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Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro editora expressão popular Sérgio Sauer 1ª edição São Paulo, 2010 Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro 4 Copyright © 2010, by editora expressão Popular e Sérgio Sauer revisão: Sérgio Sauer e Laura Bregenski Schühlli Projeto gráfico e capa: ZAP Design diagramação: Mariana Vieira de Andrade arte da capa: Obra de Cândido Portinari, intitulada “Homem com feixe de feno” (desenho a crayon colorido/papel), 1956 – imagem do acervo Projeto Portinari, gentilmente autorizada a reprodução por João Cândido Portinari.0 impressão e acabamento: Cromosete apoio: Esta publicação foi possível graças ao apoio do Decanato de Pesquisa e Pós-graduação (DPP) da Universidade de Brasília (UNB) Todos os direitos reservados. nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 1ª edição: março de 2010 ediTora exPreSSão PoPular rua abolição, 197 – Bela Vista CeP 01319-010 – São Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3105-9500 vendas@expressaopopular.com.br www.expressaopopular.com.br Sumár io Prefácio .........................................................................................................7 Introdução ....................................................................................................11 Capítulo 1 A luta pela terra, reforma agrária e a reinvenção do campo...............................................................19 Capítulo 2 A luta pela terra e a construção de heterotopias ....................................47 Capítulo 3 Movimentos sociais rurais e a construção da democracia no Brasil ..................................................75 Capítulo 4 Democracia, direitos humanos e criminalização dos movimentos sociais .....................................................................................115 Capítulo 5 Modernização do campo e ciência: os transgênicos e a agricultura ...............................................................................................139 7 Pr e fác i o nos últimos 20 anos, proliferaram no Brasil os estudos sobre luta pela terra e assentamentos rurais. Tratava-se, do ponto de vista das Ciências Sociais, de enfrentar um desafio de realizar um inves- timento empírico e teórico que permitisse entender novas situações que emergiam e que se constituíam em verdadeiros laboratórios para a produção de conhecimento, em especial na Sociologia e na antropologia. Como explicar a força da luta pela terra num momento em que a modernização tecnológica da agricultura aparecia como consolidada, em que o processo de urbanização se acelerava e parecia irreversível e em que a bandeira reforma agrária era considerada como parte de um passado já superado? Quais as relações entre o que se poderia chamar, seguindo Charles Tilly, de um novo repertório de ações, baseado fundamentalmente nas ocupações, e as formas de luta por terra que marcaram as décadas de 1950, 1960 e 1970, baseadas na resistência de posseiros, foreiros e moradores, mas que não excluíram, em algumas situações, as ocupações? Que novos temas a luta pela terra traz para o século que se abre? o trabalho de Sérgio Sauer se soma a esse empreendimento coletivo, jogando luzes sobre as expectativas dos assentados, os significados que a luta pela terra assumiu para eles, as tensões resultantes da passagem do acampamento para o assentamento, as relações entre luta pela terra e democratização do país. 8 a marca forte do trabalho é o esforço de diálogo intenso com as teorias sociais contemporâneas, especialmente no que se refere à discussão sobre modernidade/pós-modernidade e às relações entre o local e o global. no conjunto de ensaios que compõem o livro, o autor procura mostrar que o tema do acesso à terra, longe de ser residual, pode e deve ser compreendido à luz dos debates teóricos atuais, se quisermos perceber suas modulações e impli- cações. Como Sauer ressalta, a modernidade – historicamente um conceito relacional identificado com a cidade – produz representações sociais e valores que perpassam os itinerários de vida e influenciam a reconstrução da identidade das pessoas que lutam pelo acesso à terra. os processos sociais possibi- litam, no entanto, releituras e reapropriações destes valores, criando oportunidades e perspectivas de vida que se diferenciam do “modo de vida moderno”. desse ângulo, “os movimentos sociais como sujeitos políticos, especialmente na luta pela terra, recolocam a importância do rural tanto na agenda política brasileira como nas interpretações da sociedade ocidental contemporânea”. exemplos da importância dessa abordagem podem ser en- contrados na extraordinária vitalidade dessas demandas não só no Brasil, mas em toda a américa latina, o que se reflete nos novos espaços de reconhecimento ganhos pelo campesinato, permitindo que se possa falar, em pleno início do século 21, que uma das marcas das nossas sociedades é o crescente protagonismo de populações antes consideradas pouco relevantes, residuais ou avessas ao progresso. mas, não se trata do mesmo camponês, nem das mesmas questões. desse ponto de vista, deve-se realmente refletir sobre um mo- vimento de recriação do campo, como aponta Sérgio Sauer, mas em novas bases, na medida em que surgem novos protagonismos e reivindicações, lutas por direitos e por reconhecimento de direitos. 9 Trata-se de um instigante processo em que, longe de encarnar a tradição, os que vivem de seu trabalho no campo querem garantir para esse espaço justamente as conquistas da modernidade. não se trata apenas, como, durante muito tempo, a tecnocracia moder- nizante pregou, de levar tecnologias, mas também de transformar o meio rural em um espaço de vida, como nos ensina maria de nazareth Wanderley. e isso implica em repensar as próprias bases tecnológicas. não por acaso, a reflexão de Sérgio Sauer caminha do debate sobre a luta pela terra, assentamentos e acampamentos para a dis- cussão sobre democratização no campo e biotecnologias. Se a luta pela terra é marcada por elementos religiosos e de valorização do trabalho, também é de onde emergem concepções de direito, não só de direitos tradicionalmente negados, mas também de direitos que se incorporam às pautas pela própria riqueza de contatos e perspectivas que a modernidade oferece, num mundo cada vez mais marcado pela rapidez das comunicações e pela rápida difusão de informações. assim, se terra e condições adequadas de produ- ção permanecem como fundamentais, no rural contemporâneo proliferam também demandas por educação qualificada, acesso aos meios de comunicação, lazer, inclusão digital, enfim, acesso a bens que, cada vez mais, tiram o rural de seu relativo isolamento e o aproximam da civitas e de novos temas, em especial da im- portância das questões ambientais. ao longo do texto, o leitor tem algumas importantes chaves interpretativas que permitem refletir sobre esses processos sociais contemporâneos. Leonilde Servolo de Medeiros Professora do Programa de Pós-graduação de Ciências em De- senvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 11 i ntro d u ç ão o Brasil tem sido palco de um rico processo social e de constru- ção teórica sobre o campo, sendo esses resultantes de mobilizações populares, conflitos e reflexões sobre as lutas e embates no meio ru- ral. Há dezenas de movimentos sociais e entidades de trabalhadores e trabalhadoras que, organizados nacional, regional ou localmente, lutam pelo direito de acesso à terra e melhores condições de vida e trabalho. apesar de mais conhecida, a dinâmica social no campo não fica restrita à luta pelo acesso à terra, pois há outros atores sociais como, comunidades quilombolas e indígenas, ribeirinhos, extrativistas, quebradeiras de coco e geraizeiros, os quais lutam pelo direito de vir a ser, sendo que o território é parte da essência do viver. associado às demandas, percalços e conquistasdestes mo- vimentos sociais e entidades populares, há uma fértil produção acadêmica (pesquisas, publicações, eventos científicos etc.) que, di- reta ou indiretamente, se nutre desta dinâmica social. as reflexões acadêmicas também são controversas e permeadas por disputas e desencontros. as construções teóricas vão desde posições que defendem a condição preterida de uma possível reforma agrária – a qual estaria supostamente superada pelos avanços tecnológicos e ganhos de produtividade do modelo de desenvolvimento agrope- cuário adotado – à defesa de uma reforma profunda da estrutura fundiá ria como uma condição essencial para a construção de uma real democracia no Brasil. 12 Fora desse contexto de embates políticos e formulações acadê- micas, palavras como terra, campo e rural expressam dimensões e perspectivas completamente exteriores, para não dizer contraditó- rias, às representações e teorizações filosóficas sobre a modernidade ocidental ou sobre a sociedade global. não são nenhuma novidade reflexões sobre a realidade atual que consideram estes temas e pala- vras anacrônicos e ultrapassados, especialmente porque, como bem colocou Giddens, “a modernidade, quase por definição, sempre se colocou em oposição à tradição” e, consequentemente, aos lugares que mais claramente a expressam, como campo, terra e território. esta construção filosófica ou representação está na base de uma frequente confusão que estabelece uma dicotomia entre, de um lado, meio rural e tradição e, de outro, cidade e secularização, um moderno que rompe com as amarras do passado e exaspe- ra o individualismo. nestas representações, um polo é sempre identificado como o espaço da comunidade e da tradição e, por extensão, como o lugar do atraso, e o outro é identificado como o lugar da liberdade, da novidade e do progresso. Consequente- mente, reflexões sobre temas como luta pela terra e pelo território não passam de tentativas de entender o passado e seus resquícios, portanto, estudos e explorações sobre o exótico, para não dizer sobre o arcaico e ultrapassado. Profundamente influenciado pelos debates sobre modernida- de, pós-modernidade, modernidade reflexiva, sociedade global, globalização, globalismo, e tantas outras noções e representações que procuram explicar mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais contemporâneas, o título Terra e modernidade se cons- titui em ensaios que problematizam as frequentes conexões entre progresso humano, industrialização e modernização. Já presente na elaboração da tese de doutoramento, em 2002, esse título expressa uma contradição e uma tentativa de explicitar que as lutas sociais agrárias não fazem parte dos resquícios do passado, 13 mas são lutas contemporâneas pela construção de cidadania no campo – também uma contradição, em termos. as disputas pelo acesso à terra e pelo reconhecimento de territórios, portanto, são vistos como processos sociais, culturais, econômicos e políticos de modernização da sociedade brasileira. não se trata da formulação de um olhar pós-moderno sobre o campo e sua revalorização contemporânea, mesmo sendo uma postura teórica que se constitui em uma reafirmação do direito à diferença, entendida como algo estranho à maioria. a retomada de dimensões esquecidas da modernidade, a exemplo do lugar e da espacialidade, poderia ser entendida como parte da consti- tuição de um espetáculo (Baudrillard), onde as lutas no campo apenas representariam a materialização do substrato estético da alteridade pós-moderna. em outras palavras, esses ensaios não são expressão de reflexões pós-modernas em que a dinâmica social é compreendida como parte da sociedade do simulacro (Jameson) e do espetáculo (exacerbação das imagens), a qual elimina o residual ou o valoriza como diferente para o “estandariza(r), empacota(r) e comercializa(r) no mercado global” (Jameson). esse olhar reduziria as lutas sociais e reivindicações de igualda- de econômica e política a simples estudos sobre resquícios de um tempo pretérito, arcaico e exótico. além do mais, essa construção pós-moderna não é capaz de explicar as razões das históricas e permanentes oposições acirradas contra qualquer reconhecimento de direitos territoriais de comunidades quilombolas, indígenas, implantação de assentamentos de reforma agrária, ou mesmo das demandas e tentativas de preservar espaços naturais e o meio am- biente. na verdade, está em curso uma disputa pelo território no Brasil, o que não pode ser explicado por correntes de pensamento que enfatizam apenas a urbanidade do país. a intenção desses ensaios é levantar aspectos e temas, como por exemplo a espacialidade como uma dimensão esquecida na 14 modernidade ou a presunção da ciência ocidental como único caminho para o progresso humano, a partir de processos sociais em curso no campo. a terra e o território (espaço de produção e reprodução) e as lutas que os envolvem oferecem perspectivas que não se enquadram nas representações e reflexões sobre sociedades globais-urbanas e se chocam com dicotomias da modernidade, como a separação espaço-tempo. o desenvolvimento deste debate, no entanto, não tem a intenção de construir um argumento con- tra a modernidade ou supervalorizar a dimensão do lugar como uma forma de negar a temporalidade na experiência humana. a intenção é afirmar a terra e a luta de trabalhadoras e trabalhadores rurais por um lugar como espaço para um contraponto no debate sobre a modernidade, inclusive enfatizando as lutas e mobilizações como parte constitutiva da construção da democracia (dimensão política) na sociedade brasileira. Procurando discutir representações e significados das lutas e perspectivas dos movimentos sociais agrários, a perspectiva adota- da nos ensaios aqui reunidos é bastante diferente de qualquer visão que coloca a luta pela terra e pelo território (espacialidade) como expressão do atraso ou mesmo de um retorno – contemporâneo, mas saudosista – ao rústico e ao exótico. a luta pela terra – e o acesso a ela, seja pelas ocupações e assentamentos, seja pela garantia de posses e reconhecimento de territórios – representa um processo de reinvenção do campo e da sociedade. esta reinvenção ou recriação não se restringe a uma simples justaposição social e cultural do arcaico e do moderno (em uma suposta desordem pós-moderna), mas se constitui em uma novidade social e política que reconstrói e amplia as “concepções ordenadoras da vida social” (martins). o primeiro ensaio retoma o debate sobre a diluição das con- tradições e diferenças entre campo e cidade, especialmente as teses de pensadores que enfatizam que o tecido urbano já domina toda a sociedade porque a modernização capitalista está completa 15 (Jameson), mesmo que de modo relativo. Contestando reflexões e representações que colocam a cidade como lugar privilegiado do desenvolvimento econômico, problematiza interpretações que afirmam a dominação do urbano e a consequente diluição das con- tradições e diferenças entre o rural e o urbano. então, não haveria mais espaços geográficos e sociais para a existência de valores e modos de vida que não seja o urbano ocidental, relegando a vida no campo a dimensões residuais e, inexoravelmente, destinada a desaparecer. À luz desse debate, o ensaio discute o que tem sido caracteriza- do como um ressurgimento ou retomada do campo e do rural, tanto pela ação dos movimentos sociais agrários como por tentativas teóricas de resgatar diferentes processos de transformação pelos quais passa a sociedade ocidental contemporânea. esta retomada pode ser interpretada como um processo social e cultural no in- terior do que se denominou de globalização, a qual seria marcada por contradições entre a diluição de fronteiras (aspecto político) e o reforço às identidades locais (dimensão cultural da modernida- de). este ensaio, tomando a luta pela terra e pelo território como processos sociais e políticos de recriação ou reinvenção do campo,recoloca a dimensão da espacialidade na modernidade. na sequência, o segundo ensaio é uma tentativa, a partir das lutas pela terra no estado de Goiás, de sistematizar representações sociais sobre terra e trabalho de famílias acampadas e assentadas, como reconstruções e redefinições simbólicas no contexto de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais do campo brasileiro. em processos constantes de mudanças – o que podemos definir como itinerários biográficos –, as pessoas sonham com a terra porque esta representa um lugar de vida e fartura. as buscas por tornar esse sonho da terra prometida em realida- de, além de permear as construções ou reconstruções identitárias, moldam outros lugares – nas formulações de Foucault, heterotopias 16 –, significativamente distintos de espaços vazios, ausentes de identidade e história. em total identificação com essas recons- truções sociais simbólicas, esse ensaio expressa um deslocamento do olhar, buscando ver a partir dos sujeitos que lutam contra a exclusão política, contra a ausência de significados, por uma vida qualitativamente diferente no campo. o terceiro texto – fruto de pesquisa recente sobre contribuições dos movimentos sociais agrários à construção da democracia em seis países – é uma reflexão sobre relações políticas das lutas do campo e seus sujeitos com partidos políticos e governos nacionais. o resgate histórico procura inserir a constituição dos movimentos sociais e suas demandas por terra nas mobilizações populares que exigiram a redemocratização política do país, em meados dos anos de 1980. a partir daí, com base nas entrevistas, analisa os constantes embates entre movimentos sociais e os governos fede- rais, procurando entendê-los nos dois mandatos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e luiz inácio lula da Silva (2003-2010). Como parte da construção política, o ensaio explicita ainda opiniões sobre a relação entre os movimentos e partidos, com espe- cial destaque para o papel histórico do Partido dos Trabalhadores (PT). analisa também alianças e espaços de cooperação (fóruns e redes) entre movimentos sociais agrários, e desses com movimentos populares urbanos, tentando sistematizar possíveis contribuições desses sujeitos à democracia social, política e econômica no Brasil. o quarto texto, escrito em coautoria com marcos rogério de Souza, é uma reflexão sobre processos recentes de criminalização das lutas populares, em geral, e do movimento dos Trabalhado- res rurais Sem Terra (mST), em particular. o ano de 2009 foi simbólico, pois completou 25 anos de existência do mST e 20 anos da Constituição “cidadã” brasileira, a qual estabeleceu o mandado da função social da propriedade. no entanto, esse ano 17 foi marcado também por contradições entre a afirmação do estado democrático de direito, opção clara do texto constitucional, e por ações de vários órgãos estatais, buscando criminalizar movimen- tos e lutas populares. Contradizendo o espírito da Constituição, setores do Judiciário e de outros órgãos, a exemplo do Tribunal de Contas da união e do ministério Público, constituídos para promover a democracia, envidaram muitos esforços na tentativa de deslegitimar lutas e a própria existência do mST, transformando atividades e mobilizações em ações ilícitas e crimes. o quinto e último ensaio é uma reflexão sobre a modernização do campo e o papel da ciência, a partir dos embates travados nos últimos anos em torno da liberação para a produção comercial de organismos geneticamente modificados. Procurando dialogar com vários pensadores, a exemplo de Herbert marcuse, Thomas Kuhn e Karl Popper, entre outros, esse trabalho intenta desmis- tificar a isenção da ciência, demonstrando interesses e intenções nos embates sobre a produção comercial de transgênicos no Brasil. esses embates foram especialmente acirrados nos anos de 2003 a 2007, a partir das decisões governamentais de liberar a comercialização de soja, mas não se restringem nem a esse período nem a esse cultivo. as decisões recentes da Comissão nacional Técnica de Biossegurança (CnTBio) e as tentativas de diminuir as responsabilidades das empresas, por exemplo, no monitoramento dos cultivos autorizados, mantêm essa temática na pauta nacional, exigindo o aprofundamento do debate em torno do uso comercial dessa tecnologia e as implicações do princípio da precaução. apesar de terem sido escritos em momentos históricos di- ferentes, os cinco ensaios lidam com uma temática comum, ou seja, procuram refletir sobre distintas dimensões do protagonismo social, cultural e político dos movimentos sociais agrários. Seja na luta pela terra ou nas demandas pelo reconhecimento de ter- ritórios, seja nas mobilizações e oposições ao uso indiscriminado 18 da tecnologia genética, esses sujeitos sociais coletivos moldam a realidade e desafiam à reflexão. É preciso destacar ainda que, nos processos de construção e apreensão do real, os movimentos sociais agrários, as organizações representativas e as entidades de apoio têm incorporado novos aspectos e perspectivas nas elaborações sobre o rural brasileiro. novos temas vêm sendo agregados às reflexões e pautas como, por exemplo, a importância econômica e a capacidade redistributiva da produção familiar; a relação entre um programa de acesso à terra e a democratização das relações políticas na sociedade brasileira; ou ainda a formulação de alternativas de desenvolvimento, especial- mente a perspectiva da sustentabilidade ambiental, entre outros. esses temas também estão presentes nas páginas que seguem, em uma constante reafirmação da importância social, econômica e política da agricultura familiar camponesa e da necessária promo- ção de uma reforma na estrutura fundiária brasileira. esta coletânea de ensaios e textos, assumindo o compromisso com a causa agrária, é uma tentativa de, analisando as transfor- mações recentes nas lutas por terra, contribuir nesse processo de reconstrução e reinvenção do campo brasileiro. essa publicação, reunindo esses ensaios, se tornou possível graças ao apoio do decanato de Pesquisa e Pós-graduação (dPP), da universidade de Brasília (unB), ao qual sou imensamente grato! Grato e espe- rançoso de contribuir para a construção de uma sociedade justa e igualitária! Sérgio Sauer Brasília, janeiro de 2010. 19 A lutA PelA terrA , reformA Agrár iA e A re invenção do c A mPo * o desenvolvimento do capitalismo ocidental transformou a cidade em um lugar privilegiado para a localização da indústria, do comércio e dos serviços, ou seja, um lugar de produção e trocas. os centros urbanos passaram a ser polos irradiadores de merca- dorias e tecnologia e, consequentemente, de valores ideológicos e culturais, reforçando uma distinção dicotômica entre a cidade e o campo. esta dicotomia tem funcionado como uma lógica explicativa fundante da realidade social, que ora contrapõe os dois polos, ora subordina, incondicionalmente, o rural ao urbano. Historicamente, as reflexões e elaborações sobre a modernidade exacerbaram esta dicotomia, especialmente através do estabele- cimento de uma estreita identificação entre urbano e moderno, de um lado, em oposição ao rural e tradicional, de outro. mais recentemente, as discussões em torno da globalização e da pós- modernidade têm mantido esta mesma racionalidade, provo- cando ou aprofundando a exclusão do rural das representações e explicações do real, pensado sob a ótica da modernidade. as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais têm sido interpretadas a partir de uma visão centrada na importância da * elaborado a partir da tese de doutorado Terra e modernidade: a dimensão de espaço na aventura da luta pela terra, defendida em 2002 na unB/Sol, esse texto foi ori- ginalmente elaborado e submetido ao GT 10 sobre movimentos sociais rurais em múltiplas dimensões, do xi Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em 2003. 20 indústria (dimensãosetorial) e da cidade (dimensão geográfica), relegando um espaço residual ao mundo rural e seus significados. É verdade que esta exclusão do rural e de suas populações das reflexões teóricas e interpretações da realidade não é novida- de, nem é uma criação exclusiva da modernidade. este tipo de leitura excludente remonta aos pensadores gregos e à construção de conceitos como cidadania e cidadão, tão caros ao pensamento moderno ocidental. aristóteles, por exemplo, em seu tratado Po- lítica – considerando que a cidade é uma espécie de comunidade e toda comunidade se forma com vistas a um bem – afirmou que: (...) a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (...). de fato, se cada indivíduo isoladamente não é autossuficiente, consequentemente em relação à cidade ele é como as outras partes em relação a seu todo, e um homem incapaz de integrar- se numa comunidade, ou que seja autossuficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus (1997, pp. 15 e 16). diferentemente da centralidade da cidade na antiguidade, a idade média (ocidental e europeia) centrou o poder político na propriedade da terra, criando uma sociedade baseada na “sobe- rania fundiária e militar sobre o solo ocupado por comunidades subjugadas” (lefebvre, 2001, p. 41). o desejo de vencer este do- mínio abriu espaço para a representação da cidade como o lugar de liberdade ou, no dizer próprio da época, “os ares da cidade libertam”. o advento da modernidade – na esteira da filosofia iluminista que entendia a cidade como “lugar da virtude, da cidadania e da civilização” – marca também a reconquista do domínio político da cidade, incorporando ou transformando a estrutura feudal, dando um novo significado ao sistema urbano a partir da industrialização. 21 o encantamento pela efervescência dos espaços urbanos e suas possibilidades (augé, 1997) relegou o rural ao esquecimento ou a uma posição de antítese, de oposição à cidade, ao urbano e ao moderno (como o lugar de manutenção de resquícios feu- dais). o processo recente de globalização e muitas das tentativas de interpretação das mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas deste processo exacerbaram esta visão cunhando expressões e conceitos como “cidade global” (ianni, 1997; ortiz, 1997) ou “cidade mundo” (augé, 1997). expressões totalizadoras porque, segundo augé, “o mundo da cidade basta-se a si mesmo. ele tem sua própria história, suas referências, seus símbolos” (1997, p. 171), que eliminam qualquer oposição ou realidade distinta da urbana. a luta pela terra se coloca no contexto do debate sobre a es- pacialidade e a territorialidade na modernidade, transformadas pelo processo de globalização. a modernidade – historicamente um conceito relacional identificado com a cidade – produz repre- sentações sociais e valores que perpassam os itinerários de vida e influenciam a reconstrução da identidade das pessoas que lutam pelo acesso à terra. os processos sociais possibilitam, no entanto, releituras e reapropriações destes valores, criando oportunidades e perspectivas de vida que se diferenciam do modo de vida moderno. as lutas pela terra e pela reforma agrária se inserem em um con- texto de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da modernidade ocidental. estas transformações são exacerbadas pelo que, mais recentemente, se tem denominado de globalização. esta globalização é constituída, basicamente, por rearranjos nos processos de acumulação do capital que atingem todas as dimen- sões da vida, inclusive o meio rural brasileiro, abrindo espaço para novas interações com o espaço urbano. a globalização tem provocado mudanças nas representações de tempo e espaço, estabelecendo novas relações entre o local e o 22 global (Giddens, 1991). a mobilidade social e geográfica – carac- terística desta globalização – provoca novas interações entre estas duas dimensões espaciais (não apenas o domínio de uma sobre a outra), recolocando a importância do local, da territorialidade e da espacialidade na experiência cotidiana. a luta pela terra torna-se também uma luta por um lugar que contrasta com os processos constantes de mobilidade geográfica e identitária, dando novos significados ao local. Urbano e rural no mundo contemporâneo Segundo lefebvre, o papel secundário e residual do rural já está presente nas reflexões de marx sobre o desenvolvimento do sistema capitalista ocidental (lefebvre, 2001). a partir de relei- turas de textos de marx como, por exemplo, os Manuscritos de 1844, lefebvre afirma que este aponta a necessidade de superar a relação pessoal do dono com a propriedade – característica do sistema feudal na idade média – para que a terra ganhe o status de mercadoria. Para marx, esta passagem ou superação aconteceu, historicamente, com o processo de industrialização (na inglater- ra), a qual deu um novo impulso à cidade e um novo sentido à urbanização da sociedade moderna ocidental.1 apesar de reconhecer que marx não desenvolveu muito esta lógica, lefebvre sustenta que há uma centralidade (inclusive a partir de noções e conceitos como a divisão social do trabalho, práxis, produção e reprodução etc.) da noção de cidade e da oposição desta com o campo no pensamento marxista. esta oposição dá-se, por exemplo, na divisão do trabalho social onde ocorre, primeiro, uma separação entre trabalho industrial e comercial (dentro do espaço urbano) e, segundo, destes com o trabalho agrícola (lefebvre, 2001, p. 39), materializando a divisão e a oposição entre campo e cidade. em sua releitura da obra A ideologia alemã, lefebvre é ainda mais incisivo afirmando que marx e engels teriam colocado “a 23 cidade como sujeito da história” (2001, p. 48).2 Segundo ele, apesar de marx nunca ter explicitado claramente a questão do sujeito em suas elaborações, nesse texto o “sujeito da história é incontesta- velmente a cidade” (idem, p. 49), pois os autores deixam claro a divisão entre cidade e campo, a supremacia da primeira sobre o segundo e a necessidade de superar tal divisão. Segundo lefebvre, o campo, em oposição à cidade, é a dispersão e o isolamento. a cidade, por outro lado, concentra não só a população, mas os instrumentos de produção, o capital, as necessidades, os prazeres. logo, tudo o que faz com que uma sociedade seja uma sociedade. É assim porque “a existência da cidade implica simultaneamente a necessidade da admi- nistração, da polícia, dos impostos etc., em uma palavra, a necessidade da organização comunal, portanto, da política em geral” (2001, p. 49). a separação e oposição entre cidade e campo – fruto da divi- são social do trabalho – bloqueiam a totalidade social (lefebvre, 2001, p. 49), relegando um “trabalho material desprovido de inteligência” ao campo (idem, p. 49). esta separação resulta na divisão de classes e na alienação e, consequentemente, deve ser su- perada. a superação (como fruto do processo histórico e da práxis da sociedade) desta oposição “é uma das primeiras condições da comunidade” (idem, p. 50). Segundo lefebvre, a oposição ou conflito (dialético) entre cidade e campo abarca certa unidade, criando dificuldades para apreender, teoricamente, a relação entre unidade e contradição (2001, p. 55). esta dificuldade estaria na base da ambiguidade com que marx e engels “trataram do fim da cidade”,3 pois o sur- gimento da grande indústria fez com que a cidade deixasse de ser o “sujeito do processo histórico” (idem, p. 63). em todos os casos, lefebvre reafirma a noção da superação do rural pela urbanidade capitalista ocidental. a concentração da população acompanha a dos meios de produção. o tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida 24 agrária. estas palavras, “o tecido urbano” não designam,de ma- neira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo (lefebvre, 1999, p. 17). Partindo da premissa de que o desenvolvimento capitalista na pós-modernidade abarcou todas as esferas da vida (inclusive a natureza e o inconsciente), Fredric Jameson aponta na mesma direção de lefebvre afirmando a “superação” do rural porque “a modernização está, mesmo que relativamente, completa” (1997a, p. 26). diferente do período moderno, as pessoas já não têm ne- nhuma possibilidade de se contrapor ao rural, ao residual porque “aquela satisfação mais profunda de ser ‘absolument moderne’ se dissipa quando as tecnologias modernas estão em toda parte” (Jameson, 1997, p. 26 – ênfases no original).4 nessa perspectiva, Jameson avalia que houve uma completa assimilação do rural pelo processo de industrialização da sociedade ocidental. a implantação da revolução Verde, da industrializa- ção da agricultura, em um primeiro estágio, “reteve um modo de produção pré-capitalista na agricultura, mantendo-o intacto, explorando-o de maneira tributária, obtendo capital de relações essencialmente pré-capitalistas” (Jameson, 1997a, p. 40). o novo estágio do capital abarcou todas as esferas da vida, inclusive a agricultura, eliminando as diferenças e tornando-a parte da própria exploração industrial (Jameson, 1997a, p. 40). diferentemente de lefebvre, no entanto, Jameson afirma que este processo de assimilação capitalista da agricultura (e da na- tureza) acaba deteriorando o “outro termo da oposição binária”. Segundo ele, “o desaparecimento da natureza – a mercantiliza- ção do campo e a capitalização da própria agricultura em todo o mundo – começa agora a desgastar o seu outro termo, o que antes era o urbano” (Jameson, 1997a, p. 42), provocando um processo de deterioração da vida nas cidades. 25 a urbanização e de deterioração e a cidade são muito evidentes no recente processo histórico brasileiro. o deslocamento força- do de milhões de pessoas do campo para as cidades gerou um crescimento artificial dos grandes centros urbanos, praticamente inviabilizando qualquer possibilidade de fornecimento de serviços básicos como infraestrutura (asfalto, energia elétrica, sistema de esgoto etc.), saúde, educação etc. um dos resultados é a condição sub-humana de existência nas periferias urbanas, contradizendo inclusive a lógica de que o êxodo rural deveria libertar as pessoas das amarras comunitárias. emmanuel Wallerstein aponta em uma direção semelhante utilizando a noção de “desruralização do mundo” moderno. de forma diferente de lefebvre e Jameson, no entanto, esse autor não explica o processo de “desruralização” através da justificativa tradicional de “que a industrialização exige a urbanização” (1999, p. 245). Wallerstein busca outra explicação porque, segundo ele, “ainda restam indústrias localizadas nas regiões rurais e já temos notado a oscilação cíclica entre concentração e dispersão geográfica da indústria mundial” (idem, p. 245). na verdade, Wallerstein recorre a outra noção definindo o rural como o lugar depositário de mão de obra barata. diante da necessidade de rearranjos no sistema de acumulação para com- pensar a transferência de parte da mais valia para os operários qualificados e organizados, os proprietários dos meios de produção transferem setores de atividade econômica pouco rentáveis para regiões com mão de obra rural disponível (Wallerstein, 1999, p. 246). essas novas localidades urbanas atraem mão de obra rural porque os salários representam “um aumento de sua renda fami- liar, mas que no cenário mundial representam custos mínimos de trabalho industrial” (idem, p. 246). esta lógica de acumulação força constantes processos de des- locamento de setores menos competitivos para regiões depositárias 26 de mão de obra barata. este é o processo social e econômico que resulta na “desruralização” do mundo moderno, porque “(...) para resolverem as dificuldades recorrentes das estagnações cíclicas, os capitalistas fomentam em cada ocasião uma desruralização parcial do mundo” (Wallerstein, 1999, p. 246). Segundo esse autor, o grande problema é que já não há mais população para desruralizar, o que se transforma em um dilema insolúvel para o sistema capitalista (idem, p. 246). este processo de desenvolvimento capitalista dos anos de 1950 e de 1960 forjou uma concepção de progresso baseada em uma relação linear entre modernização – industrialização – urbaniza- ção.5 o desenvolvimento econômico e social mundial não teria outro caminho a não ser um processo crescente de industrializa- ção, atraindo as pessoas para os aglomerados urbanos, na mesma lógica da interpretação de Wallerstein sobre a “desruralização” do mundo moderno. nesta mesma perspectiva, lefebvre sugere então que o caráter essencial da “sociedade industrial” é, acima do crescimento quantitativo da produção material, o desenvolvimento das cidades ou da sociedade urbana. É a vida urbana que dá sentido à industrialização, que a contém como segundo aspecto do processo. É possível que a partir de certo ponto crítico (onde podemos nos situar), a urbanização e sua problemática dominem o processo de industrialização. o que resta como perspec- tiva à “sociedade industrial”, se ela não produz a vida urbana em sua plenitude? nada mais que produzir por produzir (lefebvre, 1991, p. 55 – ênfases no original). nesta perspectiva, o fenômeno da urbanização, como uma realidade mundial e inevitável, se transforma na grande aventura da humanidade. a cidade, em contraposição ao atraso do meio rural, é considerada o espaço fundamental para o desenvolvimento econômico e a construção da cidadania (Wanderley, 2001, p. 2).6 modernização significa então um processo histórico de generali- joice Realce joice Realce joice Realce 27 zação de um padrão cultural urbano, sinônimo de emancipação, autonomia, desenvolvimento, progresso e cidadania. estas concepções levam a interpretações que afirmam a diluição das contradições e diferenças entre o rural e o urbano (ianni, 1997; Silva, 1996), pois o tecido urbano domina toda a sociedade porque a modernização capitalista está relativamente completa (Jameson, 1997a). não há mais espaços geográficos e sociais para a existência de valores e modos de vida “tradicionais”, distintos, porque este tecido urbano consumiu todos os resíduos da vida agrária (lefebvre, 1999). Consequentemente, segundo octavio ianni: Faz tempo que a cidade não só venceu como absorveu o campo, o agrário, a sociedade rural. acabou a contradição cidade e campo, na medida em que o modo urbano de vida, a sociabilidade burguesa, a cultura do capitalismo, o capitalismo como processo civilizatório invadem, recobrem, absorvem ou recriam o campo com outros sig- nificados (1997, p. 60). este processo civilizatório capitalista abarca todas as esferas da vida e da sociedade, integrando, modernizando e mesmo diluindo o mundo agrário. este perde as suas características (inclusive a sua base econômica passa a ser de atividades não agrícolas) deixando de ser o lugar de manutenção e reprodução de valores tidos como tradicionais, a exemplo do comunitarismo e do familismo. o processo de urbanização do campo traz consigo também secula- rização, individualização e racionalização, destruindo os últimos resquícios que poderiam diferenciar o espaço rural do urbano. o que permanece é o bucólico, a nostalgia da natureza, a utopia da comunidade agrária, tribal, indígena, passada, pretérita, remota, imaginária. (...) a própria cultura de massa, agilizada pela indústria cultural, retrabalha continuamente a nostalgia da utopia bucólica. Tanto pasteuriza como canibaliza elementos presentes e pretéritos, reais e imaginários do mundo agrário. reinventa o campo, country, joice Realce 28 campagna, champ, sertão, deserto, serra, montanha, rio, lago, verde, ecologia, meio ambiente e outras formulações, aparecidas no imagi- náriode muitos como sucedâneos da utopia do paraíso (ianni, 1997, p. 63 – ênfases no original). muitas objeções poderiam ser feitas a estas concepções de rural e do desenvolvimento atual do mundo contemporâneo. o padrão de modernização, por exemplo, não é um dado que abarca o con- junto da sociedade de forma igual, como entende Jameson. Por outro lado, a modernização agropecuária no Brasil é implantada de forma desigual, possibilitando um profundo descompasso social e político, bem como a convivência de situações e valores plurais, quando não contraditórios, frutos de uma “produção capitalista baseada em relações não capitalistas” (martins, 1989). a noção de caráter residual do rural – quando não é relegado ao completo esquecimento – faz parte das reflexões e produções teóricas sobre a modernidade (conceito essencialmente urbano). Por outro lado, a diluição ou descentramento do rural vem sendo colocada em xeque tanto por reflexões teóricas recentes quanto pelos processos sociais e políticos de resistência e luta de diversos segmentos da população rural. os movimentos sociais como sujeitos políticos, especialmente na luta pela terra, recolocam a importância do rural tanto na agenda política brasileira quanto nas interpretações da sociedade ocidental contemporânea. Industrialização e urbanização ou especificidade do rural as questões relacionadas com a terra e a exploração de seus habitantes fazem parte da história da américa latina desde que os primeiros colonizadores aportaram no continente.7 estas questões ganharam relevância e ênfases diferenciadas ao longo desta histó- ria, influenciando a própria produção teórica sobre os problemas e perspectivas do campo. diferente de muitas interpretações da sociedade ocidental contemporânea, este desenvolvimento histó- 29 rico tem mantido o rural, negando sua diluição ou urbanização. inclusive, a resistência da população rural aos processos de mo- dernização, expropriação e exclusão, tem mantido o meio rural, os seus problemas e as suas perspectivas, na agenda política nacional, forçando reflexões e novas interpretações do real. estas questões adquiriram, no entanto, uma perspectiva nova a partir dos anos de 1950 e de 1960, quando os programas de mo- dernização agropecuária começaram a ser implantados através da chamada revolução Verde na américa latina e de seu consequente “processo de modernização conservadora” no Brasil (Silva, 1994). as situações agrária e agrícola brasileiras sofreram profundas mudan- ças, pois a agropecuária passou por um processo de transformação tecnológica, possibilitando a incorporação de tecnologias modernas e uma integração à dinâmica industrial de produção. estas mudanças foram realizadas basicamente através de pe- sados investimentos governamentais no setor industrial, buscando modernizar a economia nacional e destruindo sua antiga base agrícola. o principal instrumento, utilizado pelo estado para promover esta transformação, foi o crédito agrícola subsidiado que capitalizou os grandes proprietários, possibilitando a crescente incorporação de insumos industriais na produção agropecuária. os subsídios governamentais abriram a oportunidade para in- vestimentos pesados na agropecuária, promovendo seu avanço tecnológico através do uso de tratores e máquinas, sementes selecionadas, fertilizantes químicos e pesticidas etc. os pesados subsídios e incentivos fiscais concedidos pelo estado às grandes empresas abriram o campo ao investimento capitalista, pro- tegeram e reafirmaram a renda da terra e a especulação imobiliária, incluíram a grande propriedade fundiária num projeto de desenvol- vimento capitalista que tenta organizar, contraditoriamente, uma sociedade moderna sobre uma economia rentista e exportadora. um capitalismo tributário atualizado (martins, 1989, p. 85). 30 o apoio à modernização do latifúndio deu ao programa seu caráter conservador. os incentivos possibilitaram a modernização da produção agropecuária (mecanização, aumento da produção e produtividade, competitividade no mercado exportador), mas mantiveram e ampliaram a má distribuição da propriedade da terra e, consequentemente, aprofundaram um modelo excludente e concentrador no país. a distribuição social, setorial e espacial dos incentivos provocou uma divisão de trabalho crescente; grosso modo, maiores propriedades, em terras melhores, tiveram acesso a crédito, subsídios, pesquisa, tecnologia e assistência técnica, a fim de produzir para o mercado externo ou para a agroindústria (martine, 1991, p. 10). o cultivo monocultor de grandes extensões – padrão predo- minante do modelo de modernização – aumentou a produção agrícola do país. não promoveu, porém, o bem-estar social da maioria da população rural, ao contrário, provocou concentra- ção da propriedade da terra, êxodo rural, fome e violência. a dominação do capital industrial, ou agroindustrial, permitiu uma subversão do processo produtivo e uma expropriação do saber dos agricultores familiares e camponeses. este processo provocou a dominação destes, imobilizando sua força de trabalho (através do trabalho escravo ou semiescravo) ou expropriando seus meios de produção através da expulsão da terra (Porto, 1997). o desenvolvimento agropecuário da revolução Verde foi pla- nejado e implantado em uma contraposição entre campo e cidade. isso resultou no reforço de um modelo industrial concentrador, predatório e excludente. este modelo seguiu a lógica dominante de privilegiar investimentos no setor industrial voltado para o desenvolvimento dos centros urbanos, transformando o “atraso do meio rural” no contraponto ideal, na imagem e na representação de como o desenvolvimento moderno não deveria ser. joice Realce joice Realce 31 a modernização e a modernidade criam e recriam suas próprias representações ou, nos termos de duarte (2000), seus próprios mitos. estes mitos se constituem em fundamentos de práticas sociais, permeando inclusive muitas das análises e inter- pretações da realidade contemporânea. Segundo duarte, um dos mitos fundantes da modernidade – resultado de uma “urbani- zação generalizada e desorganizada” – é a crença “da igualdade socioeconômica e do sucesso nos grandes centros urbanos ditos desenvolvidos” (2000, p. 2), a qual reforça a exclusão do rural e do campo das análises teóricas e definições de progresso e de desenvolvimento econômico. o processo de modernização provocou um deslocamento de milhões de pessoas do meio rural para os meios urbanos (peri- feria das cidades) ou para as áreas de colonização na região da amazônia legal. Tal deslocamento espacial não resultou em um processo de emancipação, como uma consequência natural do desenraizamento e urbanização, como apregoavam os defensores da modernização. Para a maioria, a mobilidade social e espacial – raiz da emancipação do indivíduo da dependência tradicional da comunidade rural, segundo concepções modernistas – não resultou em mudança de valores dos padrões tradicionais no sen- tido da autodeterminação individual no estilo de vida, mas em fome, pobreza e exclusão. o aprofundamento da contraposição entre sociedades urbanas modernas e atrasos do meio rural tem influenciado pensadores brasileiros em suas interpretações, perspectivas e possibilidades de vida no campo, negando a importância da luta pela terra e de qualquer processo de redistribuição da propriedade fundiária.8 Partindo de um pressuposto de que cidadania no campo é um contrassenso e que modernização é sinônimo de urbanização, estas interpretações condenam o meio rural por sua inviabilidade como espaço social e produtivo (Franco, 1996).9 32 em uma perspectiva um pouco diferente, José Graziano da Silva – enfatizando a racionalidade econômica das empresas rurais e do atual padrão técnico-produtivo agrícola – afirma que já não se pode caracterizar o meio rural somente como agrário. o campo não pode ser pensado apenas como um lugar produtor de merca- dorias agropecuárias,pois o surgimento de uma série de atividades não agrícolas está recriando o meio rural brasileiro (Silva, 1996), seguindo uma tendência constatada nos países desenvolvidos. este processo – associado a outras transformações como, por exemplo, as das relações de trabalho – leva Graziano da Silva a concluir que as melhorias de condições de vida da população rural dependem do “grau de urbanização do interior” (Silva, 2000, p. 8), inclusive com incentivos para a geração de empregos não agrí- colas no meio rural. ainda, segundo ele, o “meio rural brasileiro se urbanizou como resultado do processo de industrialização da agricultura”, mantendo uma análise que privilegia o urbano sobre o rural (Silva, 1996).10 esta lógica – exacerbada recentemente pelos avanços da globalização (Silva, 1998) – reforça a noção de que, em vez de diferenciação, existe um continuum entre o rural e o urbano. as dificuldades de delimitar fronteiras (exacerbadas inclusive pela ideia de que a globalização elimina todas as fronteiras territoriais) entre cidades, vilas e o campo reforçam noções que enfatizam processos de indiferenciação entre estes espaços. a consequência é “o fim do isolamento entre as cidades e o meio rural”, o que “é frequentemente expresso através do conceito de continuum rural- urbano” (Wanderley, 2001, p. 32). o problema fundamental desta noção de continuum é justamen- te a tendência a privilegiar uma visão centrada no urbano, relegando o rural novamente ao polo atrasado desta inter-relação (Wanderley, 2001). Siqueira e osório (2001) afirmam que a noção de continuum tem como base a dicotomia já conceitualmente postulada, a qual 33 acaba se sobrepondo ao antigo conceito de rural como um lugar de permanência de mão de obra barata e desqualificada.11 levada às últimas consequências, esta vertente das teorias da urba- nização do campo e do continuum rural-urbano apontam para um processo de homogeneização espacial e social, que se traduziria por uma crescente perda de nitidez das fronteiras entre os dois espaços sociais e, sobretudo, o fim da própria realidade rural, espacial e so- cialmente distinta da realidade urbana (Wanderley, 2001, pp. 32s). os questionamentos sobre a diluição de fronteiras não levam necessariamente à reforçar qualquer visão dicotômica para pre- servar as singularidades do campo. a noção de continuum – ou de um processo inter-relacional – não leva a uma homogeneização dos espaços urbano e rural. mesmo ressaltando as semelhanças, interferências e continuidades, “as relações entre o campo e a cidade não destroem as particularidades dos dois polos e, por conseguinte, não representam o fim do rural” (Wanderley, 2001, p. 33). nesta perspectiva, Wanderley formula a hipótese de que o desfecho dos processos recentes de transformação não é o fim do rural e a urbanização completa do campo (2000, p. 89). as transformações do rural, intensificadas pelas trocas materiais e simbólicas com o urbano, fazem emergir uma nova ruralidade (idem, p. 89), sendo que o espaço local é, por excelência, o lugar de convergência entre o urbano e o rural (Wanderley, 2001, p. 33). maria José Carneiro também enfatiza esta perspectiva, apesar de reconhecer a importância das mudanças no campo inclusive uma reorientação da capacidade produtiva. afirma que a integra- ção do rural à economia global, ao invés de diluir as diferenças, “pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertenci- mento a uma localidade” (Carneiro, 1997, p. 5). esta “âncora territorial” permite interações e garante a “manu- tenção de uma identidade” (Carneiro, 1997, p. 5). não é possível, 34 segundo ela, entender a ruralidade apenas como um processo de urbanização do campo, “mas também do consumo pela sociedade urbano-industrial, de bens simbólicos e materiais (a natureza como valor e os produtos ‘naturais’, por exemplo) e de práticas cultu- rais que são reconhecidos como tendo a sua origem no chamado mundo rural ou agrário” (Carneiro, 1997, p. 7). Wanderley enfatiza também as diferenciações presentes nas representações sociais do rural. mesmo com os atuais graus de homogeneização e indiferenciação, provocados pelos processos de globalização, “as representações sociais dos espaços rurais e urbanos reiteram diferenças significativas, que têm repercussão direta sobre as identidades sociais, os direitos e as posições so- ciais dos indivíduos e grupos, tanto no campo quanto na cidade” (Wanderley, 2001, p. 33). mais importante do que uma definição precisa das fronteiras entre o rural e o urbano é buscar os significados, do ponto de vista dos diferentes agentes, das práticas sociais que operacionalizam as interações entre estes espaços (Carneiro, 1997, p. 7). neste sentido, há um ressurgimento que transcende a um simples esforço de reto- mada teórica do campo. estes esforços buscam incluir o campo e seus agentes sociais no contexto dos diferentes processos de trans- formação pelos quais passa a sociedade ocidental contemporânea. Certamente a retomada do rural poderia ser interpretada como uma simples tentativa de análise do exótico, de algo marginal à racionalidade ocidental, como uma tática para apreender aspectos que a cultura contemporânea exclui de seu discurso (Certeau, 2000). a perspectiva aqui é transcender esta tática, tomando em consideração processos sociais e políticos (a luta pela e a conquista de terra) que podem ser compreendidos como recriações do mundo rural brasileiro. este ressurgimento ou retomada do rural pode ser interpretado também como um processo social no interior das transformações 35 sociais e econômicas atribuídas à globalização, a qual é marcada por contradições entre a diluição de fronteiras, de um lado, e o reforço às identidades locais, de outro. Segundo Hall, a tendência de “homogeneização global” (fruto da diluição das fronteiras na modernidade) possui uma antítese, pois “há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da ‘alteridade’” (1999, p. 77). esta fascinação pela diferença e pela alteridade abre espaço para a revalorização do local, em geral, e do rural, em particular, nas caracterizações e interpretações da sociedade ocidental contemporânea.12 em que pese às diferenças, vários aportes teóricos, discussões sobre ruralidade (Wanderley, 2000 e 2001; Carneiro, 1997), desenvolvimento territorial (abramovay, 2000), neo-ruralismo (Giuliani, 1990) e desenvolvimento sustentável (duarte, 2000) constituem exemplos que retomam o rural e as relações rural- urbanas sob outras perspectivas. São aportes teóricos que procuram demonstrar a existência de uma realidade mais complexa, permea- da por fenômenos e processos que negam modelos explicativos e valores predominantes na mentalidade “moderno-desenvolvimen- tista” (Giuliani, 1990). diferentemente das representações e concepções dicotômicas sobre o rural, é possível compreender o campo, em geral, e a luta pela terra, em particular, a partir de outras perspectivas que não eliminam o rural. em primeiro lugar, é fundamental romper com qualquer concepção dicotômica da realidade evitando sepa- rar o rural do urbano. estes dois espaços não possuem divisões ou fronteiras tão explícitas, pois há um processo permanente de interações e intercâmbios que precisam ser levados em conta nas análises (Carneiro, 1997), sem perder as especificidades e identi- dades de cada um. em segundo lugar, é fundamental considerar que as lutas dos movimentos sociais no campo não se restringem às lutas pela 36 propriedade fundiária e pela manutenção dos valores tradicionais camponeses. Transcendem à luta pelo acesso aos meios de produção e se transformam em um processo de construção de sujeitos po- líticos, recriando relações sociais e transformando o espaço rural na constituição de uma nova ruralidade. Vários autores, a exemplo de martins, têm demonstrado que as lutas camponesas ultrapassam a simples demanda por terra porque são lutas pela libertação eemancipação humanas. estas lutas em busca de sobrevivência e reprodução social não se restringem à dimensão econômica, mas incluem demandas por saúde, educação, justiça, paz. São lutas que reivindicam “integração política, emancipação, (isto é, de libertação de todos os vínculos de dependência e submissão), reconhecimento como sujeitos de seu próprio destino e de um destino próprio, diferente, se necessário” (martins, 1994, p. 159 – ênfases no original), pos- sibilitando processos sociais e políticos de recriação do campo e de uma nova ruralidade. em terceiro lugar, é fundamental considerar a importância da terra como meio de trabalho, retomando a perspectiva da terra de trabalho.13 Celso Furtado enfatizou esta perspectiva ao relacionar a terra como um fator fundamental no combate ao grande dilema da sociedade industrial moderna: o desemprego em massa. de 1990 para cá, a agricultura criou 4 milhões de empregos, o que é extraordinário, mesmo sendo de subsistência. o setor urbano deixou de criar empregos. Quer crise maior do que essa? Só que em nosso país temos um milagre: a terra. Há hoje no mundo algum país que crie empregos na agricultura? (Furtado, 1997, p. 9). a democratização do acesso à propriedade da terra – mais do que uma simples política social compensatória de combate à pobre- za rural14 – representa a possibilidade da construção de identidades e cidadania no meio rural. além das implicações políticas, como a constituição de sujeitos pela redistribuição do poder (martins, 37 1993), a luta pela terra representa uma aventura em busca de um lugar de oportunidades e autodeterminação, diferente (mas não necessariamente em oposição ao) do espaço urbano. A luta pela terra como uma recriação do rural além das formulações teóricas, há um movimento social e político de recriação do campo através da luta pela terra no Brasil (martins, 2000). este movimento agrário – gestado como resistência ao aprofundamento da expropriação e exploração das populações rurais com a implantação da modernização agrope- cuária – recoloca a importância da realização de uma reforma agrária no país, a partir de uma perspectiva que transcende a mera implantação de políticas governamentais compensatórias. a luta pela terra – como um processo social de resistência ao modelo agropecuário e à “ruralidade de espaços vazios” (Wander- ley, 2001) – se transforma em uma luta política, social, cultural, pela construção e realização da cidadania das populações rurais (martins, 1994). está em curso uma “práxis espacial emancipa- tória” (Soja, 1993), ou seja, um processo social de “reinvenção” do campo no Brasil sendo que a luta pela terra materializa esta recriação, agregando novos elementos e perspectivas à vida no meio rural, criando uma nova ruralidade. esta “práxis espacial emancipatória” (Soja, 1993) se materializa em embates sociais e políticos contra a concentração da proprie- dade fundiária e o latifúndio, instrumento e local de exercício de poder e dominação. mais do que falta de eficiência econômica, o latifúndio – como promotor do deslocamento geográfico através do êxodo rural – é símbolo, instrumento e lugar de exclusão social e marginalização política. Grandes extensões de terras são repre- sentadas como “não lugares” (augé, 1994) que geram a “ruralidade de espaços vazios”, ou seja, espaços que materializam ausências e são representados como vazios identitários para milhões de pessoas. 38 Por outro lado, as famílias acampadas e assentadas, como agentes sociais, lutam e atuam construindo a realidade social a partir de estruturas estruturantes, mediadas pelo habitus (Bour- dieu, 1996). nesse processo, apreendem o mundo real e concreto, organizando imagens, linguagem e representações sociais para que este mundo faça sentido. os acampamentos e assentamentos são espaços de reinvenção da sociedade através das interações sociais das diferentes biografias na busca de um lugar de vida, trabalho e cidadania. a luta pela terra é um processo social, político e econômico que abarca um conjunto de transformações no campo, redistribuindo a propriedade da terra e o poder, redirecionando e democratizando a participação da população rural no conjunto da sociedade bra- sileira. a luta social pela realização de uma reforma agrária está, portanto, baseada, em primeiro lugar, na busca de instrumentos que gerem emprego e renda, criando melhores condições de vida no meio rural. as experiências de luta e de acesso à terra, no entanto, além de garantir bem-estar social e melhoria das condições de vida (Stedile, 1997), são também impulsionadoras de transformações culturais, simbólicas e representacionais. este processo social gesta valores e representações sociais, dando novas perspectivas ao mundo rural, permitindo inclusive transformações nas relações com o meio ambiente, com o lugar e entre as pessoas (novaes, 1998). a participação nas mobilizações e lutas pela posse da terra produz uma renovação das representações e valores das pessoas acampadas e assentadas (Geiger, 1995). esta renovação não se reduz a uma atualização momentânea – como resultado, por exemplo, da unidade exigida pelo contexto de privações, ameaças e medo dos acampamentos – mas em ressignificações que modificam representações e a própria consciência das pessoas. o envolvimento nas lutas é um processo social que possibilita a reorganização das 39 diversas representações, provocando alterações da percepção da própria identidade. isto possibilita também uma reconstrução da consciência de sujeito, baseada na conquista do direito ao trabalho e no significado simbólico da produção. este é um aspecto fundante de uma nova ruralidade, ou seja, constituída por relações de sujeitos autônomos que protagonizam histórias e biografias. a modernidade é – de acordo com muitos teóricos, a exemplo de Giddens, Touraine, Beck – caracterizada por um processo político e cultural de constituição de sujeitos livres e autônomos, protagonistas da história. independentemente dos questionamentos a esta autonomia (a exemplo das posições adotadas por Jameson e Hall), os processos sociais agrários (lutas, mobilizações, negociações etc.) também constituem atores sociais e sujeitos da história. este protagonismo abre possibilidades para a diluição da oposição entre terra (rural como atraso) e modernidade (urbano como local do moderno).15 a contraposição histórica entre estes se desfaz na constituição de sujeitos políticos e atores sociais no meio rural, impedindo leituras dicotômicas que estabelecem uma relação estreita entre moderno e urbano em contraposição a tradi- cional e rural. Consequentemente, a conquista da cidadania e do direito ao trabalho, através do acesso à terra, criam protagonistas da história e sujeitos modernos, mas que se apropriam de valores e perspectivas de uma forma distinta dos sujeitos urbanos. os valores simbólicos e culturais da modernidade não são fe- nômenos exclusivos do contexto urbano industrial, mas perpassam o conjunto da sociedade brasileira. na verdade, esta sociedade é marcada por uma mescla de valores e códigos tradicionais e mo- dernos (araújo, 2000), gerando disjunções e situações paradoxais e contraditórias. Historicamente, a adoção de dimensões e valores da modernidade no Brasil sempre esteve mesclada com a manu- tenção de valores culturais e práticas políticas arcaicas como, por 40 exemplo, o exercício do poder político baseado na propriedade de grandes áreas de terras. estas formulações contestam às interpretações das transfor- mações sociais e representacionais da sociedade brasileira baseadas apenas em uma lógica linear de passagem do tradicional para o moderno, e deste para o pós-moderno. o rural brasileiro (assim como a sociedade brasileira, em geral) é caracterizado por com- binações – muitas vezes contraditórias e desiguais – de valores e códigos pré-modernos e modernos (araújo, 2000), os quais exigem uma leitura distinta de modelosexplicativos baseados na lógica moderno-desenvolvimentista. a luta pela terra não pode ser compreendida, portanto, como uma “volta ao passado”, nem como uma tentativa de preservar “resquícios bucólicos” (ianni, 1997) ou de construir a “utopia da comunidade agrária” (Carvalho, 2002). não se trata, no entan- to, de simplesmente identificar processos sociais e simbólicos, decorrentes da mobilização e da luta pela posse da terra, com transformações recentes no contexto da modernidade. a luta pela terra constitui sujeitos históricos, impedindo que seja classificada como um movimento social arcaico ou antimoderno. de acordo com ortiz, as transformações mundiais recentes provocaram alterações também na percepção do espaço, ou seja, a modernidade e a globalização criaram o que ele definiu como uma “territorialidade desenraizada” (ortiz, 1997). esta é resul- tado de processos de desterritorialização e reterritorialização, os quais alteram a percepção espacial. uma característica essencial da globalização é a desterritorialização (Santos, 1997), mas a con- quista e o acesso à terra não representam a sua antítese. o acesso à terra, como um processo de localização, não é uma antítese à globalização e seus processos de interação entre global e local (Giddens, 1991), mas representa uma reterritorialização que dá novos sentidos aos lugares. 41 diferentemente da noção de deslocamento e esvaziamento do espaço como “unidade geográfica elementar” (ortiz, 1997), esta luta recoloca a importância da noção de território e de lugar, como parte da experiência humana de espacialidade. a estrutura espacial (entendida como resultado de processos sociais, inclusive de em- bates pelo poder) é parte fundante da construção e representação da vida cotidiana. a luta pela terra materializa esta importância porque é, explicitamente, a busca por um lugar, geograficamente localizado e delimitado. a luta pela terra é um processo social de reforço de vínculos locais e de relações de pertencimento a um determinado lugar, se constituindo em um processo de reterritorialização que situa as pessoas em um espaço geograficamente delimitado. o assenta- mento (e as próprias parcelas e lotes) é caracterizado por limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas sociais que dão identidade e sentimentos de familiaridade a seus habitantes. isto não representa necessariamente uma contradição com a globalização, mas é uma revalorização da importância do lugar e do local (Giddens, 1995). a luta pela terra é uma busca por um pedaço de terra como um lugar de trabalho, de moradia, de cidadania, de vida. apesar de todas as dificuldades e problemas, os assentamentos – gran- des propriedades fundiárias repartidas – são a materialização de uma espacialidade efetivamente vivida e socialmente construída (Soja, 1993). resultado de conflitos sociais e disputas políticas, os assentamentos são lugares identitários, históricos e relacionais (augé, 1997). apesar de descontinuidades espaciais, os assentamentos não são ilhas, mas territórios, social e politicamente demarcados, resultados do exercício do “poder de di-visão” (Bourdieu, 1996), ou simplesmente “contexturas das práticas sociais” (Soja, 1993). São, portanto, espaços singulares que possibilitam um “convívio face a face” (Berger e luckmann, 1998), abrindo a possibilidade 42 para novas interações e ressignificações identitárias e represen- tacionais.16 a criação dos assentamentos gera uma nova organização social, econômica e política. Segundo martins, os projetos de assentamen- tos são “uma verdadeira reinvenção da sociedade” como “uma clara reação aos efeitos perversos do desenvolvimento excludente e da própria modernidade” (2000, p. 46s).17 nessa mesma perspectiva, Carvalho (1999) trata os assentamentos como “um processo social inteiramente novo”. Segundo ele, nesse espaço físico, uma parcela do território rural, plasmar-se-á uma nova organização social, um microcosmo social, quando o conjunto de famílias de trabalhadores rurais sem terra passarem a apossarem- se formalmente dessa terra. esse espaço físico transforma-se, mais uma vez na sua história, num espaço econômico, político e social (Carvalho, 1999, p. 7). Pensados como “encruzilhadas sociais” (Carvalho, 1999), os acampamentos e assentamentos são lugares de sociabilidade, diferenciados entre si basicamente pela oportunidade de acesso à terra. as experiências de luta, privações, desejos e sonhos – as- sociadas às histórias de vidas, verdadeiros itinerários biográficos de deslocamentos18 em busca de sobrevivência – forjam novas identidades e perspectivas de vida. apesar de considerar os acampamentos como espaço de “so- ciabilidade instável”, martins enfatiza que a ressocialização nesta fase da luta pela terra “por força do convívio e dos enfrentamentos conjuntos com estranhos. Há aí, pois, um alargamento de hori- zontes e de convivência” (2000, p. 47). este convívio cotidiano e a interação face a face abrem caminho para o “intercâmbio contínuo das diferentes expressidades” (Berger e luckmann, 1998, p. 47)19 e a construção de novos vínculos identitários. o acampamento é o lugar onde diferentes biografias se encon- tram e iniciam novos processos de interação e identidade sociais, os 43 quais ganham diferentes contornos nos projetos de assentamento. mais do que um simples espaço de transição (uma passagem) é um lugar identitário, um lugar privilegiado de reconstrução de identidade e de interação sociais. estas “encruzilhadas sociais” são lugares (diferente dos assentamentos) de sociabilidade e construção de identidades, e não apenas uma passagem na luta pela terra, temporária e marcada pela ausência de significação. diferentemente dos processos de deslocamento do espaço do lugar (Giddens, 1991), a terra é representada como um local, geograficamente localizado, que possibilita trabalho e moradia, portanto, um lugar de vida, que dá sentido à existência. Como lugar de morada, a terra se transforma em símbolo de fartura e garantia de futuro, materializando a possibilidade de reprodução social. a luta pelo acesso à terra significa ainda um processo de construção de alternativas à realidade atual, portanto, na constru- ção simbólica da terra como uma heterotopia, ou seja, um lugar, simultaneamente real e imaginário, de oposição às tendências de homogeneidade do espaço da modernidade (Foucault, 1984). Consequentemente, a terra não significa somente a susten- tabilidade física da vida humana, portanto, não tem apenas um significado real de cunho político, econômico e social, mas tem também um sentido simbólico. Terra é vida, portanto, lugar e meio de produção e reprodução social. a luta dos sem-terra é uma luta por uma heterotopia (Foucault, 1984), um outro lugar qualitativa- mente diferente e de resistência ao processo de desterritorialização, forçada pelo modelo agrário e agropecuário implantado no Brasil. no contexto de globalização, a luta pela terra materializa a luta por um lugar, buscando melhores condições de vida (cidadania) e transformando as conquistas em processos de apropriação de territórios, ou seja, em reterritorializações. as mobilizações, arti- culações e lutas dão protagonismo social e político às organizações agrárias. este protagonismo representa também um processo 44 pedagógico que transforma as pessoas em atores e sujeitos de suas próprias biografias. isso faz dessa luta um movimento moderno que permite releituras e consolidação de novos valores no meio rural, o que não dilui diferenças, mas estabelece novas inter-relações entre campo e cidade. as mobilizações e lutas pela terra constroem sujeitos e trans- formam a realidade rural possibilitando a emergência de uma nova ruralidade. Baseada em valores e pressupostos diferentes do atual padrão de modernização e desenvolvimento, esta ruralidade se cons- titui na materialização da modernidade no campo. a luta pela terra é, portanto, a passagem para esta modernidade porqueimplica em uma série de mudanças, reais e simbólicas, que alteram as condições de vida, produção, relações com a natureza, no meio rural brasileiro. Notas 1 Segundo Soja, as preocupações de lefebvre se estendiam muito além de uma sim- ples compreensão ou defesa da cidade, pois para ele “a urbanização era metáfora resumida da espacialização da modernidade e do “planejamento” estratégico da vida cotidiana, que haviam permitido ao capitalismo sobreviver, reproduzir com êxito suas relações essenciais de produção” (Soja, 1993, p. 65 – ênfases no original). 2 esta releitura de lefebvre reconhece que o próprio marx não tratou diretamente (ou extensivamente) sobre a questão urbana. no entanto, segundo ele, “as numerosas considerações emitidas por marx só têm sentido e importância em um contexto social: a realidade urbana. ora, marx não fala disso. uma ou duas vezes somente, mas de uma maneira decisiva, ele traz o encadeamento dos conceitos para esse contexto, no entanto continuamente implicado” (2001, p. 32). 3 lefebvre defende que há uma lacuna no pensamento de marx e engels porque “não exploraram a cidade como lugar de nascimento, quadro social e condição de uma sequência de ideologias e de conhecimentos...” (2001, p. 65). Segundo ele, é preciso afirmar não o “fim da cidade”, mas a sua superação pelo “urbano”, pois “o trabalho não acaba no lazer, mas no não trabalho. a cidade não acaba no campo, mas na superação simultânea do campo e da cidade. isso deixa um vazio que pode ser preen- chido pela imaginação, pela projeção e pela previsão teórica” (idem, pp. 72s). 4 a crítica de Jameson à sociedade contemporânea é a lógica e a estratégia de eliminar qualquer tipo de diferença em busca da homogeneização (espacial) e estandardização (do consumo) global (Jameson, 1997a, p. 41). 45 5 a promoção do modelo de desenvolvimento, a partir dos anos de 1950 e de 1960, foi baseada e aprofundou a contraposição teórica entre as “economias agrárias atrasadas” e as “sociedades modernas”. de acordo com Friedrich W. Graf, os sociólogos idealistas estadunidenses definiram o termo “modernização” como um processo no qual as sociedades atrasadas e tradicionais se “desenvolveriam” em direção a sociedades modernas (1993, p. 32). 6 o texto disponibilizado como base para as reflexões do 10º Congresso mundial de Sociologia rural, realizado em 2000, naturalizou o processo crescente de migração campo – cidade, estabelecendo uma relação automática entre urbanização e melhorias na qualidade de vida. Segundo o autor, “essa rápida urbanização cria oportunidades melhores de vida, mas também gera desafios assustadores: superpopulação, pobreza, e destruição ambiental” (Serageldin 2000, p. 7 – ênfases adicionadas). 7 de acordo com martins, a “questão agrária” surge no Brasil em meados do século 19 com o processo de abolição da escravidão e criação da lei de Terras, de 1850, que impediu o acesso à terra àqueles que não podiam comprar, forçando os pobres livres, inclusive os imigrantes europeus, a trabalhar para os grandes proprietários. a questão agrária surge “...quando a propriedade da terra, ao invés de ser atenuada para viabilizar o livre fluxo e reprodução do capital, é enrijecida para viabilizar a sujeição do trabalhador livre ao capital proprietário de terra” (martins, 1997, p. 12). 8 Ver, por exemplo, as reflexões de Francisco Graziano neto sobre a ausência de re- torno econômico da política fundiária redistributiva e a necessidade de “recriar” a reforma agrária, tendo como base a necessidade de criar ocupação rural, ou seja, não centralizar as ações governamentais na redistribuição da propriedade fundiária mas utilizar outros mecanismos para gerar empregos no campo (Graziano neto, 1998). 9 augusto de Franco, por exemplo, enfatizando a “inevitabilidade” devido à má qua- lidade de vida no meio rural, conclui que “o fim do campesinato na ultrapassagem da modernidade é o fim do campo enquanto espaço social e econômico oposto à cidade” (Franco, 1996). 10 Segundo Graziano da Silva, a diluição da diferenciação entre estes dois espaços se dá inclusive porque a cidade já não pode ser caracterizada única e exclusivamente como industrial. Há uma crescente semelhança nas formas de organização do trabalho industrial com o trabalho rural como, por exemplo, a flexibilidade de tarefas e da jornada, a contratação por tarefa ou por tempo determinado etc. (Silva, 1996). 11 os encantos com a efervescência urbana relegaram o rural a um lugar marginal, palco de tradições e práticas sociais residuais, sendo que as noções de progresso e desenvolvimento foram identificadas apenas como parte da sociedade urbana industrial. as leituras das transformações recentes, baseadas na “urbanização do campo” (Silva, 1996), mantêm essa mesma lógica relegando o especificamente rural à tradição e ao atraso. 46 12 a definição de Giddens (1995) de que a globalização constitui uma “ação à dis- tância” – a qual aproxima o local e o global e permite uma maior interação entre estes espaços – reforça a importância do rural (mesmo em uma perspectiva de “exótico”) nas análises das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais da sociedade contemporânea. 13 José de Souza martins tem utilizado amplamente este conceito enfatizando a im- portância histórica da resistência dos posseiros da amazônia. resistência centrada na compreensão de que o acesso à terra representa a garantia do direito ao trabalho, dimensão que precisa ser resgatada, considerando, porém, contribuições e debates recentes sobre as transformações no mundo do trabalho. Ver, por exemplo, antunes, 1999. 14 Francisco Graziano neto enfatiza apenas a dimensão social da reforma agrária quando afirma “...nada comprova que dar um pedaço de terra para essas famílias marginalizadas seja a única, nem a melhor solução, do ponto de vista do interesse público. Talvez um bom emprego seja preferível ao assentamento. ou então, tratá- las com mecanismos de política social, assistindo-as devidamente, garantindo-lhes alimentação e saúde” (Graziano neto, 1998, p. 168). 15 esta perspectiva tem como referência a ideia de que não há um desenvolvimento linear e progressivo, mas processos e valores sociais contraditórios, reforçados por uma globalização desigual (Hall, 1999). o processo de modernização, a modernidade e a globalização são, na verdade, misturas complexas de fenômenos que, contradito- riamente, geram disjunções e novas formulações sociais e culturais (Giddens, 1995). 16 esta perspectiva abre espaço para interpretar a luta pela terra como a busca e a construção de “heterotopias” (Foucault, 1984), ou seja, a constituição de “outros lugares” como espaços, simultaneamente reais e imaginários, contestatórios de valores estabelecidos pela sociedade ocidental contemporânea. 17 ainda segundo martins, o processo de re-socialização modernizadora nos acampa- mentos resulta que, nos assentamentos “... a sociedade é literalmente reinventada, abrindo-se para concepções mais largas de sociabilidade e, ao mesmo tempo, fortalecendo as concepções ordenadoras da vida social provenientes do familismo antigo” (2000, p. 47). 18 os relatos biográficos – como verdadeiros itinerários de deslocamentos em busca de sobrevivência ou simplesmente “sintaxes espaciais” (Certeau, 2000) – revelaram uma série de desejos, imagens, sonhos e representações que desvelam a realidade social e política da luta pela terra em Goiás, influenciadas pelos processos ampliados de transformações na sociedade brasileira. 19 Segundo esses autores, a vida cotidiana é partilhada com outros na situação face a face. esta é a experiência mais importante – o “protótipo da interação social” – quando as expressões de uma se orientam na direção da outra pessoa, criando uma “reciprocidade de atos expressivos” (Berger e luckmann, 1998, p. 47). 47 A lutA PelA terrA e A con Strução de heterotoP iAS * os debates e reflexões recentes, especialmente a partir
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