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eixo3-014

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NA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL O PROBLEMA É A FAMÍLIA?: 
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PROFISSIONAIS SOBRE OS 
ARRANJOS FAMILIARES EM TERRITÓRIOS DE 
VULNERABILIDADE 
 
Ailton de Souza Aragão 
Maria das Graças Carvalho Ferriani 
 
1. Introdução 
 
[...] Sapato jogado, roupa jogada, brinquedo, cachorro misturado, gato... Aquela 
bagunça mesmo. Então, assim é uma realidade que eu nunca tinha convivido. [...] 
nem na África eu vi tanta necessidade de a gente educar as crianças para cuidar do 
seu próprio corpo, quanto para cuidar de casa. 
Coordenadora de ONG 
 
Há muito os estudos sobre as famílias têm demonstrado uma alteração significativa na 
sua composição e na sua estrutura. Ao mesmo tempo, os papéis dos seus membros no seu 
interior são revistos e apresentam uma dinamicidade quanto aos imperativos de uma 
sociedade que cada vez mais apregoa valores como a individuação de seus membros. 
Historicamente, no âmbito das políticas públicas, as famílias, sobretudo as das classes 
populares, se apresentam como alvo das ações dos poderes públicos: vigiando-as, 
disciplinando-as, moralizando-as, educando-as... Enfim, em nome de uma ordem social a ser 
conquistada, sinônimo de impulso produtivo e de consumo, ou ainda, do tão propalado 
progresso. 
Diante dessa prerrogativa desenvolvimentista, as políticas sociais se mostraram 
fragmentárias, pois, herdeiras de uma concepção cartesiana, se colocaram como estratégias de 
intervenção imediatista sobre as manifestações agudas da questão social sobre esses mesmos 
grupos familiares. Logo, a (re)estrutura familiar permitiria aos mesmos superar as 
contradições do processo de marginalização social, do qual também são vítimas. 
Pelo presente, reportamo-nos à necessidade de questionar e superar as estratégias 
adotadas até então, haja vista compreendermos as famílias das classes populares não apenas 
como destinatárias das ações setoriais, mas, sobretudo, de concebê-las como sujeitos de 
direitos, historicamente violados. Ao mesmo tempo, urge considerarmos a construção da 
intersetorialidade enquanto estratégia de superação da histórica fragmentação dos grupos 
familiares e de seus sujeitos, e ainda, tanto a individualização quanto a responsabilidade pela 
superação da vulnerabilidade. 
Relativamente aos aspectos metodológicos a pesquisa contou com participação de 38 
sujeitos, dos quais 12 da Atenção Básica em Saúde, 17 da Proteção Social Básica e de 9 
representantes do Terceiro Setor. Essa diversidade favoreceu a apreensão das representações 
dos profissionais sobre as famílias atendidas e, ao mesmo tempo, o quanto são 
complementares e excludentes. 
Segundo Lang (1999), o depoimento oral, obtido com a entrevista semiestruturada, é 
uma boa estratégia para pesquisas qualitativas cuja intenção é obter informações com o intuito 
de complementar e/ou ampliar a pesquisa. Uma pesquisa cujos métodos são estritamente 
quantitativos requer o depoimento oral – ou de outras fontes – para permitir a abrangência da 
complexidade inerente aos fenômenos sociais. Entendemos os depoimentos orais dos sujeitos 
– ou dos documentos por eles produzidos – em sua dimensão histórico-dialética e o momento 
de encontro entre pesquisador-pesquisado como de interação. 
Essa abordagem reforça, portanto, a relevância de apreendermos uma problemática em 
estudo sob sua produção historicamente antagônica e de manifestação coletiva, ainda que 
proveniente de um único sujeito. Como expõe Minayo (2000) 
 
[...] a reflexão hermenêutica produz identidade da oposição, buscando a 
unidade perdida. Ela se introduz no tempo presente, na cultura de um grupo 
determinado para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão de 
mundo própria, envolvendo num único movimento o ser que compreende e 
aquilo que é compreendido. (p.221) 
 
Após a aprovação pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto 
(EERP-USP), todos os sujeitos foram apresentados ao TCLE e somente após a sua leitura é 
que foram realizadas as entrevistas semiestruturadas. Após as transcrições dos depoimentos 
dos diferentes sujeitos em seus setores de atuação elaboramos uma codificação acerca das 
expressões da família estavam presentes bem como os dilemas enfrentados pelas mesmas. 
Com o objetivo de garantir o anonimato dos depoentes, os respectivos nomes dos 
foram convertidos em siglas que indicam a profissão, o local/setor de atuação e o número da 
entrevista no referido setor. Por exemplo, AS-PS 3 indica: Assistente Social – Proteção 
Social; 3º. O Quadro 1, abaixo, apresenta as abreviações utilizadas. 
 
 
 
 
ORGANIZAÇÕES/PROGRAMAS 
/SETORES 
PROFISSIONAIS SIGLA 
Profissionais do setor Saúde 
Enfermeira/o de Equipe Saúde da Família E-SF 
Agente Comunitário de Saúde A-SF 
Assistente Social da Saúde AS-S 
Enfermeira/o de Unidade Matricial E-MS 
Profissionais do setor da Proteção 
Social Básica 
Coordenador/a de Unidade de Proteção Social C-PS 
Assistente Social de Unidade de Proteção 
Social 
AS-PS 
Psicólogo de Unidade de Proteção Social P-PS 
Profissionais do Terceiro Setor 
Psicólogo/a de Instituição do Terceiro Setor P-TS 
Coordenador/a de Instituição do Terceiro 
Setor 
C-TS 
Quadro 1 - Distribuição das siglas dos profissionais entrevistados de acordo com os setores de atuação. 
Fonte: Arquivos do pesquisador. 
 
Os resultados apontam para a reprodução da representação das “famílias 
desestruturadas”, esta, aliás, está associada ao uso de álcool e drogas ou mesmo ao tráfico de 
drogas; de situações de desemprego; de prostituição dos filhos menores; à imaturidade dos 
jovens casais em formar famílias... Enfim, sob a ótica dos profissionais, a violência estrutural 
que se manifesta no espaço doméstico é oriunda da própria família e suas relações instáveis. 
 
2. A violência no território de atuação da rede de serviços 
 
A violência social se manifesta de diferentes maneiras nos diferentes territórios onde 
se inserem os profissionais da Atenção Básica, da Proteção Social ou do Terceiro Setor. Seja 
de natureza física, sexual, psicológica ou maus tratos, suas raízes podem ser identificadas, 
também, nas condições de vida em que se inscrevem os diferentes grupos familiares. (KRUG 
et al., 2002; MINAYO, 2009; DESLANDES, 2004) 
Os depoimentos demonstram, em sua grande maioria, que tanto as complicações de 
saúde quanto a desmotivação de alguns moradores em participar dos grupos operativos, por 
exemplo, pouco se relacionam com a determinação social. 
Inicialmente, uma enfermeira destaca a rede de atendimento do território como 
relevante no acolhimento dos fatos de violência que chegam à Unidade de Saúde, pois a 
função culturalmente atribuída ao gênero feminino de cuidar das crianças e da casa estaria 
ameaçada pela urgência de sua entrada no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, há a 
indisposição dos moradores em permitir o acesso ao ambiente privado, sobretudo diante da 
suspeita de violência intrafamiliar: 
 
E-MS 8. [...] Às vezes as denúncias vem da escola. A nossa Agente faz 
visitas, mas é uma mãe que trabalha o dia inteiro e você não encontra a 
família em casa. Ou às vezes elas estão em casa e não abrem. [...] E quem 
tem este tipo de problema [violência], a gente sabe que eles não convidam 
para entrar. Quanto mais eles puderem fugir, melhor eles se sentem. 
E-SF 4. [...] [A violência] É bastante evidente, mas não é aflorada. A pessoa 
não chega aqui [na USF] contando que teve algum problema em relação à 
violência propriamente dita. [...] 
A-SF 4. Na minha área já aconteceu de uma vizinha denunciar a outra. Que a 
mãe tinha brigado com a filha que ficou bastante machucada [um caso de 
espancamento de uma menina de 6 anos]. E nós já ficamos sabendo que essa 
família já tinha perdido a guarda de outros filhos e que moravam [no abrigo]. 
 
Os depoimentos dos profissionais de saúde demonstram, inicialmente, que os arranjos 
familiares dos territórios atendidos procurampreservar o ambiente doméstico das investidas dos 
profissionais, mesmo dos vizinhos, quanto à possibilidade dos mesmos diagnosticarem qualquer 
sinal ou situação considerada “fora do normal” – de violência –que as coloque no centro das 
prioridades da Equipe ou de qualquer outro profissional que possa ser acionado. 
As equipes de referência dos CRAS´s, em geral, assim como as ESF´s, têm como 
estratégia a visita domiciliar e, não raras vezes, se deparam com situações de vulnerabilidade 
em todas as suas dimensões. 
AS-PS 3. A gente trabalha em conjunto. A gente faz as visitas, vê a 
necessidade da família, expõe com a equipe o que a gente pode fazer e 
socorrer no momento. O que é possível a gente faz. Mas tem o impossível. 
[...] Fácil não é, mas a gente sempre corre atrás. 
C-PS 2. [...] Porque às vezes [...] vai na casa, não encontra. Porque aqui nós 
fazemos visitas a pé. [...] Como a equipe é pequena, nós vamos para os casos 
mais graves, vamos dizer assim. Nós vamos fazer essa visita, vamos 
observando, a questão do adolescente mesmo... É alcoólatra, ela é alcoólatra. 
 
A Proteção Social Básica tem atuado em alguns territórios sob as manifestações 
agudas de violência. (MINAYO, 2006; MENDES, 2008). Por seu turno, as ações preventivas 
deveriam ter sido capazes de atuar sobre as condições crônicas de vulnerabilização dos 
arranjos familiares do território (AYRES et al., 2003). A proeminência das ações sobre as 
condições agudas revela o caráter urgencial das ações, aliada, por exemplo, à insuficiência 
dos recursos humanos das equipes de referência ou devido às dimensões geográficas da área a 
ser coberta. 
Mas outros sujeitos são acionados em outras situações de violência: são as instituições 
para acolhimento de adolescentes adictos de drogas. Estes adolescentes são encaminhados, em 
sua maioria, pelos membros da Rede de Defesa, como o Conselho Tutelar (VIANNA et al., 
2008). No entanto, a violência histórico-social, programaticamente produtora de adolescentes 
vulnerados, se manifesta na sua reclusão institucional para a sua reabilitação e sua futura 
adequação social. Longe de desqualificá-las, reside aqui, também, a contradição da violência 
enquanto fenômeno social. Ao mesmo tempo, verificamos a existência de um descompasso 
das ações assistenciais de algumas entidades da rede complementar em relação aos serviços 
oferecidos pela Proteção Social ou pela Atenção Básica em Saúde: 
 
C-TS 5. Isso tudo que eu estou falando, está relacionado com a criança e 
com a família dela. Se eu olhar só para a criança e não para a família, eu não 
atendo. Na verdade a gente vai ficar em obra, sem resultado nenhum. 
Quando fala que acompanha a família, na verdade a gente continua no 
Código de Menores em relação às famílias [procurando discipliná-la]. 
 
Um exemplo dessa reflexão elaborada pelo sujeito acima é expressa nas entidades 
destinadas a acolher adolescentes adictos de drogas, encaminhadas pelos representantes da 
Rede de Defesa. 
Uma dessas entidades, coordenada pelo C-TS 1, recebe adolescentes do sexo 
masculino e dependentes químicos. O coordenador reforça a necessidade de que um familiar 
ou responsável acompanhe o adolescente quando do encaminhamento para a entidade, seja 
por encaminhamento do Conselho Tutelar ou por procura espontânea. Segundo o relato do 
profissional, muitas vezes a família quer se desvencilhar daquilo que se tornou um problema 
interno e, para tanto, terceiriza o encaminhamento: 
 
C-TS 1. Ultimamente nós estamos trabalhando em um processo que a 
família sempre venha. Ela que venha atrás. Mais o começo da dificuldade da 
família, começa na internação. Portanto, quando o Conselho liga [...] nós 
falamos: “Está vindo algum responsável junto”? [...] a família quer 
simplesmente que [o Conselho traga], eles não querem nem aparecer aqui... 
Quer que a viatura [policial] traga, traga a roupa dele e largue aqui, e passe 
aí talvez de vez em quando [...]. Então, já está naquela situação que [a 
família] não aguenta mais. 
 
O depoimento destaca a manutenção da criminalização da questão social e sua 
consequente “naturalização” ou “fatalidade” pelos próprios arranjos familiares em situação de 
vulnerabilidade social. 
Os depoimentos do setor Saúde e da Proteção Social reforçam que, de um lado, a 
família tem sido alvo histórico da intervenção dos programas socioassistenciais desenvolvidos 
pelo poder público ante a agudização dos cenários e expressões da violência social. De outro, 
as próprias famílias são responsabilizadas pelos seus problemas. (MIOTO, 2010; NEVES, 
2008) 
E fica patente, também, a possibilidade de resistência dessas mesmas famílias. O 
depoimento da E-MS 8 e da AS-PS 3 revelam que a intervenção do setor Saúde e da Proteção 
Social no ambiente privado só será profícua na medida em que o cidadão acolha os Agentes 
Comunitários de Saúde (ACS) e Equipe de Referência do CRAS, do contrário, a resistência se 
manifesta sob a forma de negação em ser atendido pelas Equipes. 
Como expressaram Sarti (2007) e Neves (2008) ao analisarem as relações no espaço 
doméstico, pelo olhar sócio-psicológico, a casa é o lócus da proteção, do acolhimento, da 
segurança, de preservação dos membros do grupo e da manutenção dos valores. Em oposição 
ao mundo da rua, considerado como o espaço da luta pela sobrevivência diária, do conflito, da 
insegurança e da perversão dos valores familiares. Para esses autores, a família é portadora de 
uma singularidade. Ainda que esteja no mesmo espaço comunitário, cada uma guarda suas 
particularidades psicológicas, sociais, culturais, econômicas, religiosas, comunicacionais, 
dentre outras. 
Por fim, ainda que detectada uma manifestação de violência por parte dos ACS´s ou 
da equipe do CRAS, a entrada no universo privado dever ser permitido com o consentimento 
de seus moradores, sobretudo dos adultos. 
 
3. A prática profissional com as famílias: enfim, a superação de impasses? 
 
O olhar da C-TS 8 sobre o espaço doméstico numa das áreas de maior vulnerabilidade 
social no município fez com que sua entidade promovesse momentos de educação higiênica 
para as mães e para as crianças, como forma de capacitá-los para o cuidado doméstico e com 
a higiene pessoal. 
 
C-TS 8. [...] Eu contextualizei todo ele [o Projeto] voltado para a 
necessidade do bairro. Nós fizemos uma pesquisa e nas [...] visitas que nós 
fazemos aos pais, as crianças [...] A gente vê uma desorganização muito 
grande dentro de casa. Da hora que a gente entra até onde nossos olhos 
alcançam, muito falta de higiene [...]. Nem na África eu vi tanta necessidade 
de a gente educar as crianças para cuidar do seu próprio corpo, quanto para 
cuidar de casa. [...] 
 
Aqui como nos demais depoimentos dos sujeitos coletivos, as condições de vida do 
arranjo familiar impactam diretamente sobre sua percepção do processo saúde-doença, sua 
concepção de violências e mesmo de direitos sociais. 
Como expõem Maria Beatriz Guimarães et al.: 
 
Algumas vezes, a violência da luta pela sobrevivência física e subjetiva gera 
outras formas de violência. O vício, muitas vezes, se constitui numa possível 
resposta para pessoas que, em vão, buscam vínculos e o reconhecimento de 
que possuem uma vida interior com sonhos, desejos e expectativas. 
Entretanto, esta forma de responder aos anseios de visibilidade e inserção 
social acarreta mais violência, em especial no âmbito das relações familiares. 
(2011, p.296) 
 
Desse modo, as condições de vida de um determinado arranjo familiar não são 
exclusivas do próprio grupo, mas são oriundas de determinantes históricos e estruturais, dos 
quais, econômicos e políticos. Assim, a vulnerabilidade programática, como referida por 
Ayres et al. (2003), se reproduz nos territórios dos indivíduos e grupos que ali constroem e 
reproduzem seu cotidiano. Vulnerabilidade cuja ausência ou a emergência de respostas do 
poder público sob a forma demelhoria das condições de vida pode ser seguida da ausência de 
participação cidadã coletiva na coisa pública. Nas palavras do autor e sua equipe: 
 
[...] quanto maior for o grau e a qualidade de compromissos, recursos, 
gerência e monitoramento de programas, nacionais, regionais ou locais de 
prevenção e cuidados [a alguma ameaça] maiores serão as chances de 
canalizar os recursos sociais existentes, otimizar seu uso e identificar a 
necessidade de outros recursos, fortalecendo os indivíduos [ante uma ameaça 
de epidemia ou violência]. (AYRES et al., 2003, p. 123). 
 
Em decorrência, as ações a Atenção Básica em Saúde, da Proteção Social e do 
Terceiro Setor sobre os determinantes sociais em áreas de vulnerabilidade social se defrontam 
com desafios constantes. Relativamente à violência está o tabu, que ronda o universo 
doméstico e que impede a sua notificação pela rede de responsabilização e de defesa e, 
sobretudo, dificulta as ações da rede de atendimento nos territórios. (VARGAS; SILVA, 
2008; VIANNA et al., 2008; STOTZ, 2009). 
 
E-MS 8. Estes casos [de violência] aqui na nossa área ficam complicados, 
pois as famílias são difíceis de serem trabalhadas. Ela começa a fugir da 
gente, porque a gente vai a uma visita, eu vou, a médica vai e relata, a gente 
procura a assistente social e ela vai com a gente [...]. Ela tenta fazer os meios 
para se resolver [...] encaminha para o Juizado, o juiz determina e acabou. [É 
frustrante]. 
 
Aqui os esforços do conjunto de profissionais da Atenção Básica à Saúde são 
frustrados por um despacho do Juiz da Infância e da Juventude, ou seja, a agudização das 
condições crônicas de vulnerabilidade que não foram encaminhadas ou sanadas pelo setor 
Saúde e/ou pela Proteção Social o serão “por decreto”. Percebe-se, assim, que a intervenção 
do Juizado ou do Ministério Público seja indicativa de que a rede de atendimento encontra 
dificuldades no manejo e no enfrentamento dos diversos desafios. 
Além desse impasse que se verifica na relação hierárquica entre os entes que 
compõem o Sistema de Garantia de Direitos, existe o de as famílias não são devidamente 
informadas quanto ao correto encaminhamento aos serviços de Saúde e Proteção Social. 
Uma ACS verifica que há “falta de informação”, embora sua Equipe insista em 
repassar o endereço de um dos sujeitos sociais da rede de atendimento de proteção social 
básica – o CRAS. 
 
A-SF 2. Falta [informação]. [Os moradores] não sabem onde [...] é o CRAS, 
que é aqui pertinho. E a gente sempre tem falado o endereço. Eles não sabem 
que lá é o CRAS, eles sabem que lá tem curso. 
 
Um dilema semelhante é exposto pela E-MS 8, quanto aos motivos pelos quais uma 
mãe não procura o serviço de saúde na Atenção Primária: 
 
E-MS 7. Eu fico pensando como uma mãe deixa chegar a esse ponto. Tem 
mães que [é] só aparecer uma pintinha [na criança] e elas já querem levar ao 
médico. E já tem outras que não tem essa preocupação. Então, eu fico 
pensando se é falta de conhecimento ou se é negligência mesmo. 
 
Não procurar o atendimento do assistente social ou se negar a fazer um curso no 
CRAS do território, ou ainda, não levar a criança à Unidade de Saúde se constituem em 
negligência consigo e, sobretudo, com os que dependem dos cuidados dos adultos. Um dos 
componentes da vulnerabilidade é sua manifestação individual, logo, os profissionais devem 
refletir sobre o hiato existente entre informar um determinado sujeito sobre seus direitos 
sociais e como ele pode acessá-los na rede de atendimento, como medida de prevenção e 
proteção. E ainda, a satisfação propriamente dita de suas necessidades urgentes, sob as 
condições agudas de violação de direitos. (AYRES et al., 2003; MENDES, 2008). 
O E-SF 5 avalia que a “família não gosta de mudar a história”, quando perguntado 
sobre as dificuldades encontradas na relação de sua ESF com as famílias do território que 
foram alvo de visitas regulares, denunciadas ou por vizinhos ou por um ACS da ESF: 
 
E-SF 5. [...] Então, eu conheço todos da minha área [...] na grande maioria a 
família não gosta de mudar a história. Como este caso da mulher eu que eu 
falei. Eu até ameacei e falei que ela estava pegando o dinheiro do Bolsa 
Família, que era para alimentar seus filhos, e não para comprar pedra [de 
crack], para poder revender. O dinheiro estava sendo usado para aumentar o 
tráfico. E a criança sempre com baixo peso. O dinheiro não estava sendo 
usado. E como você tira isso? [...] (Grifos nossos). 
 
O sujeito se deparou, como muitos profissionais da saúde e da proteção social, com 
uma situação na qual o uso de drogas por parte dos adultos do arranjo familiar colocava em 
risco o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. Assim, a histórica condição de 
vulnerabilidade individual e social vivenciada pelos adultos é extensiva às crianças e aos 
adolescentes. Na ausência ou insuficiência de programas públicos, estes tendem a reproduzir 
relações intrafamiliares e comunitárias de violência e precariedade ante a manutenção das 
estruturas histórico-sociais de vulnerabilidade. (BAZON, 2008; SARTI, 2010). 
Os profissionais dos CRAS demonstram que é mister estimular os membros de um 
arranjo familiar a buscar seus direitos junto aos orgãos públicos. Para tanto, a participação nos 
grupos operativos e de orientação psicossocial é fundamental: 
 
C-PS 6. [...] Então, eles se acostumaram muito em só receber e não buscar. 
Essa dificuldade a gente tem [e queremos] mudar essa condição. Se você 
oferece, tudo bem. Se não oferece, eles não vem. A gente está buscando uma 
forma diferenciada de envolver a comunidade mostrando que a vida não é 
assim. Para melhorar tem que participar. 
C-PS 9. Um outro fator é a participação da família nos atendimentos. Na 
própria medida [LA ou PSC] deste adolescente. Nós temos os grupos de 
familiares, que acontecem uma vez por mês e, geralmente, os temas são 
voltados para a família, para a adolescência. Então, a gente chama a 
responsabilidade do familiar. 
 
Os depoimentos de ambos evidenciam a necessidade, inicialmente, de superação de 
relação clientelistas como forma de estimular a participação e a mobilização em torno das 
demandas familiares e comunitárias. Por outro lado, os atendimentos psicossociais reforçam a 
urgência da participação familiar nas situações de liberdade assistida ou de prestação de 
serviços comunitários. 
De acordo com Pereira-Pereira (2010), 
 
[...] o objetivo da política social em relação à família, ou ao chamado setor 
informal, não deve ser o de pressionar as pessoas para que elas assumam 
responsabilidades além de suas forças e de sua alçada, mas o de oferecer-
lhes alternativas realistas de participação cidadã. (p.40). 
 
Assim, a prática reflexiva adotada nos grupos estimulados pelos profissionais da 
Proteção Social ou da Atenção Básica contrastam com a urgência da sobrevivência cotidiana. 
Logo, não conduzem, a posteriori, os grupos familiares à apropriação dos direitos sociais em 
sua amplitude, posto que os mesmos grupos requerem de instrumentos e informações que 
promovam o diagnóstico e a construção de estratégias coletivas de superação do status quo de 
precariedade, “naturalizado” pela história. 
 
4. Considerações finais 
 
A vulnerabilidade programática e a manutenção de uma estrutura socialmente violenta 
podem ser mantidas. Ainda que áreas urbanas possuam os serviços de saúde, de proteção 
social pública ou complementar, composta pelo Terceiro Setor, não significa que os 
profissionais que ali atuam possam orientar suas ações no território a partir de uma política 
pública de longo alcance. Pois como as famílias, os mesmos se encontram sob as 
determinações sociais do local e políticas que orientam o serviço. 
Por outro lado, concordamos com Regina Mioto (2010), pois não podemos tomar a 
família como unidade de medidas interventivas fundadas no auxílio de “processos 
diagnósticose de tratamento de problemas individuais”. E tampouco considerá-la como “o 
problema” e transformá-la em objeto terapêutico. (p.55). A política social brasileira, 
historicamente desenhada sob diretrizes setorializadas e institucionalizadas, ao eleger o 
indivíduo como centro de suas atenções, fragmentou-os sob a “forma de atenção pública” 
(p.54). 
Nesse contexto, três processos ganharam força: os direitos dos indivíduos de 
per si (criança, idoso, mulher...); a fragmentação dos indivíduos em 
necessidades transformadas em direitos de per si, que são o direito à saúde, à 
educação; e a psicologização das relações sociais. Dessa forma, os esforços 
se concentram na tutela de direitos e necessidades de indivíduos ou de 
“coletivos de indivíduos”. (MIOTO, 2010, p.54). 
 
Isso posto, existe uma forte tendência das intervenções propostas pelas políticas 
sociais, formatadas sob a ótica das necessidades individuais, ocultarem as contradições 
inerentes à organização da sociedade capitalista, bem como estimular a marginalização de 
pessoas e grupos sociais. Sob essa perspectiva, o foco das políticas sociais recai sobre as 
famílias que “ameaçam a estabilidade e segurança social”, a passo que ocultam as “relações 
entre estilos de vida, organização familiar e problemas sociais”. (MIOTO, 2010, p.54) 
Nossa sociedade, como assevera a mesma autora, 
 
[...] ainda tem tratado a família como se não fosse em si mesma um núcleo 
problemático. Por isso, os interesses, tanto de natureza política como 
sociocultural, recaem sobre as formas marginais ou patológicas. (MIOTO, 
2010, p.52) 
 
Numa lógica emancipatória, as ações das equipes, intersetorialmente planejadas, se 
direcionariam ao enfrentamento das condições crônicas de pobreza em que se encontram 
indivíduos e famílias inteiras. Como forma de superação de modelos hierárquicos, 
centralizados e autoritários, ancorado na construção coletiva de diagnósticos e de estratégias 
de intervenção que se destinem à efetivação da política de seguridade social, alterando as 
condições de vida dessas comunidades historicamente vulneradas. (MINAYO; HARTZ, 
BUSS, 2000; LOS, 1990; LOAS, 1993). 
Isso posto, é mister superar a concepção tradicional ou idealizada de família como 
lugar harmônico, idílico. Vislumbra-se, portanto, que a pluralidade de arranjos familiares sob 
aspectos comunicacionais, simbólicos e culturais, por exemplo, não pode ser reduzida a um 
padrão, como um modelo que deva ser perseguido, sobretudo, pelos grupos “inadequados”. 
Porém, reconhecer a pluralidade dos arranjos é valorizá-los em suas idiossincrasias, o que 
difere da naturalização dos processos pelos quais são vulnerabilizados. 
Ao mesmo tempo, as políticas públicas destinadas às famílias devem superar a 
representação conservadora que objetiva a reconstrução da “estrutura familiar” por meio de 
procedimentos técnicos e disciplinares impostos pelas organizações estatais, privadas ou da 
própria sociedade civil e, inclusive, ecoam nas próprias famílias, posto que mantêm intactas 
as estruturas que as (re)produzem. 
 
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