indicados por Coutinho como escritores vanguardistas do Romantismo brasileiro. Excetuados José Bonifácio e Sousa Caldas, cuja obra é mais sólida e revela mais talento, os mais são de fato insignificantes. Em José Bonifácio só tem, aliás, valor os poemas inspirados da sua paixão de repúblico fundamentalmente ferido na sua soberba, ou em que ele mais misturou essa paixão. O resto se não sobreleva à mediocridade comum. Se te procuro, fujo de avistar-se, E se te quero, evito mais querer-te, Desejo quase... quase aborrecer-te, E se te fujo, estás em toda a parte. Distante, corro logo a procurar-te, E perco a voz, e fico mudo ao ver-te Se me lembro de ti, tento esquecer-te, E se te esqueço, cuido mais amar-te. O pensamento assim partido ao meio, E o coração assim também partido, Chamo-te e fujo, quero-te e receio! Morto por ti, eu vivo dividido, Entre o meu e o teu ser sinto-me alheio, E sem saber de mim, vivo perdido. (SILVA apud FREIRE, 1913) TÓPICO 1 | IDEIAS E IDEAIS DOS ROMÂNTICOS 155 É de um árcade imbuído de filintismo. Predecessores do Romantismo, não lhe são os precursores, pois bem pouco é o que se lhes possa descobrir pronunciando o movimento que aqui se ia em breve iniciar, e do qual alguns destes poetas foram contemporâneos, inadvertidos. Não souberam sequer continuar os mineiros, dos quais não há neles outro sinal que o apontado, nem preceder os românticos. Ocupam apenas o vazio, a fase entre dois movimentos poéticos, sem o preencherem. (grifo nosso). E tomados em conjunto, não se lhes sente na poesia impressão ou influxo da evolução que desde a chegada da família real portuguesa se operava aqui, nem mesmo da independência cujos contemporâneos e testemunhas muitos deles foram. (VERÍSSIMO, 1998, p. 189-190). Vale também ressaltar que, com a vinda da família real para o Brasil, o teatro foi estimulado com a edificação do Real Teatro de São João, em 1813, e a atividade literária estende-se no cultivo à poesia e à prosa, em traduções de autores estrangeiros como Voltaire, e de novelas francesas como: O Amor Ofendido e Vingado, O Bom Marido, Castigo da Prostituição, títulos que “[...] por si sós falam de uma antecipação romântica”. (COUTINHO, 2004c, p. 46). É pertinente ainda, deste período, mencionar o trabalho da imprensa periódica, possibilitado, como já mencionado anteriormente, pelas iniciativas de D. João VI, que, ao divulgar o pensamento, os ideais e as ideias da época, corroborou para o alargamento da literatura brasileira. A imprensa periódica no Brasil principiou em 1808 com a fundação semioficial da Gazeta do Rio de Janeiro.Desse período em diante e, em especial, após a Independência, surgiram inúmeros jornais e revistas que exprimem a preocupação política, o progresso cultural e a propagação das ideias liberais. A mais expressiva foi a revista O Patriota, que surge em 1813, com seções sobre literatura, topografia, política nacional e estrangeira, história, agricultura, química, gramática filosófica, dentre outros assuntos. A seção “Obras Publicadas” marca o início da crítica no Brasil, “[...] em particular da crítica noticiosa, isto é, militante”. (COUTINHO, 2004c, p. 53). Vale também destacar que circulam no Brasil periódicos editados fora do país, como O Investigador Português e o Correio Brasiliense, de 1808-1822, considerado este último um poderoso instrumento de formação de uma mentalidade política. O Patriota, jornal político, literário e mercantil, circulou por dois anos com temas e assuntos que versavam desde conhecimento a progresso, com textos elaborados por Pedra Branca, Silva Alvarenga, José Bonifácio, Camilo Martins, Marquês de Maricá, Pedro Francisco Xavier de Brito, dentre outros. (VERÍSSIMO, 1998). Ainda neste contexto de transição do período colonial para a autonomia, dois estrangeiros devem ser mencionados: Almeida Garrett e Ferdinand Denis. Garrett, um dos fundadores do Romantismo português, influenciou escritores brasileiros da época. Ferdinand Denis também corrobora para com o momento de afirmação crítica do Romantismo no Brasil. Preocupado com o destino da literatura brasileira, indica “a inspiração romântica que deveríamos seguir, num abandono total da imitação europeia e, em particular, do Classicismo”. (COUTINHO, 2004c, p. 52). Neste período, na Alemanha, Inglaterra e França manifestavam-se sinais de uma renovação literária que iria eclodir no Romantismo, um movimento, sobretudo, de liberdade espiritual, social e política, a ser explorado a seguir. 156 Neste tópico, você, viu que: • Ao que parece, a Alemanha foi historicamente uma das nações que primeiramente fixou as novas ideias românticas, divulgadas através da revista Athenaeum. • Nomes expressivos que contribuíram para a disseminação do Romantismo foram: irmãos Schlegel, Novalis, Johann Tieck, os filósofos Johann Fichte e Friedrich Schelling, Coleridge, William Wordsworth e Madame de Staël, dentre outros. • Na Idade Média o traduzir era usado para difundir a religião, além da exaltação à língua e ao estilo nacional. • No período humanista revelou-se uma maior preocupação pelo conteúdo do texto original e pela preservação da intenção do autor. • No período renascentista, Lutero, em estreita conexão com a Reforma, percebeu a necessidade de traduzir as Sagradas Escrituras para o vernáculo, sem seguir a versão literal. • A tradução constitui um imperativo da intercomunicação no mundo moderno. É considerada uma atividade fundamental para a difusão de conhecimentos, reforçando os já existentes ou trazendo o novo; aproxima culturas e povos, influencia na formação da língua e da literatura de uma nação, sua formação histórica, fixação de conceitos estéticos e na evolução de formas estilísticas da literatura moderna. • Na arte romântica ocorre a simbiose dos gêneros e dos elementos: é poesia e prosa, ideias abstratas e sensações concretas, terrestres e divinas que se fundem entre si, dando vazão à arte. • No Classicismo a tônica recaía sobre o rigor métrico. No Romantismo o que se observa é a procura do liberar-se destes velhos esquemas e, assim, as composições, as estrofes, os versos, passariam a ter uma liberdade na qual métrica e rima não fossem mais imperativos. • A poesia no romantismo é expressão do sentimento, fruto de uma criatividade singular, voz da alma, livre de modelos e regras, apta a representar e transfigurar a realidade. RESUMO DO TÓPICO 1 157 • No Romantismo o homem passa a ser exaltado em suas particularidades. É por excelência o centro do Universo, seu ego exaltado confere à natureza mera projeção de seu mundo interior. • Nascem desse homem do Romantismo um ser desejoso do absoluto e da percepção da impossibilidade de alcançá-lo, a melancolia, a insegurança, a nostalgia de algo distante, a solidão e o sofrimento: o mal do século, doença que se propaga entre os românticos, que os entedia e os faz preferir a morte à vida. • O herói romântico é rebelde, altivo e desdenhoso, luta contra as leis e os limites que o oprimem, desafia a sociedade e o próprio Deus, ou seja, o Romantismo revela uma condição titânica do homem. • O Romantismo apresenta como características a ironia, o sentimento e paixão contra a razão e a lógica, a evasão no fantástico, no sonho, na orgia, no espaço e no tempo. • No que concerne à religiosidade, os românticos dificilmente aceitam dogmas e a autoridade hierárquica, e tendem a dispensar os ritos e a mediação sacerdotal. Os românticos cultuavam Deus na natureza, na água, no mar, nas montanhas, nos animais, em tudo o que existe no universo. • O Romantismo constitui uma transformação estética e poética desenvolvida em oposição à tradição dos escritos gregos e latinos, e muitas das formas características do neoclassicismo, como as odes, a égloga e a tragédia, entram em decadência. • No que tange ao Brasil, o Pré-Romantismo, de acordo com Afrânio Coutinho, encontra-se inserido no Arcadismo, uma vez que o movimento abarca duas fases: uma neoclássica e a outra pré-romântica. • Essa condição de os pré-românticos estarem inseridos no Arcadismo advém do momento histórico que culmina com a vinda da família real ao Brasil, que marca a passagem do colonialismo à autonomia. • Com o estabelecimento da corte portuguesa aqui foram idealizadas numerosas reformas, como a abertura de portos, a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, a expansão do comércio, da indústria e da agricultura, reformas no ensino, instalação da imprensa periódica, de bibliotecas e museus. • Nesse período de transição desenvolve-se no brasileiro o interesse consciente pelos próprios destinos; forma-se então uma elite representativa da sua vida política e cultural. • Uma das figuras religiosas expressivas foi Mont’Alverne, que, devido à eloquência, à dicção, ao adorno e à linguagem empregados em seus escritos, torna-se modelo retórico a ser seguido. 158 • Vale também citar como precursor do Romantismo o Pe. Antônio Pereira de Sousa Caldas, renomado orador sacro, com escritos de cunho filosófico e inspiração religiosa, por vezes baseando-se nas ideias de Rousseau. • Frei Francisco de S. Carlos foi também pré-romântico. Em seus escritos o conteúdo, por vezes, pende para o moralizante, em que a morte parece solução para o mundo que está em pecado. • O Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, também é destaque na literatura pré-romântica. Para além da atuação política, manifesta-se através da poesia e da prosa, na qual transporta sua preocupação com problemas da vida social e política brasileira, como as questões relacionadas aos indígenas e à escravidão. Manifestou e exprimiu também temas relacionados ao amor. 159 1 Ao refletir sobre a Literatura Brasileira, escreva V para verdadeiro e F para falso e, em seguida, assinale a sequência CORRETA: ( ) Coutinho afasta-se do conceito de literatura colonial usado para designar aquela produzida antes da Independência e literatura nacional pós- Independência, adotando-se a periodização estilística. Então, no período colonial, concebe-se no Brasil, em termos de Literatura, a expressão estilística barroca, arcádica e neoclássica, repelindo-se a dicotomia entre literatura nacional e colonial. ( ) No Quinhentismo brasileiro podemos destacar, além daquela que ficou conhecida como literatura informativa, a literatura jesuítica, que, ao contrário da informativa, possuía a intenção catequética. ( ) O Romantismo reflete um estado de espírito inconformista em relação ao intelectualismo, ao absolutismo, ao convencionalismo clássico, aoesgotamento das formas e temas então dominantes. A imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade conquistam aos poucos o lugar que era ocupado pela razão. ( ) Ao que parece, a Alemanha foi historicamente uma das nações que primeiramente fixou as novas ideias românticas, divulgadas através da revista Athenaeum. a) ( ) V - V - V - V. b) ( ) V - F - F - F. c) ( ) V - V - F - V. d) ( ) F - V - V - F. 2 Analise as proposições e assinale a que apresenta somente características do Romantismo: a) ( ) Comumente enfatiza o predomínio da razão, a perfeição da forma e a imitação dos gregos e dos romanos. b) ( ) Em seus escritos aparecem o subjetivismo, o ilogismo, o senso de mistério, o culto da natureza e o escapismo. c) ( ) A primazia do significado, o jogo de conceitos e a exploração do raciocínio lógico predominam na poesia romântica. d) ( ) Os poetas fazem uso de uma linguagem complexa, sofisticada e rebuscada. 3 Elabore um quadro-resumo das principais características do Romantismo. AUTOATIVIDADE 160 161 TÓPICO 2 DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Em solo brasileiro, em meados de 1830, o povo em geral ainda vivia sob a euforia da Independência. A vida da jovem e livre nação alterou-se profundamente nas esferas econômica, política, social e cultural. Ocorre um afloramento na consciência de intelectuais e, de modo particular nos artistas, a necessidade de criar, a partir das próprias raízes históricas, do contexto, da linguagem e da cultura local, uma identidade nacional. Pode-se afirmar que essa postura gera um dos traços principais que se iniciou com os pré-românticos e que se alargará consideravelmente no Romantismo brasileiro, qual seja, o pensamento nacionalista. Aparecem escritores que, comprometidos com a bandeira da nacionalidade, expressam o indianismo, o regionalismo, a escravidão, dedicam-se à pesquisa nas áreas linguísticas, culturais, folclóricas e históricas. Transformam, juntamente com a crítica e os problemas políticos e sociais que assolam o país, a expressão escrita em possibilidade latente rumo ao nacionalismo. Tradicionalmente, no que concerne à poesia, estudiosos dividem o Romantismo em três gerações de poetas, cada qual valorizando e enfatizando temas e formas literárias com particularidades distintas. Optamos em não enfatizar essa divisão, pois poderíamos incorrer no erro de classificar autores equivocadamente. Para tanto, nos remeteremos a palavras como tema ou temática. 2 OS POETAS E A TEMÁTICA INDIANISTA Os escritos que marcaram os primeiros momentos do Romantismo brasileiro fazem alusão a temáticas relacionadas ao indianismo, nacionalismo, saudosismo e religiosidade. Se pensarmos em termos de indianismo, o primeiro escritor que em terras brasileiras explorou o aborígine foi Anchieta. No intuito de catequizar, assimilou a cultura, estudou e organizou uma gramática da língua dos nativos e, além disso, falava-lhes e escrevia na língua indígena. Veja a oração na qual o escritor faz uso do tupi e do português. Comprove no excerto: 162 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Ó Virgem Maria Tupã cy atê Abe pe ara pora Oicó endô yabe. (ANCHIETA apud COUTINHO, 2004c) Segundo Coutinho, através de suas produções catequéticas o jesuíta não somente foi o iniciador de nossa literatura, mas também de um indianismo. Um indianismo que poderá ser chamado de barroco. Basta observar o uso do bilinguismo, do cunho edificante, do apelo aos sentidos, provas de que “[...] o indianismo já está em nossas primeiras letras”. (2004c, p. 73). Outros escritores exploram tal temática, dentre os quais podemos destacar Basílio da Gama com seu indianismo arcádico. O mesmo pode ser comprovado em sua obra Pombal, em que heroiciza o indígena e apresenta os missionários jesuítas como desprezíveis. O Uraguai [frag.] [...] Canto IV Para se dar princípio à estranha festa, Mais que Lindoia. Há muito lhe prepararam Todas de brancas penas revestidas Festões de flores as gentis donzelas. Cansados de esperar, ao seu retiro Vão muitos impacientes a buscá-la. Estes de crespa Tanajura aprendem Que entram no jardim triste, e chorosa, Sem consentir que alguém a acompanhasse. Um frio susto corre pelas veias De Caitutu, que deixa os seus no campo; E a irmã por entre as sombras do arvoredo Busca coa vista, e teme de encontrá-la. Entram enfim na mais remota e interna Parte de antigo bosque, escuro, e negro, Onde ao pé de uma lapa cavernosa Cobre uma rouca fonte, que murmurava, Curva, latada de jasmim, e rosas. Este lugar delicioso, e triste, cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva, e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 163 Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim, sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e apresse no fugir a morte. Porém o destro Caitutu, que treme Do perigo da irmã, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Soltar o tiro, e vacilou três vezes Entre a ira, e o temor. Enfim sacode O arco, e faz voar a aguda seta, Que toca o peito de Lindoia, e fere A serpente na testa, e a boca, e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. Açouta o campo coa ligeira cauda O irado monstro, e em tortuosos giros Se encosta no cipreste, e verte envolto Em negro sangue e lívido veneno. Leva nos braços a infeliz Lindoia O desgraçado irmão que ao despertá-la Conhece, com que dor! No frio rosto Os sinais de veneno, e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. Os olhos, em que Amor reinava, um dia, Cheios de morte; e muda aquela língua, Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes Contou a larga história de seus males, Nos olhos Caitutu não sofre o pranto, E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mão já trêmula gravado O alheio crime, e a voluntária morte, E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante Um não sei que de magoado, e triste, Que os corações mais duros enternece. Tanto era bela no seu rosto a morte! [...] FONTE: GAMA, José Basílio da. O Uraguai. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start. htm?infoid=811&sid=105>. Acesso em: 9 fev. 2011. 164 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Como já mencionado, o poema centra-se no episódio histórico em que portugueses e espanhóis atacam indígenas e jesuítas em Sete Povos das Missões do Uraguai e recai sobre o jesuíta a insígnia de vilão. O poeta apresenta o missionário como um aproveitador da boa vontade dos índios. Santa Rita Durão, por descrever a situação dos aborígenes espoliados de suas terras, no poema Caramuru, também pode ser indianista. Lembre-se de que o poeta canta o amor da princesa Paraguaçu e de Moema por Diogo Álvares, cognominado Caramuru (filho do trovão) pelos tupinambás. Seguidas as reflexões de Coutinho, inferimos que os primeiros poetas indianistas surgem ainda no Brasil colônia e, além disso, na Corte portuguesa não há nenhum escritor indianista. Ao contrário da França e da Espanha, países nos quais os exotismos decorrentes do tupi já figuravam nos léxicos, Portugal, “[...] por ordem régia (1727), proíbe o uso da língua brasílica no Brasil”. (COUTINHO, 2004c, p. 74). Então, se no colonialismo os portugueses pouco admitiam o índio em suas obras, com a Independência a situação é reforçada. Nesse contexto, caberia aos novos escritores brasileiros dar a conhecer, tirar do anonimato, a figura do indígena através da literatura. Gonçalves de Magalhães assim o fez. O poeta escreve, em 1836, Suspiros Poéticos e Saudades, obra tradicionalmente consideradacomo marco inicial do Romantismo brasileiro. Em Paris, o escritor, juntamente com Porto-Alegre, Francisco Torres-Homem e C. M. Azeredo Coutinho, fundou a Niterói - Revista Brasiliense, que abordava matéria literária, científica e artística, e na sua segunda edição publicou a obra Suspiros Poéticos e Saudades. Em 1837, Magalhães e outros do grupo responsáveis pela revista voltam para o Brasil. No período em questão, os leitores tomam conhecimento da decisão de cessar a publicação da revista, e ao mesmo tempo são informados de que a publicação continuaria em solo brasileiro. No espaço compreendido entre 1837 e 1850, estes e outros jovens se dedicam a atividades intelectuais no intuito de uma difusão cultural aos moldes da reforma romântica. Em 1850 fundaram a revista Guanabara e, assim, o incansável grupo esforça-se para divulgar a arte, inclusive o teatro. Então, Magalhães e Martins Pena, dentre outros, substituem as novelas traduzidas ou adaptadas do francês por “[...] composições originais em que se nota o balbuciar do romance histórico, da novela sentimental, da ficção voltada para o mistério”. (COUTINHO, 2004c, p. 59). Magalhães dedicou-se a escrever vários gêneros e assuntos dos quais a literatura de então carecia para que adquirisse ares de nacionalidade e romantismo. (BOSI, 1980). Sob a égide do épico, escreveu Confederação dos Tamoios, obra na qual alude ao aborígene, momento em que o indianismo já se estruturava dentro do nacionalismo. Afrânio Coutinho, que incansavelmente retratou a literatura brasileira, assim se expressa sobre esse grande artista: Se Gonçalves de Magalhães introduziu os principais temas da poesia romântica no Brasil – Deus e a natureza, a poesia de sentimento religioso TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 165 e guiada pela filosofia espiritualista; a noção da origem divina da poesia e do poeta e da sua missão reformadora, sobretudo moralizadora; a evocação da infância, as reflexões sobre a mocidade e a velhice; o sentimento patriótico, o amor da liberdade, o combate à tirania, o saudosismo; a visão amargurada do mundo, o lamento, o desespero, a exacerbação, a poesia tumular; a inspiração medievalista e, de maneira geral, histórica, a poesia das ruínas, e tantos outros temas e atitudes em que facilmente se reconhece ainda a presença da herança neoclássica, vigilante –, o que parece mais sugestivo, em sua obra, é a discussão ou a posição do pensamento crítico. É que sua poesia não logrou impor-se ao Classicismo agonizante, juntando artificialismo de inspiração a uma prolixidade exaustiva, imagens descoloridas, pesadas, enfadonhas, a comparações retumbantes e a um sentimento de tristeza que, embora ele possa ser real, é pensado e medido. Há nela a ideia constante da morte, retratada com imagens tétricas, para infundir terror. Contudo, mesmo insistindo no tétrico e no lamentoso, o poeta é de linguagem às vezes espontânea, embora frequentemente bombástico, sobretudo quando, não atingindo o épico, reveste as suas composições de um tom épico, e, meio descritivo, não faz, porém, senão prosa rimada. E tudo isso envolto pela capa da filosofia espiritualista, pela metafísica, e pelo sentimento religioso e moralizante. (2004c, p. 63). Será por tudo isso lembrado como figura central do momento último de transição do Neoclassicismo para o Romantismo, aquele que nasceu no Rio de Janeiro em 1811 e que, tendo cursado a Faculdade de Medicina, optou por dedicar-se à arte, ou seja, Domingos José Gonçalves de Magalhães. E o romantismo segue... Coube a Teixeira e Souza (1812-1861) o início de uma nova fase do indianismo brasileiro, qual seja, um indianismo como sentimento nativista, sinônimo de independência. Para tanto, o autor se vale de uma lenda indígena e escreve um poema em cinco cantos intitulado Os três dias de um noivado. Vale lembrar que Teixeira e Souza foi autor do primeiro romance romântico brasileiro: O Filho do Pescador, no qual nos deteremos quando abordarmos a ficção. Caro/a acadêmico/a, para ler a obra: Os três dias de um noivado, acesse: <http://books.google.com.br/books?id=R_gpAAAAYAAJ&printsec=frontcover&dq=Os+tr% C3%AAs+dias+de+um+noivado.&source=bl&ots=-yVIH5mcDE&sig=jFbnWzvvYLfhjSAo-i_ D m z 9 Ys b c & h l = p t - B R & e i = W W E 0 T f b G B 9 H p g Q f p 9 f m 8 C w & s a = X & o i = b o o k _ result&ct=result&resnum=1&ved=0CBcQ6AEwAA#v=onepage&q&f=false>. UNI 166 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Nas palavras de Coutinho, o indianismo romântico reúne três aspectos carregados de sentimento ideológico: “[...] o indianismo transformado em teoria social, o Romantismo a que o próprio índio deu causa e o nacionalismo de que, pelo menos no Brasil, passa a ser símbolo”. (2004c, p. 77). 3 GONÇALVES DIAS: INDIANISTA POR NATUREZA Um dos primeiros escritores considerado romântico, da fase indianista, é Gonçalves Dias. O brasileiro nasceu em Caxias, Maranhão, em 1823. Poeta, advogado, professor e jornalista, era filho de pai português e mãe indígena. Estudou em Portugal e, quando de volta ao Brasil, torna-se o escritor que mais elevou o indianismo, o nacionalismo, valorizando as próprias raízes culturais. Foi o primeiro escritor romântico que o Brasil conheceu. Temas como o saudosismo, o nacionalismo, a religiosidade e o indianismo, recorrentes neste período, fazem com que críticos que optam pela classificação do romantismo em gerações enquadrem o poeta como pertencente à primeira geração romântica. O seu indianismo seria, como os seus poemas de amor, autobiográfico. [...] o índio residia dentro dele; em seu sentimento, na sua imaginação poética. Não lhe vinha de torna-viagem, como para os outros indianistas de seu tempo, que o antecederam ou sucederam; estava- lhe no corpo, alimentava-lhe a personalidade. Era uma força secreta, um estado de legítima defesa. O seu índio dos poemas líricos ou épicos seria índio mesmo, e não índio de cartão postal. Era o índio que havia nele e era o índio que ele conheceu, desde menino, e reconheceu no rio Negro; que ele compreendeu e defendeu. (COUTINHO, 2004c, p. 77). Os três gêneros, épico, lírico e dramático, fazem parte da obra de Gonçalves Dias. Da expressividade desse poeta selecionamos algumas poesias, a primeira reveladora do saudosismo explorado por ele, que serviria de tema às gerações posteriores. Na poesia Canção do Exílio fica evidente e facilmente reconhecido esse saudosismo: TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 167 Canção do Exílio FONTE: DIAS, Gonçalves. Poesias Americanas. In: BANDEIRA, Manuel (Org.). Obras Poéticas. São Paulo: Nacional, 1944. Percebe-se, nos versos, um forte apreço à natureza exuberante, refletindo o nacionalismo: um solo ornado de flores e musicalidade advinda da fauna, em que o som do pássaro sabiá torna o poema mais que uma canção. O sabiá já havia sido explorado por Gonçalves de Magalhães em Suspiros Poéticos e Saudades. Alega-se ainda que o sabiá que frequentemente descansa na palmeira é o único que não canta, somente canta aquele da laranjeira, portanto, [...] ainda sob este aspecto, Gonçalves de Magalhães havia sido mais exato que Gonçalves Dias, pois o seu sabiá cantava na laranjeira, e não na palmeira. Aqui caberia uma réplica: se o sabiá não substitui a sintaxe, a sintaxe lírica, essa faz o sabiá cantar na palmeira, e mui legitimamente. Tanto que o sabiá de Gonçalves de Magalhães, cantando em lugar certo – na laranjeira –, parou de cantar, ficou mudo ou foi silenciado pelo olvido; e o de Gonçalves Dias gorjeia até hoje. Ninguém o conseguirá emudecer. (COUTINHO, 2004c, p. 82). O saudosismo é outro elemento que marca o romantismo. Para enfatizá- lo, senti-lo e fazer sentir, Dias compara a natureza europeia à brasileira, desejoso de avistá-la mais uma vez, a fim de decepar a saudade sentida em Portugal onde o poeta sentia-se exilado. Um lirismo amoroso traduzido intensamente em poemas também foi cantado por Dias, como em “Ainda uma vez, adeus” e “Se se morre de amor”. Vejamos:Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar sozinho à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho à noite - Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Coimbra, julho de 1843 168 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Ainda uma vez, adeus I Enfim te vejo! - enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri. Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado A não lembrar-me de ti! II Dum mundo a outro impelido, Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz! Baldão, ludíbrio da sorte Em terra estranha, entre gente, Que alheios males não sente, Nem se condói do infeliz! III Louco, aflito, a saciar-me D’agravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esperança, Tu me vieste à lembrança: Quis viver mais e vivi! IV Vivi; pois Deus me guardava Para este lugar e hora! Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez; Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus pés. V Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Pois tanto pôde o desgosto Transformar o rosto meu? Sei a aflição quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu não vivi na ventura... Olha-me bem, que sou eu! VI Nenhuma voz me diriges!... Julgas-te acaso ofendida? Deste-me amor, e a vida Que me darias - bem sei; Mas lembrem-te aqueles feros Corações, que se meteram Entre nós; e se venceram, Mal sabes quanto lutei! VII Oh! se lutei!... mas devera Expor-te em pública praça, Como um alvo à populaça, Um alvo aos dictérios seus! Devera, podia acaso Tal sacrifício aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus? VIII Devera, sim; mas pensava, Que de mim t’esquecerias, Que, sem mim, alegres dias T’esperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinhão de alegria Pelo teu, quinhão de dor! IX Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; Erro foi, mas não foi crime, Não te esqueci, eu to juro: Sacrifiquei meu futuro, vida e glória por te amar! FONTE: ORFEU SPAM. Jornal Eletrônico de Poesias e Artes. Disponível em: < http://www.jayrus. art.br/LitBrasil_Romantismo.htm>. Acesso em: 24 jan. 2011. TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 169 Na poesia amorosa de Gonçalves Dias percebe-se o romântico à procura do amor perfeito. O poema Se se morre de amor, ao que parece, foi escrito por ocasião do reencontro, em Lisboa, com aquela que representou amor e sentimento de culpa revelado na autoacusação: o amor sincero, e fundo, e firme e eterno, / Não eu nunca o senti. Denuncia, ainda, um homem vitimado pelos limites entre amor e paixão. Faz uma análise do amor verdadeiro e do falso amor. O falso nasce nas festas, nos encontros fugazes, e deste não se morre. Já o amor verdadeiro se faz Sentir, sem que se veja, a quem se adora; / Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, / Segui-la, sem poder fitar seus olhos - e deste se morre. Se se morre de amor [frag.] (DIAS apud MOISÉS, 1999) Ao escandirmos os versos, veremos que se trata de um poema decassílabo: A/mor/ é /vi/da: é /ter/ cons/tan/te/men/te Al/ma, /sen/ti/dos,/ co/ra/ção - /a/ber/tos Ao /gran/de, ao /be/lo; é /ser /ca/paz /d'ex/tre/mos D'al/tas /vir/tu/des,/ té /ca/paz /de /cri/mes! 1 1 1 1 2 2 2 2 3 3 3 3 4 4 4 4 5 5 5 5 6 6 6 6 7 7 7 7 8 8 8 8 9 9 9 9 10 10 10 10 Se se morre de amor! - Não, não se morre, Quando é fascinação que no surpreende de ruidoso sarau entre os festejos; Quando luzes, calor, orquestra e flores Assomos de prazer nos raiam n'alma, Que embelezada e solta em tal ambiente No que ouve, e no que vê prazer alcança! Simpáticas feições, cintura breve, Graciosa postura, porte airoso, Uma fita, uma flor entre os cabelos, Um quê mal definido, acaso podem Num engano d'amor arrebatar-nos. Mas isso amor não é; isso é delírio, Devaneio, ilusão, que se esvanece Ao som final da orquestra, ao derradeiro Clarão, que as luzes no morrer despedem: Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, D'amor igual ninguém sucumbe a perda. Amor é vida: é ter constantemente Alma, sentidos, coração - abertos Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos D'altas virtudes, té capaz de crimes! Compr'ender o infinito, a imensidade, E a natureza e Deus; gostar dos campos, D'aves, flores, murmúrios solitários; Buscar tristeza, a soledade, o ermo. E ter coração em riso e festa; E à branda festa ao riso da nossa alma Fontes de pranto intercalar sem custo; Conhecer o prazer e a desventura No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto O ditoso, o misérrimo dos entes; Isso é amor, e desse amor se morre! [...] 170 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Os decassílabos e a existência de rimas classificam os versos como brancos, e a presença de antíteses prazer/desventura, ditoso/misérrimo, virtudes/crimes, usadas para evocar temas consagrados pelo Romantismo, como amor, natureza e morte. Gonçalves Dias se faz sentir através de um lirismo sentimental, expresso pelas lágrimas, choradas de orgulho, de tristeza e de alegria, presentes em várias obras do autor, pranto derramado pelos índios ou pelo próprio poeta. Em 1847, Gonçalves Dias publicou os Primeiros Cantos, livro de poesias que tem como abertura o poema Canção do Exílio. O livro lhe rendeu fama e admiração. Nele, por vezes, exalta com inspiração e com recursos formais o índio como herói, usa a saudade, a melancolia, a natureza, dentre outras características do Romantismo. No Prólogo da obra assim se justifica para qualquer crítica que porventura venha a receber: Dei o nome de Primeiros Cantos às poesias que agora publico, porque espero que não serão as últimas. Muitas delas não têm uniformidade nas estrofes, porque foram compostas em épocas diversas – debaixo de céu diverso – e sob a influência de impressões momentâneas. Foram compostas nas margens viçosas do Mondego e nos píncaros enegrecidos do Gerez – No Doiro e no Tejo – sobre as vagas do Atlântico, e nas florestas virgens da América. Escrevi- as para mim, e não para os outros; contentar-me-ei, se agradarem; e se não... é sempre certo que tive o prazer de as ter composto. A vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política para ler em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem do improviso, e as ideias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento – o coração com o entendimento – a ideia com a paixão – cobrir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir. O esforço – ainda vão – para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor; talvez seja este o só merecimento deste volume. O Público o julgará; tanto melhor se ele o despreza, porque ao Autor interessa em acabar com essa vida desgraçada que se diz Poeta. FONTE: Dias apud Abdala Júnior; Campedelli, 1987, p. 83 Para exemplificar aspectos da obra do poeta indianista escolhemos ainda: TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 171 O Canto do PiagaÓ Guerreiros da Taba sagrada, Ó Guerreiros da Tribo Tupi, Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó Guerreiros, meus cantos ouvi. Esta noite — era a lua já morta — Anhangá me vedava sonhar; Eis na horrível caverna, que habito, Rouca voz começou-me a chamar. Abro os olhos, inquieto, medroso, Manitôs! que prodígios que vi! Arde o pau de resina fumosa, Não fui eu, não fui eu, que o acendi! Eis rebenta a meus pés um fantasma, Um fantasma d’imensa extensão; Liso crânio repousa a meu lado, Feia cobra se enrosca no chão. O meu sangue gelou-se nas veias, Todo inteiro — ossos, carnes — tremi, Frio horror me coou pelos membros, Frio vento no rosto senti. Era feio, medonho, tremendo, Ó Guerreiros, o espectro que eu vi. Falam Deuses nos cantos do Piaga, Ó Guerreiros, meus cantos ouvi! II Por que dormes, ó Piaga divino? Começou-me a Visão a falar, Por que dormes? O sacro instrumento De per si já começa a vibrar. Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar; Não ouviste a coruja, de dia, Seus estrídulos torva soltar? Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem — vergar-se e gemer, Nem a lua de fogo entre nuvens, Qual em vestes de sangue, nascer? E tu dormes, ó Piaga divino! E Anhangá te proíbe sonhar! E tu dormes, ó Piaga, e não sabes, E não podes augúrios cantar?! Ouve o anúncio do horrendo fantasma, Ouve os sons do fiel Maracá; Manitôs já fugiram da Taba! Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá! III Pelas ondas do mar sem limites Basta selva, sem folhas, e vem; Hartos troncos, robustos, gigantes; Vossas matas tais monstros contêm. Traz embira dos cimos pendente —Brenha espessa de vário cipó — Dessas brenhas contêm vossas matas, Tais e quais, mas com folhas; é só! Negro monstro os sustenta por baixo, Brancas asas abrindo ao tufão, Como um bando de cândidas garças, Que nos ares pairando — lá vão. Oh! quem foi das entranhas das águas, O marinho arcabouço arrancar? Nossas terras demanda, fareja ... Esse monstro. . . — o que vem cá buscar? Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem trazer-vos crueza, impiedade — Dons cruéis do cruel Anhangá; Vem quebrar-vos a maça valente, Profanar Manitôs, Maracá. Vem trazer-vos algemas pesadas, 172 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Com que a tribo Tupi vai gemer; Hão de os velhos servirem de escravos Mesmo o Piaga inda escravo há de ser! Fugireis procurando um asilo, Triste asilo por ínvio sertão; Anhangá de prazer há de rir-se Vendo os vossos quão poucos serão. Vossos Deuses, ó Piaga, conjura, Susta as iras do fero Anhangá. Manitôs já fugiram da Taba, Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá! (DIAS apud MOISÉS, 1999, p. 129- 130) Na primeira parte do poema, Piaga solicita aos guerreiros que ouçam a narração de sua visão: Ó guerreiros, meus cantos ouvi. Piaga revela que fora visitado por um espectro que o assombra. Na segunda parte é a Visão que vem ter com Piaga e o indaga sobre seu sono: Por que dormes, ó Piaga divino?, o fantasma adverte Piaga que ele não pode sonhar, é sim hora de vigiar o inimigo, de espreitá-lo. Por fim, na terceira parte Piaga descreve os que vêm do além-mar, os colonizadores, invasores e monstros que vêm matar vossos bravos guerreiros, roubar-vos a filha, a mulher. O indianismo de Dias é três vezes autêntico. Primeiramente pelo sangue, uma vez que era filho de uma indígena, uma guajajara; segundo, por ter convivido com os indígenas desde tenra idade; e terceiro, em virtude dos estudos que realizou quando das incursões pelo Brasil, que serviram de subsídios para suas obras (COUTINHO, 2004c). No tocante à poesia dramática, elegemos I Juca Pirama, também voltado para a temática do índio, poema no qual extraordinariamente o poeta narra o drama vivido por um indígena, último descendente da tribo tupi. Com personagens que se intercalam através do diálogo, Gonçalves Dias dá a saber sobre os costumes, usos e ritos dos aborígenes. O título I Juca Pirama, em língua tupi-guarani, pode ser traduzido para o português como “o que há de ser morto ou o que é digno de ser morto”. (ABDALA JÚNIOR; CAMPEDELLI, 1987, p. 86). I Juca Pirama torna-se prisioneiro dos Timbiras, que preparam o cerimonial no qual o jovem da tribo tupi será sacrificado. O poema mostra uma concepção de morte especificamente indígena, o ritual, cenas da maldição, luta e o triunfo do prisioneiro. Vejamos: coortes Assombram das matas a imensa extensão. São rudos, severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já cantam vitória, Já meigos atendem à voz do cantor: São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das gentes, I Juca Pirama I No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos — cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 173 Condão de prodígios, de glória e terror! As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, As armas quebrando, lançando-as ao rio, O incenso aspiraram dos seus maracás: Medrosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos lá rendem, Aos duros guerreiros sujeitos na paz. No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o concílio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam d’outrora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno dum índio infeliz. Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto, Sua tribo não diz: — de um povo remoto Descende por certo — dum povo gentil; Assim lá na Grécia ao escravo insulano Tornavam distinto do vil muçulmano As linhas corretas do nobre perfil. Por casos de guerra caiu prisioneiro Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro Assola-se o teto, que o teve em prisão; Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos se incumbem do vaso das cores, Dos vários aprestos da honrosa função. Acerca-se a lenha da vasta fogueira Entesa-se a corda da embira ligeira, Adorna-se a maça com penas gentis: A custo, entre as vagas do povo da aldeia Caminha o Timbira, que a turba rodeia, Garboso nas plumas de vário matiz. Em tanto as mulheres com leda trigança, Afeitas ao rito da bárbara usança, O índio já querem cativo acabar: A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, Brilhante enduape no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte gentil canitar, II Em fundos vasos d’alvacenta argila Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer começa, Reina o festim. O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado está, O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais verá! A dura corda, que lhe enlaça o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve Do que o festim! Contudo os olhos d’ignóbil pranto Secos estão; Mudos os lábios não descerram queixas Do coração. Mas um martírio, que encobrir não pode, Em rugas faz A mentirosa placidez do rosto Na fronte audaz! Que tens, guerreiro? Que temor te assalta No passo horrendo? Honra das tabas que nascer te viram, 174 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Folga morrendo. Folga morrendo; porque além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte. Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, Lá murcha e pende: Somente ao tronco, que devassa os ares, O raio ofende! Que foi? Tupã mandou que ele caísse, Como viveu; E o caçador que o avistou prostrado Esmoreceu! Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte. III Em larga roda de novéis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifício cabe as honras, Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalança, Na destra mão sopesa a iverapeme, Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitiço não sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glóriae brasão d’imigos feros. “Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro; “Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, “As nossas matas devassaste ousado, “Morrerás morte vil da mão de um forte.” Vem a terreiro o mísero contrário; Do colo à cinta a muçurana desce: Dize-nos quem és, teus feitos canta, “Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove. IV Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei. Andei longes terras, Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes — escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. E os campos talados, TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 175 E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Aos golpes do imigo, Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui! O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego Qual seja, — dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? — Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver! Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer. V Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prisões, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo. — Timbira, diz o índio enternecido, Solto apenas dos nós que o seguravam: És um guerreiro ilustre, um grande chefe, Tu que assim do meu mal te comoveste, Nem sofres que, transposta a natureza, Com olhos onde a luz já não cintila, Chore a morte do filho o pai cansado, 176 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Que somente por seu na voz conhece. — És livre; parte. E voltarei. — Debalde. Sim, voltarei, morto meu pai. — Não voltes! É bem feliz, se existe, em que não veja, Que filho tem, qual chora: és livre; parte! — Acaso tu supões que me acobardo, Que receio morrer! — És livre; parte! — Ora não partirei; quero provar-te Que um filho dos Tupis vive com honra, E com honra maior, se acaso o vencem, Da morte o passo glorioso afronta. Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes. Sobresteve o Tupi: — arfando em ondas O rebater do coração se ouvia Precípite. — Do rosto afogueado Gélidas bagas de suor corriam: Talvez que o assaltava um pensamento... Já não... que na enlutada fantasia, Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, Do velho pai a moribunda imagem Quase bradar-lhe ouvia: — Ingrato! Ingrato! Curvado o colo, taciturno e frio. Espectro d’homem, penetrou no bosque! VI Filho meu, onde estás? — Ao vosso lado; Aqui vos trago provisões; tomai-as, As vossas forças restaurai perdidas, E a caminho, e já! — Tardaste muito! Não era nado o sol, quando partiste, E frouxo o seu calor já sinto agora! Sim, demorei-me a divagar sem rumo, Perdi-me nestas matas intrincadas, Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; Convém partir, e já! — Que novos males Nos resta de sofrer? — que novas dores, Que outro fado pior Tupã nos guarda? As setas da aflição já se esgotaram, Nem para novo golpe espaço intacto Em nossos corpos resta. — Mas tu tremes! Talvez do afã da caça... — Oh filho caro! Um quê misterioso aqui me fala, Aqui no coração; piedosa fraude Será por certo, que não mentes nunca! Não conheces temor, e agora temes? Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, E contra o seu querer não valem brios. Partamos!... — E com mão trêmula, incerta Procura o filho, tateando as trevas Da sua noite lúgubre e medonha. Sentindo o acre odor das frescas tintas, Uma ideia fatal ocorreu-lhe à mente... Do filho os membros gélidos apalpa, E a dolorosa maciez das plumas Conhece estremecendo: — foge, volta, Encontra sob as mãos o duro crânio, Despido então do natural ornato!... Recua aflito e pávido, cobrindo Às mãos ambas os olhos fulminados, Como que teme ainda o triste velho De ver, não mais cruel, porém mais clara, Daquele exício grande a imagem viva Ante os olhos do corpo afigurada. Não era que a verdade conhecesse TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 177 Inteira e tão cruel qual tinha sido; Mas que funesto azar correra o filho, Ele o via; ele o tinha ali presente; E era de repetir-se a cada instante. A dor passada, a previsão futura E o presente tão negro, ali os tinha; Ali no coração se concentrava, Era num ponto só, mas era a morte! Tu prisioneiro, tu? — Vós o dissestes. Dos índios? — Sim. — De que nação? — Timbiras. E a muçurana funeral rompeste, Dos falsos manitôs quebraste a maça... Nada fiz... aqui estou. — Nada! — Emudecem; Curto instante depois prossegue o velho: — Tu és valente, bem o sei; confessa, Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo! Nada fiz; mas souberam da existência De um pobre velho, que em mim só vivia... — E depois?... — Eis-me aqui. — Fica essa taba? Na direção do sol, quando transmonta. — Longe? — Não muito. — Tens razão: partamos. — E quereis ir?... — Na direção do acaso. VII “Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal já chega, Vós, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Ação tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis, — e mas foram Senhores em gentileza. “Eu porém nunca vencido, Nem nos combates por armas, Nem por nobreza nos atos; Aqui venho, e o filho trago. Vós o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maça do sacrifício E a muçurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for só na terra, Certo acharei entre os vossos, Que tão gentis se revelam, Alguém que meus passos guie; Alguém, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por pai se ufane!” Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro responde com tôrvo acento: — Nada farei do que dizes: É teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignóbil sangue: Ele chorou de cobarde; Nós outros, fortes Timbiras, Só de heróis fazemos pasto. Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos, Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha! VIII “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, 178 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. “Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz! “Não encontresdoçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar. “Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror! “Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos E oceano de pó denegrido Seja a terra ao ignavo tupi! Miserável, faminto, sedento, Manitôs lhe não falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde após si. “Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e flecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és.” IX Isto dizendo, o miserando velho A quem Tupã tamanha dor, tal fado Já nos confins da vida reservara, Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias Da sua noite escura as densas trevas Palpando. — Alarma! alarma! — O velho para! O grito que escutou é voz do filho, Voz de guerra que ouviu já tantas vezes Noutra quadra melhor. — Alarma! alarma! — Esse momento só vale a pagar-lhe Os tão compridos transes, as angústias, Que o frio coração lhe atormentaram De guerreiro e de pai: — vale, e de sobra. Ele que em tanta dor se contivera, Tomado pelo súbito contraste, Desfaz-se agora em pranto copioso, Que o exaurido coração remoça. A taba se alborota, os golpes descem, Gritos, imprecações profundas soam, Emaranhada a multidão braveja, Revolve-se, enovela-se confusa, E mais revolta em mor furor se acende. E os sons dos golpes que incessantes fervem, Vozes, gemidos, estertor de morte Vão longe pelas ermas serranias Da humana tempestade propagando Quantas vagas de povo enfurecido Contra um rochedo vivo se quebravam. Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis — o nome, a glória, Aturado labor de tantos anos, Derradeiro brasão da raça extinta, De um jacto e por um só se aniquilasse. TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 179 — Basta! Clama o chefe dos Timbiras, — Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, E para o sacrifício é mister forças. — O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: “Este, sim, que é meu filho muito amado! “E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, “Corram livres as lágrimas que choro, “Estas lágrimas, sim, que não desonram.” X Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: — “Meninos, eu vi! “Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo, Que o tenho nest’hora diante de mi. “Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! Pois não, era um bravo; Valente e brioso, como ele, não vi! E à fé que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto, Tivesse a coragem que tinha o Tupi!” Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”. FONTE: DIAS, Gonçalves. Poesias americanas. In: BANDEIRA, Manuel (Org.). Obras poéticas. São Paulo: Nacional, 1944. Na parte I do poema são relatados os preparativos do que será o cerimonial, o ritual dos Timbiras. Além da continuidade dos preparativos de cortar o cabelo e pintar a pele do prisioneiro, fica evidente, na parte II do poema, o temor que assola o jovem escolhido a holocausto. Na parte III, o encarregado da execução pede ao jovem prisioneiro para que relate seus feitos, pois assim teriam a certeza de não devorar a carne de um covarde. No parte IV, o jovem narra que sua tribo se reduziu a ele e seu pobre pai cego. Faz saber também que fora aprisionado justamente quando apanhava alimentos para o pai dependente à causa da cegueira. Implora para que o deixem viver, pois é o único que pode amparar o pai. Chorando, se propõe a voltar tão logo seu pai morrer, para ser escravo dos Timbiras. 180 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Nas partes V e VI o prisioneiro é liberto e vai ter com o pai. Nas partes VII e VIII o velho pai fica sabendo do ocorrido e vai à presença dos Timbiras solicitar que sacrifiquem seu filho. Eles não aceitam – não querem devorar um fraco –, o choro do jovem tupi denunciou sua covardia e o chefe Timbira se recusa a alimentar seu povo com tal carne. O velho Tupi, então, amaldiçoa o filho: Que a teus passos a relva se torre; / Murchem prados, a flor desfaleça, / E o regato que límpido corre, / Mais te acenda o vesano furor; / Suas águas depressa se tornem, / Ao contacto dos lábios sedentos, / Lago impuro de vermes nojentos, / Donde fujas com asco e terror! O rapaz, na parte IX, indignado com a situação solta um grito e mata um grande número de Timbiras, conquistando, com isso, a fama de valente, juntamente com o direito de ser sacrificado. Ao final, na parte X o velho Timbira aparece, narrando a história do jovem índio: – “Meninos, eu vi”! Do poeta indianista, escolhemos ainda O Canto do Guerreiro. Neste poema quem conduz a narração é um índio, cujos versos afirmam a condição de homem livre. Leia o fragmento: O Canto do Guerreiro [frag.] I Aqui na floresta De ventos batidos, Façanhas de bravos Não geram escravos Que estimem a vida Sem guerra e lidar. [...] (DIAS apud MOISÉS,1999) A luta é condição única de sobrevivência das nações indígenas. Gonçalves Dias faz uso da forma épica, adaptando-a às novas condições, torna-se reflexo das tradições dos índios, perpetua, como é característico da epopeia, a imagem de um povo heroico nacional, ancestrais fundadores da nação Brasil. Vejamos a parte V d’O Canto do Guerreiro: O Canto do Guerreiro [frag.] Na caça, ou na lide, Quem há que me afronte?! A onça raivosa Meus passos conhece, O inimigo estremece, E a ave medrosa Se esconde no céu. − Quem há mais valente, TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 181 − Mais destro do que eu? − [...] − (DIAS apud MOISÉS, 1999) Percebemos que em suas composições o aborígine é “[...] o material que as constitui, física e psicologicamente”. (COUTINHO, 2004c, p. 90). O poeta anuncia a um amigo: “Imaginei um poema... como nunca ouviste falar de outro: magotes de tigres, de quatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e jabuticabeiras, jequitibás e ipês arrogantes, sapucaeiras e jambeiros, de palmeiras nem falemos; guerreiros diabólicos, mulheres feiticeiras, sapos e jacarés sem conta: enfim, um gênesis americano, uma Ilíada brasileira, uma criação recriada”. (DIAS apud COUTINHO, 2004c, p. 90). Assim fez, e desse seu intento nasce o poema épico Os Timbiras, poema incompleto que teria 16 versos, mas somente quatro foram publicados. Sobre ele fala Coutinho: “[...] a narrativa é cheia de cor e movimento, não obstante o verso medido, o verso branco. Narrativa que lhe identifica o épico.” (2004c, p. 91). Vejamos: Os Timbiras [frag.] Vem primeiro Juca de fero aspecto, De uma onça bicolor cai-lhe na fronte a pel’viçosa; sob as hirtas cerdas, como sorrindo, alvejam brancos dentes e nas vazias órbitas lampejam dois olhos, fulvos, maus. No bosque um dia, a traiçoeira a cauda enrosca e mira nele o pulo: do tacape Juca desprende o golpe, e furta o corpo. Onde estavam seus pés as duras garras morderam, beira a terra a fera exangue e, morta, ao vencedor tributa um nome. (DIAS apud COUTINHO, 2004c) Dias particularizou a métrica, a rima, o ritmo, a linguagem e as temáticas. Em uma poesia obediente à métrica encontram-se versos que ora fogem à regularidade. O próprio poeta declarouser a métrica por ele desprezada. Assim procedeu Gonçalves Dias, criou suas próprias regras, obtendo efeitos e inaugurando um ritmo que ficou bem marcado em nossa poesia. Em outras palavras: “[...] na poética do vate maranhense não será demais dizer-se que, no verso branco, o ritmo substitui a rima. Em seus poemas não rimados o ritmo é uma rima branca constante”. (COUTINHO, 2004c, p. 111). 182 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Há que se considerar ainda que o escritor possuía um poder de descrição, construindo imagens nas quais o leitor sente-se como que desperto e envolvido nas mais variadas emoções. Por vezes, estas eram suscitadas sem o auxílio de adjetivos, como é o caso da poesia Canção do Exílio, que não possui nem um adjetivo. O poeta tinha o dom de adjetivar, mas, em especial neste poema, no dizer de Coutinho, o poeta “[...] mostrou-se visceralmente antirromântico em assunto de adjetivação”. (2004c, p. 112). O poeta escreveu as Sextilhas de Frei Antão, publicadas juntamente com o volume dos Segundos Cantos (1848). É uma longa narrativa em versos, constituída de cinco poemas que recupera elementos do medievo português, uma obra com linguagem diversa, beirando o arcaico. Parece que assim procedeu, pois os representantes do Conservatório Dramático recusaram a sua peça teatral intitulada Beatriz Cenci, sob a alegação de conter erros “crassos de linguagem”. Assim, num tom de afronta e para demonstrar que sabia escrever a língua de Camões, compôs Sextilhas de Frei Antão. Os gramaticólogos apontaram erros presentes na peça teatral. Não foi somente Bernardo Guimarães, quem, embora injustamente, lhe increpou a linguagem de ‘inçada de pleonasmos, de impropriedades’. Os aristarcos daquela época não lhe teriam perdoado jamais aquele “te vejo, te procuro” [...]; nem mesmo os inúmeros descuidos a respeito da crase, pontuação, prosódia e ortografia que tanto trabalho hoje dão aos que, como Manuel Bandeira, em edições críticas às obras poéticas do vate maranhense, são obrigados a fazer anotações gramaticais, não raro penosas e antipáticas. (COUTINHO, 2004c, p. 120). Vingança ou não, fato é que Gonçalves celebrou em suas Sextilhas a glória dos portugueses. Sendo assim, a obra é tida como pertencente à língua portuguesa. Para Coutinho (2004c), quanto mais português conseguisse ser no modo de escrever, “mais brasileiro – intimamente – seria”, pois invenção e estilo podem ocorrer sem uma exacerbada preocupação gramatical. A questão é realmente fascinante, cabendo indagar, contudo, se quando Gonçalves Dias lançou mão de uma linguagem envelhecida, vazando as Sextilhas de modo como nunca, em tempo algum, falou ou escreveu quem quer que seja, não estava ele construindo justamente uma linguagem poética, específica, como nenhum outro poeta a teria construído. (2004c, p. 123). Ao final da vida, muito doente, Gonçalves Dias, que estava na Europa no ano de 1864, resolve regressar ao Brasil. O navio em que vinha naufraga na costa do Maranhão, e o poeta, já muito enfraquecido, foi a única vítima fatal do acidente. TÓPICO 2 | DO PRÉ-ROMANTISMO AO ROMANTISMO 183 DICAS Caro/a acadêmico/a, para ler a obra Segundos Cantos, de Gonçalves Dias, acesse: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000116.pdf>. LEITURA COMPLEMENTAR AS OUTRAS FACES DO POETA Como poeta complexo que foi, Gonçalves Dias cultivou com igual grandeza o lírico, o épico, o dramático. Como todo grande poeta, suscitou polêmicas ligadas ao seu ofício. Ensaiou a prosa poemática, primeiro passo para o atual verso livre; criou uma linguagem poética, característica nas Sextilhas de Frei Antão; agitou a questão prosa-poesia no drama, como se vê pelo prólogo de Leonor de Mendonça. Tão diverso de si mesmo foi o poeta, em cada criação, que podia ter usado vários heterônimos, como a princípio se lembrou de fazer, quando pretendeu assinar as Sextilhas com o nome de Frei Antão de Santa Maria de Neiva. Quanto ao título de Sextilhas de Frei Antão, explicava a sua ideia: “Só tenho a dizer que era minha intenção publicá-las com o pseudônimo de Frei Antão de Santa Maria de Neiva, cuja vida poderão ler os curiosos na História de São Domingos (P. 2, L. 3, C. 4). Mudei de resolução, conservando-lhe todavia o título, porque sem ele muitas Sextilhas seriam ininteligíveis.” Já o dualismo de culturas produz dualismo de personalidade – um self dividido. Que se dirá de uma personalidade de múltiplas facetas como a do autor de “mãe d’água”? Os vários selves, que a integram, explicam a sua manifesta tendência para os heterônimos. Outra prova da sua vocação para a heteronímia está em ter escrito numerosos poemas, que, ao invés de assinar, publicou como “traduzidos”. Traduzidos por quem? Naturalmente por algum colega de Frei Antão... Não contente com as várias formas de se distinguir de si mesmo, desdobra a sua atividade literária em outros setores de criação e de estudo. Ei-lo historiador, teatrólogo, etnólogo. E a verdade é que todas essas outras faces de Gonçalves Dias completaram o poeta; deram-lhe circunspecção, influíram no seu comportamento, autenticaram o homem que, mesmo em poesia, nunca deixou de ser exato, realista, cônscio da sua arte. 184 UNIDADE 3 | O MOVIMENTO ROMÂNTICO Os seus índios eram idealizados? O etnólogo provaria que não. Um historiador como Capistrano diria, mais tarde, que escrever a história dos jesuítas era escrever a História do Brasil! Mas quem primeiro o disse foi Gonçalves Dias. Viaja em camelo no Ceará, num dos camelos que Capanema havia mandado vir da África para a viagem no Nordeste; viaja em ubá na Amazônia; excursiona pelo Madeira, de cuja navegabilidade se tornou adepto; convive com os índios bolivianos cuja língua estudou; na viagem pelo Rio Negro foi até a Venezuela, através de muitos óbices, mas em contato permanente com índios e caboclos para melhor conhecer a região, o rio e a população selvagem. E assim como um bandeirante do século XVII levara pelo sertão um exemplar de Novelas Exemplares, de Cervantes, e outro copiava no verso do seu testamento um trecho de Camões, Gonçalves Dias levava Schiller, da Noiva de Messina, selva adentro. A sua etnografia, no juízo de um sábio como Roquete Pinto, é sempre certa. É possível encontrar-se aqui e ali um pequeno senão, uma surpresa, uma variante. Mas o poeta foi constantemente fiel à ciência do seu tempo. A não ser Rondon – concluiu Roquete –, ninguém enriqueceu mais as nossas coleções etnográficas do que Gonçalves Dias. Também as memórias que escreveu para o Instituto Histórico, O Brasil e a Oceania, e uma monografia sobre o Amazonas – a que já se fez referência – são tidas como estudos da mais alta categoria no gênero. Não lhe faltou uma série de observações agudas sobre a questão social. A propósito do operário da cidade, dizia: Desde que entre nós um homem de ofício conquistar para si uma posição social, à força de indústria, de aplicação e de engenho; desde que lhe for permitido o ingresso em alguma das nossas câmaras, e que nos persuadirmos de que um homem pode chegar a uma posição elevada mesmo tendo principiado por ser um homem de ofício, desde então dever-se-á contar com uma nova era nos anais do Brasil. A respeito do seringueiro, que mais tarde Rio Branco chamaria “operário da floresta”, Gonçalves Dias não foi menos arguto. Em relatório acerca da Exposição Internacional de Paris, em que tratou dos nossos produtos, como algodão, fumo, café e borracha, defende o seringueiro, fazendo ver, como não o faria melhor um estadista, que a cultura sistemática da hévea seria o meio de corrigir o seu nomadismo. Mas voltemos ao poeta que – se detestava a política, “sórdida manceba”, a que refere em “Desordem de Caxias” (1839), a ponto de haver depois desistido da cadeira de deputado geral que os seus amigos lhe ofereciam, embora a princípio afagasse a ideia, admitindo ser vetado por saquaremas e liberais – sabia pôr em seus poemas tão forte acento social. Se as virtudes