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NA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL O PROBLEMA É A FAMÍLIA?: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PROFISSIONAIS SOBRE OS ARRANJOS FAMILIARES EM TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE Ailton de Souza Aragão Maria das Graças Carvalho Ferriani 1. Introdução [...] Sapato jogado, roupa jogada, brinquedo, cachorro misturado, gato... Aquela bagunça mesmo. Então, assim é uma realidade que eu nunca tinha convivido. [...] nem na África eu vi tanta necessidade de a gente educar as crianças para cuidar do seu próprio corpo, quanto para cuidar de casa. Coordenadora de ONG Há muito os estudos sobre as famílias têm demonstrado uma alteração significativa na sua composição e na sua estrutura. Ao mesmo tempo, os papéis dos seus membros no seu interior são revistos e apresentam uma dinamicidade quanto aos imperativos de uma sociedade que cada vez mais apregoa valores como a individuação de seus membros. Historicamente, no âmbito das políticas públicas, as famílias, sobretudo as das classes populares, se apresentam como alvo das ações dos poderes públicos: vigiando-as, disciplinando-as, moralizando-as, educando-as... Enfim, em nome de uma ordem social a ser conquistada, sinônimo de impulso produtivo e de consumo, ou ainda, do tão propalado progresso. Diante dessa prerrogativa desenvolvimentista, as políticas sociais se mostraram fragmentárias, pois, herdeiras de uma concepção cartesiana, se colocaram como estratégias de intervenção imediatista sobre as manifestações agudas da questão social sobre esses mesmos grupos familiares. Logo, a (re)estrutura familiar permitiria aos mesmos superar as contradições do processo de marginalização social, do qual também são vítimas. Pelo presente, reportamo-nos à necessidade de questionar e superar as estratégias adotadas até então, haja vista compreendermos as famílias das classes populares não apenas como destinatárias das ações setoriais, mas, sobretudo, de concebê-las como sujeitos de direitos, historicamente violados. Ao mesmo tempo, urge considerarmos a construção da intersetorialidade enquanto estratégia de superação da histórica fragmentação dos grupos familiares e de seus sujeitos, e ainda, tanto a individualização quanto a responsabilidade pela superação da vulnerabilidade. Relativamente aos aspectos metodológicos a pesquisa contou com participação de 38 sujeitos, dos quais 12 da Atenção Básica em Saúde, 17 da Proteção Social Básica e de 9 representantes do Terceiro Setor. Essa diversidade favoreceu a apreensão das representações dos profissionais sobre as famílias atendidas e, ao mesmo tempo, o quanto são complementares e excludentes. Segundo Lang (1999), o depoimento oral, obtido com a entrevista semiestruturada, é uma boa estratégia para pesquisas qualitativas cuja intenção é obter informações com o intuito de complementar e/ou ampliar a pesquisa. Uma pesquisa cujos métodos são estritamente quantitativos requer o depoimento oral – ou de outras fontes – para permitir a abrangência da complexidade inerente aos fenômenos sociais. Entendemos os depoimentos orais dos sujeitos – ou dos documentos por eles produzidos – em sua dimensão histórico-dialética e o momento de encontro entre pesquisador-pesquisado como de interação. Essa abordagem reforça, portanto, a relevância de apreendermos uma problemática em estudo sob sua produção historicamente antagônica e de manifestação coletiva, ainda que proveniente de um único sujeito. Como expõe Minayo (2000) [...] a reflexão hermenêutica produz identidade da oposição, buscando a unidade perdida. Ela se introduz no tempo presente, na cultura de um grupo determinado para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão de mundo própria, envolvendo num único movimento o ser que compreende e aquilo que é compreendido. (p.221) Após a aprovação pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP), todos os sujeitos foram apresentados ao TCLE e somente após a sua leitura é que foram realizadas as entrevistas semiestruturadas. Após as transcrições dos depoimentos dos diferentes sujeitos em seus setores de atuação elaboramos uma codificação acerca das expressões da família estavam presentes bem como os dilemas enfrentados pelas mesmas. Com o objetivo de garantir o anonimato dos depoentes, os respectivos nomes dos foram convertidos em siglas que indicam a profissão, o local/setor de atuação e o número da entrevista no referido setor. Por exemplo, AS-PS 3 indica: Assistente Social – Proteção Social; 3º. O Quadro 1, abaixo, apresenta as abreviações utilizadas. ORGANIZAÇÕES/PROGRAMAS /SETORES PROFISSIONAIS SIGLA Profissionais do setor Saúde Enfermeira/o de Equipe Saúde da Família E-SF Agente Comunitário de Saúde A-SF Assistente Social da Saúde AS-S Enfermeira/o de Unidade Matricial E-MS Profissionais do setor da Proteção Social Básica Coordenador/a de Unidade de Proteção Social C-PS Assistente Social de Unidade de Proteção Social AS-PS Psicólogo de Unidade de Proteção Social P-PS Profissionais do Terceiro Setor Psicólogo/a de Instituição do Terceiro Setor P-TS Coordenador/a de Instituição do Terceiro Setor C-TS Quadro 1 - Distribuição das siglas dos profissionais entrevistados de acordo com os setores de atuação. Fonte: Arquivos do pesquisador. Os resultados apontam para a reprodução da representação das “famílias desestruturadas”, esta, aliás, está associada ao uso de álcool e drogas ou mesmo ao tráfico de drogas; de situações de desemprego; de prostituição dos filhos menores; à imaturidade dos jovens casais em formar famílias... Enfim, sob a ótica dos profissionais, a violência estrutural que se manifesta no espaço doméstico é oriunda da própria família e suas relações instáveis. 2. A violência no território de atuação da rede de serviços A violência social se manifesta de diferentes maneiras nos diferentes territórios onde se inserem os profissionais da Atenção Básica, da Proteção Social ou do Terceiro Setor. Seja de natureza física, sexual, psicológica ou maus tratos, suas raízes podem ser identificadas, também, nas condições de vida em que se inscrevem os diferentes grupos familiares. (KRUG et al., 2002; MINAYO, 2009; DESLANDES, 2004) Os depoimentos demonstram, em sua grande maioria, que tanto as complicações de saúde quanto a desmotivação de alguns moradores em participar dos grupos operativos, por exemplo, pouco se relacionam com a determinação social. Inicialmente, uma enfermeira destaca a rede de atendimento do território como relevante no acolhimento dos fatos de violência que chegam à Unidade de Saúde, pois a função culturalmente atribuída ao gênero feminino de cuidar das crianças e da casa estaria ameaçada pela urgência de sua entrada no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, há a indisposição dos moradores em permitir o acesso ao ambiente privado, sobretudo diante da suspeita de violência intrafamiliar: E-MS 8. [...] Às vezes as denúncias vem da escola. A nossa Agente faz visitas, mas é uma mãe que trabalha o dia inteiro e você não encontra a família em casa. Ou às vezes elas estão em casa e não abrem. [...] E quem tem este tipo de problema [violência], a gente sabe que eles não convidam para entrar. Quanto mais eles puderem fugir, melhor eles se sentem. E-SF 4. [...] [A violência] É bastante evidente, mas não é aflorada. A pessoa não chega aqui [na USF] contando que teve algum problema em relação à violência propriamente dita. [...] A-SF 4. Na minha área já aconteceu de uma vizinha denunciar a outra. Que a mãe tinha brigado com a filha que ficou bastante machucada [um caso de espancamento de uma menina de 6 anos]. E nós já ficamos sabendo que essa família já tinha perdido a guarda de outros filhos e que moravam [no abrigo]. Os depoimentos dos profissionais de saúde demonstram, inicialmente, que os arranjos familiares dos territórios atendidos procurampreservar o ambiente doméstico das investidas dos profissionais, mesmo dos vizinhos, quanto à possibilidade dos mesmos diagnosticarem qualquer sinal ou situação considerada “fora do normal” – de violência –que as coloque no centro das prioridades da Equipe ou de qualquer outro profissional que possa ser acionado. As equipes de referência dos CRAS´s, em geral, assim como as ESF´s, têm como estratégia a visita domiciliar e, não raras vezes, se deparam com situações de vulnerabilidade em todas as suas dimensões. AS-PS 3. A gente trabalha em conjunto. A gente faz as visitas, vê a necessidade da família, expõe com a equipe o que a gente pode fazer e socorrer no momento. O que é possível a gente faz. Mas tem o impossível. [...] Fácil não é, mas a gente sempre corre atrás. C-PS 2. [...] Porque às vezes [...] vai na casa, não encontra. Porque aqui nós fazemos visitas a pé. [...] Como a equipe é pequena, nós vamos para os casos mais graves, vamos dizer assim. Nós vamos fazer essa visita, vamos observando, a questão do adolescente mesmo... É alcoólatra, ela é alcoólatra. A Proteção Social Básica tem atuado em alguns territórios sob as manifestações agudas de violência. (MINAYO, 2006; MENDES, 2008). Por seu turno, as ações preventivas deveriam ter sido capazes de atuar sobre as condições crônicas de vulnerabilização dos arranjos familiares do território (AYRES et al., 2003). A proeminência das ações sobre as condições agudas revela o caráter urgencial das ações, aliada, por exemplo, à insuficiência dos recursos humanos das equipes de referência ou devido às dimensões geográficas da área a ser coberta. Mas outros sujeitos são acionados em outras situações de violência: são as instituições para acolhimento de adolescentes adictos de drogas. Estes adolescentes são encaminhados, em sua maioria, pelos membros da Rede de Defesa, como o Conselho Tutelar (VIANNA et al., 2008). No entanto, a violência histórico-social, programaticamente produtora de adolescentes vulnerados, se manifesta na sua reclusão institucional para a sua reabilitação e sua futura adequação social. Longe de desqualificá-las, reside aqui, também, a contradição da violência enquanto fenômeno social. Ao mesmo tempo, verificamos a existência de um descompasso das ações assistenciais de algumas entidades da rede complementar em relação aos serviços oferecidos pela Proteção Social ou pela Atenção Básica em Saúde: C-TS 5. Isso tudo que eu estou falando, está relacionado com a criança e com a família dela. Se eu olhar só para a criança e não para a família, eu não atendo. Na verdade a gente vai ficar em obra, sem resultado nenhum. Quando fala que acompanha a família, na verdade a gente continua no Código de Menores em relação às famílias [procurando discipliná-la]. Um exemplo dessa reflexão elaborada pelo sujeito acima é expressa nas entidades destinadas a acolher adolescentes adictos de drogas, encaminhadas pelos representantes da Rede de Defesa. Uma dessas entidades, coordenada pelo C-TS 1, recebe adolescentes do sexo masculino e dependentes químicos. O coordenador reforça a necessidade de que um familiar ou responsável acompanhe o adolescente quando do encaminhamento para a entidade, seja por encaminhamento do Conselho Tutelar ou por procura espontânea. Segundo o relato do profissional, muitas vezes a família quer se desvencilhar daquilo que se tornou um problema interno e, para tanto, terceiriza o encaminhamento: C-TS 1. Ultimamente nós estamos trabalhando em um processo que a família sempre venha. Ela que venha atrás. Mais o começo da dificuldade da família, começa na internação. Portanto, quando o Conselho liga [...] nós falamos: “Está vindo algum responsável junto”? [...] a família quer simplesmente que [o Conselho traga], eles não querem nem aparecer aqui... Quer que a viatura [policial] traga, traga a roupa dele e largue aqui, e passe aí talvez de vez em quando [...]. Então, já está naquela situação que [a família] não aguenta mais. O depoimento destaca a manutenção da criminalização da questão social e sua consequente “naturalização” ou “fatalidade” pelos próprios arranjos familiares em situação de vulnerabilidade social. Os depoimentos do setor Saúde e da Proteção Social reforçam que, de um lado, a família tem sido alvo histórico da intervenção dos programas socioassistenciais desenvolvidos pelo poder público ante a agudização dos cenários e expressões da violência social. De outro, as próprias famílias são responsabilizadas pelos seus problemas. (MIOTO, 2010; NEVES, 2008) E fica patente, também, a possibilidade de resistência dessas mesmas famílias. O depoimento da E-MS 8 e da AS-PS 3 revelam que a intervenção do setor Saúde e da Proteção Social no ambiente privado só será profícua na medida em que o cidadão acolha os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Equipe de Referência do CRAS, do contrário, a resistência se manifesta sob a forma de negação em ser atendido pelas Equipes. Como expressaram Sarti (2007) e Neves (2008) ao analisarem as relações no espaço doméstico, pelo olhar sócio-psicológico, a casa é o lócus da proteção, do acolhimento, da segurança, de preservação dos membros do grupo e da manutenção dos valores. Em oposição ao mundo da rua, considerado como o espaço da luta pela sobrevivência diária, do conflito, da insegurança e da perversão dos valores familiares. Para esses autores, a família é portadora de uma singularidade. Ainda que esteja no mesmo espaço comunitário, cada uma guarda suas particularidades psicológicas, sociais, culturais, econômicas, religiosas, comunicacionais, dentre outras. Por fim, ainda que detectada uma manifestação de violência por parte dos ACS´s ou da equipe do CRAS, a entrada no universo privado dever ser permitido com o consentimento de seus moradores, sobretudo dos adultos. 3. A prática profissional com as famílias: enfim, a superação de impasses? O olhar da C-TS 8 sobre o espaço doméstico numa das áreas de maior vulnerabilidade social no município fez com que sua entidade promovesse momentos de educação higiênica para as mães e para as crianças, como forma de capacitá-los para o cuidado doméstico e com a higiene pessoal. C-TS 8. [...] Eu contextualizei todo ele [o Projeto] voltado para a necessidade do bairro. Nós fizemos uma pesquisa e nas [...] visitas que nós fazemos aos pais, as crianças [...] A gente vê uma desorganização muito grande dentro de casa. Da hora que a gente entra até onde nossos olhos alcançam, muito falta de higiene [...]. Nem na África eu vi tanta necessidade de a gente educar as crianças para cuidar do seu próprio corpo, quanto para cuidar de casa. [...] Aqui como nos demais depoimentos dos sujeitos coletivos, as condições de vida do arranjo familiar impactam diretamente sobre sua percepção do processo saúde-doença, sua concepção de violências e mesmo de direitos sociais. Como expõem Maria Beatriz Guimarães et al.: Algumas vezes, a violência da luta pela sobrevivência física e subjetiva gera outras formas de violência. O vício, muitas vezes, se constitui numa possível resposta para pessoas que, em vão, buscam vínculos e o reconhecimento de que possuem uma vida interior com sonhos, desejos e expectativas. Entretanto, esta forma de responder aos anseios de visibilidade e inserção social acarreta mais violência, em especial no âmbito das relações familiares. (2011, p.296) Desse modo, as condições de vida de um determinado arranjo familiar não são exclusivas do próprio grupo, mas são oriundas de determinantes históricos e estruturais, dos quais, econômicos e políticos. Assim, a vulnerabilidade programática, como referida por Ayres et al. (2003), se reproduz nos territórios dos indivíduos e grupos que ali constroem e reproduzem seu cotidiano. Vulnerabilidade cuja ausência ou a emergência de respostas do poder público sob a forma demelhoria das condições de vida pode ser seguida da ausência de participação cidadã coletiva na coisa pública. Nas palavras do autor e sua equipe: [...] quanto maior for o grau e a qualidade de compromissos, recursos, gerência e monitoramento de programas, nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidados [a alguma ameaça] maiores serão as chances de canalizar os recursos sociais existentes, otimizar seu uso e identificar a necessidade de outros recursos, fortalecendo os indivíduos [ante uma ameaça de epidemia ou violência]. (AYRES et al., 2003, p. 123). Em decorrência, as ações a Atenção Básica em Saúde, da Proteção Social e do Terceiro Setor sobre os determinantes sociais em áreas de vulnerabilidade social se defrontam com desafios constantes. Relativamente à violência está o tabu, que ronda o universo doméstico e que impede a sua notificação pela rede de responsabilização e de defesa e, sobretudo, dificulta as ações da rede de atendimento nos territórios. (VARGAS; SILVA, 2008; VIANNA et al., 2008; STOTZ, 2009). E-MS 8. Estes casos [de violência] aqui na nossa área ficam complicados, pois as famílias são difíceis de serem trabalhadas. Ela começa a fugir da gente, porque a gente vai a uma visita, eu vou, a médica vai e relata, a gente procura a assistente social e ela vai com a gente [...]. Ela tenta fazer os meios para se resolver [...] encaminha para o Juizado, o juiz determina e acabou. [É frustrante]. Aqui os esforços do conjunto de profissionais da Atenção Básica à Saúde são frustrados por um despacho do Juiz da Infância e da Juventude, ou seja, a agudização das condições crônicas de vulnerabilidade que não foram encaminhadas ou sanadas pelo setor Saúde e/ou pela Proteção Social o serão “por decreto”. Percebe-se, assim, que a intervenção do Juizado ou do Ministério Público seja indicativa de que a rede de atendimento encontra dificuldades no manejo e no enfrentamento dos diversos desafios. Além desse impasse que se verifica na relação hierárquica entre os entes que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, existe o de as famílias não são devidamente informadas quanto ao correto encaminhamento aos serviços de Saúde e Proteção Social. Uma ACS verifica que há “falta de informação”, embora sua Equipe insista em repassar o endereço de um dos sujeitos sociais da rede de atendimento de proteção social básica – o CRAS. A-SF 2. Falta [informação]. [Os moradores] não sabem onde [...] é o CRAS, que é aqui pertinho. E a gente sempre tem falado o endereço. Eles não sabem que lá é o CRAS, eles sabem que lá tem curso. Um dilema semelhante é exposto pela E-MS 8, quanto aos motivos pelos quais uma mãe não procura o serviço de saúde na Atenção Primária: E-MS 7. Eu fico pensando como uma mãe deixa chegar a esse ponto. Tem mães que [é] só aparecer uma pintinha [na criança] e elas já querem levar ao médico. E já tem outras que não tem essa preocupação. Então, eu fico pensando se é falta de conhecimento ou se é negligência mesmo. Não procurar o atendimento do assistente social ou se negar a fazer um curso no CRAS do território, ou ainda, não levar a criança à Unidade de Saúde se constituem em negligência consigo e, sobretudo, com os que dependem dos cuidados dos adultos. Um dos componentes da vulnerabilidade é sua manifestação individual, logo, os profissionais devem refletir sobre o hiato existente entre informar um determinado sujeito sobre seus direitos sociais e como ele pode acessá-los na rede de atendimento, como medida de prevenção e proteção. E ainda, a satisfação propriamente dita de suas necessidades urgentes, sob as condições agudas de violação de direitos. (AYRES et al., 2003; MENDES, 2008). O E-SF 5 avalia que a “família não gosta de mudar a história”, quando perguntado sobre as dificuldades encontradas na relação de sua ESF com as famílias do território que foram alvo de visitas regulares, denunciadas ou por vizinhos ou por um ACS da ESF: E-SF 5. [...] Então, eu conheço todos da minha área [...] na grande maioria a família não gosta de mudar a história. Como este caso da mulher eu que eu falei. Eu até ameacei e falei que ela estava pegando o dinheiro do Bolsa Família, que era para alimentar seus filhos, e não para comprar pedra [de crack], para poder revender. O dinheiro estava sendo usado para aumentar o tráfico. E a criança sempre com baixo peso. O dinheiro não estava sendo usado. E como você tira isso? [...] (Grifos nossos). O sujeito se deparou, como muitos profissionais da saúde e da proteção social, com uma situação na qual o uso de drogas por parte dos adultos do arranjo familiar colocava em risco o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. Assim, a histórica condição de vulnerabilidade individual e social vivenciada pelos adultos é extensiva às crianças e aos adolescentes. Na ausência ou insuficiência de programas públicos, estes tendem a reproduzir relações intrafamiliares e comunitárias de violência e precariedade ante a manutenção das estruturas histórico-sociais de vulnerabilidade. (BAZON, 2008; SARTI, 2010). Os profissionais dos CRAS demonstram que é mister estimular os membros de um arranjo familiar a buscar seus direitos junto aos orgãos públicos. Para tanto, a participação nos grupos operativos e de orientação psicossocial é fundamental: C-PS 6. [...] Então, eles se acostumaram muito em só receber e não buscar. Essa dificuldade a gente tem [e queremos] mudar essa condição. Se você oferece, tudo bem. Se não oferece, eles não vem. A gente está buscando uma forma diferenciada de envolver a comunidade mostrando que a vida não é assim. Para melhorar tem que participar. C-PS 9. Um outro fator é a participação da família nos atendimentos. Na própria medida [LA ou PSC] deste adolescente. Nós temos os grupos de familiares, que acontecem uma vez por mês e, geralmente, os temas são voltados para a família, para a adolescência. Então, a gente chama a responsabilidade do familiar. Os depoimentos de ambos evidenciam a necessidade, inicialmente, de superação de relação clientelistas como forma de estimular a participação e a mobilização em torno das demandas familiares e comunitárias. Por outro lado, os atendimentos psicossociais reforçam a urgência da participação familiar nas situações de liberdade assistida ou de prestação de serviços comunitários. De acordo com Pereira-Pereira (2010), [...] o objetivo da política social em relação à família, ou ao chamado setor informal, não deve ser o de pressionar as pessoas para que elas assumam responsabilidades além de suas forças e de sua alçada, mas o de oferecer- lhes alternativas realistas de participação cidadã. (p.40). Assim, a prática reflexiva adotada nos grupos estimulados pelos profissionais da Proteção Social ou da Atenção Básica contrastam com a urgência da sobrevivência cotidiana. Logo, não conduzem, a posteriori, os grupos familiares à apropriação dos direitos sociais em sua amplitude, posto que os mesmos grupos requerem de instrumentos e informações que promovam o diagnóstico e a construção de estratégias coletivas de superação do status quo de precariedade, “naturalizado” pela história. 4. Considerações finais A vulnerabilidade programática e a manutenção de uma estrutura socialmente violenta podem ser mantidas. Ainda que áreas urbanas possuam os serviços de saúde, de proteção social pública ou complementar, composta pelo Terceiro Setor, não significa que os profissionais que ali atuam possam orientar suas ações no território a partir de uma política pública de longo alcance. Pois como as famílias, os mesmos se encontram sob as determinações sociais do local e políticas que orientam o serviço. Por outro lado, concordamos com Regina Mioto (2010), pois não podemos tomar a família como unidade de medidas interventivas fundadas no auxílio de “processos diagnósticose de tratamento de problemas individuais”. E tampouco considerá-la como “o problema” e transformá-la em objeto terapêutico. (p.55). A política social brasileira, historicamente desenhada sob diretrizes setorializadas e institucionalizadas, ao eleger o indivíduo como centro de suas atenções, fragmentou-os sob a “forma de atenção pública” (p.54). Nesse contexto, três processos ganharam força: os direitos dos indivíduos de per si (criança, idoso, mulher...); a fragmentação dos indivíduos em necessidades transformadas em direitos de per si, que são o direito à saúde, à educação; e a psicologização das relações sociais. Dessa forma, os esforços se concentram na tutela de direitos e necessidades de indivíduos ou de “coletivos de indivíduos”. (MIOTO, 2010, p.54). Isso posto, existe uma forte tendência das intervenções propostas pelas políticas sociais, formatadas sob a ótica das necessidades individuais, ocultarem as contradições inerentes à organização da sociedade capitalista, bem como estimular a marginalização de pessoas e grupos sociais. Sob essa perspectiva, o foco das políticas sociais recai sobre as famílias que “ameaçam a estabilidade e segurança social”, a passo que ocultam as “relações entre estilos de vida, organização familiar e problemas sociais”. (MIOTO, 2010, p.54) Nossa sociedade, como assevera a mesma autora, [...] ainda tem tratado a família como se não fosse em si mesma um núcleo problemático. Por isso, os interesses, tanto de natureza política como sociocultural, recaem sobre as formas marginais ou patológicas. (MIOTO, 2010, p.52) Numa lógica emancipatória, as ações das equipes, intersetorialmente planejadas, se direcionariam ao enfrentamento das condições crônicas de pobreza em que se encontram indivíduos e famílias inteiras. Como forma de superação de modelos hierárquicos, centralizados e autoritários, ancorado na construção coletiva de diagnósticos e de estratégias de intervenção que se destinem à efetivação da política de seguridade social, alterando as condições de vida dessas comunidades historicamente vulneradas. (MINAYO; HARTZ, BUSS, 2000; LOS, 1990; LOAS, 1993). Isso posto, é mister superar a concepção tradicional ou idealizada de família como lugar harmônico, idílico. Vislumbra-se, portanto, que a pluralidade de arranjos familiares sob aspectos comunicacionais, simbólicos e culturais, por exemplo, não pode ser reduzida a um padrão, como um modelo que deva ser perseguido, sobretudo, pelos grupos “inadequados”. Porém, reconhecer a pluralidade dos arranjos é valorizá-los em suas idiossincrasias, o que difere da naturalização dos processos pelos quais são vulnerabilizados. Ao mesmo tempo, as políticas públicas destinadas às famílias devem superar a representação conservadora que objetiva a reconstrução da “estrutura familiar” por meio de procedimentos técnicos e disciplinares impostos pelas organizações estatais, privadas ou da própria sociedade civil e, inclusive, ecoam nas próprias famílias, posto que mantêm intactas as estruturas que as (re)produzem. REFERÊNCIAS AYRES, José R. C. M.; et al.O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos M. de (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2003. cap.06, p.117- 139. BAZON, Marina R. 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