Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
TRADIÇÕES E VERSOS PLURAIS: ENCONTROS COM A POESIA CONTEMPORÂNEA Antônio Donizeti Pires Adalberto Luis Vicente (Org.) SÉRIE ESTUDOS LITERÁRIOS nº 19 – 2022 Faculdade de Ciências e Letras, UNESP – Univ. Estadual Paulista, Câmpus Araraquara Reitor: Pasqual Barretti Vice-Reitora: Maysa Furlan Diretor: Jean Cristtus Portela Vice-Diretor: Rafael Alves Orsi Programa de Pós-graduação em Estudos Literários Coordenador: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires Vice-Coordenador: Prof. Dr. Paulo Cesar Andrade da Silva SÉRIE ESTUDOS LITERÁRIOS Nº 19 Comissão Editorial do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários Juliana Santini Brunno Vinicius Gonçalves Vieira Adalberto Luis Vicente Luiz Gonzaga Marchezan Aparecido Donizete Rossi João Batista Toledo Prado Karin Volobuef Maria Lúcia Outeiro Fernandes Normalização: Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras Editoração eletrônica e capa: Eron Pedroso Januskeivictz TRADIÇÕES E VERSOS PLURAIS: ENCONTROS COM A POESIA CONTEMPORÂNEA Organizado por: Antônio Donizeti Pires Adalberto Luis Vicente Copyright © 2022 by FCL-UNESP Laboratório Editorial Direitos de publicação reservados a: Laboratório Editorial da FCL Rod. Araraquara-Jaú, km. 1 14800-901 – Araraquara – SP Tel.: (16) 3334-6275 E-mail: laboratorioeditorial.fclar@unesp.br Site: http://www.fclar.unesp.br/laboratorioeditorial Obra disponível em formato eletrônico (consultar endereço acima). 5 SUMÁRIO Registro dos acontecidos e do que ora se publica (Apresentação) Antônio Donizeti Pires e Adalberto Luis Vicente Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina Maria Lúcia Outeiro Fernandes O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar Bruno Darcoleto Malavolta Uma São Paulo transfigurada. Linhas de fuga na metrópole na Paranoia de Piva Luiz Carlos Menezes dos Reis O mito na poesia de Orides Fontela Alexandre de Melo Andrade Modos de resistir na poesia negra brasileira Paulo Andrade O Concretismo enquanto retaguarda: breves apontamentos acerca da poética de Geraldo Carneiro Leonardo Vicente Vivaldo Sob o furor do desejo: algumas reflexões sobre o erotismo em poemas do livro A carne e o tempo, de Donizete Galvão Alexandre Bonafim 7 15 37 67 81 99 119 139 6 Carlito Azevedo e a reelaboração crítica do legado cabralino Solange Fiuza Do corpo e da voz: as performances da linguagem em A voz do ventríloquo, de Ademir Assunção Susanna Busato Entre flor e manobra: lírica e corpo em Claudia Roquette-Pinto Patrícia Aparecida Antonio Hesitações da alteridade na poesia de Alexei Bueno Carlos Eduardo Marcos Bonfá Écfrase e intertexto em poemas de Micheliny Verunschk Fabiane Renata Borsato A poesia e as semelhanças, em Ana Martins Marques Cristiane Rodrigues de Souza Poesia brasileira contemporânea & tradição clássica Antônio Donizeti Pires Dados dos autores e organizadores 155 177 197 217 241 257 273 313 7 REGISTRO DOS ACONTECIDOS E DO QUE ORA SE PUBLICA (APRESENTAÇÃO) Antônio Donizeti PIRES1 Adalberto Luis VICENTE Este livro reúne contribuições de vários autores que estive- ram presentes nos seguintes eventos: a) I Jornada Nacional “Poesia Brasileira Contemporânea em Projeto” (realizada a 03 de abril de 2014); b) mesa-redonda “Alguma Poesia Brasileira, Ontem e Hoje” (realizada a 28 de maio de 2015); c) “Encontros com a Poesia Brasileira Contemporânea” (num total de cinco, ocorridos em abril, agosto, outubro, novembro e dezembro de 2016). Os três eventos, organizados por Antônio Donizeti Pires, foram promovidos pelo Departamento de Literatura da FCL-UNESP/Araraquara e contaram com o apoio irrestrito do PPG em Estudos Literários, da mesma instituição. Nos três momentos, houve a participação de convidados externos e de professores, doutorandos e pós-doutorandos da Casa, e como objetivo principal e norteador dos trabalhos procurou-se ampliar e aprofundar as discussões sobre os problemas específicos da poesia brasileira contemporânea, seja através da exposição de projetos em andamento; seja através do estudo analítico de poetas e obras; seja através da exposição e debate de um ou mais temas crítico-teóricos pertinentes ao lirismo e à poesia lírica, inclusive em 1 O autor agradece ao CNPq o apoio recebido através da Bolsa de Produtividade PQ 2, de março/2017 a fevereiro/2020. 8 Antônio Donizeti Pires e Adalberto Luis Vicente interface comparativa e multidisciplinar. Cientes da pluralidade e da vitalidade da poesia brasileira contemporânea, inclusive no âmbito da pesquisa universitária, os três acontecimentos pretenderam ainda: a) promover o intercâmbio, o conhecimento mútuo, o debate e a troca de experiências entre os pesquisadores envolvidos; b) expor à comunidade acadêmica os resultados dos trabalhos investigativos em andamento, sobretudo nas linhas de pesquisa “Teorias e crítica da poesia” e “História literária e crítica”, pertinentes ao PPG em Estudos Literários e ao Departamento de Literatura; c) refletir, atra- vés do debate, acerca da poesia contemporânea, de seus impasses em relação à nossa tradição plural e aos assuntos mais candentes da contemporaneidade. Os objetivos, de acordo com a repercussão positiva dos even- tos, foram plenamente alcançados, e na leitura dos ensaios que se seguem ver-se-á que conseguimos manter, quase intacta, a totalidade dos trabalhos apresentados entre 2014 e 2016, salvo um ou outro participante que não pôde participar deste livro que ora entregamos ao público interessado nas coisas da poesia. Não por acaso, sempre buscando a ponte necessária entre a poesia brasileira e a portuguesa, ou entre o Modernismo e a contem- poraneidade lá e cá, iniciamos com o texto “Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina”, de Maria Lúcia Outeiro Fernandes (UNESP/Araraquara), que em clave comparatista analisa vários poemas das portuguesas Maria Teresa Horta e Ana Luísa Amaral e das brasileiras Cecília Meireles e Hilda Hilst, em cujos trabalhos a “reescrita da tradição” foi (é) empreen- dida “como estratégia de resistência à opressão das mulheres nas sociedades patriarcais do Ocidente”. O segundo ensaio, de Bruno Darcoleto Malavolta, “O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar”, no empe- nho de refletir sobre o binômio “lírica e sociedade”, tão caro e tão evidente na obra do maranhense, vale-se da teoria do espetáculo, de Guy Debord, e de teorias de fundo marxista (Adorno e seu concei- to de indústria cultural, sobretudo) para a leitura dos romances de cordel (“João Boa-Morte, cabra marcado para morrer”) e do livro de poemas Dentro da noite veloz, com o fito de enfatizar a distância (ética e estética) que há entre as duas realizações de Gullar. 9 Registro dos acontecidos e do que ora se publica (Apresentação) Na sequência, o artigo de Luiz Carlos Menezes dos Reis (ICESP/DF; IESB/DF), “Uma São Paulo transfigurada. Linhas de fuga na metrópole na Paranoia de Piva”, estuda o primeiro livro (1963) do poeta paulistano Roberto Piva. Com formação em Filosofia contemporânea, Reis busca, a partir do arsenal teórico de Gilles Deleuze e Félix Guatari, “uma perspectiva que recusa a inter- pretação dos textos literários e se configura como uma exposição do funcionamento de máquinas literárias complexas que engendram agenciamentos e séries”. Para tanto, analisa o poema “Visão de São Paulo à noite. Poema antropófago sob narcótico”, ressaltando os vários rizomas que compõem o texto célebre. O quarto ensaio, “O mito na poesia de Orides Fontela”, de Alexandre de Melo Andrade (UFS/São Cristóvão), depois de uma apresentação crítica da poeta paulista e sua obra sabidamente enxu- ta, procura evidenciar, através de fina leitura, os vários modos pelos quais a artista se vale de uma pletora de mitos (bíblicos, clássicos greco-latinos, modernos – como D. Quixote –, ou atemporais – como o Dragão), sempre dotando-os, “em sua própria natureza, das dicotomiasque laceram a experiência humana”. O próximo trabalho, “Modos de resistir na poesia negra bra- sileira”, de Paulo Andrade (UNESP/Araraquara), também se vale do conceito sempre atual de resistência para refletir sobre os problemas de construção poética e de representação do negro na poesia brasi- leira recente. Partindo da dúvida da crítica na adoção dos termos “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira”, Andrade supera a hesitação inicial com a oferta de análises preciosas da obra dos poetas negros Salgado Maranhão e Cuti (Luiz Silva). O sexto ensaio, “O Concretismo enquanto retaguarda: breves apontamentos acerca da poética de Geraldo Carneiro”, de Leonardo Vicente Vivaldo, parte do importante movimento da neovanguarda brasileira dos anos de 1950 para averiguar como este foi “assimilado” pela poesia do mineiro-carioca Geraldo Carneiro, cujo apetite voraz de antropófago (tão bem caracterizado em tese de Doutorado que Vivaldo recentemente defendeu na UNESP/Araraquara) alimenta-se de fontes concretistas, marginais e tropicalistas, épico-camonianas, shakespearianas..., promovendo um mix e um passeio muito inte- 10 Antônio Donizeti Pires e Adalberto Luis Vicente ressante pelas tradições cultas, massivas e populares da literatura e da cultura brasileira e internacional. O texto seguinte é de outra cepa: em “Sob o furor do desejo: algumas reflexões sobre o erotismo em poemas do livro A carne e o tempo, de Donizete Galvão”, Alexandre Bonafim (UEG/Goiás) ancora-se em estudos clássicos sobre o erotismo para evidenciar um aspecto importante (mas pouco estudado pela crítica) da poesia do mineiro-paulistano recentemente falecido. Através de fartas análises e comentários, Bonafim evidencia como os pares antitéticos “desejo x morte” e “dor x prazer”, por exemplo, dão arcabouço e sustentação ao importante livro de 1997, A carne e o tempo. No oitavo ensaio, “Carlito Azevedo e a reelaboração crítica do legado cabralino”, Solange Fiuza (UFG) faz uma leitura exten- siva da obra em progresso de Carlito Azevedo para refletir sobre as maneiras através das quais o poeta carioca tem reelaborado critica- mente, através de sua leitura/escritura, o legado do pernambucano João Cabral de Melo Neto, referência frequente e importante para os contemporâneos (como, na época da juventude e da estreia de Cabral, foram importantes para si um Drummond e um Murilo Mendes, por exemplo). O enunciado pela estudiosa sobre o trabalho crítico do leitor acadêmico vale também, a nosso ver, para o trabalho do artista do verso, razão por que o citamos na íntegra: “A compre- ensão crítica mais justa e sensível de um poeta demanda tempo e paciência, condições que parecem estar na contramão destes dias. Exige a leitura extensiva de sua obra; a constante releitura ou con- vivência paciente e demorada com seus versos; a leitura dos críticos do poeta, que muitas vezes ajudam a ver pontos incompreensíveis ou imperceptíveis, a construir o nosso modo de olhar, mesmo quando e sobretudo quando, deles discordamos. Por isso, ao longo de uma vida crítica produtiva, o número de poetas que efetivamente com- preendemos ou julgamos compreender é restrito. Não me refiro a todos os poetas que lemos, a muitos sobre os quais escrevemos, mas àqueles com que estabelecemos uma conversa crítica que pode durar anos ou mesmo uma vida. Essa exigência da poesia me parece justa, pois também ela exige muito do poeta, exige uma vida inteira a ela consagrada.” 11 Registro dos acontecidos e do que ora se publica (Apresentação) A seguir, Susanna Busato (UNESP/São José do Rio Preto), em “Do corpo e da voz: as performances da linguagem em A voz do ventríloquo, de Ademir Assunção”, analisa demoradamente o livro de Assunção premiado com o Jabuti de 2013, com ênfase nos aspec- tos que já despontam no título: o corpo (do poeta, do poema, do mundo), a voz, a performance. Mergulhada na caótica experiência da “metrópole pós-moderna” (numa espécie, talvez, de atualização perversa da flânerie modernista de Mário de Andrade e, depois, de Roberto Piva), “a poesia de Ademir Assunção tem sua voz projetada no diapasão de um mundo em ruínas, as que não têm caráter históri- co nem turístico; as que não frequentam cartões-postais. A realidade é perpassada por um viés imagético de caráter surreal, que expõe o absurdo e o exagero como uma estratégia de construção plástica que procura mimetizar as sensações dessa realidade urbana pelo olhar do sujeito que não somente observa a cena de longe, mas a sente de perto, como tragédia, como ameaça, como um corpo que deixa seus traços no tempo e no ar.” No décimo artigo, “Entre flor e manobra: lírica e corpo em Claudia Roquette-Pinto”, de Patrícia Aparecida Antonio, tem-se um estudo detalhado de dois livros da poeta carioca: Corola (2000) e Margem de manobra (2006). Partindo de concepções diversas de “corpo” (física, psicanalítica, simbólica, imaginária, social, política...), a ensaísta sustenta um ponto de vista que dialoga intrinsecamente com o texto anterior, de Susanna Busato, e perpassa, seguramen- te, mais de uma perspectiva crítico-analítica recolhida no presente livro. Pois, em palavras de Antonio, “O corpo contemporâneo é uma estrutura não mais submetida somente às dores físicas, das quais a medicina o tem poupado progressivamente, mas um locus em que o eu se percebe cada vez mais humanizado, ainda que resistente, e sabedor de outras e novas possibilidades de configuração e reconfigu- ração frente ao mundo em que se insere. Essa força dos seus modos de ser, no entanto, recobre-se por vezes de uma capa extremamente frágil sob diversos aspectos.” No seguinte trabalho, “Hesitações da alteridade na poesia de Alexei Bueno”, o autor Carlos Eduardo Marcos Bonfá (FAQ – Faculdade XV de Agosto) parte dos conceitos de “alteridade”, “eu x outro”, “ver x olhar”, “poética do olhar”, para elaborar um estudo 12 Antônio Donizeti Pires e Adalberto Luis Vicente ideológico da poesia e da poética do carioca Alexei Bueno, as quais conduzem “a uma dialética de aproximação e distanciamento”. No 12º artigo, “Écfrase e intertexto em poemas de Micheliny Verunschk”, Fabiane Renata Borsato (UNESP/Araraquara) vale-se do conceito clássico de écfrase, pontua as transformações pelas quais o termo (e a sua prática) tem passado ao longo dos séculos, para enfim oferecer fartos comentários analíticos de poemas da já consa- grada poeta pernambucana, cuja obra é muito vincada pela visuali- dade, segundo Borsato. No penúltimo texto, “A poesia e as semelhanças, em Ana Martins Marques”, de Cristiane Rodrigues de Souza (UFMS/Três Lagoas), mais uma jovem poeta (desta vez, mineira) tem a sua obra finamente esmiuçada. Para tanto, a analista percorre o temário inicial da poeta, seu humor sutil e a sutil metapoeticidade que a caracte- riza, para ressaltar como esta confronta, através da linguagem, as questões do corpo e do mundo, do eu e do outro, da diferença e da semelhança. No 14º e último texto do livro, “Poesia brasileira contem- porânea & tradição clássica”, Antônio Donizeti Pires (UNESP/ Araraquara) também se debruça sobre a obra de três poetas extre- mamente jovens, os três com formação universitária em Estudos Clássicos e os três com intensa atividade acadêmica, editorial e de tradução. São eles: o paulista Érico Nogueira, autor de Poesia bovina (2014) e professor na UNIFESP/Guarulhos; o carioca Henrique Marques-Samyn, autor de Estudos sobre temas antigos (2013) e pro- fessor na UERJ; e o brasiliense Guilherme Gontijo Flores, autor de Tróiades: remix para o próximo milênio (2015) e professor na UFPR. Claro que o “debruçar-se” acima é um exagero, pois os três poetas são rápida e sumariamente apresentados no estudo de Pires, que dá mais atenção, por afinidade temática de pesquisa, ao poema seriado “Rapsódia grotesca para Orfeu e Eurídice” (segunda parte de Estudos sobre temas antigos), de Henriques Marques-Samyn. “Rapsódia...” que se junta ao poema de Ademir Assunção,“Orfeu nos quintos dos infernos” (analisado no estudo de Susanna Busato), numa evidência de que a releitura a e revisita ao mito (clássico grego, frise-se) não é uma questão de passividade ou de frivolidade de poeta alienado, com a cabeça nas nuvens, mas de um artista plenamente consciente 13 Registro dos acontecidos e do que ora se publica (Apresentação) de seu ofício e do mundo em que lhe foi dado viver, em constante ruína, liquefação e dissolução dos mais caros valores humanistas, o que compromete (em nome de um capital neoliberal cada vez mais selvagem), a dignidade humana, a educação, o trabalho, a vida na Terra, a Natureza, a própria utopia. Mais uma vez, através de Orfeu, a contemporaneidade aprofunda (negativamente) a sua resposta à modernidade já melancólica e desolada de Drummond: “[...] Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti. / Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, / a vagar, taciturno, entre o talvez e o se. [...]” (ANDRADE, 2012, p.19)2. A fim de não mais atravancar o prazer do precioso leitor, faça- mos uma ligeira súmula: o livro apresenta uma saudável exogenia, ao congregar 14 estudiosos das mais diversas regiões do Brasil. Do total de poetas estudados nos 14 artigos (20), tem-se 8 (oito) “poetisas” (o termo é controverso!) e 12 poetas, o que nos parece equilibrado em termos de gêneros e de representatividade atual da poesia brasileira. Enfim, o leitor mais atento observará que obedecemos a certa ordem cronológica de nascimento de cada um dos poetas estudados: nosso arco temporal abre-se com a matriarca Cecília Meireles (1901-1964) e se fecha com Guilherme Gontijo Flores (n.1984). São pelo menos 100 anos (lembrando que Meireles estreou em 1919, com Espectros) da mais autêntica Poesia brasileira, com seu lento cimentar de tra- dições e temas próprios e práticas poéticas os mais diversos, ao lon- go deste século proto-modernista e modernista, ultra-modernista e não-modernista, em que todos os tempos se encontram e se ultrapas- sam, mas sempre (d)enunciando a necessidade de resistir e de existir cantando, ainda que sob o risco de todas as dissonâncias. Araraquara, Novembro de 2019. 2 ANDRADE, C. D. de. Legado. In: ANDRADE, C. D. de. Claro enigma. Posfácio Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.19. 15 REESCRITA DA TRADIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA NA POESIA DE AUTORIA FEMININA Maria Lúcia Outeiro FERNANDES Este trabalho tem por objetivo analisar a reescrita da tradi- ção, empreendida por algumas poetas de língua portuguesa – Maria Teresa Horta (n.1937), Cecília Meireles (1901-1964), Hilda Hilst (1930-2004) e Ana Luísa Amaral (n.1956) – como estratégia de resistência à opressão das mulheres nas sociedades patriarcais do Ocidente. Reescrever os textos canônicos, para estas mulheres, é uma forma não somente de empoderamento do sujeito feminino mas também um modo de elaborar um discurso que possibilite a configuração desse sujeito. A busca do discurso concorre para a formação de uma multiplicidade de poéticas contemporâneas que, embora inseridas na modernidade lírica, acabam por operar vários deslocamentos nos fundamentos estéticos e ideológicos da estética moderna, acarretando até mesmo alterações na concepção de poesia. Breve contextualização histórica A ideia de poesia como resistência só se torna possível no contexto da modernidade, quando se configura também a ideia de um sujeito autônomo, protagonista de sua própria vida e agente da 16 Maria Lúcia Outeiro Fernandes História política, econômica e social. Um sujeito capaz tanto de dominar a natureza com suas conquistas tecnológicas e científicas, quanto de lutar pela construção de uma sociedade baseada em direi- tos humanos universais, na qual se possam estabelecer princípios gerais como garantia de uma vida digna para um número cada vez maior de indivíduos. No mundo antigo, e estou pensando principalmente na Grécia, tida como berço da Civilização Ocidental, não existe a ideia de direitos humanos tal como a conhecemos no mundo moderno. Os gregos aperfeiçoaram uma prática de democracia e uma valo- rização da ideia de liberdade. Mas só participavam deste sistema os homens (não havia participação feminina nas decisões políticas) que eram livres. Como a prática da escravidão era comum, os servos também não participavam da vida política. Portanto, um grande contingente da população ficava de fora do processo democrático. No resto do mundo nem isso havia. Os gregos se consideravam supe- riores aos persas, por exemplo, porque não havia ideia de liberdade na sociedade persa. O conceito de liberdade na Grécia Antiga está vinculado ao campo político. Munido de seus direitos políticos, o cidadão grego exercia sua autonomia, em contraposição aos escravos, às mulheres e às crianças, que não possuíam direito algum, nem qualquer controle sobre suas próprias vidas. Já no âmbito religioso, a ideia de liberdade não teve muito sucesso entre os gregos que acreditavam no destino. O homem grego sente-se mergulhado numa realidade em que tudo está preestabele- cido por forças cegas. Ou seja, o ser humano não passa de um mero fantoche nas mãos dos deuses, não tendo, no plano de sua existência ontológica, a mesma liberdade que exercia no plano político. Em outras culturas do mundo antigo, porém, já se desen- volve uma ideia de liberdade no âmbito religioso, ainda que, na prática social e política a população permaneça excluída do poder. No Judaísmo, por exemplo, o homem pode ter livre arbítrio. Pode discernir entre o que deve e o que não deve fazer. E os Mandamentos já apresentam um projeto de sociedade em que os direitos do outro devem ser respeitados: não matar, não roubar, entre outros. Com o advento do Cristianismo a ideia de direitos humanos é reforçada 17 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina e ampliada. Não se aplica mais a um grupo restrito de indivíduos livres. Jesus Cristo reafirma os mandamentos judaicos, enfatizando a ideia do amor ao próximo: quem ama respeita os direitos do outro. No início da formação das nações europeias o Cristianismo se espalha pelo mundo Ocidental, mas os direitos humanos vão con- tinuar sendo, como no mundo antigo, um privilégio dos nobres e do clero, as classes que estão no topo da pirâmide que estrutura a sociedade. Neste momento histórico, a estrutura social é constituída por três classes bem delimitadas – o clero, a nobreza e o povo –, sen- do que, a cada uma delas, corresponde uma função na organização social e econômica. O clero e a nobreza constituíam as classes privilegiadas, usu- fruindo da isenção de impostos e de um direito próprio. O seu poder econômico vinha da posse da terra e do domínio que exerciam sobre os servos, que deviam ao seu senhor trabalho não remunerado e o pagamento de taxas diversas. O desenvolvimento da economia mercantil, com maior cir- culação da moeda, e a transformação dos servos em homens livres, a par da progressiva divisão da propriedade pelos descendentes, foi debilitando o poder econômico da nobreza, que procurava reagir, lutando pela manutenção e aumento dos seus privilégios. Com o despertar da Era Moderna, surge também um novo agente social, os vilãos, habitantes das vilas, homens livres, que pas- sam a viver do fruto do seu trabalho. Entre eles alguns vão ficando mais abastados, até se tornarem realmente ricos, o que vai aproximá- -los, com o passar do tempo, à nobreza. Uma grande parte deles vai comprar títulos de nobreza. Muitos outros, porém, vão engrossar a multidão dos pobres. No século XIX, a multidão dos miseráveis vai ser enorme. É neste momento crucial da formação de uma sociedade moderna que surge também o conceito de modernidade estética e a ideia de uma poesia, ou melhor, de uma literatura como resistência à modernidade burguesa. Este conceito de arte como resistência está intrinsecamente relacionado com dois outros conceitos sem os quais não se podeentender o que seja resistência. O conceito de direitos humanos e o conceito de utopia, que também só vão florescer nos tempos modernos. Como vimos, tanto no mundo antigo quanto na 18 Maria Lúcia Outeiro Fernandes Idade Média, período em que se formam as nações europeias que compõem o mundo ocidental, ao qual pertencemos hoje, a ideia de direitos humanos permanece restrita às classes privilegiadas da sociedade. A ideia de utopia, desde o início de seu aparecimento, tam- bém surge relacionada à questão dos direitos humanos. A própria palavra utopia começa a ser empregada a partir do livro de Thomas More (1478-1535), publicado em 1516. More foi um dos maiores intelectuais humanistas do Renascimento. Católico inabalável, aca- bou sendo vítima do autoritarismo do rei e condenado à morte por não aceitar os casamentos de Henrique VIII. Mas teve uma vida brilhante como diplomata, escritor, advogado, estudioso das leis, tendo ocupado vários cargos públicos. Embora ele vá buscar em Platão e outros autores gregos mui- tos fundamentos de suas reflexões, é principalmente de sua con- cepção cristã do mundo e do ser humano que decorrem seus ideais de uma sociedade perfeita. Sendo o homem de origem divina, os direitos humanos também devem ser respeitados como parte dos planos de Deus para a construção de um mundo justo, tal como o que descreve em seu livro Utopia. Neste livro, More fala de uma ilha imaginária de forma ale- górica, que possibilita duas interpretações. Pode-se entender como sendo a configuração de um Estado ideal e também como sátira à Europa do século XVI. O substrato cristão da obra é enfatizada por todos que se debruçam sobre ela, como João Almino, que afirma o seguinte: “Os utopienses comportam-se, no fundo, como se fos- sem verdadeiros cristãos; fazem o que os europeus deveriam fazer, se seguissem seus próprios preceitos cristãos.” (ALMINO, 2004, p.XI). À medida que elabora uma crítica ao modelo de sociedade que estava sendo implantado na Europa, no momento de formação dos esta- dos modernos, e que aponta caminhos alternativos, o livro de More inaugura a literatura de resistência. Com a Revolução Francesa, os direitos políticos do cidadão são ampliados para a burguesia e, no seu rastro, desenvolve-se a ideia de que tais direitos deveriam ser estendidos à sociedade como um todo. A partir de então, vão surgir muitos pensadores que irão cri- ticar o alto preço do progresso e mostrar a necessidade de se cons- 19 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina truir uma sociedade mais justa para todos. Entre eles, podemos citar: Robert Owen (1771-1858), Charles Fourier (1772-1837), Conde de Saint Simon (1760-1825) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). No bojo de suas reflexões, surge também a ideia de que o artista e o escritor têm um papel especial na construção de um mundo melhor. Atribuindo aos artistas uma função prática na luta para implantação dos ideais revolucionárias, Saint-Simon visionava-os “[...] abrindo [...] a marcha triunfante em direção ao bem-estar e felicidade de toda a humanidade.” (CALINESCU, 1999, p.97), o que acabou por gerar uma ambiguidade que estará no fulcro dos debates sobre o papel da literatura, especialmente da poesia, no século XIX. Matei Calinescu (1999, p.97) apresenta este paradoxo nos seguintes termos: “[...] por um lado, o artista desfruta da honra de estar na linha de frente do movimento em direção à prosperidade social; por outro, ele já não é livre porque lhe é dado todo um programa totalmente didático para cumprir.” É neste momento que se inicia a formação daquilo que Pierre Bourdieu (1996) vai denominar como campo literário. É o momento da formação da literatura como instituição, ao lado de outras instituições importantes que estruturam a sociedade capita- lista: o estado, a igreja, a imprensa, a arte, o sistema educacional, a família, enfim, são as grandes instituições que constituem o sistema social na modernidade. Todas estas instituições desejam ser livres e autônomas, pois cada uma está constituindo um campo de atuação específico, com suas próprias regras e seus objetivos peculiares. Para garantir a liberdade e autonomia da arte, escritores e críticos vão ter que lutar contra os excessos das duas correntes fortes na época. De um lado, o pragmatismo dos burgueses, ansiosos por dar à literatura uma função moralizante, visando à manutenção de seus privilégios. De outro lado, a corrente oposta dos revolucionárias, que também desejavam conferir à produção estética uma função didática, de cons- cientização acerca da necessidade de mudanças radicais na estrutura da sociedade. Os exageros de ambas as partes, faz surgir a necessida- de de garantir uma autonomia para a expressão artística. A estética moderna vai se solidificar sob a égide da resistência: 20 Maria Lúcia Outeiro Fernandes Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas ape- nas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista. [...] A modernidade se dá como recusa e ilhamento. A metáfora da avestruz que cobre a cabeça diante do inimigo é eloquente demais para exigir comentário. E o inimigo avança sem maiores escrúpulos. (BOSI, 1977, p.142-143). São muitos os inimigos e muitas as formas de combate. Com Bosi (1977), podemos afirmar que a poesia pode assumir várias estra- tégias de resistência. Pode assumir a forma mítica, que busca uma religação do homem às dimensões cósmicas de sua essência e de suas origens. Neste caso, o poeta se recusa a aceitar o permanente processo de sua degradação no mundo capitalista, que acabou por esvaziá-lo de uma essência e por afastá-lo cada vez mais de sua convivência harmoniosa com a natureza e o cosmos, como transparece na poesia de um Hoelderlin. Ela pode adquirir feições nitidamente revolucio- nárias assumindo o compromisso de promover o progresso das refor- mas sociais iniciadas com a Revolução Francesa, como propunha um Victor Hugo. Ou ela pode fundamentar-se numa proposta de configuração de obra de arte autônoma, que se opõe ao pragmatismo da burguesia pela afirmação de sua beleza e inutilidade, tal como pregou incansavelmente um Théophile Gautier. Na obra dos grandes poetas modernos é comum encon- trarmos estas três formas de resistência, combinadas de diferentes modos. Ademais, na segunda metade do século XX, estas formas de resistência vão ganhar novas facetas. Uma das mais importantes é a forma de abordar as questões dos direitos humanos. Vai haver algumas alterações substanciais no modo de abordar a necessidade de intervir na construção de um mundo mais digno e justo. A con- cepção universal de homem vai ser abalada a partir do surgimen- to de questões relacionadas a três grandes temas: a microfísica do poder, o pós-colonialismo e o aparecimento de novas subjetivida- des. O desenvolvimento dos estudos em torno destes eixos trouxe a conscientização de que o conceito de ser humano, tal como con- cebido pelo humanismo moderno, fundamentava-se num conceito de homem branco, europeu e do sexo masculino. Trouxe, ainda, a 21 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina conscientização de que a opressão não se limitava às relações entre o Estado e o povo, ou aos relacionamentos entre as classes sociais. O exercício do poder passou a ser compreendido como uma constante que está presente em todas as formas de relacionamento dentro de uma sociedade. Finalmente, os estudos sobre gêneros e sobre o pós- -colonialismo trouxeram questões relativas às novas subjetividades, tanto no âmbito dos indivíduos, quanto no domínio das identidades culturais. Desse modo, à medida que os estudos literários foram incor- porando estas novas questões, o conceito de arte como resistência também foi se ampliando e tomando novas configurações. Hoje temos uma quantidade imensa de teorias queabordam a literatura sob a perspectiva destas questões culturais. Poesia resistência de autoria feminina em Portugal Os estudos sobre literatura de autoria feminina ganharam grande impulso neste contexto e, de certa forma, também refletem um pouco esta evolução na abordagem das questões relativas aos direitos humanos. Até o início do século XX, quando nos depara- mos esporadicamente com alguma escritora que reivindica o direito de ser reconhecida e de integrar o cânone, o argumento sempre se baseia na necessidade de incluir a mulher naquele horizonte uni- versal dos direitos humanos. Nesta fase a mulher luta para ter seus direitos reconhecidos, com base na ideia de igualdade em relação aos homens. Até os anos 1970 esta é a reivindicação dominante. Mas a partir desta data os estudos sobre o feminino na literatura ganham grande complexidade. Uma das principais características que se verifica na literatura de autoria feminina, a partir de meados do século XX, é a denúncia da opressão contra as mulheres, seja no campo do relacionamento amoroso, no âmbito da constituição familiar, ou nas relações sociais e políticas de modo geral. No campo social, a partidarização da luta feminista e a inclusão das pautas femininas nas lutas políticas foi uma das principais mudanças do movimento, que se tornou mais pragmático e menos utópico. Do ponto de vista da poesia de autoria feminina, parece que a conscientização da opressão masculina contra 22 Maria Lúcia Outeiro Fernandes a mulher no plano das relações amorosas foi uma das primeiras a tomar forma. Em Portugal, um dos grandes nomes da literatura de autoria feminina é o de Maria Teresa Horta. Desde sua estreia, com o livro Espelho inicial (1960), Horta “[...] elegeu a liberdade como projeto poético e iniciou uma obra pautada na profunda reflexão dos direitos humanos, em especial das mulheres.” (DUARTE, 2015, p.11-12). Trata-se não apenas de uma liberdade temática, mas de um conjunto de procedimentos poéticos que redundam numa simbiose entre o corpo da mulher, o corpo da escrita e o corpo de uma tradição lírica configurado no cânone da poesia portuguesa. A poetisa ficou bastante conhecida após os escândalos cau- sados, nos anos 1970, pela publicação das Novas cartas portuguesas, escritas com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. Neste livro, publicado em 1972, as autoras fazem um questionamento acerca dos papéis esperados das mulheres na sociedade portuguesa, denunciando a opressão e o silenciamento delas. Antes disso, porém, Maria Teresa Horta já havia escrito Minha senhora de mim (1971), no qual ela assume o direito que têm as mulheres de falarem sobre seu corpo e seu desejo, ao mesmo tempo que manifesta seu repúdio à forma como as mulheres eram representadas na literatura portuguesa. A subversão da escrita no diálogo com a tradição, que é uma das principais estratégias de criação desta poetisa, redunda a um só tempo na elaboração de uma escrita eminentemente feminina, na demarcação do lugar da mulher na sociedade e na reelaboração do cânone. Subvertendo as leis que regem a linguagem escrita e a tradição literária, a poetisa subverte a posição subalterna da mulher enquanto objeto, para reapresentá-la como sujeito da voz que fala no poema, sujeito de um desejo que reivindica seu direito de existir e se expressar, sujeito de um ser político, inserido numa realidade social: Se, na poesia de Maria Teresa Horta não cumprir as regras é também não cumprir a sintaxe, o que acontece em livros como As luzes de Leonor é que muitas das mulheres que o habitam, tal como a sua autora e a sua heroína, Leonor, são “portadoras de fogo e desmesura” e se comprazem em não cumprir as regras – a gramática instituída pelos tempos, motor justamente da regula- 23 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina ção de uma língua e de um estar no mundo. Mas não cumprir as regras é também não cumprir as imposições de gêneros [...] Encontramo-nos, assim, perante uma poesia (e uma poética, no sentido lato do termo, a incluir poesia e ficção) servida por dois processos de ruptura com a norma: a transgressão e a subversão. Se a transgressão não destrói o sistema, visto criar um sistema paralelo, a subversão efetua sobre ele um efeito de corrosão, que o abala. (AMARAL, 2015, p.32-33). O livro de Maria Teresa Horta, de 1971, Minha senhora de mim, considerado por muitos pesquisadores “[...] um momento de virada, em que sua poética assume inteiramente o corpo como espaço de encontro (sobretudo de si).” (BRIDI, 2009, p.40), pertence a uma fase de plena afirmação de um discurso feminino que se contrapõe frontalmente à tradição patriarcal. Mais do que ter seus direitos civis garantidos, as mulheres passam a reivindicar inteira liberdade de voz e de comportamento, dando visibilidade à sua sexualidade e aos seus desejos. O erotismo tem um papel muito grande nesta forma especial de poesia como resistência. Trata-se, porém, de uma reivindicação política, contra toda forma de opressão vivida pela mulher nesta sociedade, opressão esta que transparece nas representações literárias desde as primeiras manifestações galaico-portuguesas. Minha Senhora de Mim Comigo me desavim minha senhora de mim sem ser dor ou ser cansaço nem o corpo que disfarço Comigo me desavim minha senhora de mim nunca dizendo comigo o amigo nos meus braços 24 Maria Lúcia Outeiro Fernandes Comigo me desavim minha senhora de mim recusando o que é desfeito no interior do meu peito (HORTA, 2009, p.304). O poema acima é construído pela intertextualidade com o tema da fragmentação interior, presente no poema de Sá de Miranda, “Comigo me desavim/ sou posto em todo perigo;/ não posso viver comigo /nem posso fugir de mim.” (MIRANDA, 1976, p.318). Mas o eu lírico empreende um deslocamento completo do tema. A desa- vença consigo mesmo não decorre de uma ambiguidade presente dentro de si, como característica do ser humano, tal como ocorre no poema clássico. A desavença interna do eu lírico é contra certa concepção de mulher, que lhe foi imposta pela sociedade patriar- cal, com a qual o sujeito feminino rompeu completamente. A voz feminina expõe sua ruptura com este modelo de mulher submissa, à medida que constrói para si outra identidade, fundamentada na livre expressão do próprio desejo. Neste poema, Horta também recorre a elementos recortados das cantigas trovadorescas. Das Cantigas de Amor ela retira a expres- são com que o sujeito lírico se dirigia à amada, “Minha Senhora”. Aqui, porém, o termo não se refere a uma mulher idealizada, objeto de desejo configurado no cantar de um homem, ainda que velado pelas convenções do amor cortês. Ao contrário, a expressão serve para enfatizar que a senhora não pertence mais a nenhum homem, tendo domínio sobre sua própria vida. Contrariando a convenção da mesura, que domesticava o amor cortês, o eu lírico representa uma mulher inteiramente liberta. Além do confronto com aquele modelo de mulher idealizada, o sujeito feminino investe também contra a mulher sofredora das Cantigas de Amigo, enfatizando que agora é ela própria que tem o amante em seus braços e que fala da sua experiência amorosa, que se realiza à hora e do jeito que desejar. Assim como é ela que toma a iniciativa no ato amoroso, a voz e o ponto de vista do poema também lhe pertencem. 25 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina Poesia resistência de autoria feminina no Brasil As mulheres brasileiras ainda sofrem em seu cotidiano inúme- ras formas de opressão, desrespeito e desqualificação. Pode-se encon- trar uma reação contundente contra esta discriminação na poesia lúcida de Cecília Meireles, já nos anos 1960, embora esta temática não se constitua como eixo central de sua poética. É significativo, porém, que, tal como faz Maria Tereza Horta, a reflexão crítica ocor- ra quase sempre por meio da reescrita destas formas antigasde mani- festação lírica, que constituem as primeiras manifestações da língua portuguesa. A poesia trovadoresca está na origem não somente das formas literárias, mas de toda uma tradição cultural, na qual se forma um modelo e uma imagem da mulher, estabelecidos de um ponto de vista predominantemente masculino. Mesmo quando se expõem os sentimentos amorosos da mulher, como ocorre nas Cantigas de Amigo, os poemas são escritos por um homem. Confessor Medieval (1960) Irias à bailia com teu amigo, se ele não te dera saia de sirgo? Se te dera apenas um anel de vidro irias com ele por sombra e perigo? Irias à bailia sem teu amigo se ele não pudesse bailar contigo? Irias com ele se te houvessem dito que o amigo que amavas é teu inimigo? Sem a flor no peito, sem saia de sirgo, irias sem ele, e sem anel de vidro? Irias à bailia, já sem teu amigo, e sem nenhum suspiro? (MEIRELES, 2001, p.1.843-1.844). 26 Maria Lúcia Outeiro Fernandes Anterior ao poema de Horta, o poema de Meireles apresenta a mesma subversão em relação ao cânone da lírica amorosa lusitana que, desde o Trovadorismo, colocava a mulher ora como ser inatin- gível (como nas Cantigas de Amor), ora como vítima ou joguete nas mãos do “amigo”, expressão que se referia ao namorado ou amante (como nas Cantigas de Amigo). Neste poema, a personagem femi- nina não dialoga com outras pessoas ou seres (com a mãe, com as amigas, com os seres da natureza), como ocorria no modelo original, para falar do seu relacionamento com o namorado. Contrariando estas convenções da poesia medieval, o eu lírico parece dialogar com a voz feminina de uma Cantiga de Amigo escrita por D. Dinis, além de tantas outras cantigas desse período que tratam do mesmo tema: Ma madre velida, vou-m’a la bailia do amor. Ma madre loada, vou-m’a la bailada do amor. Vou-m’a la bailia que fazen en vila do amor. [Vou-m’a la bailada que fazen en casa do amor.] [...] Do que eu ben queria, chamar-m’ an garrida, do amor. Do que eu muit’amava, chamar-m’ an jurada, do amor. (DINIS apud NASSAR, 1995, p.114). 27 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina A ambivalência sugerida pelo título, já que o termo “confes- sor” pode se referir tanto a quem ouve, quanto a quem professa uma confissão, remete à ambiguidade da encenação deste diálogo, que coloca em cena uma personagem feminina falando a outra perso- nagem do mesmo gênero. A ideia de confissão nos faz pensar numa espécie de mea culpa, que procura empreender uma revisão de um comportamento feminino que precisa ser mudado, para garantir a própria independência, não somente econômica mas também emo- cional, da mulher, tornando-a sujeito de sua história. Ao dialogar com a voz feminina da cantiga, é como se ela estivesse falando com todas as mulheres que sempre se comporta- ram dentro de um padrão de relacionamento no qual a mulher era sempre submissa aos desejos e caprichos do homem, que sempre lhe trazia algum tipo de sofrimento. O diálogo, portanto, se faz com um tipo de mulher que representa toda a tradição da literatura amorosa lusitana. Ela usa a segunda pessoa “tu”, para se dirigir a esta mulher, ou melhor, a este modelo de mulher. O sujeito feminino apresenta uma acusação bem grave à mulher, mostrando a sua responsabilidade na dominação que sofreu ao longo dos séculos, à medida que se contentava com vantagens materiais, muitas vezes falsas e irrelevantes, que recebia dos aman- tes. A apropriação de elementos das cantigas trovadorescas, como a expressão “meu amigo”, sofre alterações para se acomodar ao trata- mento de segunda pessoa, tornando-se “teu amigo”. Desse modo, a poetisa se dirige à mulher tradicional, exortando-a sobre os perigos que sempre passou ao lado do amigo, que na verdade sempre se mostrou “inimigo”. Embora este poema apresente um feminismo bastante explí- cito, este não é o teor que predomina na maioria dos muitos tex- tos poéticos nos quais Cecília Meireles reescreve formas e temas trovadorescos: “[...] sem subserviência irrestrita às técnicas do Trovadorismo medievo, partiu de seus motivos e temas relaciona- dos particularmente ao amor entre casais, para o questionamento da existência e a constatação da precariedade do mundo em desar- monia que habitamos.” (MALEVAL, 2003, p.144). Entretanto, se as questões feministas não constituem o cerne da obra de Meireles, a atuação da poetisa como cronista e educadora não se coaduna 28 Maria Lúcia Outeiro Fernandes com a imagem de um ser angelical e alienado da realidade política e social que geralmente se atribui à poetisa. Como afirma Maria Lúcia Dal Farra (2006, p.352), “Cecília Meireles nunca teve a pre- tensão de erguer a bandeira da mulher como sua causa [...]. Mas isso não quer dizer que o olhar sobre a condição feminina esteja ausente dos seus versos.” Outra poetisa que reescreve as cantigas medievais na mesma época de Cecília Meireles é Hilda Hilst. Sua dicção aproxima-se mais da poesia de Maria Teresa Horta, no sentido de buscar a liberdade por meio de uma abordagem erótica, que fala abertamente do desejo, configurando uma voz e um discurso eminentemente femininos. Em ambas o discurso feminino é atravessado pelo erotismo e pelo gozo. Existe, porém, uma diferença muito grande entre o gozo expresso pelo sujeito lírico da poesia de Horta e o de Hilst. Na primeira, o outro é sempre um ser de carne e osso, seu semelhante, igual na concretude do corpo e no desejo carnal. Já no discurso poético de Hilst, o Outro (quase sempre escrito com letra maiúscula), frequen- temente resvala do ser carnal, do homem material para um ser abs- trato, de natureza sublime, acima da realidade material. Há uma ambiguidade intrínseca no desejo e no gozo configurados na obra lírica de Hilda Hilst. E este outro tanto pode ser entendido como o ser amado, estando relacionado também ao corpo de um homem, como pode se referir ao poema, estabelecendo visível relação com o corpo da escrita. Mas pode, acima de tudo, relacionar-se com outro objeto de desejo mais elevado, que, segundo muitas entrevistas da poetisa e muitos dos seus estudiosos, seria o próprio Deus, alvo de uma longa e obstinada busca empreendida pela escritora ao longo de sua vida e obra: Pulsas como se fossem de carne as borboletas. E o que vem a ser isso? perguntas. Digo que assim há de começar o meu poema. Então te queixas que nunca estou contigo Que de improviso lanço versos ao ar Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles Que apetecia a Talleyrand cuidar. Ou ainda quando grito ou desfaleço 29 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina Adivinhas sorrisos, códigos, conluios Dizes que os devo ter nos meus avessos. Pois pode ser. Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo. Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO. (HILST, 2004, p.26). O diálogo que o eu lírico trava com o amado, embora livre, enfatiza um desencontro primordial e inevitável entre ela e o com- panheiro, já que estamos na presença de um sujeito feminino irre- mediavelmente fragmentado entre a entrega a um homem real e o desejo, ardentemente perseguido em sua poesia, por um corpo divino, acima de qualquer realidade possível. Esse Outro incorpó- reo é que fascina esta mulher. É por Ele que ela delira. É para Ele que ela dirige o seu desejo e a sua escrita. Esse objeto de desejo, o Outro, o Amado (com letra maiúscula), não se confunde com o amante de carne e osso que ela tem na cama, mas é um ser abstrato, invisível, inatingível e intocável. Daí o desejo por ele também ser “incorpóreo”. Isso não impede que, em muitos poemas, nos quais a poetisa canta o desejo, seja quase impossível distinguir o amante de carne e osso e o Outro, pois as características dos dois se contaminam mutu- amente o tempo todo, tornando a poética de Hilda Hilst uma mani- festação lírica extremamente complexa, fundamentada numa reflexão metafísica acerca das relações entre alma e corpo, entre concretoe abstrato, entre o humano e o divino. Em muitos poemas, quando ela fala da frieza do amigo, tanto pode estar falando do amante terreno, quanto do amado divino: 30 Maria Lúcia Outeiro Fernandes VII Esquivança, amigo. É o que se faz em ti. Frígido, esquivo Da benquerença de mim Quanto mais te persigo Mais te vejo De mim o fugitivo Córrego correndo E eu desesperança Me fazendo antiga. Crescem verdores À minha volta. Ramas votivas Se interdizendo: Cubra-se a morta Porque o amante Se faz esquivo. Feche-se a porta Porque é de pedra [...] (HILST, 2003, p.86). Existem, porém, muitos poemas em que a voz feminina se refere, de fato, ao amado terreno. Ele aparece de modo inequívoco numa série de poemas em que Hilda Hilst reescreve a tradição lírica portuguesa, retomando procedimentos formais e elementos temá- ticos das formas trovadorescas e de outros períodos. Do ponto de vista cultural, esta voz lírica retoma aquela fala sofredora da mulher submissa ao seu senhor. Ao contrário dos dois poemas anteriores, nos quais Meireles e Horta também exploram as cantigas trovadorescas, o sujeito lírico hilstiano parece não questionar a opressão da mulher, limitando-se a lamentar o espaço marginal ao qual é relegada, no papel da “outra”, na vida do homem casado. Se, por um lado, a abor- 31 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina dagem do tema parece libertador, do ponto de vista dos costumes, pela forma livre com estes poemas tratam da condição feminina, na verdade tais textos parecem perpetuar uma visão tradicional, enfa- tizando a clássica bipolarização entre a mulher casada e a amante, que é uma das formas de representação mais exploradas na literatura europeia tradicional: V Não sou casado, senhora, Que ainda que dei a mão Não casei o coração. (Bernardim Ribeiro) Serei menos eu Dizer-vos, senhor meu, Que às vezes agonizo Em vos vendo passar Altaneiro e preciso? Ai, não seria. E na mesma calçada Por onde andais, senhor, Anda vossa senhora. E sua cintura alada Dá-me tanto pesar E me faz sofrer tanto Que não vale o chorar E só por isso eu canto. Seria menos eu dizer-vos, senhor meu, Por serdes vós casado (E bem por isso mesmo) É que sereis amado? Ai sim seria. (HILST, 2007, p.180). 32 Maria Lúcia Outeiro Fernandes Este poema faz parte do livro Trovas de muito amor para um amado senhor, lançado em 1960. Nestes poemas, Hilst estabelece intertextualidade tanto com as Cantigas de Amor quanto com as de Amigo, além de outros textos portugueses. A epígrafe do livro é de Camões: “Canção, não me digas mais; e se teus versos / À pena vêm pequenos, / não queiram de ti mais, que dirás menos.” O poema V desenvolve-se como uma glosa ao mote apresen- tado no início, que é uma citação de Bernardim Ribeiro: “Não sou casado, senhora,/ Que ainda que dei a mão /Não casei o coração”. Estes versos remetem à instituição do casamento como um contrato, que nada tinha a ver com amor, tal como praticado na sociedade medieval. O eu lírico reencena o jogo sutil entre o vassalo e sua senhora (que se escrevia Senhor), típico das Cantigas de Amor. Entretanto, o jogo está invertido uma vez que, agora, é a mulher que se dirige ao amado. Ademais, tanto a voz quanto a escrita são femininas. De acordo com as convenções do amor cortês, a Senhora deve- ria permanecer um ser distante, inatingível. E a única forma de gozo daquele que prestava a vassalagem deveria decorrer da coita de amor. Por outro lado, a voz feminina das Cantigas de Amigo também nunca se dirigia diretamente ao amado. Ardilosamente, portanto, a poetisa embaralha as convenções que regiam os dois tipos de cantigas. Normalmente a voz feminina das Cantigas dirigia-se às ami- gas, à mãe, à natureza. Quando falava do amado era sempre de modo indireto, em terceira pessoa. Neste poema, porém, a voz feminina ousa interpelar o amado. Assim como era uma desmesura um vassalo interpelar diretamente a sua Senhora, cobrando dela uma recompen- sa pelo seu amor, aqui também o eu lírico reconhece sua ousadia. Tal ousadia decorre de dois fatos. Em primeiro lugar, do fato de que este Senhor do poema hilstiano está numa posição superior devido à convenção poética da vassalagem amorosa, que rege as Cantigas de Amor. E, em segundo lugar, porque, na vida social, as mulheres, mesmo quando se lhes dá a voz, como nas Cantigas de Amigo e nos poemas de Hilda Hilst, não deve, para obedecer a um código social que rege a vida destas mulheres, se dirigir ao homem em público. Principalmente se ele for casado e ela for a outra em sua vida. Tal 33 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina como nas Cantigas de Amigo, o eu lírico vai expor seu sofrimento, decorrente da indiferença do amado que passa, altivo, ao lado da esposa legítima, e vai confirmar a posição subalterna da mulher, que permanece praticamente a mesma, apesar dos séculos que a separam das personagens medievais. Encaminhando uma possível conclusão A poesia feminina de resistência apresenta inúmeras face- tas, consoante a pluralidade de implicações que o movimento de emancipação das mulheres enfrenta. Se as mulheres sofrem cons- trangimentos decorrentes da visão machista e patriarcal em todos os espaços sociais, é no âmbito dos relacionamentos amorosos que as questões enfrentadas pelo feminismo se tornam mais complexas e mais difíceis de serem enfrentadas. É sempre muito complica- do lidar com a realidade de ter um “amigo”, um ser amado, um amante, que se mostra como o seu pior inimigo. As experiências das mulheres são múltiplas em relação a esta problemática, assim como as formas de abordagem poética encontradas na literatura contemporânea. Na virada do século XX para o atual, temos visto surgirem novas formas de abordagem destas questões, como as que são mobi- lizadas por Ana Luísa Amaral, que reescreve a poesia de Maria Teresa Horta: Minha senhora de quê dona de quê se na paisagem onde se projectam pequenas asas deslumbrantes folhas nem eu me projectei se os ventos apressados me nascem sempre urgentes: trabalhos de permeio refeições doendo a consciência inusitada 34 Maria Lúcia Outeiro Fernandes dona de mim nem sou se sintaxes trocadas o mais das vezes nem minha intenção se sentidos diversos ocultados nem do culto nascem (poética do Hades quem me dera!) Dona de nada senhora nem de mim: imitações de medo os meus infernos. (AMARAL, 2010, p.51). O poema acima estabelece uma evidente intertextualidade com o poema “Minha senhora de mim”, num tom revisionista da postura feminista típica dos anos 1970, que direciona a reescrita das cantigas trovadorescas feita por Horta. Na esteira das primeiras grandes teóricas do feminismo no século XX, como Margaret Mead e Simone de Beauvoir, as mulheres do mundo ocidental viveram anos de um movimento bastante entusiasta em relação às possibi- lidades de mudanças radicais no relacionamento com os homens. Havia uma confiança generalizada na luta pela conquista de direitos iguais. A igualdade entre os sexos era a palavra de ordem daquelas feministas dos anos 1960 aos 1980. Reivindicava-se a igualdade de direitos no trabalho, na família, no comportamento. Até na moda, surgem modelos masculinos de roupa adaptados para as mulheres, que passam a incorporar em seus guarda-roupas calças compridas, camisas, blazers e até gravatas. A proliferação dos estudos de gêneros na virada do milênio, o aparecimento de correntes conservadoras e o balanço negativo das conquistas efetivamente obtidas pelas lutas feministas parece que contribuíram para uma espécie de desânimo. O entusiasmo cedeu lugar a um ceticismo crítico, tal como transparece no poema de Ana Luísa Amaral, situação que alerta para a necessidade de se bus- car novos encaminhamentos na luta pelos direitos das mulheres. O espaço em branco – nos terceiros versos das duas primeiras estrofes, no quarto verso da terceira estrofe e no primeiro verso da última, no poemade Amaral – aponta para um vazio no espaço que a mulher 35 Reescrita da tradição como estratégia de resistência na poesia de autoria feminina deveria ocupar nos campos de sua atuação: na própria natureza, na vida social do trabalho e na casa, na atividade da escrita. Em todos estes lugares, esta mulher se sente angustiada e desiludida, entregue aos seus medos e inquietações. REFERÊNCIAS ALMINO, J. A utopia é um império. In: MORE, T. Utopia. Tradução Anah de Melo Franco. Brasília: UnB, 2004. (Clássicos IPRI). p.IX-XXXIII. AMARAL, A. L. Maria Teresa Horta: escrever ao lado, ou de um centro sem centro. In: FLORES, C. (org.). O sentido primeiro das coisas: ensaios sobre Maria Teresa Horta. Natal: Jovens Escribas, 2015. p.25-38. AMARAL, A. L. Inversos; poesia (1990-2010). Lisboa: Dom Quixote, 2010. BOSI, A. Poesia resistência. In: BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977. p.139-144. BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução Maria Lúcia Machado. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BRIDI, M. V. Eco dos clássicos na poética de Maria Teresa Horta. Navegações: (Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa), Porto Alegre, v.2, n.1, p.39-43, jan./jun. 2009. CALINESCU, M. As cinco faces da modernidade: modernismo, vanguarda, decadência, kitsch, pós-modernismo. Lisboa: Vega, 1999. DUARTE, C. L. Maria Teresa Horta: uma poética da liberdade. In: FLORES, C. (org.). O sentido primeiro das coisas: ensaios sobre Maria Teresa Horta. Natal: Jovens Escribas, 2015. p.11-16. DAL FARRA, M. L. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos Pagu, Florianópolis, n.27, p.333-371, 2006. Disponível em: http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332006000200013&lng= en&nrm=iso. Acesso em: 30 mar. 2017. HILST, H. Exercícios. Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2007. HILST, H. Do desejo. Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2004. 36 Maria Lúcia Outeiro Fernandes HILST, H. Júbilo, memória, noviciado da paixão. Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2003. HORTA, M. T. Minha senhora de mim. In: HORTA, M. T. Poesia reunida. Lisboa: Dom Quixote, 2009. p.299-350. MALEVAL, M. do A. T. O desencanto medieval na poesia de Cecília Meireles. Scripta, Belo Horizonte, v.6, n.12, p.134-145, 2003. MEIRELES, C. Poesia completa. Organização Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. MIRANDA, S. de. Obras completas. Organização Rodrigues Lapa. 3.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1976. v.1. NASSAR, I. M. (ed.). Do cancioneiro de D. Dinis. São Paulo: FTD, 1995. (Grandes Leituras). 37 O NARIZ, A PEDRA E A ESTRELA: A DIALÉTICA NEGATIVA DE FERREIRA GULLAR Bruno Darcoleto MALAVOLTA Introdução João Luiz Lafetá (2004, p.116-121), em um irrepreensível ensaio crítico dedicado à poesia de Ferreira Gullar (1930-2016), examina seis momentos decisivos para a intelligentsia brasileira, no século XX. Antes de nos debruçarmos sobre a polifônica poesia de um poeta que rasgou, de fora a fora, o tecido do tempo do século passado, parece-nos proveitoso fazermos uma retomada, à nossa pró- pria maneira, desses seis episódios político-artístico-sociais de que nos fala Lafetá. Trata-se de: 1. a vanguarda modernista, que se ser- viu amplamente de “injeções cada vez mais fortes de fala popular”, valendo-nos da expressão de Octavio Paz (2013, p.68), e procurou ver em seu arranjo linguístico um diagnóstico do Brasil em seu devir moderno, respondendo às contingências políticas da República Velha; 2. o debate ideológico que se instalou sobre essa inteligência brasileira na década de trinta, gerando o afunilamento do discurso poético na direção de conjugar a vanguarda com uma diagnose do Brasil (ou Brasis), que já não coubessem no projeto estético e cul- tural do modernismo de dicção paulista; 3. a drenagem das forças desse movimento na década imediatamente posterior, de 1940, pelo Estado Novo e seu ufanismo de viés populista, que se imporia com autoridade autárquica sobre a construção da identidade brasileira 38 Bruno Darcoleto Malavolta (não seria demais lembrar que a projeção de elementos populares brasileiros a símbolos nacionais, como o samba e a feijoada1, data jus- tamente desse momento); 4. o desenvolvimentismo de Kubitschek, na década de 1950, que encontraria o seu paralelo no racionalismo concretista, no afastamento do verso livre e na reaproximação com a poesia de teor classicizante; 5. já no governo Jango, Lafetá destaca que o foco desse desenvolvimentismo ganhou contornos sociais ao se aliar desenvolvimento e equidade social; 6. finalmente, houve o sufocamento deste movimento progressista após o golpe de 1964, mobilizando uma intensa resistência por parte, sobretudo, de núcleos estudantis (como o CPC da UNE, de que Gullar seria militante ativo e decisivo) e do PCB (de que Gullar seria, igualmente, membro ativo e efetivo, até o seu desvinculamento total do partido, após o exílio), culminando no efetivo asfixiamento dessa mobilização após o AI-5, no ano de 1968. Será na irresolução destas tensões políticas e sociais que o poeta Ferreira Gullar entrará no jogo de forças da lírica brasileira, em 1954, com o seu A luta corporal 2, transitando, desde então até a sua 1 Ana Paula Cavalcanti Simioni nos relata: “O longo governo de Getúlio Vargas (1937-45) tencionava contrapor-se ao liberalismo e ao regionalismo que caracteriza- ram a Primeira República, por intermédio de uma condição pública centralizadora. Visando formar um ‘novo homem brasileiro’, a cultura e a educação tornaram-se dimensões prioritárias, responsáveis por moldar a ‘alma da nação’. Uma série de políticas culturais são implementadas no sentido de promover a integração nacional por meio de símbolos. A feijoada é alçada a prato típico; a capoeira, de prática negra, depreciada pelas elites, passa a ser considerada esporte nacional; ainda o samba, de combatido torna-se arquétipo da cultura brasileira, sendo celebrado pela oficializa- ção do carnaval e do mercado fonográfico.” (SIMIONI, 2015, p.255). 2 Desprezando-se, naturalmente, o volume Um pouco acima do chão, de 1949, que Gullar não incluirá em seu Toda poesia, de 1980. Em uma mesa de discussão de poesia, em que participavam Antonio Carlos Secchin e Alberto Pucheu, mediados pelo professor João Batista Toledo Prado, Secchin chamou (falando reservadamente a Pucheu, antes da abertura oficial da mesa) o não pequeno conjunto de poetas que, no meio do século XX brasileiro, negaram-se a reconhecer as suas primeiras obras, de “poetas que estreiam na segunda obra”. Apesar do caráter anedótico, a expressão de Secchin é feliz e precisa, e vale o seu registro – sobretudo por ter sido Secchin o responsável, diga-se de passagem, por reencontrar as primeiras obras perdidas de Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. A conferência ocorreu no dia 30 de julho de 2019, na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara. 39 O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar última obra, Em alguma parte alguma, de 2010, entre uma miríade de estilos, que vão do intimista ao panfletário, do soneto ao cordel. Em todos eles, Gullar soube imprimir uma intuição de vanguarda radicalizada, afinal, em sua inserção na neovanguarda neoconcretista, no final da década de 50. Se ao grande poeta não pode faltar o alça- pão biográfico, Gullar atingirá o seu apogeu em sua obra de exílio, escrita em 1975, na Argentina, mas publicada somente em 1976 (e trazida clandestinamente ao Brasil em fitas cassete, pelo então diplomata Vinicius de Moraes, que foi um dos raros a visitar o amigo exilado) intitulada Poema sujo – uma longa peça lírica, dividida em oito partes, escrita sob o influxo de uma estética de alta voltagem, intenso experimentalismo e radical imbricação vida-obra. Trata-se, portanto, como em um Carlos Drummond de Andrade, de muitos poetas em um. “Há muitos Gullares num só José”, diria AntonioCarlos Secchin (2018, p.322) no discurso de recepção ao poeta, que tomou posse na Academia Brasileira de Letras no ano de 2014. José puxa o menino José Ribamar Ferreira, que correrá os espaços da memória de Dentro da noite veloz e Poema sujo, mas também puxa o poeta de expressão drummondiana, inquieto e circundado por uma miríade extraordinária de fatos sociais, que o atravessam assim como ao arquetípico “José”, do antológico e onto- lógico poema social de Drummond3. Entre os muitos Gullares-José, aquele que nos interessa mais detidamente investigar será o que se movimentaria ao final da linha histórica traçada por Lafetá: o Gullar socialmente empenhado, autor dos textos poético-panfletários escritos entre 1962 e 1971, reunidos sob o título de Romances de cordel, em seu Toda poesia, e do volume que compreende seus textos líricos escritos entre 1962 e 1975, agru- pados sob o volume Dentro da noite veloz. Teremos, como fulcro de leitura, especial atenção à relação que tecerá Gullar, em seu poema, entre lírica, retórica e dialética, ao fazer convergir poesia e sociedade em um mesmo fio discursivo, e para tanto nos serviremos de teo- rizações a respeito da retórica empreendidas por Chaïm Perelman. Servirá de esteio, igualmente, a leitura da sociedade coeva a esses 3 Trata-se, naturalmente, do poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em obra homônima, pela Ed. J. Olympio, em 1942. 40 Bruno Darcoleto Malavolta poemas feita pela Teoria Crítica de Guy Debord e Theodor Adorno, ou seja, a teoria do espetáculo e o conceito de indústria cultural, no encalço de observar que espécie de alinhamento há, se algum há, entre as leituras que fazem essas teorias do capitalismo tardio e o esforço da poesia gullardiana em combatê-lo. Outro ponto de nossa análise será a tentativa de compreensão crítica das diferentes tensões estéticas a que chegam os dois conjun- tos gullardianos, aqui analisados: por que, de um lado, os poemas panfletários e inclinados ao gênero épico, agrupados sob o título de Romances de cordel, resultariam, tanto na leitura do poeta quanto na de seus comentadores, em um frágil conjunto estético, e, de outro lado, os poemas líricos reunidos em Dentro da noite veloz, tendo tantos paralelismos com esses poemas panfletários, atingiram um dos pontos mais altos da lírica de Gullar? Estaria essa diferença qualitati- va na ordem da estrutura ou da semântica? Seria, afinal, possível que se separasse uma e outra em uma análise minuciosa desses poemas? E, por fim, até que ponto as tensões do texto lírico de Gullar em direção a uma retórica cada vez mais ostensiva de combate ao capital explicaria essa flutuação qualitativa em sua produção? Antes de nos lançarmos no encalço de tais perguntas, entre- tanto, caberia esmiuçar, brevemente, alguns pressupostos da Teoria Crítica que servirão de lastro teórico para nossas análises, e em que medida elas poderiam contribuir para a compreensão das relações entre lírica e sociedade. A voz lírica e a voz espetacular O conceito de Indústria Cultural, cunhado por Adorno, cau- saria, à época de sua publicação, em 1947, um curto-circuito no pensamento marxista, já que o conceito de indústria é relativo à infraestrutura, enquanto o de cultura é relativo à superestrutura4, o 4 Marx (2008), no prefácio de seu livro Contribuição para a crítica de economia política, formula uma dicotomia que será a base para a teoria do materialismo histó- rico. Marx pensa a essência da organização social a partir de duas esferas principais, que seriam a infraestrutura e a superestrutura. A primeira é o conjunto das forças produtivas materiais no estágio técnico do conhecimento disponível, tais como o maquinário, as técnicas de agricultura e o aparato tecnológico e industrial. A segun- 41 O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar que deflagrava uma clara contradição às interpretações ortodoxas de Marx. O filósofo chama a atenção para um paradoxo do capitalismo tardio, em que a cultura deixa de integrar o espaço da reflexão crítica para integrar o universo das mercadorias. Na mesma esteira, Guy Debord, vinte anos mais tarde, em 1967, escreveria um livro que deveria servir de guia teórico de combate para o grupo militante radi- cal e neovanguardista, conhecido por Internacional Situacionista – capitaneado por Debord, este grupo foi responsável por nada menos que a histórica ocupação da reitoria da Sorbonne, em maio de 1968. Trata-se de uma pequena obra, composta por 221 teses her- méticas, intitulada A sociedade do espetáculo, em que Debord faz uma leitura amplificada e radicalizada do mesmo fenômeno descrito por Adorno, ao compreender que essa “indústria cultural” já teria extrapolado uma “mera” condição estrutural da economia para se apossar de todas as instâncias da vida5, incluindo a linguagem6 e as artes7: o mundo globalizado – ocidental e oriental, portanto capita- lista e comunista – estaria entregue a um congelamento do tempo histórico, conduzido por uma macroestrutura que Debord chama de espetáculo. “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD, 2011, p.25), dirá Debord na sua Tese 34, que fecha o primeiro capítulo de seu profético volume. Sabemos, desde Freud, que a imagem é o tecido de nosso incons- ciente, e que é através da linguagem que podemos organizar este da é o conjunto das forças específicas de consciência social, tais como o campo do direito, das artes, da religião, das ciências e da filosofia, a cultura e a política. 5 “[...] Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre como a negação visível da vida; como negação da vida que se tornou visível.” (DEBORD, 2011, p.16, grifo do autor). 6 “[...] A linguagem do espetáculo é constituída de sinais da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última dessa produção.” (DEBORD, 2011, p.15, grifo do autor). 7 “[...] A destruição extrema da linguagem pode ver-se aí reconhecida como um valor positivo oficial, porque se trata de demonstrar uma reconciliação com o esta- do predominante das coisas, no qual toda comunicação é despreocupadamente proclamada ausente. A verdade crítica dessa destruição como vida real da poesia e da arte modernas está, é claro, escondida, porque o espetáculo, cuja função é fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudonovidade de seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade.” (DEBORD, 2011, p.126, grifo do autor). 42 Bruno Darcoleto Malavolta universo psíquico e neurótico, por excelência. O mesmo vale para a imagem espetacular, com o detalhe, entretanto, de que ela não visa a resolução alguma, senão a sua manutenção traumática, alienando o homem moderno da totalidade do passado artístico: a condição histórica da modernidade consistiria, para o pensamento debordia- no, em um edifício barroco, tão contemplável quanto inacessível. Sua estrutura, baseada em um colossal acúmulo, condensa-se em monólogo positivo e laudatório de si mesmo, que busca conver- ter sua palavra de ordem na única comunicação efetiva, anulando o universo simbólico e a razão crítica: a modernidade relegaria a arte à condição de alienação, mas daria a ela o direito de contemplar sua alienação e imobilidade – e daí advém o caráter inerentemente reflexivo da arte moderna, em meio à totalidade contemplável e ina- cessível do passado e a impossibilidade do presente. Ao colocar a linguagem e a imagem como o centro de forças da estrutura do capitalismo tardio, Guy Debord aproxima o fenômeno do espetáculo do fenômeno poético8, afinal, não é senão de lingua- gem e imagem que é feito o tecido da poesia, para tantos teóricos e artistas desse gênero. Assim, a pergunta que está na origem direta da investigação deste trabalho é: seriam poesia e espetáculo os perfeitos antípodas, e portanto objetos exemplares para se pensar as tensões entre arte e sociedade, ao longo do século XX? Embora de naturezas distintas,ambos encontram na lingua- gem um terreno comum, em que distribuiriam os exércitos de sua verdadeira guerra retórica – e é certo que dessa guerra não faltariam exemplos, dentro da lírica brasileira do século passado. Para os filó- sofos frankfurtianos, bem como para Guy Debord, tornou-se cada vez mais evidente o avanço flagrante do capitalismo de consumo 8 Conta-nos Guy Debord que, em 1952, “cinco pessoas pouco recomendáveis de Paris decidiram investigar a superação da arte”, e tiveram como ponto de partida a “autodestruição da poesia moderna” (DEBORD, 1997, p.151). A discussão iniciada por essas cinco figuras seria o ponto de partida para o nascimento da Internacional Letrista, da Internacional Situacionista e da teoria do espetáculo, ela mesma. A estreita relação entre o pensamento de Guy Debord e a poesia foi já esmiuçada em um cristalino ensaio de Gabriel Ferreira Zacharias (2013), intitulado Guy Debord e a poesia de In girum imus nocte et consumimur igni, publicado na revista de crítica genética Manuscrítica. 43 O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar sobre as mais variadas instâncias da vida ocidental, como a arte, a cultura, o tempo, o sono9 etc. Assim, é através das contribuições da psicanálise e de um retorno às filosofias de Hegel e Nietzsche que estes filósofos compreenderão que a essência do fetiche mercadoló- gico, descrito por Marx, havia sequestrado mais que a mercadoria, mas a linguagem ela mesma, extraída de seu universo simbólico de comunicação para uma incomunicabilidade marcada pelo raciona- lismo técnico. Isso, mais do que a mera oposição rudimentar entre capitalismo e socialismo, nos dá notícias do empenho, por parte do poeta maranhense, de se embater a medula do capitalismo tardio, e mesmo da cultura ocidental, através de uma consciência de classe latino-americana, que, engrossando o coro da voz lírica, procuraria fazer de sua voz, mais que um relato subjetivo, um feixe de vozes que pudesse ser forte o suficiente para rasgar a hegemonia da retórica espetacular, que ameaça sequestrar para si o poema – gregário que é, este, da linguagem e imaginação simbólicas –, numa espécie de luta extrema, segundo entendemos, pela sobrevida do gênero lírico10 dentro da modernidade tardia e da contemporaneidade. Assumindo os riscos, que procuramos dissipar através do pro- cedimento crítico-teórico, que uma empenhada leitura de textos tão decididamente empenhados pode proporcionar ao seu comentador, adentremos, pois, a grande noite veloz gullardiana munidos do pen- samento dialético como procedimento de análise, nas algibeiras da nossa mão esquerda, e da retórica, na algibeira direita, e delas nos serviremos, conforme os textos assim o requererem. A dialética como cosmovisão O nariz projeta-se sobre a paisagem com uma dimensão não ignorável. Eixo do ser e epicentro da proporção áurea no semblante 9 Cf. Crary (2016). 10 A investigação específica deste problema teórico-crítico foi desenvolvida na tese de doutoramento do autor, de onde se extraiu o conteúdo deste artigo, intitulada O último espetáculo da poesia brasileira: poesia no crepúsculo da cultura, defendida junto ao PPGEL da UNESP/Araraquara, em julho de 2019. Nela, investigamos a relação de poesia e espetáculo no século XX brasileiro, a partir das leituras dos poetas Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar e Roberto Piva. 44 Bruno Darcoleto Malavolta humano, é ele quem se lança sobre a pedra e a estrela, a escavar-se dialeticamente sobre os seres-objetos da paisagem urbana, no encalço de realizar a impossível ontologia do homem desgarrado na moder- nidade desgarrada. Ou menos que isso. Reduzido a arremedo de muleta da cultura do ocidente, o nariz pende como resto de mímese da “totalidade do passado artístico” (DEBORD, 2006, p.947), em que os fragmentos do presente já não podem recompor sua unidade, senão como falsificação dessa unidade. O nariz decide, escolhe, distingue, entre a imediaticidade de sua apreensão simbólico-fisiológica do mundo e uma difícil depu- ração em síntese. Monstro dantesco equidistante à pedra e à estrela, o nariz gullardiano trafega na configuração das complexas relações que realizará, no poema, no encalço de sua síntese negativa, numa dialética que visa afinal a encontrar o eixo revolucionário em que deve girar a poesia revolucionária. A síntese em ideologia, será, quiçá, uma organização retórica forte o suficiente para converter as muletas do mundo ocidental em foices e martelos, capazes, por sua vez, de recompor a sociedade em uma comunidade em que a palavra poética poderá readquirir sua força de totalidade, o que equivale a dizer: voltará a encarnar- -se na história (PAZ, 2013) e fazer girar novamente a história dos textos, congelada no exato momento em que a poesia, ou a arte ela mesma, foi apreendida para dentro da ideologia dominante e, logo, abandonou sua condição metafórica e metonímica para converter- -se em formas miméticas mais ou menos acabadas de um neoclas- sicismo normativo, correspondente à produção de obras separadas da cultura separada (DEBORD, 2006). No mundo espetacular, o Estado necessita realizar a manutenção incessante da alienação da palavra, lançando-a para fora da poesia e a convertendo somente em informação útil – um outro nome para a linguagem exterior do Estado, como quis Guy Debord (2011) – restando à poesia, des- de Baudelaire, exprimir-se negativamente para que uma linguagem comum pudesse ser reencontrada. Que resta, então? Resta, ao nariz, metonímia do ser, recusar em sua linguagem tudo aquilo que for a normatividade já decodifi- cada pela cifra da ideologia burguesa e voltar a se arremessar sobre a imanência, em um processo crítico e diagnóstico que faça retornar 45 O nariz, a pedra e a estrela: a dialética negativa de Ferreira Gullar a sua linguagem, de forma dialética, para a Razão. A dialética ador- niana, diferentemente da hegeliana11, será um processo de escavação 11 Caberia fazer, aqui, uma diferenciação mais minuciosa entre a dialética hegeliana e a adorniana, desvinculada do corpo do texto principal. Comentando a leitura de Adorno a respeito de Hegel, Safatle esclarece que a dialética negativa de Adorno consiste no “[...] resultado de um conjunto de operações de deslocamento no sistema de posições e pressupostos da dialética hegeliana.” (SAFATLE, 2013, p.21; grifo do autor). Tais deslocamentos consistem na recusa, por parte de Adorno, a “[...] três figuras da posição dos momentos conciliadores da Ideia, a saber: o Estado, o Espírito do mundo como vetor da racionalidade do processo histórico, e a identidade entre sujeito e objeto no interior do absoluto.” (ADORNO, 2013, p.24). Adorno dirá, a esse respeito, que “[...] nenhuma das três reconciliações sustentadas pelo idealis- mo absoluto, desde a reconciliação lógica à histórico-política, se mostrou válida.” (ADORNO, 2013, p.24). O que procura dizer Adorno, pensando, sem dúvida, a partir de Marx, é que o postulado do idealismo hegeliano a respeito do Estado como garantidor das liberdades individuais, bem como instância condutora dos homens para o reino da liberdade, não se verificou, na prática, ou seja, na história. Jaime e Amadeo (AMADEO; JAIME, 2006, p.406), em seu “A fundamentação da felici- dade em Marx”, afirmam: “Assim, Hegel não se cansará de repetir que o homem só é livre no Estado. Não obstante, tal liberdade percorrerá um longo caminho, que tomará, como primeiro momento de realização, a propriedade privada.” A respeito do Estado como garantidor das liberdades individuais, Marx terá um pensamento diametralmente oposto ao de Hegel: para Marx, a propriedade privada e o Capital, agentes de alienação e reificação, ao serem objetos de proteção por parte do Estado, conduziriam o Estado a ser um cerceador da liberdade, como também esclarecem Amadeo e Jaime (2006, p.406): “[...] para pensar a liberdade em Marx, é necessário fazer referência à categoria de alienação. Esse conceito
Compartilhar