Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Biogeografia (Aula 02 - 29/07) Naturalistas viajantes O naturalista viajante é aquele que nos séculos ⋆ XVIII e XIX dedicava-se ao estudo da história natural, ou seja, da natureza, compreendendo os astros, o ar, os animais, os vegetais e minerais da superfície e da profundidade da terra. Enquanto os naturalistas-viajantes do período colonial eram exclusivamente súditos da Coroa portuguesa, encarregados de revelar as riquezas e utilidade dos recursos naturais, os que percorreram o Brasil no século XIX, após 1808, vinham de diversas regiões da Europa e estavam empenhados na observação e classificação dos homens e de suas línguas considerados entre as espécies da natureza. Ligados à nobreza ou a sociedades científicas, percorriam o solo brasileiro num esforço conjunto e planejado de revelar, colecionar e classificar os reinos naturais da América. A História Natural bu�oniana De acordo com Buffon ,o objeto de estudo da História Natural é um vasto conjunto de objetos naturais, no qual está incluído toda variedade de minerais,plantas e animais, tanto os que se encontram nas entranhas da terra, no fundo das águas e sobre a superfície terrestre. Em relação a esse ponto, Buffon é herdeiro de uma longa tradição que remonta a Aristóteles de Estagira (384-322a.C.) A biogeografia traducianista e o livro do Gênesis → Que o patriarca Noé levará em sua arca, por ordem divina, sete casais de cada espécie de animais puros e um casal de cada espécie de animais impuros, a fim de salvá-los do dilúvio (que, diga-se preliminarmente, foi quase sempre aceito como um fenômeno universal, e não local) foi questão mais ou menos pacífica entre os pensadores e filósofos naturais da Europa cristã, até pelo menos o século XVIII. Cessado o cataclismo e escancarada a porta da arca, esses animais, obedecendo a ordem de Deus (crescei e multiplicai-vos), voltaram a povoar o mundo (Browne, 1983); → Mais do que um episódio bíblico, esta foi a primeira teoria biogeográfica proposta e a que mais tempo permaneceu vigente. Seus postulados básicos (considerem-se também os episódios da criação dos animais no Jardim do Éden e da Torre de Babel) são: existe um único centro de origem da biota, um ponto bem definido da face da Terra (o Éden o centro de origem e dispersão primordial, o Ararat e Babel centros secundários); desse centro de origem animais (e homens) dispersam-se para povoar o mundo; durante a dispersão radial, podem eles sofrer mudanças em seus caracteres somáticos, provocadas pela influência direta do meio e herança desses caracteres adquiridos (assim se teriam originado as diferenças dos diversos grupos de raças humanas, por exemplo) → Como toda teoria científica, entretanto, acabou esbarrando em certos fatos, que serviram para testá-la. Exemplificando, teria Noé transportado todas as espécies de animais originalmente criadas por Deus no Jardim do Éden ou apenas as espécies de vertebrados terrestres bissexuadas de fecundação cruzada? Os animais aquáticos não necessitariam ser levados pelo patriarca, nem aqueles nascidos por geração espontânea (como então se acreditava) depois do dilúvio, para estes últimos, havia grande quantidade de matéria orgânica em decomposição, de cuja fermentação poderiam surgir (Papavero, 1992, p. 51); → Em sua obra De Civitate Dei (A cidade de Deus), santo Agostinho (354-430) chegou à conclusão de que Noé teve que transportar em sua arca todas as espécies de animais, sem exceção. Foi levado a isto por duas razões. A primeira é que, para os maniqueístas seus contemporâneos, Deus não havia criado os animais e as plantas, seres destinados à corrupção e à morte; Deus criara apenas os seres do universo supralunar aristotélico (como o sol, a lua, os planetas e as estrelas fixas), o éter, os anjos e a alma humana coisas perfeitas, 1 belas, imperecíveis. Todo o resto, destinado à degeneração e à corrupção, perecível, só podia ter sido criado por um poder maligno oposto a Deus. Ora, se santo Agostinho admitisse que Noé deixará fora da arca certo número de espécies de animais, os maniqueístas aproveitar-se-iam imediatamente disso para corroborar suas idéias de que essas espécies não haviam saído das mãos do Criador e que teriam morrido juntamente com os pecadores, afogadas pelo dilúvio. A segunda razão, e a mais importante, era que as espécies de animais levadas por Noé simbolizavam os povos da Terra: todas as nações tinham o direito de encontrar a salvação na nova arca representada pela Igreja cristã. Noé teve que transportar casais de todas as espécies, mesmo das aquáticas e das nascidas por geração espontânea, para simbolizar que nenhum povo, por menor e mais insignificante que pudesse parecer, seria deixado fora da Igreja, justamente cognominada de católica (termo que em grego significa para todos, universal); O traducianismo biogeográfico do Santo Agostinho e o problema das barreiras à livre dispersão ⇒ Uma vez isso resolvido, tem-se que enfrentar um problema decorrente: como podem animais que não conseguem atravessar grandes extensões de mares, por não serem capazes de voar ou nadar, povoar as ilhas oceânicas e talvez outros continentes distantes do Velho Mundo? Este problema, o das barreiras à livre dispersão, preocupou sempre os biogeógrafos dispersionistas ou traducianistas, e Santo Agostinho foi o primeiro a tentar solucioná-lo. Ainda em A cidade de Deus no capítulo intitulado Questão acerca das ilhas remotas, se elas receberam sua fauna a partir dos animais que foram preservados na arca durante o dilúvio , concluiu-se que os animais que sabiam nadar ou voar passaram às ilhas por seus próprios meios. Os que tinham alguma utilidade para os homens (na caça, na agricultura etc.) foram por estes transportados em canoas; ⇒ A grande maioria das espécies, contudo, não se enquadra em nenhuma dessas duas categorias; para elas, o grande doutor da Igreja só teria visto uma solução: Não se pode negar que, pela intervenção dos anjos, esses seres (os animais) tenham sido transferidos (para as ilhas oceânicas remotas) pela ordem ou permissão de Deus. Santo Agostinho postulava assim, pela primeira vez, agentes externos que promoviam a dispersão a longas distâncias dos animais, saltando barreiras naturais. Essa solução é recorrente na literatura traducianista; vamos encontrá-la, só para citar alguns autores, em Lineu (1744), De Candolle (1821) e Charles Darwin (1859) A questão dos antípodas ⍖ Aristóteles havia explicado, em Meteorológica, que a Terra era dividida em cinco zonas climáticas latitudinais, duas glaciais, próximas aos pólos, duas temperadas, e uma zona média tórrida, situada no equador, tão quente e sáfara que não possuía nem águas nem pastagens. Assim, as duas zonas temperadas (norte e sul), aptas para serem habitadas, não podiam ter comunicação alguma entre si, inexoravelmente separadas pela zona tórrida. Endossando a opinião de outros sábios gregos, Aristóteles acreditava que havia também terras no hemisfério sul do globo terrestre, o que garantia certa simetria e o próprio equilíbrio de nosso planeta. Seriam essas terras do hemisfério sul habitadas por homens e animais? É coisa com que os antigos não chegaram a se preocupar, pelo que consta; ⍖ Santo Agostinho, que aceitava a esfericidade da Terra, combateu a idéia de que homens pudessem viver do lado oposto do mundo, dizendo que não falam as Escrituras de tais descendentes de Adão. Para ele, Deus não permitiria que ali vivessem, pois não teriam acesso ao cristianismo. Como poderiam os apóstolos de Cristo (que viera ao mundo no hemisfério norte) atravessar a zona tórrida para chegar a esses antípodas, a fim de levar-lhes a luz do Evangelho? Pois estava escrito: A sua voz estende-se por toda a Terra e suas palavras até as extremidades do mundo (Salmo 18: 5), observação reiterada no Novo Testamento (Epístola aos Romanos 10: 18): Por toda a Terra se espalhou a sua voz e até a extremidade da Terra chegaram suas palavras. ⍖ O bispo de Hipona desenvolveu assim sua recusa em aceitar a existência de populações humanas no 2 hemisfério sul,tendo como premissa a leitura dos textos sagrados. Para santo Agostinho, se todos os povos da terra descendiam de Adão, através dos filhos de Noé; se todas as raças provinham de Babel; se os apóstolos foram enviados a pregar a palavra de Deus a todos os povos sem exceção (povos simbolizados pelas espécies de animais salvas na arca de Noé); se não há no Novo Testamento notícia alguma de que os apóstolos tenham ido pregar para os antípodas; se o Mar Oceano (o Atlântico) é impossível de ser navegado; se qualquer ser material é literalmente incinerado ao passar pela zona tórrida do globo; então só se pode chegar a uma única conclusão verdadeira: não pode haver seres humanos no lado oposto da Terra (supondo-se, obviamente, que a Terra tenha um lado o posto!) ⍖ Raciocínio semelhante poderia ser feito em relação aos animais. Para chegarem ao hemisfério sul, aqueles animais que não possuem meios próprios para ultrapassar barreiras geográficas, e mesmo os que podem voar ou nadar (no caso de distâncias muito grandes), teriam que ser transportados por anjos; mas a zona tórrida incinerá-los-ia inexoravelmente, uma vez que só os anjos podiam passar incólumes por ela, visto não serem materiais; ⍖ Conclui-se, necessariamente, por razões físicas e teológicas, que o hemisfério sul tinha que ser desabitado. Houve uma única criação, no Jardim do Éden: isto era indiscutível. Todos os animais e homens tinham que se dispersar a partir de um único ponto no hemisfério norte; ⍖ E plantas, poderiam existir no hemisfério sul? Por esse tempo (e até muitos séculos depois) acreditava-se que as plantas eram originadas, em sua esmagadora maioria, por geração espontânea. Prova é que, quando Noé soltou a pomba da arca, esta trouxe de volta um ramo, que a tradição atribuiu erroneamente a uma oliveira. Como explicar, se o dilúvio havia sido universal, e se havia assolado a face do planeta, a existência dessa planta verdejante? Por nascerem espontaneamente, depois da baixa das águas do dilúvio... Por esta razão Deus não ordenara a Noé que levasse também plantas em sua arca, para salvá-las do cataclismo, por ser desnecessário; O impacto da descoberta da fauna americana pelos europeus ➙ A descoberta, pelos europeus, de animais e populações humanas no Novo Mundo, notadamente na América do Sul, foi o mais severo teste que a biogeografia traducianista de origem bíblica teve que arrostar. Esse fato obrigou os pensadores a formular novas hipóteses ad hoc para imunizar a teoria; ➙ Um dos resultados mais espetaculares do ciclo dos descobrimentos em fins do século XV e início do XVI foi a derrocada da antiqüíssima ideia da zona tórrida. O périplo da África e o descobrimento do Brasil, essas esplêndidas realizações de Portugal, demonstraram a inexatidão desse conceito. Permitia que os animais oriundos da arca de Noé se dispersassem, a partir do Ararat, até chegar ao Novo Mundo. O problema era explicar como ali foram ter, e como puderam atravessar distâncias tão espantosas. A ideia ingênua de que anjos os tivessem transportado não tinha voga. Explicações mais naturais precisavam ser encontradas; ➙ O acúmulo gradativo de informações sobre plantas e animais, publicadas por viajantes e cronistas que visitavam as plagas do novo mundo descoberto ou através de suas figuras surgidas na cartografia (George, 1969), acrescentou mais um problema para os traducianistas: por que muitas espécies americanas eram tão distintas das do Velho Continente? Algumas (como os marsupiais, só para mencionar um exemplo) nem mesmo tinham qualquer semelhança com os animais do mundo antigo. Até as espécies marinhas (que supostamente podiam nadar e se deslocar do Velho ao Novo Continente) eram distintas das da Europa, como já em 1504 notava Binot Paulmier de Gonneville (DAvezac, 1869): la mer poissoneuse: les espèces dissemblables de celles d Europe (o mar venenoso: as espécies dessemelhantes daquelas da Europa); A imunização do traducianismo bíblico 3 ⤳ Para salvar o traducianismo biogeográfico vigente, várias hipóteses ad hoc foram propostas. A Atlântida, uma ponte entre o Velho e o Novo Mundo, através da qual poderiam ter passado a pé enxuto os animais descendentes dos indivíduos transportados por Noé, foi uma das soluções apresentadas, tendo essa ilha, entretanto, dimensões muito maiores do que se supunha. Foram adeptos dessa hipótese, entre outros, Girolamo Fracastoro (1530), Francisco López de Gómara (1553) e Agustín de Zárate (1555; ⤳ A improcedência dessa hipótese foi brilhantemente demonstrada pelo genial jesuíta padre Joseph D’Acosta (1590), que a substituiu por um hipotético estreito (o então chamado estreito de Anian, mencionado por Marco Polo, hoje estreito de Bering) que permitiria aos animais (e homens) oriundos da Ásia passarem à América do Norte e desta continuarem sua dispersão rumo ao sul, até o cabo Horn (Browne, 1983; Papavero, 1991; Papavero, Llorente e Espinosa, 1995; Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997). Essa brilhante hipótese de D’Acosta persistiu até alguns anos atrás. Persistia, porém, o problema das diferenças morfológicas e do número sempre crescente de espécies que iam sendo descritas e por vezes registradas pelo traço dos viajantes e naturalista; ⤳ Walter Raleigh (1614) aventou uma explicação simplesmente engenhosa para evitar esses óbices. Ponderou, inicialmente, que nem todas as espécies de animais conhecidas já nessa época poderiam ter cabido nas exíguas dimensões da arca. Para Raleigh, a questão estava em que, na arca, foram salvas apenas as espécies originais, criadas por Deus no Jardim do Éden, na semana da Criação. Estas eram poucas, e couberam facilmente na embarcação de Noé. Encalhada a arca no Ararat, e aberta sua porta, os animais começaram a emigrar a partir desse ponto, reproduzindo-se não só dentro de sua própria espécie, mas também hibridizando e dando origem a novas espécies (combinações das primitivas criadas por Deus), que, por sua vez, também iriam se transformando à medida que se afastam do centro de origem, por influência do meio, herdando esses caracteres adquiridos. Ora, quanto mais longe do Ararat, mais diferentes deveriam ser, pois teriam mais tempo para hibridar e degenerar, o que era confirmado pelos relatos de naturalistas e viajantes na América do Sul o ponto mais distante possível do Ararat, onde se encontravam animais espantosamente distintos, por vezes monstruosos, como capivaras, tamanduás, preguiças, marsupiais, tapires e assim por diante; ⤳ Essa hipótese de Raleigh serviu de inspiração para o jesuíta Athanasius Kircher, que, em sua obra intitulada Ar ca Noë (1675), admitiu que o patriarca transportara apenas umas poucas espécies de vertebrados os bissexuais de fecundação cruzada, praticamente só alguns mamíferos e aves. Não levará o patriarca nem os aquáticos nem os que nasciam por geração espontânea (que eram a grande maioria). Havia assim espaço mais que suficiente na arca para todas as espécies de mamíferos e aves originalmente criadas por Deus, as únicas que incorreram no perigo de se afogar. Dessas espécies haviam surgido todas as outras, por meio de cópula promíscua (hibridação) e de diferenciação ulterior por sua exposição, no caminho da dispersão, a diferentes ambientes. Assim da cópula promíscua do camelo com o pardo, surgirá o camelopardo ou girafa; do camelo com o pardal, o avestruz; do leão com o pardo, o leopardo; do leão com a águia, o grifo etc. (Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997); O criacionismo no século XVII ⏯ Entrementes, crescia assustadoramente o número das espécies novas assinaladas no Novo Mundo. As antigas idéias sobre hibridação de espécies animais iam sendo cada vez mais restritas a raros casos híbridos interespecíficos, quando existiam, eram estéreis, o que chegou a invalidar as conjeturas de Raleigh e Kircher. Como explicar, pois, a imensa diversidade de formas animais encontrada nas Américas? E por que eram tão diferentes das do Velho Mundo? ⏯ O pensador e diplomata francês Isaac de La Peyrère (1594- 1676) discorda frontalmente do pensamentotraducianista reinante, duvidando que os animais pudessem migrar tão amplamente como sugeria a filosofia corrente. Tudo isso se baseava ainda no pressuposto de que o dilúvio noético foi universal. Recorrendo à sua própria 4 exegese de um trecho mais ou menos obscuro da Epístola aos Romanos (5: 12-14), que reza: Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado neste mundo, e pelo pecado a morte, e assim passou a morte a todos os homens, (por aquele homem) no qual todos pereceram. Porque até a lei o pecado estava no mundo; porém, não havendo lei, o pecado não era imputado. Todavia, a morte reinou desde Adão até Moisés. Assim, mesmo sobre aqueles que não pecaram por uma transgressão semelhante à de Adão, Lá Peyrère especulou que o dilúvio não fora universal, interessando apenas a uma parte do Oriente Médio; que Adão não fora o antepassado de todos os homens, mas só dos judeus; que Adão fora precedido por muitas nações, que viveram na China, na América, na Groenlândia e no misterioso continente do Sul. Essas nações não foram destruídas pelo dilúvio; ⏯ Inaugurou, para outros autores, uma nova era de hipóteses, ora destinadas a explicar a distribuição das espécies de animais nas distintas partes do mundo. Deus criara-as separada e simultaneamente, cada qual em sua própria região. Não houvera um único centro de origem e dispersão no Jardim do Éden; não fora necessário levar todas as espécies dentro da arca de Noé. Se na realidade existiram Noé e sua arca, o dilúvio foi um acontecimento local, no Oriente Médio; ⏯ E dessa forma, Deus criara, desde o início, e simultaneamente, as regiões biogeográficas, cada qual com suas próprias espécies. Entre outros, defenderam essas idéias Abraham van der Mijl (De Origine animalium et migratione populorum, 1667; traduzida pela primeira vez, para o francês, por Chiquieri et alii, 1998); um anônimo (De Diluvii universalitate dissertatio pr olusoria, 1667; traduzida pela primeira vez, para o francês, por Chiquieri, 1999); Edward Stillingfleet (Origines sacrae, or a rational account of the growth of Christian Faith, 1662); Matthew Poole (Synopsis criticorum aliorumque Sacrae Scripturae interpretem, 1669); e Jean Le Clerc (Commentarii philologici et paraphrases in Veterum Testamentum , 1690-1731) (Papavero e Pujol-Luz, 1997); Ulteriores progressos da biogeografia ❖ Nos séculos XVIII e XX, sucederam-se várias teorias, criacionistas e traducianistas, que não podemos examinar neste curto espaço. Entre as traducianistas, situam-se as de Lineu (De telluris habitabilis incremento, 1744; Papavero e Pujol-Luz, 1999) e a de Buffon (1778; Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997), incluindo a de Darwin (propostaem A origem das espécies, 1859). No século XX, surgiria a revolucionária teoria da biogeografia por vicariância, a maior revolução já ocorrida dentro dessa ciência. Charles Darwin Alfred Russel Wallace× ↻ Uma leitura dos artigos publicados pelos dois naturalistas em 1858 mostra que ambos fizeram referência à luta pela existência que existe na natureza, onde o indivíduo melhor adaptado sobrevive e deixa descendentes, enquanto que o menos adaptado deve sucumbir e sua variedade ou espécie entrar posteriormente em extinção. Verifica-se também que, embora Wallace não tenha utilizado a expressão “seleção natural”, referiu-se a um princípio cuja conotação é a mesma daquele proposto por Darwin. Além do artigo de 1858, Darwin e Wallace publicaram nas décadas seguintes outras obras onde suas idéias sobre o princípio da seleção natural foram ficando mais claras e abrangentes; ↻ No entanto, sabe-se que houve pontos de discordância. De acordo com Malcolm Jay Kottler, as raízes da divergência entre Darwin e Wallace estavam na diferença de opinião quanto às leis da herança das variações e suas relações com a seleção natural. O próprio Darwin havia reconhecido em uma carta datada de setembro de 1868 dirigida a Wallace: “Eu penso que nós partimos de noções fundamentais de herança diferentes”. Wallace acreditava que, de modo geral, as variações que apareciam em um sexo eram herdadas igual-mente por ambos os sexos mas que a seleção natural poderia conver-ter esta 5 herança em herança limitada ao sexo, produzindo dimorfismo sexual; ↻ Tanto Darwin como Wallace consideravam que a seleção artificial feita pelo homem nos animais e plantas é extremamente importante. A ela atribuíam o aperfeiçoamento das raças domésticas. Outro importante aspecto considerado pelos dois autores é a constante luta pela existência relacionada à busca pelo alimento, contra os inimigos e as forças da natureza, ou seja, o meio (Carmo, capítulo 2, seção 2). Eles concordavam que a luta entre as espécies poderia ocorrer tanto entre indivíduos de uma mesma espécie como entre indivíduos de espécies diferentes. No primeiro caso, ela seria mais severa e mais relevante para o processo evolutivo. Os dois autores comentaram também sobre o aspecto ético da luta pela existência; ↻Wallace e Darwin atribuíram um papel importante à seleção natural ou sobrevivência do mais apto concordando que esta ocorre devido ao grande poder de aumento dos organismos que existem na natureza. Para ambos, a seleção natural atua sempre no sentido de preservar as variações que forem úteis para a espécie. Entretanto, Wallace explicitou que a preservação das variações que fossem benéficas para o organismo não implicava em qualquer lei que preconizava um progresso na organização dos indivíduos, como aparece em Lamarck, por exemplo. Embora muitas vezes ocor-resse no processo evolutivo um aumento na organização, formas mais simples, como as serpentes também poderiam ser preservadas; ↻ Wallace não concordava com a explicação oferecida por Darwin para as diferenças sob o ponto de vista da ornamentação, estrutura, cor existentes entre machos e fêmeas serem devidas quase que unicamente à seleção sexual, por conferirem ao macho superioridade em relação à beleza, defesa, etc. e serem transmitidas somente à descendência masculina. Para Wallace, tais diferenças podiam ser explicadas pela seleção natural estando relacionadas à defesa, proteção ou reconhecimento pela própria espécie, não dependendo, portanto, da escolha da fêmea; ↻ Wallace discordava de Darwin que o instinto dos animais tivesse surgido a partir do acúmulo de variações que tivessem utilidade para a espécie, selecionadas pela seleção natural, e que estas fossem herdadas; ↻ A posição adotada por Darwin em relação à origem da natureza moral e das faculdades mentais do homem, através de modificações graduais e desenvolvimento a partir de animais inferiores, sob a ação da seleção natural, não era compartilhada por Wallace. Ao contrário de Darwin, que acreditava que todas as variações que ocorriam no homem “eram induzidas pelas mesmas causas gerais e governadas pelas mesmas leis gerais e que estavam sujeitas à ação da Seleção Natural”; ↻ Tais características não poderiam ter sido desenvolvidas através da ação da seleção natural. Isso o levou a crer que havia uma diferença entre a origem das características físicas e mentais do homem em relação àquelas de outros animais. Assim, ele pensava que a presença de tais características não podia ser explicada pela seleção natural, como pensava Darwin; O Canto do Dodô ⦽ É cada vez mais evidente o desafio em que vive o mundo moderno: enfrentar a onda crescente de extinção de espécies, comunidades e ecossistemas que compõem a biodiversidade, exacerbada pela atuação humana. Por conta de ações como o desmatamento,redução de habitats, introdução de espécies exóticas, homogeneização genética de recursos agrícolas, superexploração de recursos naturais, entre outras,ambientes antes contínuos estão se tornando cada vez mais fragmentados, formando para as espécies remanescentes o que os ecólogos chamam de “ilhas de habitat" nos continentes; ⦽ A “insularização” ou o isolamento de espécies e comunidades biológicas, conseqüências da fragmentação crescente de habitats, e o resultante aumento de sua vulnerabilidade à extinção, são os temas centrais abordadosno livro O canto do Dodô,de David Quammen; 6 ⦽ Dodô (Raphus cucullatus) uma espécie de ave agigantada que viveu nas ilhas Maurício, com características típicas de evolução e distribuição insulares, levada à extinção pela ação direta e indireta dos colonizadores portugueses e holandeses; ⦽ A idéia do livro consiste em demonstrar como os estudos de biogeografia de ilhas foram fundamentais para a formulação da teoria da evolução proposta por Darwin e Wallace na segunda metade do século XIX e para a consolidação da biologia enquanto disciplina específica, diferenciada de outras ciências naturais.Foram fundamentais também para a construção recente de campos científicos mais aplicados, como a ecologia e a biologia da conservação, essa última voltada para enfrentar o grande desafio moderno de conservar e proteger a biodiversidade em um mundo cada vez mais fragmentado; ⦽ No início do livro, o termo biogeografia é definido como “a ciência que se ocupa de onde os animais e plantas estão, onde não estão e por que” (p.17). O autor dedica um capítulo inteiro – “O homem que conhecia ilhas” - a relatos relacionados ao naturalista Alfred Russel Wallace, um dos pioneiros na observação da distribuição de espécies em ilhas e, em sua opinião, um dos maiores biogeógrafos de todos os tempos. Quammen considera uma injustiça histórica que Wallace não seja amplamente reconhecido como formulador da mais importante teoria da biologia, desenvolvida por ele e Charles Darwin – a teoria da evolução. Os dois chegaram a essa teoria na mesma época e a partir de observações sobre a distribuição de espécies em ilhas em diferentes contextos; ⦽ Quammen chama a atenção do leitor para o processo de especiação em ilhas, ou seja, o processo pelo qual uma espécie se divide em duas ou mais espécies novas, ocasionando a diversificação. Isso teria levado Darwin e Wallace a perceber que as espécies variam no espaço e no tempo, pressuposto básico da evolução. Quammen aproveita essa parte do livro para definir alguns conceitos importantes da biologia evolutiva e explicar como essa disciplina se desenvolveu na primeira metade do século XX a partir da contribuição da genética e, sobretudo, da proposição da “síntese moderna”, que originou o neodarwinismo; ⦽ O que teria causado a extinção do dodô não seria apenas a ação humana direta, como a sobre caça,mas diversas ações indiretas que levam à raridade da espécie. Como diz Quammen, “a raridade é a pré-condição para a extinção”. Ele classifica a raridade como perigosa, pois as populações pequenas são mais susceptíveis a tragédias determinísticas (essencialmente decorrentes de atividades humanas) e estocásticas(não previsíveis). Além disso, essas populações apresentam forte probabilidade de, no processo natural de dinâmica populacional, oscilar até zero. Dessa forma, a extinção de espécies em ilhas é muito mais frequente que no continente. A tendência observada é de que, quanto menor a ilha, maior a incidência de extinções locais. A raridade, no entanto, não pode ser considerada igual para todas as espécies, pois a estrutura social e as características ecológicas determinam diferentes limiares de estabilidade populacional para cada espécie; ⦽ Em ilhas ou ambientes isolados, as espécies normalmente experimentam uma intensificação nos processos de migração, especiação e extinção, o que faz com que o nível de diversidade se mantenha razoavelmente constante ao longo do tempo, apesar da ocorrência de extinções.Embora o número de espécies seja relativamente estável, há nesses ambientes uma taxa elevada de substituição ou turnover de espécies, o que acarreta em modificação constante no conjunto de espécies que ali habitam; ⦽ Com a teoria da biogeografia de ilhas, esses parâmetros podem ser medidos, experimentados e comparados, o que levou a ecologia ao rol das ciências que permitem certa previsibilidade de situações futuras; ⦽ No entanto, o fator mais importante da teoria da biogeografia de ilhas foi a percepção de que seus princípios eram aplicáveis não somente para ilhas reais, mas para fragmentos de habitats sujeitos a diferentes níveis de isolamento, cada vez mais 7 freqüentesno mundo moderno, a partir da expansão humana em praticamente todos os ecossistemas da Terra. Com a formulação dessa teoria, os biólogos começaram a perceber que as ações do homem sobre a natureza estavam causando às espécies, comunidades e ecossistemas da biodiversidade um processo de “insularização” nos continentes; ⦽ A teoria de biogeografia de ilhas e os estudos sobre decaimento de ecossistemas influenciaram também a criação da nova disciplina de biologia da conservação, sobretudo fornecendo as bases teóricas para modelar reservas e áreas de proteção da biodiversidade. Por outro lado, muita polêmica foi gerada sobre como seriam as formas mais eficientes de conservação em contextos diferenciados, tendo se formado diferentes facções de pesquisadores e ambientalistas; ⦽ Na finalização do livro, Quammen ressalta a diferença entre o nível padrão de extinção de espécies ao longo do tempo geológico e o nível que ocorrerem eventos de extinção em massa, que acontecem quando a taxa de extinção ultrapassa em mais que o dobro a taxa de especiação e acarreta perdas significativas de biodiversidade. Na opinião de grande parte dos cientistas naturais, estamos vivenciando um evento de extinção em massa, de proporções nunca vistas antes e, se continuarmos nesse ritmo, a tendência é perder grande parte da diversidade, que, entre outras coisas, fornece suporte de sobrevivência à espécie humana; ⦽ O canto do dodô poderia ser considerado um instrumento eficaz para conscientizar o público geral sobre a necessidade de mudança de atitude frente à natureza, de forma a garantir a manutenção da biodiversidade em níveis aceitáveis e mesmo a sobrevivência da espécie humana no longo prazo. 8
Compartilhar