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O problema da síntese discursiva: a Crítica da Razão Pura e o método crítico1 The problem of discursive synthesis: the Critique of Pure Reason and the critical method Ana Letícia Arelaro2 Resumo: A Crítica da Razão Pura, na Doutrina Transcendental do Método, caracteriza o método crítico da filosofia como um método discursivo que recorre, em suas provas, a uma síntese transcendental por meros conceitos. Assim, se o método discursivo proposto pela Crítica prescinde da intuição, como ele se distingue da análise de conceitos própria da metafísica dogmática? O problema central está em compreender como é possível, para a filosofia crítica, uma síntese transcendental por meros conceitos, uma vez que a própria Crítica da razão pura afirma, em diversos momentos, que todo conhecimento sintético é constituído pelo entrelaçamento entre intuição e conceito. Palavras-chave: Kant; Crítica da Razão Pura; Método transcendental; Síntese discursiva. Abstract: The Critique of Pure Reason in the Transcendental Doctrine of Method, characterizes the critical method of philosophy as a discursive method that uses in its proofs a transcendental synthesis by mere concepts. Thus, if the discursive method proposed by the Critique dispenses with intuition, how is it distinguished from the analysis of concepts proper to dogmatic metaphysics? The central problem is to understand how it is possible to the critical philosophy the transcendental synthesis by mere concepts, since the Critique of Pure Reason itself affirms, at different times, that all synthetic knowledge is constituted by the intertwining between intuition and concept. Keywords: Kant; Critic of Pure Reason; Transcendental method; Discursive Synthesis. * * * 1 Este artigo toma como base e desenvolve a pesquisa que apresentei na Monografia de Conclusão de Curso em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos; agradeço, portanto, ao CNPq pelo financiamento da pesquisa; ao meu orientador Paulo Licht dos Santos; aos pareceristas Marcos César Seneda e Francisco Prata Gaspar, pelos profícuos comentários feitos à Monografia, que muito contribuíram para o presente texto. 2 Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: analeticia.arelaro@gmail.com. mailto:analeticia.arelaro@gmail.com O problema da síntese discursiva Introdução ao problema: síntese a priori no método discursivo da Crítica da razão pura Na Doutrina transcendental do método da Crítica da razão pura, Kant propõe uma síntese por conceitos como método de prova para a filosofia crítica: “Existe uma síntese transcendental por meros conceitos, de fato, que serve apenas à filosofia” (KrV, A719/B747). Não é paradoxal que Kant proponha uma síntese para a filosofia que, não obstante, seja por “meros conceitos”? Pois, se a Crítica pretende determinar se é possível uma metafísica como ciência, ainda no Prefácio B, Kant afirma que a metafísica tradicional é "um conhecimento especulativo da razão completamente isolado, que se eleva por completo para além dos conhecimentos da experiência por meio de meros conceitos3 (não pela aplicação dos mesmos à intuição, como faz a matemática)" (KrV, BXIV)4; e em seguida Kant afirma, "não há nenhuma dúvida, portanto, de que seu procedimento foi até aqui um tatear às cegas e, o que é pior, um tatear entre conceitos puros" (KrV, BXV). Kant assim nos mostra, já no Prefácio, que o erro da metafísica dogmática foi o de tatear entre meros conceitos, sem reportá-los a uma intuição correspondente. Se é assim, seria possível alguma metafísica como ciência? Essa pergunta nos leva a uma pergunta anterior: como a própria Crítica deve proceder em suas provas para poder responder a essa pergunta de modo não dogmático? Para responder a essa última questão (sobre o método de prova), é preciso antes compreender a primeira (sobre o erro da metafísica dogmática). Kant, também no Prefácio B, toma a física e a matemática como paradigmas de conhecimento científico, em razão tanto da universalidade e da certeza apodítica de seus conhecimentos, quanto do consenso de seus estudiosos. Há, contudo, uma diferença entre a matemática e a física, pois a física possui uma parte empírica, diferente da matemática que é completamente pura (KrV, BX). Diante disso, poderia parecer que a 3 ‘Meros conceitos’ nesta citação do Prefácio é a tradução, feita por Costa Mattos, de ‘bloβe begriffe’; na tradução de Santos e Morujão é traduzido como ‘simples conceitos’. Na “Doutrina do Método”, quando Kant diz: “Existe uma síntese transcendental por meros conceitos” (KrV, A719/B747), Costa Mattos traduz ‘aus lauter Begriffen’ também como ‘meros conceitos’, enquanto Santos e Morujão traduzem como ‘puros conceitos’. 4 A Crítica da Razão Pura é citada segundo as edições A (1781) e B (1787); demais citações das obras de Kant segundo a Akademie Ausgabe (AA). Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 97 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva matemática seria o modelo mais adequado para pensarmos um método para a filosofia, uma vez que ambas são conhecimentos não empíricos, inteiramente puros. Contudo, na Introdução à Crítica, Kant já fornece um indício de que a metafísica não pode contar com uma intuição tal como é requerida pela matemática. A condição necessária para todo conhecimento científico é exposta na seção V da Introdução: Mesmo que se considere a metafísica como uma ciência que até aqui foi apenas ensaiada, mas que é indispensável em virtude da natureza da razão humana, ela tem de conter conhecimentos sintéticos a priori e, portanto, não lida somente com a mera decomposição e o esclarecimento analítico de conceitos que fazemos das coisas a priori, mas nós queremos antes ampliar nossos conhecimentos a priori e, para isso, temos de empregar princípios tais que acrescentem ao conceito dado algo que não estava nele contido (KrV, B18). Para que a metafísica não lide com meros conceitos vazios, Kant diz que princípios devem ser empregados para acrescentar ao conceito dado algo que não estava nele contido. No entanto, é curioso que Kant não mencione aqui nem o espaço nem o tempo, pois, em diversas passagens da Crítica, Kant afirma que intuições sensíveis e conceitos precisam entrelaçar-se para que haja conhecimento objetivo. Na Lógica transcendental temos uma passagem bastante conhecida que explicita isso. A intuição e os conceitos, portanto, constituem os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição correspondentes de algum modo a eles, nem uma intuição sem conceitos, podem fornecer um conhecimento. [...] Sem a sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem o entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas (KrV B74/75).5 Como entender, portanto, que a filosofia crítica - que deve decidir se umametafísica é possível - precise empregar “princípios tais que acrescentem ao conceito dado algo que não estava nele contido”, sem que a intuição possua um papel neste uso da razão? Qual o método de prova que a crítica deve adotar sem se ater à mera análise de conceitos? Essa exigência de dispor de uma intuição não se aplicaria também à 5 No progressos da metafísica, Kant afirma algo bastante parecido: “se deve haver conhecimento sintético a priori, devem então dar-se também intuições e conceitos a priori” (FM AA 20: 25). Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 98 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva própria Crítica da razão pura que investiga a possibilidade de uma metafísica como ciência? Pois a Crítica também pretende ser uma ciência da razão pura: “podemos considerar como uma propedêutica do sistema da razão pura, uma ciência que se limite simplesmente a examinar a razão pura, suas fontes e limites.” (KrV, B25). Mas se toda e qualquer ciência requer uma intuição, como poderia a Crítica da razão pura pretender ser ciência? A necessidade de dispor de uma intuição, porém, não se aplica à Crítica.De fato, logo no início Disciplina da razão pura - presente na Doutrina do método - Kant diferencia o método filosófico do método matemático do seguinte modo: "O conhecimento filosófico é o conhecimento da razão por conceitos, e o matemático por construção de conceitos. Construir um conceito, porém, significa expor a intuição a priori a ele correspondente" (KrV, A713/B741). Kant mostra aqui que a filosofia não pode imitar o método matemático, pois não pode construir conceitos a partir da intuição a priori. Em seguida, Kant diz que a filosofia "se atém apenas aos conceitos universais", e que a matemática "corre logo para a intuição, onde considera o conceito in concreto, ainda que não empiricamente." (KrV, A715/B743). Por essa passagem, portanto, temos que a filosofia, no seu método, não pode jamais propor alguma construção de conceitos.6 Essa tese kantiana receberá a objeção de Schelling (2001, p.89) que, no seu artigo Sobre a construção na filosofia, afirma que Kant “concebe o método demonstrativo na filosofia apenas no espírito do dogmatismo e como análise lógica”. Schelling, ao mencionar este problema relativo ao método na filosofia transcendental, defende que a filosofia deve trabalhar com a construção de conceitos para sair da mera análise vazia. Ao comentar o trecho da Disciplina da razão pura em que Kant compara o geômetra com o filósofo7, Schelling diz: Ao mesmo tempo se seguiria dessa passagem que o filósofo, segundo Kant, não poderia operar com os conceitos, aos quais está limitado, de 6 Na Lógica de Viena Kant também diferencia o conhecimento filosófico e o matemático enquanto conhecimento por conceitos e por construção de conceitos (Log AA 09: 831); e, tal como na Doutrina transcendental do método, também caracteriza as verdades matemáticas como intuitivas e as filosóficas como discursivas (Log AA 09: 857; 892). 7 “Suponhamos que se dê ao filósofo o conceito de um triângulo e se deixe que ele descubra do seu modo como a soma dos seus ângulos se comporta em relação ao ângulo reto. [...] Ele pode decompor e esclarecer o conceito de uma linha reta, de um ângulo ou do número três, mas não chegará a nenhuma outra propriedade que não faça parte desses conceitos.” (KrV, A716/B744). Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 99 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva outra maneira senão analiticamente. É essa a opinião de Kant ou esse capítulo posterior esqueceu os anteriores? (Idem, p. 93). A menção a Schelling é importante aqui para delimitar a hipótese que este artigo pretende seguir: pretendemos defender que o método filosófico discursivo proposto por Kant não se reduz à mera análise de conceitos; mas propõe uma síntese que se dá por conceitos, como o próprio Kant explicita na Doutrina do método: Existe uma síntese transcendental por meros conceitos, de fato, que serve apenas à filosofia, mas ela nunca diz respeito a mais do que uma coisa em geral, sob cujas condições a sua percepção poderia pertencer à experiência possível (KrV, A719/B747). Esse método que requer uma “síntese por meros conceitos” parece tão paradoxal em um primeiro momento que ainda parece predominar a visão de que cabe ao método da filosofia crítica apenas a análise de conceitos, como defendeu já Schelling: “o filósofo, segundo Kant, não poderia operar com os conceitos, aos quais está limitado, de outra maneira senão analiticamente”. Como entender, portanto, a síntese discursiva que parece confrontar a própria tese central kantiana de que todo conhecimento sintético requer referência dos conceitos vinculados pelo juízo à intuição? 1. A Disciplina da razão pura e a síntese por conceitos É na última seção da Disciplina da razão pura, denominada Disciplina da razão pura em relação às suas provas, que a primeira Crítica expõe o método de prova da filosofia crítica e explica a possibilidade de uma síntese não intuitiva. Nessa seção, encontra-se uma passagem que, apesar de não ser muito clara, é central para a elucidação do modo como a razão humana, no método transcendental de prova, pode sair da mera análise conceitual sem precisar dispor de uma intuição sensível: As provas das proposições transcendentais e sintéticas têm em si, entre todas as provas de um conhecimento sintético a priori a propriedade de que a razão não pode nelas, através de seus conceitos, dirigir-se diretamente ao objeto, mas tem de estabelecer antes, a Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 100 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva priori, a validade objetiva dos conceitos e a possibilidade da síntese dos mesmos. Isto não é somente algo como uma regra necessária de prudência, mas diz respeito à essência e à possibilidade da prova mesma. Se devo ir além, a priori, do conceito de um objeto, isto é impossível sem um fio condutor particular encontrável fora desse conceito. Na matemática é a intuição a priori que conduz a minha síntese, e todas as inferências podem, nela, ser efetuadas imediatamente na intuição pura. No conhecimento transcendental que se ocupa apenas dos conceitos do entendimento esse fio é a experiência possível. A prova não mostra, com efeito, que o conceito dado (daquilo que acontece, por exemplo) conduza diretamente a um outro conceito (aquele de uma causa), pois semelhante passagem seria um salto que não se poderia justificar; mas ela mostra que a própria experiência, portanto o objeto da experiência, seria impossível sem tal conexão. (KrV, A782-83/B810-11). Essa passagem, central para entendero método transcendental da própria Crítica, destaca dois fatores essenciais para que seja possível uma síntese a priori que não dispõe da intuição: 1. Na prova transcendental, a razão humana não se dirige diretamente ao objeto, mas deve antes estabelecer a priori a validade objetiva e a possibilidade de síntese dos conceitos do entendimento, o que diz respeito à “essência e à possibilidade da prova”. Ou seja, não é possível uma prova que parta de conceitos sem validade objetiva, é por isso que a prova transcendental se ocupa apenas dos conceitos do entendimento e não dos conceitos da razão. 2. Nessa prova, não é a intuição, mas é a experiência possível que serve como fio condutor para que se saia do conceito de um objeto e se encontre algo fora dele de modo a priori. É preciso sair do conceito, pois as proposições transcendentais são sintéticas e a prova não consiste em decomposição de conceitos, mas estabelece “a possibilidade de chegar a priori, sinteticamente, a um certo conhecimento das coisas que não estava contido no conceito delas.” (KrV, A783/B811). Consequentemente, a prova exigida pelo método transcendental é um tipo muito peculiar de síntese a priori: uma síntese por conceitos que têm como fio condutor a experiência possível. Para compreender o método de prova empregado por Kant é preciso, portanto, compreender esses dois pontos: primeiro, de que modo a razão estabelece a validade objetiva e a possibilidade da síntese dos conceitos do entendimento; segundo, como a experiência possível pode servir como fio condutor em uma síntese a priori. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 101 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva Na Disciplina da razão pura, Kant fornece três regras exigidas em uma prova transcendental, a análise destas regras nos ajuda a começar a compreender melhor estes pontos. A primeira regra diz que em uma prova transcendental, que diz respeito apenas aos princípios do entendimento, é necessário exigir a dedução dos princípios empregados. O que não é possível para os princípios da razão pura, pois tais princípios são todos dialéticos e só são válidos como “princípios regulativos do uso empírico sistematicamente concatenado.” (KrV, A786/B814). Kant diz aqui que é necessária a dedução dos princípios do entendimento, mas na Analítica transcendental temos a dedução dos conceitos do entendimento, não dos princípios. Na segunda regra - que para cada proposição transcendental só pode ser encontrada uma única prova - Kant diz que “toda proposição transcendental parte apenas de um único conceito e enuncia a condição sintética da possibilidade do objeto segundo esse conceito” (KrV, A787/B815). A prova transcendental é sempre única pois ela não dispõe do diverso da intuição sensível (como na matemática ou na ciência da natureza), mas parte de um único conceito (KrV, A787/B815); como vimos, este conceito deve ser um conceito do entendimento. Ao propor a terceira regra - “que toda prova transcendental deve ser conduzida de modo direto” (KrV, A789-90/B817-18) - Kant torna explícito o que já indicava nas regras anteriores, a saber, que é a dedução transcendental que possibilita uma prova legítima de síntese para a filosofia: “Todos devem conduzir sua causa por meio de uma prova produzida corretamente, através de uma dedução transcendental dos argumentos.” (KrV, A794/B822). Entretanto, a prova transcendental de síntese por conceitos não se reduz à dedução transcendental das categorias, esta fornece apenas o fundamento da prova; mas a prova propriamente - que precisa da experiência possível como fio condutor - está presente na Analítica dos princípios.8 Ora, na primeira regra, Kant diz que a prova transcendental diz respeito aos princípios do entendimento (KrV, A786/B814); na segunda, que a prova transcendental parte de um conceito (KrV, A787/B815). Ou seja, a prova transcendental parte de um conceito que possui validade objetiva (pois passou pela dedução transcendental), mas a síntese propriamente, que têm como fio condutor a experiência possível, só é obtida na prova dos princípios do entendimento. Isso é 8 Cf. SCHULTING, p. 37-38. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 102 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva confirmado por Kant na seguinte passagem da Disciplina da razão pura com relação ao seu uso dogmático9. através dos conceitos do entendimento, ela [a razão pura] de fato estabelece princípios seguros mas não diretamente a partir de conceitos, e sim indiretamente, através da relação desses conceitos a algo inteiramente contingente, a saber, a experiência possível; pois quando esta (algo como objeto da experiência possível) é pressuposta, eles são de fato apoditicamente certos, mas não podem jamais ser conhecidos em si mesmos (diretamente) a priori. (KrV, A737/B765). Isso significa que um princípio do entendimento não pode ser obtido pela mera análise de um conceito do entendimento. Tais conceitos são o ponto de partida da prova destes princípios, mas é necessário um fio condutor para sair do conceito: quando um objeto da experiência possível é pressuposto, diz Kant, os conceitos do entendimento são universalizados em princípios apodíticos. Isso revela, ainda que de modo conciso, o papel da experiência possível na síntese por conceitos. Porém, para compreender melhor essa síntese, é necessário compreender a diferença entre os conceitos e os princípios do entendimento. Na própria Disciplina da razão pura, Kant define um conceito do entendimento como o princípio da síntese das intuições empíricas possíveis, em nota Kant explica que o conceito do entendimento “é uma regra da síntese das percepções” (KrV, A722/B750). Isso significa, que o que fornece conteúdo a um conceito a priori do entendimento não é uma intuição pura, mas a regra formal de qualquer intuição empírica possível, é por isso que ele não é um conceito sensível, mas um conceito transcendental. Zoller (2010, p.92/93) explica essa passagem usando como exemplo a categoria de causalidade, segundo o autor esta categoria não contém nenhuma intuição, nem empírica, nem pura, mas a regra formal do pensamento causal que torna possível que uma sequência de fenômenos temporais seja objetivamente apreendida. Já os princípios do entendimento, também denominadas de proposições transcendentais, são proposições sintéticas sobre coisas em geral cuja a intuição não pode ser dada a priori: "ela contém apenas a regra segundo a qual uma certa unidade 9 A Disciplina da razão pura é dividida em quatro seções, neste artigo comentamos passagens somente da primeira e quarta seções, pois somente estas tratam sobre o método discursivo. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese103 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva sintética deve ser empiricamente buscada para algo que não pode ser representado intuitivamente a priori (as percepções).", diz Kant. (KrV, A720/B748). Segundo Seneda (2018, p. 49) isso significa que o conhecimento filosófico “pressupõe as condições da síntese nas quais um objeto poderá vir a ser indiretamente acolhido quando a sua matéria puder preencher as regras de unificação de uma síntese empírica.”. É curioso que Kant atribui tanto aos conceitos quanto aos princípios do entendimento a função de sintetizar a intuição empírica em percepção através de uma regra a priori. A diferença essencial parece estar no fato de que os princípios do entendimento, pelo fio condutor da experiência possível, tornam apoditicamente certas as regras contidas nos conceitos do entendimento. Portanto, parece que o papel da experiência possível nesta síntese a priori é fazer com que a regra de síntese da percepção, dada pelo conceito do entendimento, possa se tornar um princípio sintético universal e necessariamente válido, sem que nenhuma intuição seja necessária para isso10. Porém, encontramos aqui uma dificuldade para compreender como a experiência possível pode servir com fio condutor em uma síntese a priori. Kant afirma que a experiência possível é algo inteiramente contingente, mas que quando pressuposta torna os conceitos do entendimento apoditicamente certos (KrV, A737/B765, grifos nossos). Ora, se os princípios do entendimento são regras apodíticas da síntese da experiência, como eles podem ter como fio condutor algo inteiramente contingente? Um juízo sintético a posteriori também possui como fio condutor algo contingente, i. e., a intuição empírica, mas o conhecimento empírico “não pode jamais fornecer proposições necessárias e apodíticas” (KrV, A721/B749). Consequentemente, temos que compreender de que modo a experiência possível, sendo inteiramente contingente, pode servir como fio condutor na síntese de princípios a priori. Ou seja, com que direito a razão pode usar a experiência possível como mediador em uma síntese de princípios 10 Como salienta Loparic (2005, p. 42), “A relação entre conceitos do entendimento e propriedades de experiências reais ou apenas possíveis não torna intuitivas as provas transcendentais dos princípios do entendimento.”. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 104 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva apodíticos.11 Uma pista para responder essa questão, está na seguinte passagem do §14 da Dedução transcendental: A dedução transcendental de todos os conceitos a priori tem, portanto, um princípio ao qual toda pesquisa tem de ser direcionada, qual seja: que eles, como condição a priori da possibilidade da experiência (seja da intuição que é nelas encontrada, seja do pensamento), tem de ser conhecidos. Justamente por isso, conceitos que fornecem o fundamento objetivo da possibilidade da experiência são necessários. [...] Sem essa referência originária à experiência possível, na qual todos os objetos do conhecimento se apresentam, a referência dos mesmos a um objeto qualquer não poderia ser de modo algum compreendida. (KrV, A94/B126-27). Se o ponto de partida da prova dos princípios do entendimento são os conceitos do entendimento, e se a dedução pretende mostrar que estes conceitos contém em si as condições a priori da possibilidade de experiência; então, podemos tomar como hipótese que essa referência originária dos conceitos do entendimento à experiência forneceria o direito de usar a experiência possível como recurso em uma síntese a priori que não dispõe da intuição. Isso significaria que a experiência possível é contingente na medida em que ela não se refere a algo específico e determinado; mas as regras nas quais ela se funda, dadas pelos conceitos do entendimento, não são contingentes. Dado isso, é necessário compreendermos de que modo a dedução estabelece a relação entre as categorias e experiência possível, para assim compreendermos como a dedução transcendental torna possível uma síntese não intuitiva a partir dos conceitos do entendimento. 2. A Dedução transcendental e a validade objetiva das categorias Na seção anterior levantamos dois pontos essenciais para compreender como é possível a síntese por conceitos própria do método da filosofia transcendental. Primeiro é preciso compreender como a razão estabelece a validade objetiva e assim garante a 11 Na Lógica de Viena Kant diz que tanto o conhecimento filosófico quanto o conhecimento matemático são apodíticos (Log AA 09: 830); contudo, em seu livro A semântica transcendental de Kant, Loparic argumenta que os juízos da filosofia não são rigorosamente princípios apodíticos, pois somente juízos intuitivamente evidentes podem ser assim chamadas (2005, p. 70-71). Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 105 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva possibilidade de síntese dos conceitos do entendimento (KrV, A782/B810). O segundo ponto diz respeito a como a experiência possível pode ser usada como fio condutor em uma síntese a priori. Logo no início da Dedução, temos uma passagem que nos aponta a resposta para essas duas questões: a validade objetiva das categorias, como conceitos a priori, repousará em que apenas por meio delas é possível a experiência (segundo a forma do pensamento). Pois assim elas se referem de maneira necessária e a priori a objetos da experiência, já que por meio delas pode um objeto qualquer da experiência ser em geral pensado. (KrV, A93/ B126). Isso confirma que é a dedução que deve estabelecer a possibilidade de síntese dos conceitos do entendimento, estabelecendo a validade objetiva destes. Além disso, é com a validade objetiva das categorias que fica determinado de modo a priori a possibilidade de experiência; o que deve fornecer a legitimidade do uso da experiência possível como fio condutor na síntese dos princípios do entendimento. É preciso primeiro estabelecer a relação entre categoria e experiência, para, a partir disso, pressupor a experiência em uma síntese a priori. Desse modo, tanto a possibilidade de síntese dos conceitos, quanto a legitimidade do uso da experiência possível como fio condutor da síntese, dependem do argumento prévio que estabelece a conexão a priori das categorias com a experiência. É somente no final da dedução, no §26 cujo título já indica: Dedução transcendental do uso universalmente possível dos conceitos puros do entendimento na experiência, que Kant irá explicar a possibilidade de conhecimento a priori dos objetos da experiência por meio das categorias. (KrV, B159). Este parágrafo trata da síntese da apreensão e possui dois objetivos centrais: primeiro Kant pretende mostrar que a sínteseda apreensão torna possível que o diverso da intuição empírica seja unificado em percepção; para, na sequência, provar a validade objetiva das categorias ao provar que as categorias regem não apenas a sensibilidade, mas a própria experiência. O argumento consiste em mostrar que as categorias regem a percepção, e, consequentemente, regem também a experiência, uma vez que esta é formada por percepções conectadas. (Allison 2004, p. 193). Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 106 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva Kant inicia o argumento definindo síntese da apreensão do seguinte modo: “por síntese da apreensão eu entendo a composição do diverso em uma intuição empírica pela qual se torna possível a percepção, i. e., a consciência empírica da mesma (como fenômeno)” (KrV, B160). Segundo Allison (2004, p.193), o argumento encontra-se dividido em seis passos. O primeiro passo mostra que a síntese da apreensão está de acordo com as determinações do espaço e do tempo (KrV, B160). Assim, tudo que é condição necessária para a representação do espaço e do tempo, é também condição necessária para a apreensão ou percepção de algo dentro do espaço e do tempo. (Allison, 2004, p. 194). No segundo passo, Kant afirma que o espaço e o tempo não são apenas intuições formais, mas são intuições mesmas. (KrV, B160/161). Kant, então, anexa uma nota de rodapé onde se atém na distinção, já realizada no § 24, entre forma da intuição e intuição formal. O ponto desta distinção é que o espaço e o tempo enquanto formas da intuição já contêm em si a determinação da unidade do diverso. (Allison, 2004, p.194). Segundo Longuenesse (1998, p.216), a forma da intuição corresponde ao espaço e o tempo tal como apresentados por Kant na Estética transcendental, enquanto a intuição formal depende da síntese transcendental da imaginação que só é possível tendo as categorias por fundamento. O terceiro passo é uma consequência dos passos anteriores. Kant afirma aqui que as condições de representação da unidade do espaço ou do tempo são também condições da apreensão de algo que está determinado no espaço ou no tempo. Isso significa que qualquer coisa que está dentro da intuição a priori deve estar sob as regras da unidade desta. Este passo conecta a síntese transcendental da imaginação com a síntese da apreensão: ele mostra que a representação da unidade não é obtida passivamente através da nossa faculdade sensível, mas exige uma atividade sintética do entendimento (Allison, 2004, p. 195). No quarto passo Kant diz: “Esta unidade sintética, porém, não pode ser outra se não a da ligação do diverso de uma dada intuição em geral em uma consciência originária, em conformidade com as categorias, aplicada apenas à nossa intuição Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 107 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva sensível.” (KrV, B161). Apesar de Kant não fornecer um argumento para este passo, mas simplesmente assumir que a unidade necessária para a apreensão é a aplicação da unidade do diverso de uma intuição em geral à sensibilidade humana, segundo Allison (2004, p.195), este resultado é obtido se assumirmos que a síntese transcendental da imaginação é governada pelas categorias, e conectarmos isso com o terceiro passo: que as condições de representação da unidade do espaço ou do tempo, são também condições da apreensão de algo que está determinado no espaço ou no tempo. Em suma, este passo da dedução se sustenta uma vez que Kant tenha provado que a síntese transcendental da imaginação está sujeita às categorias, e que a síntese da apreensão está sujeita à síntese transcendental da imaginação. (Idem, ibidem). No quinto passo Kant diz: “Toda síntese, por conseguinte, pela qual a própria percepção se torna possível, situa-se sob as categorias…” Este passo torna conclusivo aquilo que os passos anteriores conduziam, a saber, que toda síntese da percepção situa-se necessariamente sob as categorias. Esta conclusão é válida se assumirmos que a percepção envolve a representação do objeto percebido como determinado no espaço e no tempo. (Idem, p. 195/196). Vemos, então, que o argumento do §26 depende em grande parte do §24, segundo o qual a síntese transcendental da imaginação está sujeita às categorias. Contudo, o trabalho da síntese transcendental da imaginação não envolve um juízo discursivo, o que poderia nos indicar que esta síntese - e consequentemente a síntese da apreensão - não está sob determinação das categorias. Mas o papel desta parte da dedução é mostrar que mesmo que a percepção não dependa dos juízos discursivos, ainda assim, ela está condicionada pelas categorias. (Idem, p.196). Para esclarecer isso, Kant utiliza um exemplo da percepção de uma casa, segundo o qual a categoria da quantidade torna possível a síntese do diverso enquanto regra de apreensão: Assim, se eu transformo a intuição empírica de uma casa, por exemplo, por meio da apreensão do diverso da mesma, em uma percepção, então eu tenho por fundamento a unidade necessária do espaço e da intuição sensível em geral, e como que desenho a sua figura em conformidade com essa unidade sintética do diverso no espaço. Se faço abstração da forma do espaço, contudo, essa mesma unidade sintética tem seu lugar no entendimento e é categoria da síntese do homogêneo em uma intuição em geral, i. e., a categoria de Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 108 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva quantidade à qual aquela síntese da apreensão, i. e., a percepção, tem de ser inteiramente conforme (KrV, B162). O que Kant mostra aqui, é que a percepção de uma casa, enquanto um objeto tridimensional, está sob a determinação do espaço que a casa ocupa. Neste caso, a regra da apreensão é fornecida pela categoria de quantidade, e a categoria aqui não possui uma função conceitual como condição para a formulação de um juízo, ela fornece apenas as condições para uma síntese figurativa através da singularidade e homogeneidade do espaço (Allison, 2004, p.196/197). Até aqui, Kant obtêm êxito em mostrar que através da síntese da apreensão as categorias fornecem as regras que transformam o diverso da intuição empírica em percepção. É precisamente este o papel atribuído às categorias na Disciplina, onde Kant diz que o conceito do entendimento contém “o princípio da síntese das intuições empíricas possíveis” (KrV, A722/B750). Mas tanto a possibilidade de síntese das categorias, quanto a legitimidade do uso da experiência possível como fio condutor na síntese por conceitos, dependem da referência a priori das categorias à experiência. Estaé a função do sexto passo do argumento: “como a experiência é conhecimento por meio de percepções conectadas, então as categorias são condições de possibilidade da experiência e valem a priori, portanto, também para todos os objetos da experiência.” (KrV, B161). Contudo, o argumento que visa estabelecer a conexão entre categorias e experiência é problemático, pois, de acordo com a concepção essencial de Kant acerca de experiência ao longo da Dedução B, esta se distingue da mera percepção pois envolve uma atividade cognitiva, enquanto a percepção é pré-cognitiva (Allison, 2004, p.198), uma vez que a experiência difere da mera percepção precisamente porque ela envolve juízos. (Idem, p.200). Kant fornece um segundo exemplo em que aborda o conceito de causalidade através do congelamento da água. Uma vez que o conceito de causalidade sempre é usado para mostrar a determinação a priori das categorias na experiência, seria esperado que aqui fosse dado um passo além no argumento que conecta as categorias com a experiência. O exemplo diz o seguinte: Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 109 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva Se (num outro exemplo) eu percebo o esfriamento da água, então eu apreendo dois estados como tais (da fluidez e da solidez) que estão em uma relação de tempo um com o outro. No tempo, porém, que eu ponho como fundamento para o fenômeno enquanto intuição interna, eu me represento necessariamente a unidade sintética do diverso sem a qual aquela relação não poderia ser dada, de maneira determinada (em relação à sucessão temporal), em uma intuição (KrV, B162). O mais curioso aqui é que Kant não faz nenhuma referência à experiência, mas apenas à percepção ou apreensão; portanto, não nos fornece um passo além com relação ao argumento do exemplo anterior (Allison, 2004, p.199). A diferença entre os dois exemplos é que um relaciona a categoria de quantidade com a apreensão de um objeto espacial e o outro a categoria de causalidade com a apreensão de uma ocorrência temporal, mas nenhum dos dois justifica o vínculo entre percepção e experiência. (Idem, ibidem). Apesar desta aparente falha no argumento, a seguinte passagem da Disciplina parece sugerir que o próprio Kant considerava que o argumento que mostra que a categoria de causalidade rege toda experiência não poderia ser obtido rigorosamente apenas com a Dedução, mas que só estaria completo com a prova dos princípios do entendimento. A passagem diz o seguinte: Ninguém pode, pois, discernir rigorosamente [gründlich einsehen], apenas a partir desses conceitos dados, a proposição “tudo que acontece tem sua causa”. Por isso ela não é um dogma, ainda que de um outro ponto de vista, i. e., a experiência, possa ser provada de maneira eficaz e apodítica. Embora tenha de ser provada, contudo, ela se denomina princípio, e não teorema, porque tem a peculiar propriedade de tornar primeiramente possível a sua própria demonstração, a saber, a experiência, e nesta tem de ser sempre pressuposta. (KrV, A737/B765). Segundo essa passagem, a prova de que toda experiência é regida pela categoria de causalidade (presente na segunda Analogia da experiência) não pode ser discernida rigorosamente apenas a partir de um conceito do entendimento, é preciso da relação deste conceito com a experiência. Para que uma regra contida em um conceito seja universalizada é preciso obter um princípio, o que não pode ser obtido pela mera decomposição do conceito: “Ninguém pode, pois, discernir rigorosamente [gründlich Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 110 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva einsehen], apenas a partir desses conceitos dados, a proposição ‘tudo que acontece tem sua causa’”. Caso uma proposição fosse provada apenas com conceitos, então ela seria um dogma e não um princípio, diz Kant. Para provar um princípio é necessário que a experiência seja sempre pressuposta12. No entanto, essa conclusão não soluciona um problema anteriormente levantado. Pois se Kant não prova na dedução que toda experiência é regida pelas categorias, com que direito a experiência possível pode servir como fio condutor na síntese a priori dos princípios do entendimento? Paralelamente, vimos que para estabelecer a possibilidade de síntese das categorias, era preciso estabelecer a validade objetiva destas. A nossa hipótese era que a síntese não intuitiva deveria ser antes legitimada pelo argumento que prova a referência originária das categorias à experiência. Mas o argumento estabelece o vínculo das categorias apenas com a percepção e não com a experiência. É possível, contudo, que Kant não tivesse a intenção de abranger o aspecto cognitivo da experiência no §26, mas apenas o aspecto perceptivo, pois na seção da Analítica dos princípios denominada O princípio supremo de todos os juízos sintéticos, Kant diz: A experiência, porém, baseia-se na unidade sintética dos fenômenos, i. e., em uma síntese, segundo conceitos, dos objetos dos fenômenos em geral, uma síntese sem a qual ela não seria jamais conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que não se juntariam jamais em um contexto segundo regras… (KrV, A156./B195, grifos nossos). Kant diz aqui que sem a síntese segundo conceitos a experiência “não seria jamais conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que não se juntariam jamais em um contexto”. Isso mostra que existe uma relação entre o aspecto cognitivo da experiência (a experiência tornar-se conhecimento) e a conexão das percepções em uma mesma consciência; e que ambas dependem não apenas do entendimento, mas também da faculdade de julgar. Assim, o argumento que prova que as categorias tornam possível a experiência enquanto conhecimento, e que a experiência é formada pela conexão de 12 Esta conclusão é confirmada por Schulting (2013, p. 25): “I propose that although Kant’s reasoning is not explicitly modelled after a strict axiomatical deduction, and is thus not a direct proof from concepts sans phrase, it is still a deductive proof from concepts, but one that is so implicitly or mediately, namely by having recourse to possible experience.”. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 111 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva percepções, só poderia ser obtido de modo completo quando provado os princípios a priori que tornam apoditicamente certos os conceitos do entendimento. Na própria dedução (§27) há uma afirmação de Kant que sustenta essa hipótese: “Quanto, porém, a como elas [as categorias] tornam a experiência possível, e quais princípios da possibilidade da mesma elas fornecem em sua aplicação aos fenômenos, isto será melhorexplicado no próximo capítulo, sobre o uso transcendental da faculdade de julgar.” (KrV, B167). É claro que uma resposta conclusiva sobre isso só poderá ser obtida com uma investigação da Analítica dos princípios13, em especial das provas dos princípios do entendimento encontrada nas Analogias da experiência, onde Kant prova que “a experiência só é possível por meio da representação de uma conexão de percepções” (KrV, A176/B219). Esperamos, portanto, que uma ulterior investigação possa contribuir para uma compreensão mais ampla do método de síntese discursiva, em especial sobre o papel da experiência possível nesta síntese. Considerações finais Ao longo deste artigo buscamos compreender qual o método que a Crítica segue em suas provas na Doutrina dos elementos e como ela explica e justifica esse método na Doutrina Transcendental do método. Esse problema fundou-se nas considerações de Kant sobre o método que a Crítica deve adotar para a própria investigação do alcance da razão pura, caracterizado como: “uma síntese transcendental por meros conceitos (...) que serve apenas à filosofia, mas nunca diz respeito a mais do que uma coisa em geral, sob cujas condições a sua percepção poderia pertencer à experiência possível.”(KrV, A719/B747). Schelling (2001, p. 89) abordou este mesmo problema, afirmando que Kant "concebe o método demonstrativo na filosofia apenas no espírito do dogmatismo e como análise lógica”. O que Schelling não menciona é que Kant propôs uma síntese para a filosofia na primeira Crítica, mesmo que esta síntese não disponha da intuição. 13 Tanto Allison (2004, p. 201), quanto Longuenesse (1998, p. 244-45), argumentam que a Analítica dos princípios completa o argumento que conecta a sensibilidade com a cognição. Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 112 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva Para encontrar um método legítimo para a filosofia, Kant mostrou que esta não poderia permanecer no erro da metafísica dogmática de se ater à mera análise de conceitos. No entanto, a síntese operada pela filosofia não deve ser uma síntese a posteriori, uma vez que pretende possuir um conhecimento a priori puro (não empírico); nem uma síntese que possui como fio condutor a intuição pura (como ocorre na matemática). A síntese própria da filosofia é uma síntese transcendental por meros conceitos. A nossa dificuldade estava justamente em compreender como é possível este tipo de síntese, dado que Kant afirmou em diversos momentos da Crítica que todo conhecimento sintético é formado pelo vínculo entre intuições e conceitos no juízo. Na Disciplina da razão pura, Kant mostra que o fio condutor da síntese por meros conceitos é a experiência possível; que a prova transcendental diz respeito apenas aos conceitos do entendimento e não aos conceitos da razão; e que estes conceitos devem passar primeiro por uma dedução transcendental para que seja estabelecida sua possibilidade de síntese, através da prova de sua referência originária aos objetos da experiência. A questão central da nossa investigação neste ponto foi compreender como as categorias podem se referir de modo a priori a objetos da experiência; essa questão responderia dois pontos centrais da nossa investigação: como a experiência possível pode servir como fio condutor na síntese por conceitos e como a possibilidade de síntese dos conceitos do entendimento é estabelecida. Para isso, buscamos compreender o §26 da dedução transcendental, pois é nele que Kant pretende mostrar que as categorias possuem validade objetiva como condições a priori de toda experiência, isso significa que com esta dedução podemos saber a priori que qualquer possibilidade de experiência está sob as regras das categorias. O que não sabíamos, até então, era se Kant obteve êxito em provar no §26 o uso universal das categorias na experiência. Neste parágrafo Kant aborda a síntese da apreensão e pretende provar não apenas que as categorias regem toda percepção, mas também toda a experiência, pois a experiência nada mais é que percepções conectadas por regras. Contudo, Kant não justifica no §26 que a experiência é formada por percepções conectadas, portanto, o argumento neste parágrafo não é completamente Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese 113 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva exitoso em mostrar a conexão a priori entre categorias e experiência, e, desse modo, em mostrar como a dedução transcendental estabelece os fundamentos da síntese por conceitos. Apesar da segunda parte da dedução não provar satisfatoriamente o uso a priori e universal das categorias na experiência, temos uma expectativa de que a conexão entre categorias e experiência seja completada pela Analítica dos Princípios (mais especificamente pelas três analogias da experiência) e de que as provas dos princípios do entendimento possam elucidar melhor como é possível a síntese por conceitos. Mesmo não tendo obtido uma compreensão completa acerca do método sintético da filosofia empregado por Kant na primeira Crítica, ainda assim, chegamos a uma conclusão importante no que diz respeito ao nosso problema inicial, a saber, se a síntese discursiva empregada pela Crítica em suas provas é totalmente independente da intuição. A conclusão a que chegamos é que, apesar da síntese discursiva ser uma síntese por meros conceitos - pois nesta não há relação dos conceitos no juízo por intermédio da intuição - mesmo assim, tal síntese possui uma relação com a intuição a priori, pois parte de conceitos do entendimentos que passaram por uma dedução. Na dedução transcendental da primeira Crítica, Kant estabelece a conexão entre entendimento e sensibilidade pura através da síntese transcendental da imaginação; para, em seguida, provar que a síntese transcendental da imaginação é a forma da síntese empírica da apreensão. Caso essa conexão não existisse, as categorias e, consequentemente, os princípios sintéticos do entendimento poderiam contradizer as condições da sensibilidade a priori, e, com isso, contradizer as condições da experiência. Mas o papel dos princípios do entendimento é justamente fornecer as condições a priori de toda experiência. A diferença essencial entre o método de análise próprio da filosofia dogmática e o método transcendental de síntese empregado por Kant consiste justamente em que este último está limitado pelas condições de possibilidade da experiência. No prefácio B da CRP, ao apontar o erro da metafísica dogmática, Kant afirma que esta “se eleva por completo para além dos conhecimentos da experiência por meio de meros conceitos” (KrV, BXV). A filosofia crítica, ao contrário, embora empregue uma síntese por meros Vol. 14, 2020 www.marilia.unesp.br/filogenese114 http://www.marilia.unesp.br/filogenese O problema da síntese discursiva conceitos em suas provas, está sempre dentro dos limites da experiência, pois esta síntese possui como fio condutor para sair do conceito do objeto a própria experiência possível. Referências bibliográficas ALLISON, H. Kant’s Transcendental Idealism. New Haven and London: Yale University Press, 2004. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Fernando Costa Mattos. 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